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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.72 Rio de Janeiro jan./mar 2023  Epub 03-Ago-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.61690 

Artigos de Demanda Contínua

MANEIRAS DE TRATAR O CORPO, MODOS DE CRIAR O MUNDO: um olhar foucaultiano sobre o cinema no filme Eu, Pierre Rivière

WAYS TO TREAT THE BODY, WAYS TO CREATE THE WORLD: a foucauldian look about cinema in the film I, Pierre Rivière

MANERAS DE TRATAR EL CUERPO, MODOS DE CREAR EL MUNDO: una mirada foucaultiana sobre el cine en la película Yo, Pierre Rivière

Sandra Espinosa Almansa1 
http://orcid.org/0000-0001-5534-9013; lattes: 9145858845257708

1Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL)


Resumo

O artigo lança mão de algumas das entrevistas que constituem o corpus cinematográfico dos Ditos e Escritos de Michel Foucault, e de alguns filmes, especialmente o filme Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, dirigido por René Allio, cujo roteiro foi adaptado da obra homônima publicada sob a direção do filósofo. Apoiado na mirada arqueo-genealógica de Foucault sobre os filmes o texto problematiza, em um viés estético-político e mediante um recorte específico, aquele que teria consistido em seu interesse maior pelo cinema: como uma maneira de tratar o corpo. Mediante o encontro entre o corpo e o cinema o artigo discute questões concernentes às relações entre imagens, discurso, história e memória, por entre as quais se coloca de um lado a outro para a educação a questão do espectador, e dos processos subjetivos que encontram no cinema ferramentas de criação, de transformação e de luta.

Palavras-chave: Michel Foucault; cinema; corpo; memória; educação

Abstract

The article makes use of some of the interviews that constitute the cinematographic corpus of Michel Foucault's Ditos e Escritos, and of some films, especially the film I, Pierre Rivière, having slaughtered my mother, sister and brother, directed by René Allio, whose screenplay was adapted from the homonymous work published under the direction of the philosopher. Based on Foucault's archaeo-genealogical view of the films, the text problematizes, in an aesthetic-political perspective and through a specific approach, the one in which his greatest interest in cinema would have consisted: as a way to treat the body. Through the encounter between the body and the cinema, the article discusses questions concerning the relations between images, discourse, history and memory, among which is posed as a problem for education the question of the spectator and the subjective processes that find in cinema tools of creation, transformation and struggle.

Keywords Michel Foucault; cinema; body; memory; education

Resumen

El artículo hace uso de algunas de las entrevistas que componen el corpus cinematográfico de los Dichos y Escritos de Michel Foucault, y de algunas películas, especialmente la película Yo, Pierre Rivière, habiendo matado a mi madre, mi hermana y mi hermano, dirigida por René Allio, cuyo guion fue adaptado de la obra homónima publicada bajo la dirección del filósofo. Apoyado en la mirada arqueo-genealógica de Foucault sobre las películas el texto problematiza, en una perspectiva estético-política y mediante un recorte específico, aquel en que habría consistido su interés mayor por el cine: como una manera de tratar el cuerpo. Mediante el encuentro entre cuerpo y cine el artículo discute cuestiones concernientes a las relaciones entre imágenes, discurso, historia y memoria, entre las cuales se coloca de un lado a otro para la educación la cuestión del espectador, y de los procesos subjetivos que encuentran en el cine herramientas de creación, de transformación y de lucha.

Palabras clave Michel Foucault; cine; cuerpo; memoria; educación

INTRODUÇÃO

Vinte anos após a morte de Michel Foucault (e no mês em que ele, se vivo, completaria 78 anos) a Cinemateca Francesa organizou junto ao Festival de Outono de Paris, em outubro de 2008, uma mostra de filmes em homenagem ao filósofo intitulada Foucault-Cinéma: image mémoire, image pouvoir. Na programação, além de filmes sobre os quais Foucault se expressou somaram-se outros que, como afirmou Serge Toubiana à ocasião, seguem a lógica do pensamento do filósofo, tais como Close-up (Abbas Kiarostami, 1990), Noites sem dormir (Claire Denis, 1994) e Elefante (Gus Van Sant, 2003), para citar alguns.

Foucault, sabemos, não manteve com o cinema uma relação particularmente notável, ao modo do contemporâneo Gilles Deleuze, por exemplo. O cinema não foi para ele um tema prioritário, tampouco constituiu um objeto privilegiado de estudo. A vasta coletânea de seus Ditos e Escritos revela apenas aqui e ali passagens em que são manifestadas algumas das afinidades eletivas do filósofo com filmes e cineastas, e o raro diálogo analítico realizado (por meio de entrevistas, e publicado em revistas especializadas de grande circulação na França) com a crítica cinematográfica francesa nos anos de 19701. Incomum, contudo, o encontro com Michel Foucault mobilizou forças decisivas para redirecionar o pensamento então vigente num dos expoentes máximos da crítica em atividade na época, os Cahiers du Cinéma, próximo aos quais a teoria do cinema se desenvolveu. Foucault, conta-se, teve o efeito de uma verdadeira ruptura no coração da revue.

Serge Toubiana (2014, p. 180), ao comentar a entrevista que realizou (junto a Pascal Bonitzer) com Michel Foucault para os Cahiers em 1974, declara que o encontro com o filósofo havia sido “[...] o signo de uma abertura em direção a um novo tipo de questionamento crítico operante, um desvio pela História” rumo a uma nova e mais rica visão de cinema. À época da entrevista, pós-68, a orientação da revista passava por uma grande reformulação de suas bases marxistas e abria o debate cinematográfico a uma esfera cultural mais ampla, passando a conversar assiduamente com filósofos, historiadores, linguistas. Nesse contexto, o encontro com Foucault teria consistido num ponto decisivo no compromisso dos Cahiers de “[...] reatar com o cinema” (TOUBIANA, 2014, p. 180) deixando para trás o dogmatismo teórico e ideológico que há alguns anos vicejava na publicação, em vista de um reposicionamento de ordem tanto política quanto estética.

Aqui, a direção que tomaremos segue o rastro desse signo de abertura da experiência do pensamento foucaultiano, relativamente ao cinema. O que está em operação não é analisar a medida da presença da arte cinematográfica como conteúdo do trabalho de Foucault, mas reconhecer a qualidade dessa presença, e o importante legado que confia ao debate e às práticas que de algum modo se compõem e se nutrem do encontro entre cinema, filosofia e educação. Se parece claro que o cinema, nos filmes que constituem o seu corpo, pode seguir a lógica do pensamento foucaultiano sem deixar de ser sonho, isto é, outro pensamento, certo é também que nos disponibiliza limiares insuspeitos de existência.

O artigo lança mão de algumas entrevistas e filmes comentados por Foucault2, especialmente o filme Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão (René Allio, 1976), cujo roteiro foi adaptado da obra homônima publicada sob a direção do filósofo. Apoiado na mirada arqueo-genealógica de Foucault sobre os filmes o texto problematiza, em um viés estético-político e num recorte específico, aquele que teria consistido em seu interesse maior pelo cinema: como uma maneira de tratar o corpo. Mediante o encontro entre o corpo e o cinema o artigo discute questões concernentes às relações entre imagens, discurso, história e memória, por entre as quais se coloca de um lado a outro para a educação a questão do espectador, e dos processos subjetivos que encontram no cinema ferramentas de criação, de transformação e de luta.

PIERRE RIVIÈRE: ELE ESTAVA LÁ

Quando questionado por Guy Gauthier a respeito de se teria ou não reconhecido, no filme de René Allio, o jovem Pierre Rivière a quem ele próprio descobrira anteriormente com a publicação do dossiê do caso Rivière em livro, Michel Foucault (2016a, p. 79) respondeu: “[...] diria que, ali, não se tratava de reconhecê-lo. Ele estava lá, é tudo...”. Logo em seguida, após esclarecer que o que o interessou nos documentos de Rivière foi o fato de o caso ter caído no esquecimento pouco tempo depois de ocorrido (pondo à vista, transversalmente, a dimensão da memória como problema), Foucault torna claro que o seu desejo com a publicação do dossiê sobre o acontecimento do crime e seus desdobramentos não era outro senão relançar Pierre Rivière ao presente. O projeto do livro consistia em restituir os confrontos e as lutas discursivas em torno do episódio, de modo que, juntando tudo o que havia sido dito sobre ele na época e depois dela, fosse possível “[...] reformular a questão de Rivière” (FOUCAULT, 2016a, p. 86). Restituindo de algum modo o plano dessas batalhas, e permitindo a análise política e estratégica de sua formação relativamente ao acontecimento e a instituições e a papéis aí prescritos, a publicação tornaria possível “[...] decifrar as relações de poder, de dominação e de luta dentro das quais os discursos se estabelecem e funcionam” (FOUCAULT, 1991, p. XIII).

Relembremos o caso. Em junho de 1835, na pequena comuna normanda de Aunay, na aldeia chamada La Faucterie, o jovem Pierre Rivière, de cerca de vinte anos, cometeu triplo homicídio: degolou a mãe, a irmã e o irmão ainda criança. O crime, assim relata Rivière no manuscrito concebido posteriormente no cárcere, foi cometido para livrar o pai dos frequentes infortúnios vivenciados num casamento malsucedido. Na escrita, que consiste num gesto de retorno, além de expor os motivos que (segundo ele próprio) teriam motivado os assassinatos, Pierre Rivière discorre finalmente sobre si mesmo, sobre seu caráter, seus pensamentos e sua vida particular. E é justamente com essa palavra escrita que dá acesso à memória e trata de fazer o discurso sobre seu ato e sua pessoa, que Rivière armadilha e faz relançarem-se suspeitosamente uns sobre os outros (e também sobre ele próprio) os códigos e artifícios da justiça, da medicina, da imprensa, do Estado.

Considerado por muitos como uma espécie de idiota, desde aldeões a peritos médico-legais, Pierre Rivière faz escapar com seu discurso, na visão de Foucault (2016), toda tentativa de apreensão totalizadora na sustentação de um discurso sobre o acontecimento propriamente dito, sobre seu ponto central que é o gesto do assassinato e a personagem que o fomenta. Diante do dossiê do caso (constituído pelas peças judiciárias publicadas em parte nos Annales d'hygiène publique et de médécine légale de 1836, por artigos da imprensa e pela íntegra do memorial de Rivière), Foucault

(1991) faz notar a heterogeneidade discursiva em torno do acontecimento, à qual deduz como uma espécie de batalha de discursos (de origem, forma, organização e função diferentes) que faz luzir os falhanços da mais pura verdade. Eu, Pierre Rivière, o filme de René Allio inspirado no livro organizado por Foucault, dá visibilidade cinematográfica a essa “[...] valsa dos rótulos e das caracterizações contraditórias” (TOUBIANA, 1976, p. 48, tradução nossa3).

Como o nome indica, a narrativa do filme é baseada no memorial de Pierre Rivière e nos diferentes materiais discursivos do caso documentados no processo, todos descobertos, organizados e examinados por Foucault e um pequeno grupo de pesquisadores em um seminário do Collège de France, quando estudavam a história das relações entre psiquiatria e justiça penal. Com uma fotografia inspirada na pintura realista e uma narrativa marcada pela mescla entre os regimes de documentário e de ficção, o filme retrata de maneira sóbria e com rigorosa fidelidade o crime, os testemunhos, as perícias, o julgamento. Seu eixo, entretanto, situa-se principalmente no interior do discurso de Pierre Rivière e sua fala campesina, herdeira de certa experiência histórica e coletiva do campesinato, para mostrar como alguma coisa diferente irrompe ao modo de um crime extraordinário, cujo discurso, ainda mais extraordinário, “[...] acabou por fazê-lo não mais existir” (FOUCAULT, 2016, p. 72).

Menos do que reconstituir o crime ao modo de uma reatualização do acontecimento, o que se realiza na narrativa fílmica é antes um recorte de como se organizam a vida camponesa em seu cotidiano, os trabalhos dos campos, as ocupações diárias de homens, mulheres e crianças campesinas. Quer-se com isso reativar cinematograficamente as circunstâncias que, desde aí, conduzem a um triplo homicídio. A expressão cuidadosa dos modos de presença da vida camponesa do início do século XIX (de seus mínimos gestos e acontecimentos à interioridade do discurso de Rivière e do campesinato naquela época) ganha ainda mais contornos de autenticidade ao ser encenada por um elenco de camponeses locais da região normanda em que se deu o ocorrido. Espectador do filme de Allio, Foucault (2016a, p. 73), ao comentar sobre ele, pondera que tudo se passa como se fossem “[...] os mesmos camponeses a recomeçar, no mesmo local, o mesmo gesto” de seus antepassados de há 150 anos.

Nada de sucessões lineares, porém. A cena inicial do filme prenuncia de imediato a fenda capital por meio da qual, em alguma medida, René Allio fará passar a história de Pierre Rivière. Nela vê-se o plano fixo de uma árvore, que constitui o centro da imagem, recostada a uma extensa cerca que atravessa diagonal e fugidiamente o plano cuja metade à frente é campo verdejante, e ao fundo céu e floresta. Do visual da imagem, resta o vento que a estremece. Sobreposta a essa imagem e sua duração ouve-se um burburinho de corpos e vozes indistintas às quais só reconheceremos pelo sinal do malhete a anunciar: A corte!

Nessa cena, que introduz a história que começará a ser contada a seguir (numa sequência de planos que dispõem dos cadáveres das vítimas de Rivière no local do crime, do horror da comunidade que os encontra aniquilados ao chão e da chegada de autoridades e médicos ao local), a abertura entre o áudio e o visual nos conta uma história que não se vê na imagem, ao passo que esta mostra-nos um lugar vazio, aparentemente desprovido de acontecimento, desprovido de história. Sobre essa mesma imagem, que retorna no final do filme num plano então modificado pela presença humana (para a qual a cerca se faz, enfim, fronteira), a voz em off nos dirá do suicídio de Pierre Rivière.

Ao escolher encenar o roteiro nos próprios locais em que o evento aconteceu, com atores amadores, camponeses da mesma região e cuja atualidade da voz é o que de mais próximo se poderia encontrar do discurso do campesinato à época da existência de Rivière, Allio realiza, na

perspectiva de Foucault (2016, 2016b), não apenas um retorno da história ao seu ponto de partida, mas uma espécie de transposição. Com isso, ainda na visão de Foucault (2016), o filme restitui ao camponês sua própria tragédia, a tragédia do código, da lei e da terra a ele imposta e na qual ele se move desde o século XIX, sobretudo depois do começo da aplicação do Código Civil sobre sua vida cotidiana, o casamento, a propriedade, os bens. Nesse sentido, todo o drama de Pierre Rivière é atravessado por “[...] uma relação de intensidade trágica” da lei com os homens (FOUCAULT, 2016a, p. 85), atravessado por um velho drama do direito não apenas extraordinariamente representado por camponeses do século XXI, mas existente na memória dos corpos do mundo camponês.

Pascal Kané, na entrevista que realiza com Foucault para o curta-metragem A propos de Pierre Rivière, sobre o filme de René Allio, coloca ao filósofo uma questão particularmente importante e que toca, a nosso ver, no problema dos processos subjetivos relativos à experiência do cinema. Kané pergunta a Foucault qual seria sua opinião a respeito do papel que poderia ter “[...] o fato de os camponeses normandos dos dias de hoje virem a guardar, em suas mentes, graças ao filme, esse acontecimento, essa época” (FOUCAULT, 2016, p. 73, grifos nossos). Em nossa leitura, a resposta dada por Foucault se espraia dos limites da representação e aponta para a tangibilidade da expressão na elaboração da memória popular, sim; mas, sobretudo, para a dimensão política dos corpos que gira em torno da construção e da transmissão dessa memória.

Foucault (2016) lembra que embora haja muita literatura sobre os camponeses, o mesmo não se pode dizer a respeito de uma expressão campesina. Nesse sentido, o encontro com o texto escrito por Pierre Rivière, na linguagem de um camponês, uma pessoa que não tem o direito à escrita para escrever sua própria história, possibilita aos camponeses do filme de Allio jogar eles próprios com os meios de que dispõem, jogar com os seus próprios meios esse drama que foi o da geração um pouco anterior à sua (FOUCAULT, 1994). Exatamente pela potencialidade desse jogo de colocar em cena a voz camponesa por ela própria, sua linguagem, sua pronúncia, seus gestos, é que essa atuação é politicamente tão importante. Disso decorre também a importância dos atores externos para representarem o mundo da lei, os juristas, os advogados, os médicos, gente da cidade exterior a “[...] essa comunicação muito direta entre o camponês do século XIX e o do século XX” (FOUCAULT, 2016a, p. 73).

Pierre Rivière (Claude Hébert) estava lá, pois, no filme de Allio, não na chave da decifração. Ele estava lá no signo de uma questão novamente lançada, e outra vez “[...] o mais próximo possível do local onde ela foi formulada” (FOUCAULT, 2016a, p. 80). Ei-lo de volta não em sua derradeira verdade, mas recolocado no gesto, na boca, no corpo e no comportamento de um camponês do mesmo lugar. É desse modo, no limiar entre corpos e discursos, intensificando regiões de nossa memória ou de nosso esquecimento, que o cinema pode fazer passar a história (FOUCAULT, 2016a) e reanimar, abertamente, a questão: afinal, quem é Pierre Rivière?

DE ONDE PROVÉM O CORPO QUE À PORTA BATE

No número 271 dos Cahiers du Cinéma, publicado em novembro de 1976, encontramos reproduzida uma ilustração desenhada por Christine Laurent, figurinista do filme de René Allio. No desenho, um jovem trajando vestes simples do século XIX está de frente para o espectador e o encara. Logo abaixo, com as costas imediatamente voltadas para o jovem cuja mão toca-lhe o ombro, um menino com vestes infantis olha obliquamente à esquerda, de modo que só podemos ver parte de seu rosto. A legenda que acompanha a imagem informa-nos serem ambos Pierre Rivière, aos quinze anos e aos cinco anos de idade.

Diante da imagem, imaginamos tratar-se propriamente de um estudo de trajes para o personagem do filme. Todavia, para além da pureza da origem, da imagem excede uma perturbação, algo mais enigmático do que a acessível cobertura dos corpos. Tudo se passa como se também a figura, de seu duplo indistinto, relançasse a pergunta: de que modos, sob que fundo de invisível, se constitui a genealogia desse corpo de linhas fictícias, cuja agitação moverá enfim o pano de sua incerta vestimenta e revelará, na carne, os acasos de seu começo [e seu fim]?

Ora, é nesse sentido que o filme, por sua vez, se apropria da démarche genealógico-paradoxal da publicação dirigida por Foucault. Posto em cena por meio da tríplice articulação entre a vida cotidiana, a história e o trágico, o corpo e tudo que diz respeito a ele (especialmente no filme, o corpo camponês) aparece em sua crucial relação com a história - que toma parte no cotidiano do corpo. Da superfície visível do corpo de Pierre Rivière, e diante da imagem errante desse corpo em que, vejamos ou não, os acontecimentos se inscrevem, o que nos atinge com força do filme é a visibilidade do corpo impregnado de história e ao mesmo tempo obstinadamente desagregado. Corpo cuja história (como de resto, é a história do corpo) é “[...] tanto aquela dos discursos que a circundam e dos olhares que a perscrutam” (COURTINE, 2013, p. 9) quanto quiçá a do acontecimento e das passagens que ele (o corpo) realiza, das linhas pelas quais se desloca e produzse.

No filme de René Allio, o ponto de articulação do corpo com a história segue os sulcos silenciosos da paisagem, e os desvios e dissonâncias do discurso. Móvel e paradoxal, esse ponto, a despeito da possibilidade de organização, não dispõe o corpo à plena captura, à inteira localização, à ultimada denominação. As definições físicas de Pierre Rivière, embora não tenham sido determinantes para a sentença penal, são copiosamente destacadas no dossiê do processo, e notavelmente relançadas (porém, de modo questionador) no cinema. A imagem construída do corpo de Pierre Rivière, por meio da percepção e do estudo detalhado de sua superfície visível, aparência e expressão, inscreve-se em alguma medida no heterogêneo e não raro controverso corpus discursivo das leituras do corpo. Mostra-se herdeira, por exemplo, de esquemas classificatórios como os da fisiognomonia, que historicamente “[...] respondem a um conjunto de exigências de legibilidade do corpo simultaneamente científicas e sociais, teóricas e práticas, eruditas e populares” (COURTINE, 2013, p. 47).

As pesquisas de Jean-Jacques Courtine (2013) nos dão a ver que as fisiognomonias (como semiologias da exterioridade, simultaneamente maneiras de dizer e formas de ver o corpo humano), estão histórica e intimamente ligadas, em termos de princípio, à semiologia médica. Em ambas, trata-se de converter os indícios que libera o exercício sistemático do olhar sobre o corpo em signos, “[...] pela enunciação de um discurso que atribui aos caracteres percebidos um estatuto significante, dotando-os de um sentido” (COURTINE, 2013, p. 49). Diferentemente da ciência médica, porém, a fisiognomonia não se demonstrou um método de fato verificável, tendo organizado suas referências, sobretudo, em “[...] duvidosas tipologias de caracteres tanto físicos quanto psíquicos” (COURTINE, 2013, p. 50).

A fronteira entre as caracterizações tipológicas duvidosas e a semiologia médica, contudo, nem sempre foi tão íntegra, e os efeitos de sua indissociabilidade persistiram por bastante tempo desde as primeiras separações ocorridas na virada do século XVII. Lembro aqui do expressivo filme Vênus Negra (Abdellatif Kechiche, 2010), de como expõe os modos pelos quais, no início do século XIX, o saber erudito ainda se mostrava carregado de preconceitos, como no discurso naturalista proferido na Academia Real de Medicina de Paris, em 1815, a respeito da conformação do corpo da sul-africana Saartjie Baartman (Yahima Torres). Ali o discurso da anatomia, como regime de visibilidade do corpo, em que pese sua importância fundamental na lenta transformação das visões deste, encontra-se sobrecarregado de valorações e analogias que escapam integralmente à razão científica.

Em relação a Pierre Rivière, à margem do texto e de seu ato confesso, o estudo de sua tipologia física fertilizou o terreno onde se erigiu o edifício das diferentes interpretações e verdades com que se tentou decifrá-lo, e responder à busca pela motivação e justificação do crime, como é possível ler com clareza no dossiê do caso. Especificamente no filme, quando na narrativa nos é dito desse estudo, o quadro suscita uma cisão. No plano obscurecido em que, posicionado à frente, o procurador do rei dita ao escrivão os traços memoráveis de Rivière (com que caracteriza seu aspecto moral); o pai, a irmã e a avó do jovem são vistos obliquamente, sentados ao fundo, a velarem cabisbaixos os caixões com seus mortos. Atrás deles, em pé, Prosper Rivière, o irmão cuja debilidade dos traços e a “[...] inteligência extremamente limitada” (FOUCAULT, 1991, p. 130) revelariam também a desafortunada herança da família, volta os olhos para o discurso e em nossa direção (do espectador). Pois é na presença desse espelho, e da morte, que o corpo sem lugar de Pierre Rivière, ao mesmo tempo em que da imagem se ausenta, vê-se enredado às malhas de um olhar que se converte em discurso.

Às analogias médicas, com que por muito tempo buscou-se regular as equivalências entre “[...] a pessoa exterior visível e um ser interior velado” (COURTINE, 2013, p. 69), também foram submetidos os camponeses do século XVIII, estes homens que ainda não o são, “[...] e participam sempre um pouco do mineral, do vegetal ou do animal” (PETER, FAVRET, 1991, p. 190). Apesar das novas ideias e formas de liberdade e igualdade de direito há época juridicamente conquistadas, a ordem da nova sociedade liberal em que se encontra a família Rivière dissimula nos contratos o controle, a perpetuação das hierarquias e das desigualdades. O discurso dominante permanece o mesmo: os camponeses franceses continuam a serem o que há de mais Outro, animais ou coisas sem nada a dizer, e como tais, detalhados pelos médicos em sua monstruosidade (PETER, FAVRET, 1991, p. 193). Monstros e iguais: eis o paradoxo, e a medida da tragédia.

Monstro, máscara, semelhante. Jean Pierre Rivière, linear e significativamente classificado como um “[...] ser à parte” (FOUCAULT, 1991), uma superfície de olhos avermelhados e riso insensato, um olhar oblíquo e cabeça inclinada4 (dentre outras características físicas primorosamente suportadas e cambiantes na pele de Claude Hébert e sua enigmática atuação), é um corpo germinal do tácito abismo do impossível dos campos, o abismo do intolerável de uma vida privada de futuro e de qualquer oportunidade (FOUCAULT, 1991). Se de certa forma o dispositivo audiovisual do cinema pode dar a ver os pormenores e os sinais particulares do condenado Rivière, nos limites de um enunciado cuja relação particular entre olhar e discurso dá legibilidade ao corpo (do monstro, do criminoso, do animal, do louco), ele por outro lado testemunha de perto o inapreensível desse corpo, a história desvanecida da sua verdade e as descontinuidades que o atravessam.

Assim, o espectador vê se entretecer no filme o signo complexo de um corpo com seus movimentos, sua fisionomia, seu rosto (sua expressão e sua máscara), com sua linguagem e as leis que o regem justo no solo que o viu nascer. O mesmo solo em que a família padeceu seu destino. Como na metáfora do cavalo cansado, sendo chicoteado e tendo sua força acorrentada, Pierre Rivière é igualmente reduzido, ao modo do “[...] povo dos laboriosos agarrados à sua terra” (PETER, FAVRET, 1991, p. 188), à sufocante medida de uma vida confiscada. À condição de animal enganado e ao horror mudo de cada dia, de cada vida que assim à sua precede e a sucederá, “[...] ele substitui com um horror mais gritante, o protesto de uma hecatombe” (PETER, FAVRET, 1991, p. 187) que fará de sua infeliz família duplamente vítima.

Dotado de um minucioso respeito à memória de Pierre Rivière, a abordagem genealógica do filme de René Allio inscreve o gesto criminoso em uma história e em uma paisagem dando a ver que, embora “[...] a própria história [não] esmague a profunda e extrema singularidade desse gesto” (TOUBIANA, 2014, p. 186), ela [a história] impregna profunda e necessariamente a criação do corpo que o libera [ao gesto], e é também ela sua ruína. Se não se trata de minimizar a enormidade do crime por meio da dura visibilidade de um corpo, também não se trata de seguir unicamente as linhas justapostas à patologização do crime. O que Allio realiza no filme, a partir do trabalho de Foucault, é um compêndio da vida cotidiana campesina tomada em seu movimento e no corpo na medida em que ela nele trabalha, e continua a trabalhar conosco. Pois afinal é preciso insistir, com Foucault (2016a, p. 81), na pergunta se haveria um único acontecimento no interior dos campos, “[...] um pequeno drama do campo e da floresta” que, de certa maneira, mesmo que infinitesimal, não se inscreva também no corpo dos habitantes das cidades do nosso século.

O filme, embora seja interior à voz de Pierre Rivière e desse modo institua sua presença, não diz ao espectador “[...] aqui está o verdadeiro Pierre Rivière” (FOUCAULT, 2016a, p. 79, grifo nosso), tampouco recobre a organização real da própria vida. O que ele mostra por meio de uma diegese bem enredada ao corpo e ao discurso é a complexidade do jogo que os envolve: suas lutas, suas capturas, seus impasses e aquilo que deles “[...] escapa a qualquer categorização e a todas as armadilhas possíveis” (FOUCAULT, 2016a, p. 81). O princípio organizador da narrativa põe em cena as forças e os jogos casuais com que se constroem tanto a história quanto o corpo, aproximando-se ainda do teatro que os agita e neles “[...] dá conta dos atavismos e das hereditariedades” (FOUCAULT, 2012, p. 19), para restabelecer visualmente algo da multidão de acontecimentos perdidos da vida campesina. Desse modo, o gesto criador de René Allio e elenco tanto desliza na superfície quanto penetra nos porões de Pierre Rivière, para colocá-lo em perspectiva na janela do cinema. Dessa região aberta ele vem bater à nossa porta. De onde nos olha, é de onde nos interroga.

O GRÃO MINÚSCULO DA HISTÓRIA E A MEMÓRIA DESCONTÍNUA DO MUNDO

Tomar o cotidiano em seu movimento, na singularidade dos acontecimentos. Demorar-se na aparente monotonia do dia-a-dia para sabê-la dissimulada, isto é, para poder ver seus disfarces e perceber (lá onde menos se espera) o motor inaparente das mudanças que ocorrem todos os dias. Espreitar, para compreender a história, justo aquilo que é tido como não possuindo história (NIETZSCHE, 2001; FOUCAULT, 2012): os sentimentos, as paixões, os instintos, a consciência e o inconsciente. Observar, no grão minúsculo da história, a descontínua memória do mundo.

Em alguma medida, é desse modo que o cinema de Allio faz passar a história ao montar a câmera sobre o corpo cotidiano de Pierre Rivière. Do caso Rivière o diretor privilegia o recorte dos mínimos fragmentos presentes no manuscrito do protagonista: uma vida cotidiana, “[...] uma briga em torno de um campo, de móveis, de farrapos” (FOUCAULT, 2016a, p. 82). Com isso, esquadrinha o que excede aos aparelhos institucionais (judicial e médico legal) e constitui o inconsciente da história - modo pelo qual concede a esta algo da genealogia de sua tragédia.

Do livro organizado por Foucault, sobretudo, do que se revela nos detalhes e explicações redigidos por Rivière no memorial, Allio recolhe uma intensidade com a qual nos dá a ver, no filme, que a paixão trágica de Pierre Rivière e de sua mãe não é a-histórica, mas historicamente situada. Ela se passa no rastro das novas relações da lei com os homens, no limite entre o domínio da realidade do corpo individual pelas instituições e a desordem da vida social (JOURDHEUIL, 1976). Novamente, não se trata de repetir a história, mas de colocar em operação, com o cinema, o tema fugidio e fundamental do cotidiano extraindo dele “[...] o eterno presente” (FOUCAULT, 2016a, p. 81) cuja sobrevivência se observa mediante uma montagem, plano a plano, das relações sociais próprias de uma época, de uma classe, de modos de ver, de um modo de vida.

À ocasião da entrevista concedida a Bonitzer e Toubiana em 1974, na qual se exprimia pela primeira vez a respeito da arte cinematográfica, Foucault chamava atenção para as condições de possibilidade que permitem a realização de determinados filmes, e para os modos pelos quais neles se convoca e faz passar a história. Ali já fazia notar, diante e em torno dos filmes que ora comentava, a existência de verdadeiros combates de limiares históricos nos quais se colocava em jogo a questão, importantíssima e sempre atual, da memória popular.

Na perspectiva de Foucault a respeito, especialmente, da memória das lutas populares, essa memória perde vivacidade depois do século XIX, quando ainda havia “[...] toda uma tradição das lutas que se traduzia seja oralmente, seja através de textos, de canções, etc.” (FOUCAULT, 2015, p. 332), e é significativamente tolhida por toda uma série de aparatos os quais, ao mesmo tempo que a impedem de se contar ou de se escrever, buscam recodificá-la. Tanto ou mais do que a literatura ou o ensino escolar, a televisão e o cinema passariam a ser meios eficazes para dirigir essa memória, seja para apagá-la, impedi-la, ou para fazer-nos esquecer dessa memória coletiva ao mostrar engenhosamente às pessoas “[...] não o que elas foram, mas o que é preciso que elas se lembrem que foram” (FOUCAULT, 2015, p. 332).

É mediante esse recuo mais geral e politicamente profundo que Foucault comentará, por exemplo, filmes naquela época atuais e desconcertantes como O porteiro da noite (Liliana Cavani, 1974) e Lacombe Lucien (Louis Malle, 1974). Realizados após o celebrado e controverso documentário A tristeza e a piedade (Marcel Ophuls, 1969), os filmes de Cavani e Malle só teriam sido possíveis com o esgotamento da ideologia gaullista, expresso abertamente no filme de Ophuls, junto ao fim da ilusão de que a França havia globalmente resistido. Se neste último a questão da resistência ao nazismo é mais fácil de ser localizada, naqueles não se trata simplesmente do abandono de um discurso histórico ou de luta popular contra os fenômenos do nazismo em prol de um discurso sobre o sexo, mas sim do problema histórico de uma reerotização do poder (FOUCAULT, 2015, p. 337) e seus efeitos sobre o cotidiano e a história.

Foucault não deixou de marcar as diferenças radicais do aspecto erótico posto em cena em O porteiro da noite e Lacombe Lucien. Ao marcá-las deu a ver, justamente, os distintos modos de exercício das relações entre desejo e poder, e sua inscrição no campo social e no quadro de uma memória coletiva. Desse modo Foucault reposiciona, diante e em meio às imagens e narrativas fílmicas, uma discussão que poderia centrar-se em causas estritamente econômicas e ligadas aos aparelhos do Estado, e a desloca para uma análise do poder de articulações locais, específicas, pulverizadas em relações individuais e sociais circunstanciais, e no interior das massas. Essa perspectiva, decerto, amplia a definição marxista do nazismo e do fascismo, na medida em que os compreende investidos de uma série de articulações que fazem exceder sua proveniência da fronteira única e precisa do reacionarismo burguês.

Já ali a questão que interessa a Foucault, nessa série de filmes, é da ordem dos modos pelos quais o cinema faz passar a história, suas condições de possibilidade correlativamente aos modos pelos quais história é organizada (e reorganizada) por meio dos processos tradicionais, das rupturas e descontinuidades do discurso, e das práticas de um contexto específico. Ao problematizar a prática cinematográfica e as produções fílmicas em relação à constituição de saberes e discursos historicamente construídos, suas palavras nos chamam a atenção para a batalha que se desenrola em torno da história, cuja dinâmica se estabelece também entre os limites do estrangulamento da memória popular e da imposição de uma chave de interpretação do presente.

Nesse sentido, é significativa a comparação paradoxal feita por Toubiana e Bonitzer (FOUCAULT, 2015) entre Lacombe Lucien e Pierre Rivière, cuja diferença significativa é precisamente o tema da memória - da memória popular, de sua elaboração ou não. À diferença de Lacombe Lucien, herói imbecil “[...] que atravessa tudo, a história, a guerra, a colaboração sem nada capitalizar” (FOUCAULT, 2015, p. 342), Pierre Rivière toma a palavra não a tendo, ainda que ao custo de ter de matar para ter o direito de escrever sua memória. Quer-se, com essa confrontação, chamar a atenção para o fato de que o tema da memória pode ajudar a operar uma clivagem entre alguém que se arrisca ao perigo (muitas vezes mortal) de tomar a palavra, e alguém que prova, “[...] justamente não capitalizando nada do que lhe acontece, que não há nada de que valha a pena se lembrar” (FOUCAULT, 2015, p. 342) e permanece como objeto de discurso de outro, “[...] com objetivos que não são os seus” (FOUCAULT, 2015, p. 343).

Num nível mínimo, considera-se que os filmes funcionam como “[...] arquivo em potencial” (FOUCAULT, 2015) que coloca em cena as diferentes dinâmicas do poder. Seja porque o coloca em cena positivamente ou porque dá visibilidade às vítimas desse poder, como ocorre, por exemplo, com os mineiros e as mulheres bolivianas protagonistas do filme A coragem do povo (Jorge Sanjinés, 1971), os quais constituem seu próprio arquivo e testemunhos a despeito do risco inevitável da tomada da palavra. Estes homens e mulheres explorados,

[mesmo sem] a ajuda do aparelho de produção-difusão do cinema, com pouquíssimos meios técnicos, se encarregam de sua própria representação, testemunham para a história. Um pouco como Pierre Rivière testemunhava, ou seja, começava a escrever, sabendo que ele teria mais cedo ou mais tarde que se apresentar à justiça e que seria preciso que todo mundo compreendesse o que ele tinha a dizer (FOUCAULT, 2015, p. 342).

Resta ainda dessa discussão uma espécie de aposta em problematizar o cinema como arquivo de cujas imagens, discursos e memória seria preciso se apossar, e dele munir-se como importante fator cultural, estético e político, do qual seria preciso reconhecer a potência já no testemunho de sua inscrição na memória e no imaginário do século XX. Em artigo que trata especialmente do tema cinema na obra foucaultiana, Nilton Milanez (2014) considera que o modo pelo qual Foucault se envolveu com um dado conjunto de filmes num recorte de tempo específico se baseia nas suas formas de descrição de tratamento do arquivo. Por certo, nas entrevistas em que trata de cinema pode-se ver o cuidado de Foucault com a constituição de algo como uma série de séries (de corpos, discursos, sujeitos, história) desobrigada de um ponto final, ou de um resultado qualquer convergente a um pleno saber (FOUCAULT, 2008). No arquivo fílmico abordado pelo filósofo, Milanez (2014) vê os filmes como quadros cinematográficos cuja força visual integra uma série de investimentos de questões históricas e relativas ao sujeito, o que a seu ver constitui o substrato discursivo que reforça o estudo de um arquivo fílmico no plano da arqueologia dos saberes.

Na conversa com Foucault (2015), Toubiana e Bonitzer destacam a importância e a presença dos documentos históricos na realização cinematográfica comentada naquele momento. Mas, além disso, observam a presença de personagens de ficção que encarnam a história personificando-a por meio da máxima condensação de relações sociais, de relações com o poder, de relações expressas nos microcosmos cotidianos, e historicamente inscritas na memória dos corpos. Em alguma medida, o desafio consiste na possibilidade de tornar próxima a memória não de um modo estritamente documental, mas, para além dos documentos que a rodeiam e conservam, mediante o rastro das ninharias e dos microacontecimentos com que se possa fazer dela um monumento partilhado entre muitos.

Tornar presente a significação intensa do cotidiano e sua mais minúscula inscrição no corpo, sob a fuga indefinida desses microacontecimentos (FOUCAULT, 2016a): eis o problema de René Allio no filme Eu, Pierre Rivière, eis um caminho possível para o cinema, uma urgência para a educação e uma tarefa para a filosofia. Se seguirmos Foucault (2016a, p. 82), esses microacontecimentos, assim como outros milhares de pequenos acontecimentos, por mesquinhos que pareçam, constituem nosso inconsciente histórico e pouco a pouco, “[...] tal como gotas de chuva, escavam nosso corpo, nossa maneira de pensar”.

Apesar das entrevistas em que Foucault discute o cinema não compreenderem o escopo do que ele havia trabalhado até então dentro da sua maneira de tratar o arquivo, Milanez (2014) pondera que sua visada arqueológica no cinema de certa forma interroga os modos pelos quais os problemas oriundos do cinema daquele tempo tornam presente a questão do saber, na medida em que permitem compreender não apenas aquela época, mas nós hoje, por meio dos fragmentos de história em seus planos, enquadramentos e movimentos de câmera.

Se, como considerou Foucault (2016a, p. 85), nós “[...] não podemos indagar o cinema a respeito do saber”, podemos sim elaborar perguntas com e a partir dos modos pelos quais ele nos permite instaurar um modo de presença particular da história, de efeito da história em seus deslizamentos à superfície do olhar e aos confins do corpo, de nossas maneiras de atuar, de pensar, de fazer, de conhecer, de imaginar, de criar e de sonhar. Se não se trata de pôr à prova o saber, trata-se de imaginar de que modos pode a arte requalificá-lo, com os componentes da criação, da percepção, da sensibilidade, do pensamento crítico, da contemplação, da vida vivida e inventada.

PARA CONCLUIR

Por fim, é certo que os filmes agem sobre os espectadores, e o fazem em diversos níveis: influenciam-nos, formam-nos, transformam-nos. Seus efeitos sobre nós também são variados: de emotivos a racionais, de intelectivos a espirituais. Também os espectadores agem emocional e intelectualmente sobre os filmes, experimentando com eles processos subjetivos, aderindo a eles em maior ou menor grau. Tais premissas fazem parte de modelos teóricos prioritariamente ideais, e em menor medida, pragmáticos, da relação entre filme e espectador. Se não podemos dizer, no entanto, que prescindem concretamente da relação com o espectador e seu corpo, podemos imaginar que, de esguelha, ainda esperam por eles. Lançada do problema do cinema como arquivo à educação - aqui entendida como processo humano incessante, de que participa decisivamente a memória, na transformação e recriação do mundo (FREIRE, 2001) -, essa linha transversal nos inspira passar ainda pela questão dos arquivos de imagens que se encontram fora de si mesmas, pertencentes a um corpo outro que então as porta e as leva consigo a outros lugares, compondoas e as confrontando com outras imagens, discursos e narrativas que ele tem na cabeça e em si. É também aí, suspeitamos, que tudo se decide.

1Na edição brasileira dos Ditos e escritos, organizada por Manoel Barros da Motta, a pequena coleção de textos que giram em torno do cinema pode ser encontrada nos volumes III e VII.

2O texto, todavia, não se limita cinematograficamente ao corpus fílmico presente nas entrevistas, pois estabelece relações entre este e outros filmes que o excedem.

3No original, “[...] cette valse des étiquettes et des caractérisations contradictoires”, p. 48. Consultar referências.

4Ver FOUCAULT, 1991, p. 179.

FILMES

A CORAGEM do povo. Direção: Jorge Sanjinés. Bolívia, 1971. [ Links ]

A TRISTEZA e a piedade. Direção: Marcel Ophuls. Suíça, 1969. [ Links ]

CLOSE-UP. Direção: Abbas Kiarostami. Irã, 1990. [ Links ]

ELEFANTE. Direção: Gus Van Sant. Estados Unidos, 2003. [ Links ]

EU, PIERRE Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Direção: René Allio. França, 1976. [ Links ]

LACOMBE Lucien. Diretor: Louis Malle. França, 1974. [ Links ]

NOITES sem dormir. Direção: Claire Denis. França, 1994. [ Links ]

O PORTEIRO da noite. Direção: Liliana Cavani. Itália, 1974. [ Links ]

VÊNUS Negra. Direção: Abdellatif Kechiche. França, 2010. [ Links ]

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Recebido: Agosto de 2021; Aceito: Outubro de 2022

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