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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.65 Rio de Janeiro abr./jun 2021  Epub 26-Dez-2019

https://doi.org/10.12957/teias.%y.55795 

Práticas pedagógicas alternativas em contextos de incerteza e crise

MEIOS DIGITAIS, ENSINO E PRÁTICA DOCENTE: mudanças e permanências no contexto da pandemia de COVID 19

DIGITAL MEDIA, TEACHING AND TEACHING PRACTICE: changes and permanence in the context of the COVID pandemic 19

MEDIOS DIGITALES, DOCENCIA Y PRATICA DOCENTE: cambios y permanencia en el contexto de la pandemia de COVID 19

Patrícia Coelho da Costa1 
http://orcid.org/0000-0002-2277-2779

Luiz Augusto Cavalcante Teixeira2 
http://orcid.org/0000-0001-9646-6101

1Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

2Colégio Santo Agostinho/Colégio Santa Marcelina


Resumo

O tema deste artigo é o ensino praticado por professores de instituições privadas localizadas no município do Rio de Janeiro por meios digitais nos períodos anterior e posterior a interrupção das aulas presenciais pela pandemia de Covid 19. O ensino por meios digitais não se confunde com ensino a distância, pois não existe intenção de substituir a escolaridade tradicional. A partir da análise de entrevistas com docentes que trabalham em cursos online ou em colégios que adotam sistema de aulas moduladas, a pesquisa teve como objetivo identificar e analisar as permanências e as mudanças neste tipo de ensino a partir de experiências pedagógicas do ensino presencial e do ensino remoto. Foram investigadas o processo de virtualização da sala de aula, a interatividade e a questão da propriedade intelectual e o uso de imagem na internet. Os resultados apontam que as aulas por meios digitais em tempos de pandemia de Covid 19 refletem desafios e problemas do ensino modulado presencial.

Palavras-chave: Experiências pedagógicas; Pandemia de Covid 19; Internet

Abstract

The theme of this article is the teaching practiced by teachers from the private network in the city of Rio de Janeiro by digital means in the periods before and after the interruption of the face-to-face classes by the Covid pandemic 19. Teaching by digital means is not to be confused with distance learning, as there is no intention to replace traditional schooling. Based on the analysis of interviews with professors who work in online courses or in schools that adopt a system of modulated classes, the research aimed to identify and analyze the permanences and changes in this type of teaching based on pedagogical experiences in face-to-face and remote teaching. Virtualization classroom, interactivity and the issue of intellectual property and the use of images on the internet were investigated. The results show that classes by digital means in times of Covid 19 pandemic reflect the challenges and problems of face-to-face modulated teaching.

Keywords: Padagogical experiences; Teaching work; Internet

Resumen

El tema de este artículo es la docencia practicada por docentes de la red privada en la ciudad de Rio de Janeiro por medios digitales en los periodos previos y posteriores a la interrupción de las clases presenciales por la pandemia de Covid 19. La docencia por medios digitales no debe confundirse con la educación a distancia , ya que no hay intención de reemplazar la escolarización tradicional. A partir del análisis de entrevistas a profesores que laboran en cursos online o en escuelas que adoptan un sistema de clases moduladas, la investigación tuvo como objetivo identificar y analizar las permanencias y cambios en este tipo de enseñanza a partir de experiencias pedagógicas de la docencia en el aula y la enseñanza remota. Se investigaron la virtualizacion del aula, la interactividad y el tema de la propiedad intelectual y el uso de imágenes en Internet. Los resultados muestran que las clases por medios digitales en tiempos de la pandemia de Covid 19 reflejan desafios y problemas de la enseñanza modulada presencial.

Palabras clave: Experiencias pedagógicas; Trabajo docente; Internet

INTRODUÇÃO

Em 16 de março de 2020, as atividades presenciais nas escolas foram interrompidas por motivo da quarentena imposta pela pandemia de COVID 19. No dia seguinte, foi publicada pelo Ministério da Educação a Portaria Nº 343 que dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas remotas enquanto durar a epidemia de coranvírus. O risco de disseminação do vírus impôs às escolas um desafio inédito: como manter a rotina escolar sem a presença física dos alunos e professores nas escolas? A solução encontrada – e forçada – foi migrar para o ensino não presencial. Contudo, não foi um movimento planejado. Foi um processo emergencial, na qual toda a comunidade escolar foi afetada pelas consequências da pandemia: mortes, desemprego, aumento da violência e incerteza.

A educação não presencial não é uma novidade. Desde o século XLX, é possível identificar registros em jornais sobre cursos que se propunham a transmitir informações e intruções por meio de cartas às pessoas que não tinham acesso ao ensino regular. Na década de 1930, houve diferentes iniciativas de educação por meio do rádio. Nos anos 1960, a televisão foi utilizada com o propósito de educar populações que viviam em regiões isoladas ou trabalhadores que por conta de sua rotina não dispunham de tempo para frequentar escolas regulares. A tecnologia digital, em especial, a internet, aumentou as possiblidades de acesso à educação. No ensino superior a Educação a distância passa a ser vista como uma estratégia para expansão dos cursos de graduação, pós-graduação e exetensão. Segundo dados da ABED (Associação Brasileira de Educação à Distância) cerca de 1,5 milhão de alunos participaram de cursos superiores com aulas no modelo EaD em 2019.

É preciso destacar o ineditismo do contexto que as escolas viveram e estão vivendo durante a pandemia, praticando o ensino remoto. Behar (2020) destaca que o ensino remoto emergencial e o ensino a distância não podem ser compreendidos como sinónimos. O ensino remoto pressupõe o distanciamento geográfico dos professores, imposto pelo decreto que interrompeu as atividiades escolares presenciais. É emergencial, porque não houve tempo para elaborar um planejamento pedagógico específico para esta modalidade de ensino, em um curto espaço de tempo as atividades presenciais foram adaptadas, com o objetivo de minimizar os impactos do distanciamento social.

No município do Rio de Janeiro os sistemas público e privado de ensino adotaram como estratégia para o enfrentamento dos efeitos da pandemia, que obrigou a suspensão das atividades presenciais, as plataformas digitais. Em um primeiro momento, as instituições reiniciaram suas aulas na quarentena, com atividades assícronas, que eram baseadas em leituras, indicações de vídeos, atividades e exercícios indicados pelos professores das turmas. Nas instituições públicas, a situação se apresentou de maneira delicada, à medida que grande parte dos alunos teve dificuldades de acesso à internet, inviabilizando o processo pedagógico emergencial, e deixando milhares de alunos sem aulas. Nas escolas privadas cariocas surgiram movimentos de pais e alunos que exigiram aulas remotas síncronas com os próprios professores das turmas. Houve casos nos quais os responsáveis pelos alunos alegaram que as atividades assícronas não eram “aulas de verdade” e por isso não pagariam as mensalidades. Assim, as escolas passaram a transmitir aulas ao vivo com os professores das turmas, com o mesmo formato das atividades presenciais: as mesmas estratégias, conteúdos e avaliação.

Dentro da perspectiva do uso de tecnologias digitais para a educação, o modelo adotado pelas escolas privadas no ensino remoto emergencial se aproxima do que Valente (2003) classifica como virtualização da escola tradicional:

Nesta abordagem da EAD a tentativa é implementar, usando meios tecnológicos, as ações educacionais que estão presentes no ensino tradicional. Essas ações são centradas no professor, que detém a informação, e sua função é passá-la para o aprendiz. Como acontece na sala de aula tradicional, nesta abordagem existe uma interação entre o aluno e o professor, mediada pela tecnologia.

A experiência de virtualização da escola tradicional não é inédita. Desde os anos 2000, cursos online de pré vestibular, como plataformas de educação adotadas por escolas privadas para reforço dos estudos. As plataformas de educação são desenvolvidas por empresas que entre outros serviços oferecem um banco de aulas digitais aos alunos. Já os cursos online de pré vestibular tem como pioneiro o curso Descomplica, que surgiu no Rio de Janeiro no ano de 2008, com a transmissão de aulas e conteúdo preparatório para o vestibular pela internet. Segundo o diretor pedagógico do curso online, os professores recebem aproximadamente 300 mil alunos por ano, e em eventos especiais - que são chamados de “aulões” – chegam a 2 milhões de alunos, às vésperas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). É o único curso do mercado que oferece aulas em todos os estados brasileiros.

O tema deste artigo são os desafios enfrentados pelos professores de escolas privadas e cursos preparatórios do município do Rio de Janeiro no processo de virtualização do ensino tradicional durante a pandemia do coranavírus. O contexto do trabalho docente não é inédito para muitos docentes, que já conciliavam suas práticas pedagógicas presenciais com os cursos online. O professor J. tem 42 anos e possui 20 anos de experiência docente. Já trabalhou em várias escolas particulares e começou suas atividades nos cursos online em 2013. A partir de 2015, gravava aulas quase todos os dias. Atualmente, o professor J. vem atuando no modo presencial e em plataformas online. A migração forçada para o ensino remoto, evidenciou problemas já enfrentados por esses professores no desenvolvimento de suas atividades em meio digitais. O professor R. tem 39 anos. Estudou Economia e História na UFRJ. Trabalhou durante muitos anos no Rio de Janeiro como professor de colégios preparatórios para o vestibular. Tem quase 18 anos de carreira no magistério. R. se orgulha em ser um dos pioneiros do processo de vídeo aula no Rio de Janeiro e no Brasil desde 2008.

Neste sentido, objetivo deste artigo é analisar algumas condições de trabalho dos professores em meios digitais, mostrando que algumas questões não são inerentes apenas ao contexto da pandemia, já existiam. O texto será dividido em três partes. Na primeira parte, será analisado o contexto das condições de trabalho dos docentes no ensino digital antes da pandemia. Na seção seguinte será estudada a interatividade durante o ensino remoto emergencial. Ao com o objetivo de identificar a permanência de alguns problemas que já existiam nos meios digitais no contexto anterior à pandemia. Ao final, tentaremos levantar alguns aspectos que ao nosso olhar permencerão como desafios a serem enfrentados pelos professores após a pandemia.

A metodologia utilizada foram entrevistas semi estruturadas com professores que trabalharam ou ainda trabalham em escolas privadas do município do Rio de Janeiro e no Curso Descomplica. As entrevistas com os docentes foram realizadas por meio remoto, devido ao contexto da pandemia, que gerou a necessidade de isolamento social. O meio digital também foi utulizado como fonte, por meio de anaálise canais do youtube que divulgam conteúdos pedagógicos.

A virtualização da sala de aula tradicional

Um dos principais desafios dos professores das escolas privadas durante a pandemia foi a falta de uma estrutura física e tecnológica para produzir e transmitir suas aulas pela internet. Os docentes em isolamento social usaram o espaço de suas casas como estúdio para a produção das aulas, disponibilizaram smartphones, tablets e laptops e arcaram com os custos da conexão de internet. O professor desempenhou um papel central. Mais do que os recursos tecnológicos, o docente procurou superar os problemas psicológicos dos alunos causados pelo distanciamento com o diálogo em suas aulas.

No processo de virtualização do ensino o professor procura transpor para o meio virtual o paradigma do espaço-tempo da aula. Neste sentido, os estudos de Agustín Escolano (apud Viñao, 1995, p. 72) ajudam a compreender o espaço e o tempo são fundamentais para caracterizar o sistema escolar. Não são aspectos neutros do ensino, a escolha dos objetos, assim como a organização do tempo, transparecem uma concepção de ensino e transmitem valores.

A escolha dos objetos escolares é fundamental para o desenvolvimento do método. No ensino remoto, a seleção foi criteriosa, à medida que estes serviram para reforçar o discurso dos docentes sobre o processo educacional. No ensino remoto foi interessante notar que os professores selecionaram artefatos que puderam transmitir os valores do espaço escolar, como o quadro negro, o relógio e a mesa do professor. O vídeo de uma professora que utilizou os azulejos de sua cozinha para que seus alunos visualizassem suas explicações, que viralizou na internet, é muito representativo para dimensionar a intenção dos docentes em reproduzir o espaço da escola.

A organização do tempo no ensino remoto emergencial foi outro aspecto que nos deu indícios do esforço realizado pelas intituições privadas de ensino para virtualizar a sala de aula tradicional. Neste sentido, houve praticamente a reprodução dos tempos escolares do ensino presencial, com pouca redução da carga horária. A organização das disciplinas, assim como o horário do intervalo foram mantidos.

É preciso lembrar que o isolamento social dos alunos gerou ansiedade, o momento da aula era também o do diálogo sobre o tempo difícil que todos viviam. O chat não era a única comunicação possível, era possível utilizar o microfone. A organização da fala reproduziu as regras da sala de aula, como a exigência que todos estivessem com os microfones desligados durante a explicação do professor.

As diferenças e semelhanças entre as aulas presenciais e as aulas remotas formam uma reflexão essencial para o presente trabalho. A partir da análise é possível perceber as possibilidades e, sobretudo, as limitações do ensino remoto. Para o professor J. o ensino remoto ser implementado sem maiores reflexões pedagógicas ou de maneira apressada, tende a ser um arremedo do ensino presencial, basicamente a mesma aula transplantada para um estúdio e transmitida pela internet para os alunos.

Eu vejo que, na maior parte dos casos, é redundante por uma questão de tradição. A maior parte dos professores do tele presencial são professores do presencial que simplesmente reproduzem, como eu faço, o que já faziam no presencial. Exceto em caso em que é inevitável, não tem o que fazer. Aí, tem coisa que não dá para fazer, não tem quadro. Aí eu tenho que me virar com outra coisa, um Power Point. Agora, há coisas em que eu ganho: o mapa que eu desenho no meu quadro é pior que o mapa que eu peguei na internet e eu mostro para eles no slide. Falar quem foi Afrânio de Melo Franco é diferente de mostrar a cara de Afrânio de Melo Franco, caricatura de Afrânio de Melo Franco, a estátua do Afrânio de Melo Franco, na rua Afrânio de Melo Franco do lado do Shopping Leblon. Em termos mnemônicos, o camarada descobre quem foi Afrânio de Melo Franco e por que ele está lá e lembra que passou no shopping Leblon. E vê a estátua do Afrânio de Melo Franco. Então, é óbvio que, nesse sentido, há um ganho em uma aula tele presencial e em uma aula presencial seria diferente. Não é que seja impossível fazer isso numa aula presencial; eu posso levar o power point e fazer a mesma coisa. Mas a verdade é que, na aula tele presencial, eu sou forçado a fazer isso. É minha única alternativa. Então, a qualidade da aula acho que, em geral, é melhor. O aluno tem acesso à internet imediatamente, ele está no computador, ele pode pesquisar uma música, ele pode entrar no youtube. Não é que, no presencial, isso não possa ser feito. Mas a verdade é que no tele presencial online não tem (outra) alternativa. Ele está lá; então, há ganho de qualidade, mas há perda de interação, de espontaneidade, de dinâmica e, sobretudo, de troca que eu acho muito rica. (J... 17 mar. 2020)

Em termos didáticos e no planejamento, o fato da inexistência de interação física com os alunos faz com que as aulas tenham determinadas peculiaridades para o professor. O tempo é determinante, a aula tem que ser planejada, como também deve ser no ensino presencial, mas segundo o professor J., os espaços de tempo devem ser todos preenchidos, pois o silêncio virtual deve ser evitado ao máximo.

Eu te repito que o fato de, como não tem interação, eu preciso planejar melhor o tempo. Essa é a única grande diferença. E eu não posso depender dos alunos. Eu sei que, se eu estiver dando uma aula presencial, eu posso deixar 15, 20 minutos de debate, aula aberta... Em uma aula tele presencial, isso é impossível. O máximo que eu posso fazer, se meu tempo estiver acabando, eu posso perguntar para o monitor se tem dúvida. E ele sempre pode me responder: “não, não tem dúvida.” E, aí, eu tenho que me virar. Isso aconteceu já. Meu repertório acabou. Eu fui dar uma aula de Renascimento. Não estou acostumado a dar uma aula de renascimento, porque aula de Renascimento eu só dou no Ensino Médio. Não cai no concurso do Itamaraty. Então, meu repertório de Renascimento e Humanismo é o repertório que eu tinha quando estava no PH e no AZ. A aula que eu dei no presencial há 9,10 anos (atrás). O tema acaba e eu ainda tenho 20 minutos de tempo, meia hora de tempo. E, aí, o que você faz? Então, eu sinto que eu sinto que sobra tempo em aulas nas quais meu repertório é menor, porque eu não tenho essa interação com o aluno, mas essa é a única diferença. (J. 17 mar. 2020)

A carga horária semanal não é pequena e os docentes acumulam também a carga de aulas presenciais na sua rotina de trabalho. Logo, se toma facilmente perceptível a influência das aulas e da experiência presenciais na construção das aulas digitais.

Então, eles fazem, no planejamento deles, eles mantêm uma aula, por exemplo, de Expansão Marítima, o aluno que está lá, entra para ver o planejamento semanal. Exemplo: essa semana 3 é Expansão Marítima. Então, eles colocam de opção, para o aluno, uma aula gravada desse tema. Então, se o aluno quiser assistir uma aula sobre o tema, antes da aula ao vivo, ele pode. Muitas vezes, é uma aula minha antiga dessas que botam lá. Mas, às vezes, a gente dá praticamente a mesma aula. Claro que todo ano a gente tenta fazer alguma coisa diferente, 1er alguma coisa nova. Já que a História é também uma ciência, coisa nova que tenham produzido. Às vezes, a gente busca a própria internet, os meios que a gente já conhece e que a gente já confia. Ou ver a aula de um outro professor, um amigo seu. Eu gosto muito dessa troca, acho muito enriquecedora. Eu gosto sempre de trazer uma coisa nova, uma conexão, uma relação que não fiz no outro ano. Eu fico pensando nisso, porque, se o aluno já tem a minha outra aula gravada, assiste antes e assiste à mesma aula ao vivo, chega uma hora em que ele perde o interesse. A grande verdade é que a imensa maioria dos alunos não tem essa disciplina de ver a aula antes do ao vivo. Ele assiste à aula ao vivo e depois ele vai assistir à sua aula atual. E, depois que passa o ao vivo, eles retiram essa aula sugerida e deixam somente sua aula gravada. (R. ,16 mar. 2020)

Outra questão necessária a ser discutida se relaciona ao discurso do professor e sua liberdade em sala de aula. Como funcionam as questões mais sensíveis do ensino da História quando trabalhadas de maneira não presencial? Como funcionam a memória, os silenciamentos, etc? O professor R. discorre sobre os cuidados pessoais, no discurso, que existem nas aulas presenciais e nas aulas remotas acabam sendo maiores.

Quando eu disse que o estudo é um ambiente mais controlado, eu digo de dinâmica de corpo, você só tem que olhar para um aluno que é a câmera. Não tem que olhar para o rosto de 70, 80 alunos. Mas, na verdade, quando a gente vai tocar nesse assunto, é o inverso. É um ambiente nada controlado o da aula online, e, aí, nesse caso, é o contrário, uma sala de aula com 30, 40 alunos é um espaço muito mais controlado por nós. Você pode dar um deslize, falar uma besteira que você volta atrás. No online, você está muito exposto. Vou dar um exemplo: uma vez falando, criticando, uma ditadura qualquer, na América Latina, de direita e eu não tive o cuidado de citar que ditaduras, em geral, são problemáticas. Nós tivemos ditaduras de esquerda, que também têm históricos de perseguições. (...) Sem muita gíria, tentar se comunicar bem. O segundo é evitar palavrões, eu, particularmente, se soltei foi 1 por ano... um “pô”, mas falar palavrão, eu, particularmente, não falo. Eu acho ruim, você não sabe com quem está falando. Tem gente que se sente ainda muito incomodado, e estamos falando de muitas pessoas do interior, pessoas com outro tipo de educação, pessoas muito religiosas, por exemplo. Então, tem que tomar muito cuidado. Eu não falo palavrão. Isso entra também na norma culta, não usar palavrões, não usar muitas gírias etc. Uma outra etapa é a questão política, muito complicada. Por mais que a gente saiba que o discurso não é parcial por definição, a gente tem que deixar muito claro o respeito às diversidades e que você não vai levantar nenhuma bandeira ali. Então, tomar muito cuidado. A organização dos conteúdos? (R. ,16 mar. 2020)

A interatividade

No processo de virtualização da sala de aula ocorrido no ensino emergencial remoto a reprodução da rotina escolar foi muito importante. Os professores entrevistados trabalhavam em instituições que adotavam as aulas moduladas. Nas aulas moduladas o docente, antes de iniciar a aula, sabe que precisa impreterivelmente terminar determinado conteúdo. A princípio, pode-se confundir uma aula modulada com um plano de aula, mas percebe-se que são completamente diferentes, uma vez que não há grandes reflexões sobre objetivos, metodologia e estratégias de avaliação. A aula modulada – sob a justificativa do pragmatismo e eficiência necessária para as aprovações no vestibular – não leva em consideração a realidade dos estudantes, os imprevistos do calendário, as particularidades ou escolhas didáticas do professor ou qualquer outro elemento que faça da aula um momento singular. O contato entre docentes e estudantes existe, obviamente, nas aulas moduladas. Contudo, o “módulo” é sempre um fantasma para o professor. Isso porque os alunos recebem o material didático antes das aulas em formato de apostila e podem acompanhar tudo aquilo que o professor precisa fazer. Logo, esse contato é prejudicado pela pressão existente, pois os estudantes se tornam fiscais do professor.

Para a exposição da matéria e a correção dos exercícios da apostila era solicitado aos alunos que desligassem os microfones de seus equipamentos e que só fossem acionados se o professor pedisse. É importante destacar que nem sempre o contato visual com os alunos foi possível. Devido aos problemas de instabilidade conexão da internet ou por não desejarem expor a residência, muitos discentes desligaram suas câmeras.

Na tentativa de virtualização da sala de aula, a falta de contato visual com os alunos representou um problema. Os professores ministravam suas aulas sem observar a expressão dos discentes. Nos cursos online os docentes já tinham a experiência de ministrar suas aulas sem esse contato visual. O professor R. relatou suas táticas, suas maneiras de fazer em circunstâncias em que ele teve que adaptar sua prática docente para o ambiente virtual:

É uma questão muito sua. Eu tenho para mim, eu crio o sentimento de que eu estou dando para aquela aula. Claro que, às vezes, eu uso muito o chateiro e o câmera como referência. Eu chamo toda hora, porque a gente tem essa mania e precisa disso. Então, às vezes, o Gui, que é de História, está lá no chat e eu busco essa interação com ele. Isso é legal também. Mas você cria para você, que está dando aquele clima e você tem que acreditar nisso. Se você não tem a turma de 70 alunos para te dar esse feedback, de 30, 70 ou 3.000 alunos. Então, você acredita naquilo também. Tem muito isso. E, aí, o feeling tem que estar muito mais apurado. Você tem que saber sozinho se a sua aula está ficando arrastada, se está ficando mais monótona. Você não tem mais aquele aluno que dormiu te olhando. Em que você pensa “preciso dar uma animada na aula, deve estar muito chata”. É só você. E a probabilidade dos dois que estão trabalhando com você dormirem é muito pequena. Um está na tecnologia e som, vendo se está tudo ok. E o outro está respondendo aos alunos, no chat, o tempo todo. (R. 16 mar. 2020)

A quantidade de alunos nos cursos online é outro desafio. Segundo o professor R é um diferencial para o ensino presencial:

Acho que isso é a maior mudança e, claro, na questão da aula e a relação com o aluno, você tem outras ferramentas que a câmera te dá. Porque, por outro lado, é um espaço mais controlado. A gente só pensa no lado difícil da câmera, que é “caramba, olhando para câmera, são 3 mil alunos”. Mas tem um outro lado, que facilita, que é uma câmera. Então, é você só olhando para câmera. Você quer fazer uma parte mais teatral, é só para a câmera. Se você estiver bem com aquilo já, se relaciona de forma muito mais íntima e o aluno que está te vendo, parece que é com ele. Você tem que passar a imaginar que tem uma turma do outro lado ou que tem uma pessoa te vendo. Então, você imagina que, se você chega perto da câmera e consegue falar bem perto e como se você estivesse conseguindo, em uma aula presencial, fazer isso na cara de cada aluno. Então, mesmo que para 3 mil pessoas, eu consigo fazer coisas que impactam o aluno, muito melhor do que em sala, presencialmente. Isso é a parte legal da câmera que as pessoas não percebem. E, se você não explora isso, você está perdendo um grande negócio. Se você ficar longe da câmera, como se fosse em uma aula presencial normal, se você não tentar esses momentos de interação mais íntima com o aluno, você está perdendo uma grande oportunidade. R., 16 mar. 2020)

A estrutura desenvolvida no Curso Descomplica visa o controle da audiência. Diante da falta de possibilidade de uma interação com os alunos, o docente deve saber qual é a sua audiência a todo instante. A partir disso, ele pode perceber se está conseguindo se fazer entender e se os objetivos de sua aula estão sendo atingidos. Por exemplo, se o professor estiver fazendo brincadeiras em demasia, algo que já foi um estigma das aulas do Descomplica no mercado de cursos preparatórios, o número de alunos cai imediatamente.

Mas a aula ao vivo, de novo, tem gente te assistindo. As aulas, hoje, que eu estou com menos gente... Por exemplo, em janeiro... eu dou aula em janeiro, porque eu tiro julho de férias. Tenho um acordo de dar aula 2 semanas em janeiro. Também não tiro férias no QI. Então, eu paro nas 2 últimas semanas de janeiro e as 2 semanas de julho – que tem aula, porque existem alguns vestibulares em janeiro. E a aula que não tem ninguém tem 150 pessoas, o que seria, hoje, no presencial, uma sala lotada. A gente ainda brinca “caramba, não tem ninguém”. Não tem ninguém para os padrões do Descomplica. Então, quando você passa a entender que existem dois momentos: essa interação durante a aula, de você aceitar que tem gente e tem um contador que te mostra ali o número de pessoas, isso, para gente, é importante. (...) Na verdade, tem um monitor onde eu me vejo e tenho um retorno. Nesse retorno, eu me vejo, vejo a hora, para eu controlar e um contador de views – quem está ali em tempo real. Então, eu vejo quantos alunos estão vendo a minha aula. O que também ajuda nesse feeling, porque, se eu começo a perder muito aluno, ali em tempo real, pode ser que a aula esteja ficando arrastada. (R. 16 mar. 2020)

Como é a percepção dos professores para as diferenças entre o ensino online e o presencial? A relação entre as aulas presenciais e as aulas online seriam de oposição ou complementariedade? O professor J. deixa claro que não são necessariamente complementares.

Isso, exatamente isso. E não deixa de ser. Muda pouco, muito pouco. Na hora que você vai para o online, você tem que ter um cuidado maior com a sua clareza. Porque, no presencial, você está ali, na certeza de que, se alguma coisa embolar, o aluno vai te parar e vai te sinalizar. Você tem essa ajuda do aluno. No online, não tem. É difícil um aluno no online mandar “professor, não entendi nada nos últimos 5 minutos”. Por mais que tenha um chateiro, ele pode mandar, mas é difícil. No presencial, a gente divide o quadro em vários pedaços, no online, isso é mais complicado. No online, o mapa mental de quadro é muito melhor. Eu levei 6, 7 anos para descobrir isso. Eu, hoje, faço mapa mental. Eu não montava mais os quadros da minha aula, porque estavam todos na minha cabeça. Até porque a gente não coloca tudo que a gente fala no mapa. Por mais que você leia uma coisa nova, você não escreve essa coisa nova. Você botava aqueles tópicos e ia. Então, eu não montava mais quadro. (R. 16 mar. 2020)

O relato do professor R., ao diferenciar as aulas online das aulas presenciais demonstra a importância do diálogo para a construção do conhecimento. O recurso didático utilizado pelos professores – o mapa mental, por exemplo, tem origem nas aulas presenciais. A utilização de mapas mentais em aulas do Ensino Médio é algo muito recorrente nos dias de hoje. O professor do curso Descomplica e de escolas relata como consegue superar a escassez de diálogo com os alunos e a impossibilidade de usar o quadro negro:

Eu tive que sentar, literalmente, pegar uma folha em branco e começar a montar mapas mentais. Fui muito inspirado pelo João Daniel, que tem um quadro lindo, fantástico. Então, eu tive que montar mapa. Hoje eu escrevo no meio a aula e vou puxando as setas. Quando eu termino minha aula, está tudo que eu escrevi ainda no quadro. É um take só. O aluno não precisa ficar fazendo vários prints daquela tela, como os alunos fazem copiando o caderno. E é muito legal, porque, pelas pesquisas atuais, os mapas mentais têm um impacto muito maior na absorção do aluno. Ele está o tempo todo vendo tudo que você falou de novo. Toda hora que ele olhar para o quadro, ele consegue retomar tudo aquilo que você falou naquela aula. Isso faz flashes para ele que fixam muito mais o conteúdo. E, depois ele estudando isso, ele fecha o olho e lembra. Ele tende a lembrar daquele mapa. Então, tem muitos ganhos e, nesse sentido, claro, a sua dinâmica de aula muda. Porque você não fica mais apagando o quadro e reescrevendo. Você vai falando o tempo todo, construindo aquele mapa junto com os alunos. Um cuidado muito maior com o que vai escrever, porque escreve muito menos. Não dá para escrever tudo, porque é um quadro só. Então, se toma muito cuidado, porque, se alongar muito, acaba o espaço e fica feio e confuso. E aí vira uma confusão mental. (R. 16 mar. 2020)

De acordo com Valle; Bohadana (2012), o desenvolvimento das tecnologias digitais trouxe a expectativa de uma reconfiguração da educação a distância:

As promessas de interatividade encontram na educação online um terreno fértil, não porque parecem anunciar um modelo pedagógico que abole a centralidade antes concedida ao diálogo direto e à presença física, como e sobretudo, por fornecerem argumento para inversão das atitudes geradas pela introdução da educação – inversão pela qual, longe de se constituir necessariamente em uma precarização pedagógica, a educação online se afirmaria como modelo e aperfeiçoamento da educação dita presencial. (p.980)

A interatividade, no sentido de estabelecimento de uma relação entre alunos e professores por meio da máquina, sempre foi posta como um dos principais diferenciais do ensino online. A possibilidade do contato visual entre docentes e discentes em tempo real é visto como uma possibilidade de aproximação das condições do ensino presencial. Neste aspecto, o contato visual e o diálogo direto, por exemplo, poderiam reproduzir o clima do espaço escolar, colaborando com o processo de virtualização da sala de aula.

Ao olhar de Valle; Bohadana (2012) a interatividade não deve ser reduzida a atividade do aluno de forma genérica. Nesta concepção em que o sujeito ativo é definido em oposição ao passivo, “a atividade é um termo genérico, carente de conceituação, que pode designar todo tipo de comportamento, a execução de qualquer operação, um movimento qualquer, sem maiores considerações acerca do quem e do porquê visados”. (p.981)

A interatividade é fundamental a educação online, mas não deve se reduzir a ela. A EaD online assim como a educação presencial devem ter como objetivo maior a “autoformação dos sujeitos envolvidos”. Assim, a interatividade é meio e não um fim. Os relatos dos professores entrevistados mostraram que a educação presencial praticada nas aulas moduladas tem como maior propósito que os alunos sejam em aprovados em concursos. Neste contexto educacional já havia pouco diálogo e interação. Como o ensino remoto tentou reproduzir o contexto presencial, houve a permanência da escassez de elementos básicos para interatividade.

As táticas utilizadas pelos docentes retratam as angústias vividas por eles no cotidiano escolar, que se intensificaram na pandemia. Durante a realidade de trabalho remoto, fatores exteriores, a saber, a crise econômica, o desemprego, a redução de jornadas de trabalho, fizeram com que muitos alunos não conseguissem pagar as mensalidades e terem que migrar para a rede pública de ensino. Diante da redução do número de matrículas, houve a pressão por parte da direção das escolas sob os docentes, apontado como um dos fatores do abandono dos alunos da rede particular.

A propriedade intelectual e o uso de imagem

As questões do uso de imagem enfrentadas pelos professores podem ultrapassar o tempo no qual ele trabalha em um curso online. Mesmo após a demissão, ou “desligamento” no jargão mercadológico dos dias de hoje, a imagem do docente pode continuar sendo usada pela empresa, por um período de até 5 anos, que remunera o direito de imagem de todos os professores, com 1% do faturamento bruto anual, que não fica claro para eles, à medida que os dados financeiros da empresa não são disponibilizados para os docentes de maneira clara. Todos devem confiar no que a empresa define como a sua cota no 1%, sendo que esse valor varia de acordo com o número de aulas gravadas pelo professor.

Interessante perceber que o Descomplica tem o controle total sobre as aulas, pois ninguém é consultado sobre a transmissão de aulas antigas e o numero de visualizações não é levado em conta para remunerar o direito de imagem, já que o pagamento é feito de acordo com número de gravações e não com o número de visualizações. Logo, um professor que gravou uma aula visualizada 1 milhão de vezes vai ganhar metade do que ganha um professor que gravou duas aulas vistas 100 vezes cada. Em um negócio que lucra com o número de alunos assinantes e de visualizações, não remunerar o docente de acordo com as visualizações de suas aulas é tirar o fruto trabalho do controle do professor. Assim, fica estabelecida uma relação de trabalho marcada pela desigualdade. Sobre essa nova conjuntura de possibilidade de trabalho e remuneração, discorre o professor J.:

Quem é que vai ter oportunidade? Vai ter, sei lá, 20, 30 professores de História no mercado porque 20,30 vão dar aula pro Brasil inteiro. Isso é um ponto. Isso, obviamente, para quem não está, é horrível. Mas, para quem está, também não é muito bom, porque o salário que você recebe e a renda que você tem nessas plataformas online não é suficiente para compensar... Na verdade, só aumenta a mais valia. Você recebe um salário que, talvez, seja superior ou igual ao de um professor de um bom colégio no Rio de Janeiro e o número de alunos que você tem é exponencial. 5.000, 10.000, o tempo que for necessário... Então, não é uma coisa equiparada. (J. 17 mar. 2020)

A situação em outros cursos de aulas online é ainda mais desigual. O Descomplica se destaca entre os professores que atuam em cursos online por pagar algo pela utilização da imagem – a fatia do 1% do faturamento anual, que varia de 8 mil a 30 mil reais por ano pra cada docente. Em um dos concorrentes diretos, o ProEnem, esse pagamento não existe. Os docentes desse curso recebem apenas a hora-aula estabelecida e assinam o termo de cessão de imagem, sem receber nenhum tipo de remuneração. Nota-se uma situação de precariedade e vulnerabilidade para o professor. No Brasil, não existe legislação que obrigue o empregador a remunerar o docente pelo uso de sua imagem na internet. O Marco Civil da Internet, por exemplo, não protege os direitos autorais dos indivíduos na internet.

Em países como EUA e França, tais questões parecem estar melhor resolvidas para os autores de conteúdos e informações. Nos EUA, o copyright visa proteger os direitos autorais.

Posteriormente, em 1998, foi sancionada a Digital Millennium Copyright Act (DMCA – lei dos direitos autorais do milênio digital), que criminaliza a discussão e difusão de tecnologia que pode ser usada para contornar os mecanismos de proteção de direitos autorais e torna mais fácil a ação contra suposta violação destes direitos na internet. Na mesma perspectiva, a Online Copyright Infringement Liability Limitation Act (OCILLA – lei de limitação de responsabilidade de infração de direitos autorais on-line) está incluída no “Título II” da DMCA, e limita a responsabilidade dos prestadores de serviços em caso de violação de direitos autorais por seus usuários. (SEGURADO, LIMA e AMENI, 2014, p.9)

Na França, a propriedade intelectual e autoral é protegida pela Lei Hadopi - Haute Autorité pour la Diffusion des Oeuvres et la Protection des Droits sur Internet (Hadopi – alta autoridade para a difusão de obras e a proteção de direitos na internet). Funciona da seguinte maneira:

O sistema funciona, basicamente, da seguinte forma: constatada a infração de um usuário, a Hadopi aborda o provedor de internet- tratado pela autoridade como responsável pelo usuário – solicitando os dados armazenados e processados, tais como histórico de navegação, número de identidade, e-mail e número de telefone (France, 2009), necessários para identificação dos usuários. Se comprovada a violação, o usuário recebe a sua primeira advertência por e-mail. Caso seja constatada a segunda violação, são enviados um novo e-mail e uma carta alertando sobre as possíveis consequências de uma nova infração. Então, se persistir na prática, o usuário pode ser acusado judicialmente. As penas variam entre o pagamento de multas e a interrupção do seu serviço de internet, não sendo possível, nesse período, qualquer negociação com outra empresa provedora. A França foi um dos primeiros países do mundo a desenvolver políticas em prol da propriedade intelectual, servindo de exemplo para que outros passassem a adotar esse modelo de política pública na área. (SEGURADO, LIMA e AMENI, 2014, p.14)

No Brasil, o Marco Civil da Internet é a legislação que estabelece as regras de utilização e funcionamento das atividades relacionadas à internet. O Marco Civil da Internet foi desenhado a partir de três fundamentos essenciais os quais norteiam a relação das empresas prestadoras de serviços de internet com os seus clientes. São eles: a neutralidade da rede, a privacidade e a fiscalização.

A neutralidade da rede é o principio que garante acesso democrático e igualitário dentro dos fluxos de informação, ou seja, estabelece que determinado fluxo, conteúdo, empresa ou individuo não pode ter prioridade sobre outros que possam estar navegando em determinado momento. A privacidade, por sua vez, estabelece que o internauta não pode ter suas atividades espionadas ou evidenciadas sem autorização prévia, ou ordem judicial em caso de suspeita ou pratica de crime. A fiscalização, prevista no Marco Civil, estabelece as obrigações dos servidores e dos usuários, com os limites de responsabilidade jurídica – que geralmente recai sobre o usuário, já que os servidores não podem ser responsabilizados por eventuais transgressões cometidas por terceiros na rede.

Em comparação aos países citados anteriormente, o Marco Civil não estabelece grandes garantias à propriedade intelectual sobre o que circula na internet, causando, assim, uma situação de vulnerabilidade para os professores/autores das aulas online. Na prática, o professor de um curso online pode ser responsabilizado por algo que disse em uma aula gravada – mesmo que seja uma aula gravada muitos anos antes – e que o referido docente não saiba que estava sendo exibida na plataforma. Por outro lado, seus direitos de imagem e propriedade intelectual não são garantidos pelas leis que regulamentam as atividades na internet no Brasil.

Ainda é possível constatar:

O Marco Civil permite que a internet continue sendo uma rede aberta e colaborativa. Desse modo, durante o processo de discussão no Congresso Nacional, o projeto enfrentou grande resistência por parte dos setores ligados às corporações que querem gerenciar o tráfego da rede para ampliar seus negócios e interferir, cada vez mais, na transferência de dados. A manutenção do princípio da neutralidade de rede impedirá que essas corporações midiáticas filtrem os dados e o tráfego na rede. (...) A internet evoluiu ao longo de sua história pela liberdade de criação possibilitada pela neutralidade de rede, mas se esse mecanismo deixar de existir, haverá um grande controle sobre os processos de criação de novas tecnologias. (SEGURADO, LIMA e AMENI, 2014, p.14)

Dessa maneira, percebe-se que enquanto a transmissão e alcance das aulas online estão resguardadas pelo Marco Civil da Internet, os direitos autorais e o controle dos professores sobre suas próprias aulas, não estão garantidos.

No caso das aulas transmitidas pela internet, dificilmente o docente consegue ter o controle das suas aulas depois que as mesmas são transmitidas. Os professores que controlam seus próprios sites ou canais de aulas online tem aparente vantagem nesse aspecto – pois são donos das aulas que gravaram e transmitiram e, portanto, tem maior controle sobre a circulação da sua própria imagem – mas mesmo assim enfrentam muitos problemas nesse sentido. O professor Jb. possui um dos canais mais populares no Youtube e uma plataforma de aulas de biologia, onde suas aulas são exibidas para assinantes. Mesmo sendo dono de sua própria plataforma, o professor Jb. já relatou problemas como plágio feito por outro professor e edição não autorizada dos vídeos, alterando os conteúdos das aulas.

O problema se torna ainda maior se o professor trabalha para uma empresa que transmite as aulas em meios digitais. As aulas gravadas são colocadas na plataforma e ficam disponíveis para os alunos por longo período de tempo – ate 5 anos – sem que o docente saiba onde e nem para quem sua aula foi vendida/transmitida. Segundo R., o professor se transforma em mais um conteúdo disponível na rede, à disposição, em caráter informativo, não em caráter formativo do seu aluno.

Porque, quando o professor vai saindo – que é o que vai acontecer – desse papel de protagonismo... A gente vai deixando de ser o propagador do conhecimento, de ser uma referência do conhecimento, já que você tem o online na mão, que tem mais conhecimento, mais informação. A questão é: nós, como verdadeiros curadores, verdadeiros tutores, vamos, na verdade, encaminhar para os alunos o que é conteúdo de qualidade. Porque a internet é um mundo livre, você tem muita coisa boa e muita coisa ruim (R, 16 mar. 2020)

A situação de pandemia fez com que as escolas privadas tivessem que oferecer aulas online para os seus alunos desde o final do mês de março de 2020. Até porque, em algumas escolas surgiram pressões de muitos responsáveis para que não pagassem as respectivas mensalidades caso não fossem transmitidas aulas ao vivo com os professores das turmas. Para isso, foi preciso que as escolas enviassem um termo aditivo no contrato de trabalho para que cada professor assinasse, concordando em transmitir suas aulas, que poderiam ser gravadas pelas instituições e usadas em outros momentos, caso fosse o desejo da empresa. Fica evidente, nessa situação, a perda do controle que o professor tinha sobre as suas aulas e sobre a sua própria imagem. Tal situação gerou, para alguns docentes, um certo constrangimento e até revolta, que de nada adiantaram, pois a legislação estabelecida pela lei no artigo 75-C da CLT e artigo 4° da Medida Provisória nº 927/2020 permite à escola exigir a aula online do professor, sendo possível até demiti-lo em caso de recusa. Seguem abaixo trechos dos termos aditivos de duas escolas particulares do Rio de Janeiro, chamadas aqui de escola 1 e escola 2:

Publicar, postar ou transmitir, diretamente ou por terceiros por ela autorizados, em todo território nacional, por quaisquermeios disponíveis na internet ou em seus estabelecimentos, a exibição das minhas aulas gravadas, incluindo atividades pedagógicas, conteúdo, imagem, voz e nome que tenham sido utilizadas nas plataformas digitais do (a) XXXXXXXXXXXX ou gravadas e/ou disponibilizadas durante o período de quarentena em virtude da pandemia de COVID -19 para os seus alunos em aulas não presenciais, mesmo que em minha residência.

Compreendo que a presente autorização está incluída na remuneração regular das aulas lecionadas e atividades desenvolvidas, tal como dispõe meu contrato de trabalho. Desta forma, cedo os direitos autorais decorrentes das atividades, por período indeterminado, para a utilização estritamente pedagógica na relação do (a) XXXXXXXXXX com seus alunos.

O presente instrumento não representa novo acordo trabalhista, tampouco novos direitos e deveres entre as partes e não altera as relações já estabelecidas em contrato de trabalho específico. (Escola 1)

O Empregado cede gratuitamente os direitos de imagem, voz e propriedade intelectual à Instituição, referente a trabalhos online, produção de aulas em ambiente virtuais, produções audiovisuais e demais conteúdos elaborados e executados durante o período de calamidade pública decorrente do Covid-19, bem como autoriza a divulgação e veiculação em todos os meios de comunicação, inclusive digitais, estando ciente que a Instituição é a exclusiva titular ou licenciada de todos os direitos sobre os conteúdos produzidos. (Escola 2)

Percebe-se que, nessa relação, as escolas garantem para si o controle do material produzido pelos professores no período de pandemia. No trecho da escola 1 fica clara a possibilidade do material gravado ser utilizado posteriormente caso a escola queira. A escola 2 faz questão de garantir para si a propriedade intelectual produzida pelos seus docentes. Dessa forma, as escolas podem utilizar as aulas dos professores gravadas ou transmitidas durante a pandemia por tempo indeterminado, sem pagar nada pelo direito de imagem do docente, que não tem a opção de escolher se suas aulas serão ou não exibidas durante o período de pandemia.

No Descomplica, a utilização da imagem do professor ultrapassa o âmbito da exibição das aulas de maneira indefinida. Ao entrar no site do curso – http://www.descomplica.com.br – o aluno se depara com a descrição do preparatório para o Enem, com os serviços disponibilizados e com as fotos dos professores que o aluno vai ter ao se tornar assinante. Dessa forma, os professores também são um atrativo para os alunos, são vendidos como mais um elemento no site da empresa. Segundo os entrevistados, sem ganhar nada por isso. Segundo o professor J., o setor de marketing – um dos mais importantes e atuantes da empresa – costuma realizar sessões de fotos com os professores para desenvolver essas ações, com autorização dos professores envolvidos, contudo sem remuneração pela utilização das respectivas imagens.

Dessa maneira, o avanço das aulas online vem acompanhado da fragilização do papel do professor, que passa a ser uma peça na engrenagem do sistema, perde a autoria e o controle da veiculação das suas aulas e tem sua imagem usada nas redes e na internet sem remuneração especifica para tal. E, nessa situação de vulnerabilidade, os docentes não encontram amparo legal para garantir seus direitos.

CONCLUSÃO

A pandemia de Covid 19 gerou um contexto inédito em nossa história. O isolamento social que impôs o ensino remoto em todo o país, evidenciou não só a desigualdade de oportunidades educacionais, mas também a importância do papel do professor no processo educacional. Em suas casas, foi possível que as famílias compartilhassem todo o esforço dos docentes para que as atividades escolares não fossem interrompidas, assim como o apoio emocional aos alunos.

Como historiadores temos o anseio não só de registrar os fatos do tempo vivido, mas também de promover reflexões sobre os acontecimentos. Neste sentido, é importante situar do lugar que falamos, uma vez que a realidade é constituída por muitas nuances. O relato de professores de instituições privadas do município do Rio de Janeiro mostrou algumas dimensões do contexto enfretado pelos educadores durante a pandemia. Desta forma esperamos contribuir para ampliar as análises que os registros estatísitcos poderiam proporcionar. Os depoimentos revelam táticas, na perspectiva definada por Certeau (2008), como o espaço de resistência dos que não estão no poder, interesses, dilemas e angústias que desenham a heterogeneidade de práticas durante o ensino remoto emergencial.

Outro aspecto abordado foi a realidade vivida por professores de sistemas modulados de ensino, que já atuavam concomitantemente nos sistemas presencial e online. Foi possível constatar que muitas questões que emergiram no ensino remoto, já eram debatidas por esses docentes a tempos: a interatividade, a propriedade intelectual de suas aulas disponiblizadas na rede, as táticas para virtualizar suas práticas.

Neste sentido, relativizamos o ineditismo de algumas situações, ainda que tivessem ganho uma proporção muito maior. As análises deixaram evidente a relação entre as aulas transmitidas por cursos como o Curso Descomplica e as aulas presenciais. As entrevistas demonstraram a relação entre as táticas pedagógicas das aulas dos cursos presenciais com as aulas do ensino remoto. O esforço dos docentes no processo de virtualização da sala de aula. A proximidade pedagógica entre as aulas presenciais e online ocasionou o que chamamos de “prática didática refletida”, o que não é prática didática reflexiva ou reelaborada para as aulas online, mas sim o reflexo de um espelho. Os recursos tecnológicos das aulas online parecem ser inovadoras, mas em termos didáticos, trazem diferenças sutis, ou pouco significativas, em relação às aulas presenciais tradicionais. Mais do que isso, refletem os problemas do sistema modulado de ensino: a rigidez, a falta de diálogo e um planejamento que pouco considera a realidade do aluno.

REFERÊNCIAS

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Recebido: Novembro de 2020; Aceito: Março de 2021

Informações do(a)(s) autor(es)

Patrícia Coelho da Costa

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

E-mail:pcoelho@puc-rio.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2277-2779

Link Lattes: http: //lattes.cnpq.br/9350848460353268

Luiz Augusto Cavalcante Teixeira

Colégio Santo Agostinho/Colégio Santa Marcelina

E-mail:luiz_mav@yahoo.com.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9646-6101

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/2080727165535429

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