INTRODUÇÃO
Cena 1: Era uma tarde qualquer, de uma semana qualquer, do ano de 2001. A aula era educação física. Quando se aproximava do horário daquela disciplina, lembro-me de ficar extremamente ansiose. As aulas eram planejadas, única e exclusivamente, em torno de práticas esportivas coletivas, na grande maioria das vezes futebol ou vôlei. Eu era sempre a criança que, na hora da escolha dos times, ficava por último, pois ninguém queria uma baleia assassina atrapalhando o jogo. Eu queria muito fazer outra coisa, como por exemplo jogar xadrez. Contudo, professoras e professores não permitiam. Foi assim que, naquele dia, ao nos dirigirmos para a quadra de esportes, a professora disse ter tido uma brilhante ideia para que eu pudesse participar. Como a aula havia sido pensada em torno de um jogo de basquete, e como as cestas que o colégio dispunha eram muito altas, ela decidiu que eu e outra criança, também gorda, seríamos as cestas. Subimos em cadeiras escolares, colocamos nossos braços de forma a imitar uma cesta, e o jogo começou. Fim da história: um braço quebrado. Porém, isso não foi o pior. O pior foi ter servido para ser a cesta de basquete, já que para outras coisas, para aquilo que esperavam de mim, eu não servia. Na verdade, nem para isso eu servi, já que durei poucos minutos (Will Paranhos).
Cena 2: Foi numa aula de educação física. A atividade proposta era um exercício de corrida e estar ali me causava uma ansiedade horrível, porque, de um lado, existia o receio em ser o show de risos e, de outro, também queria mostrar que eu podia, que eu conseguia fazer atividade física. Foi numa quadra gigante de um colégio estadual gigante, com a arquibancada lotada que chegou minha vez de correr e eis que caí no asfalto da quadra e me ralei toda. As pessoas riam, e gritavam: botijão, baleia, miss pig, orca encalhada..., a quadra estava cheia de alunes1 de todos os anos que compunham o horário da manhã, cerca de 200, 300 alunes que lotavam a arquibancada, pois se tratava de jogos abertos que todos assistiam, inclusive es professories que também riam junto com os alunos. Me senti muito mal, triste e frustrada, porque fui humilhada tentando dar o melhor de mim numa atividade que eu nunca conseguia estar à vontade. Nenhume professore foi falar comigo, me acolher, ouvir... Nunca mais corri na minha vida! [odeio corrida] (Maria Luisa Jimenez-Jimenez)
Nosso texto inicia com duas cenas, vividas peles autorus, a fim de elucidar momentos extremamente comuns do cotidiano escolar e social. Em um contexto em que, aparentemente, chegamos ao ponto mais alto de nossa jornada - até então - na luta pelo reconhecimento das diferenças - e esperamos que este seja só o começo -, nos parece que alguns aspectos têm passado despercebidos - não propositalmente, assim esperamos -, na grande maioria das vezes. Enquanto orientações afetivo sexuais2, por exemplo, não condizentes com a heteronormatividade, deixaram de figurar no rol dos códigos internacionais de doenças - e não que, como num passe de mágica, os enunciados oriundos do senso comum tenham assumido outro discurso -, corpas3 gordas ainda são patologizadas, medicalizadas e consideradas desviantes da corponormatividade. Na Classificação Internacional de Doenças (CID-11), recebemos o código E66 (Who, 2019), que se refere à obesidade4.
Partindo de uma perspectiva sócio-histórico-cultural - alicerçada nos direitos humanos - em epistemologias subalternas, estudos de gêneros e em torno de corpas dissidentes, surgem pesquisas/teorias que propõem um novo olhar em torno da obesidade, com enfoque em diversos processos biopsicossociais, em que os meios social, cultural, econômico e político assumem lugar estratégico na análise e em propostas de intervenções em cuidado e saúde (Cezar Santolin, 2012; Malu Jimenez-Jimenez, 2020; Fachim, 2022), os quais defendem que o estigma da gordofobia acaba posicionando pessoas gordas para além da margem social, posto que os saberes médicos e educacionais, também sustentados em uma gordofobia estrutural, assumem o uso de uma ideia limitada e equivocada sobre saúde, direitos e subjetividades em torno dessa população.
Dispositivos a fim de nos resguardar neste lugar não faltam. Possivelmente, um dos mais conhecidos é o Índice de Massa Corpórea que, a partir de uma equação que divide o peso pela altura vezes a altura (IMC = peso: altura x altura), define quais corpas são doentes e quais corpas são normais. Com base nesta fixação, surgiu o pavor, o horror a tornar-se uma corpa gorda e, consequentemente, a todas aquelas pessoas que já o são.
Na escola infelizmente este cenário não é diferente. No processo de assujeitamento (Silvio de Almeida, 2019) quando as pessoas são identificadas e diferenciadas (Brah, 2006), não são só as características físicas que definem os agrupamentos específicos, mas uma série de estigmas que a elas se relacionam. Se retornarmos ao relato que abre nosso texto, encontramos cenas bastante comuns nas escolas, sobretudo durante as aulas de educação física ou em momentos dos quais se espera um rendimento físico maior. As crianças gordas ficam por último, são deixadas de lado, pois há uma falsa ideia de que elas não contribuem com a atividade em questão, ou, ainda pior, que seriam um estorvo. Mais do que isso, essas corporalidades precisam estar magras para estar em sociedade, caso contrário, devem ser excluídas, hierarquizadas e humilhadas (Malu JimenezJimenez, 2021).
Em grande parte destes casos, a violência é abrigada em um grande guarda-chuva chamado bullying, culminando, não raro, em um apagamento das diferenças, no instante em que as demandas são abordadas de modo universalista. É necessário nomear as violências, a fim de que possamos criar estratégias específicas para combatê-las. Parafraseando o ministro Silvio Almeida em sua cerimônia de posse, pessoas gordas existem, crianças gordas existem, e são extremamente importantes para nós. Por esta razão é que defendemos uma escola que também seja plural, ao incluir as corpas que desviam das normas médicas/estéticas.
Nosso desejo, com este texto, não é o de apresentar um manual anti-gordofobia, pois de nada adianta a pretensão de criar e aplicar ações em um cenário que ainda não parou para pensar a respeito da violência contra corpas gordas e desconstruir a gordofobia estrutural. Nosso objetivo é propor um exercício difrativo5 (Donna Haraway, 1997; Karen Barad, 2007) emaranhado (Karen Barad, 2007) com um panorama auto-etnográfico (Daniel Manzoni de Almeida, 2021) de nossas experiências junto aos estudos das corpas gordas e com o ativismo gordo, a fim de pensarmos em possibilidades outras que nos orientem no desenvolvimento de uma prática educacional cada vez mais voltada à alteridade e à(s) diferença(s).
GORDOFOBIA ESTRUTURAL INSTITUCIONALIZADA NA EDUCAÇÃO
Conforme consta nos depoimentos da introdução deste artigo, as consequências de uma educação gordofóbica, desde a mais tenra infância, que insiste em machucar, humilhar e excluir essas corpas dos espaços educativos, são inúmeras, fazendo-nos acreditar que vários aspectos precisam ser questionados e revistos dentro do contexto escolar - e na sociedade como um todo. Além da maneira como temos nomeado essas violências dentro das escolas - ou melhor, não nomeado -, existem vários outros indícios de que a violência gordofóbica tornou-se estruturada e institucionalizada.
Em 2022, aconteceu o lançamento do livro infantil Lute como uma gordinha6 na Faculdade de Educação (FAE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), durante uma aula de didática, em que muites alunes de licenciatura presenciaram o debate alusivo ao lançamento. No final da atividade, perguntamos se algume daquelus alunes, de diversas áreas do conhecimento em licenciatura, ou seja, futuros professories, já tinham ouvido ou debatido alguma questão relacionada à gordofobia na universidade e a resposta foi uníssona: não. Nenhume alune ter estudado, debatido, lido algum material sobre a temática durante sua formação inicial demonstra o quanto nossa educação, independentemente do nível e/ou modelo, não está preparada para a diversidade corporal. A própria professora de didática, que organizava o lançamento/aula, também não conhecia a pauta.
Essa experiência, entre muitas, é que nos faz constatar e defender a urgência de se pensar e propor uma escola gorda que se debruce sobre estudos, ações, letramentos e formações em torno dos estigmas oriundos da gordofobia. Além do fato de pessoas gordas perfazerem 60% da população brasileira (IBGE, 2021) - na qual nos incluímos -, a violência com a qual precisamos lidar desde muito cedo é cruel e, infelizmente, ainda representa um tabu em nossa sociedade. A gordofobia é - mas vai além - um preconceito para com pessoas gordas, considerando que essa discriminação é um estigma estrutural, institucionalizado, propagado culturalmente em muitos espaços e contextos sociais na contemporaneidade (Malu Jimenez-Jimenez, 2020), levando pessoas gordas à exclusão social, negando a acessibilidade, patologizando, medicalizando e hierarquizando as pessoas gordas, desde suas infâncias até a fase adulta. Todo esse processo acaba por desvalorizar, humilhar, inferiorizar, e restringir as corpas gordas, de modo geral, levando a perda de direitos. Por se fazer presente em todos os lugares e possuir várias definições que apontam para problemáticas afins, a gordofobia trata-se de um fenômeno social complexo que é, muitas vezes, “[...] disfarçada de preocupação com a saúde, cuidado e amor, dificultando, dessa forma, seu entendimento e embate” (Malu Jimenez-Jimenez, 2021, p. 3), produzindo múltiplos desdobramentos, dentre eles uma série de problemas emocionais, físicos, estruturais e psicológicos. Na escola não tem sido diferente.
Segundo Valdelice Souza e Josiane Gonçalves (2021), a gordofobia é alicerçada pelo discurso médico quando considera que toda corpa gorda é doente. A mídia, por sua vez, potencializa tal lógica ao romantizar a magreza como símbolo de saúde, beleza e felicidade. Assim, o estigma da gordofobia se legitima dentro dos discursos de conhecimento/saberes dentro das escolas, afetando principalmente pessoas designadas ao nascer como do gênero feminino. Na maioria das vezes, essa violência é reconhecida como bullying, mas quase nunca encarada como gordofobia.
O ambiente educacional é um contexto em que a gordofobia é propagada não só entre es alunes, mas atinge toda a formação da comunidade escolar. Mães, pais, tutores, professories, coordenadories, direção, equipes de limpeza e cozinha, entre outros, todes são atingidos por ela. A escola repete o estigma da gordofobia de diversas maneiras, a exemplo da falta de formações/letramentos sobre a temática ou pela estrutura dos ambientes educacionais que se volta, tão somente, às corpas tidas como normais, ou seja, magras.
Se você duvida que a gordofobia se faz presente tão veementemente em nossas vidas, pare neste instante, enquanto você lê nosso texto, e olhe para onde você está sentade. Caso seja uma cadeira, perguntamos: ela comporta uma corpa gorda? Temos quase certeza de que sua resposta foi não. Este é somente um dos vários indícios a respeito de como a sociedade se estrutura a partir de um ideal físico. Na escola, cadeiras, mesas, banheiros, uniformes, todo um arcabouço pensado para comportar crianças, adolescentes e adultes não gordas.
Em que pese a formação inicial des professories em cursos de licenciatura, inexistem debates sobre as corporalidades gordas e a gordofobia, a não ser quando dentro de uma ideia moral de patologização dessas corpas.
Desde criança, aprendemos em casa com a família e depois nas escolas que o corpo belo e saudável, é o corpo magro. Infelizmente, o corpo gordo nas Instituições de Ensino segue a Gordofobia estrutural e, portanto, repete a exclusão e estigmatiza a criança/adolescente/adulto gordo, causando fobias, medos, traumas, bullying e suicídios. Os profissionais da educação repetem a estigmatização, e de maneira geral não sabem lidar com o preconceito, culpando na maioria das vezes a própria vítima. [...] A estigmatização e exclusão do corpo gordo na escola está presente desde cedo, porque a escola não tem cumprido o seu papel de transgressão do pensamento hegemônico, parece que esse papel fica na responsabilidade da educação superior, já que se “acredita” que pensamento crítico e discussão sobre respeito a diversidade, direitos humanos é coisa de “comunista” e de humanas (Malu Jimenez-Jimenez, Cláudia Reis, 2021, p. 209).
Posto isso, fica evidente que o que temos é uma educação gordofóbica, hierarquizante e violenta com pessoas gordas, desde suas infâncias. Ser uma corpa gorda no mundo é ter que lidar com a gordofobia desde muito cedo, em lugares nos quais se espera algum tipo de acolhimento, tais como a família e a escola. Para mais, na própria construção dos conhecimentos, dentro das instituições de ensino superior, a gordofobia é expressa nos conteúdos, debates e atividades propostas, tal qual percebe-se no lançamento acima mencionado.
Quando falamos que nós, nos acontecimentos reproduzidos em nossos relatos, sofremos bullying e não gordofobia, perdemos a oportunidade de debater essa violência, nomeá-la, identificála. Ao contrário, escondemos suas características debaixo do tapete, invisibilizando a gordofobia e as corpas gordas. Infelizmente essa discussão ainda é um tabu, como mostram nossas experiências dentro das instituições de ensino. Pessoas gordas sofrem com a gordofobia caladas, porque não existem espaços de escutas e acolhimento, além de um pensar-fazer inclusivo que se volte às suas realidades.
BULLYING E UNIVERSALISMO
Durante o primeiro semestre de 2023, uma matéria divulgada pela Folha de São Paulo chamou nossa atenção: “Mato Grosso do Sul vai oferecer cirurgia estética para alunos vítimas de bullying na escola” (Aléxia Sousa, 2023, s. p.). A chamada ecoou em nossos pensamentos, haja vista nossas experiências de corpas gordas, e logo nos fez indagar a respeito de que bullying é este a que a reportagem fazia referência. A partir daí, iniciamos algumas pesquisas em outros portais de notícias e, para nossa surpresa - ou não -, comprovamos nossa hipótese. O termo bullying estava, e está, sendo usado de maneira indiscriminada e acaba apagando uma violência que tem nome: gordofobia.
Bullying, enquanto termo, é proveniente da língua inglesa, “[...] utilizad[o] em quase todo o mundo ocidental para explicar casos específicos de violência escolar” (Pâmela Esteves, 2019, p. 2). Esse fenômeno começa a ser estudado durante a década de 1970, mais especificamente na Suécia, mas somente em 1990 é aprofundado, quando aparecem alguns casos de suicídio, entre jovens e adolescentes em idade escolar, na Noruega.
Existe um discurso banalizador de que tudo se resume a bullying, inferência esta que é, teoricamente, rebatida. Para que algo seja considerado bullying, alguns pontos devem ser observados: “[...] ações repetitivas contra a mesma vítima; agressões num período prolongado de tempo; desequilíbrio de poder entre o agressor e a vítima; dificuldade da vítima em se defender; ausência aparente de motivos que justifiquem os ataques; atos de violência ocorridos entre pares” (Pâmela Esteves, 2019, p. 2). Dentre suas principais causas, aposta-se no cenário multicultural e, atrelado, na dificuldade do reconhecimento das diferenças (Pâmela Esteves, 2016), cada vez mais presentes no espaço educacional, bem como a banalização do mal (Pâmela Esteves, 2015), acelerada por meio dos discursos de ódio que têm sido normalizados em nosso contexto (William Paranhos, 2022).
Sabe-se que a escola é um reflexo do social, em que, também, a complexidade e a pluralidade das relações fazem-se presentes. Contudo, parece “[...] que temos caminhado a passos lentos no sentido de acolher a diversidade cultural, sobretudo quando se considera a rapidez com que assumimos práticas preconceituosas, racistas, estereotipadas ou xenofóbicas diante do ‘outro’” (Maria José da Silva, Maria Rejane Brandim, 2008, p. 54). A convivência na/com a alteridade, a condição daquilo que é de outre, têm sido distorcidas, culminando na outrorização que, para Ingrid Pavezi (2014), apresenta-se como o estabelecimento de um contato permeado pelo exotismo, atribuindo características estigmatizadoras que colocam o outro na posição de subalternidade. Ou ainda, consoante a Thiago Ranniery (2022, p. 31), “[...] a diferença é tomada em termos de ‘outros’ dentro de um regime de alterização, em uma espécie de recalcitrância que, de ponta a ponta, é exposta como parte da gramática colonial moderno”.
O cenário multicultural não é novo. Em face do racismo e da inexistência de direitos por parte da população negra é que, nos Estados Unidos, ainda no final do século XIX, surge a noção de multiculturalidade, posteriormente ampliada e relacionada com outros grupos minorizados, a qual tem por premissa o reconhecimento de diversas culturas, colocadas em contato, mas mantendo suas margens bem delimitadas (Lisette Weissmann, 2018). “Os precursores do multiculturalismo foram professores doutores afro-americanos, docentes universitários na área dos Estudos Sociais que trouxeram, por meio de suas obras, questões sociais, políticas e culturais de interesse para os afrodescendentes” (Maria José da Silva, Maria Rejane Brandim, 2008, p. 56), o que, em vista do exposto, possibilitou o surgimento de um proeminente campo de estudos.
Quase um século depois, especialmente entre os anos de 1980 e 1990, com a eclosão das perspectivas pós-modernas, é que a educação, e mais especificamente o campo dos estudos curriculares, irá voltar-se a esta nova lente teórica, no instante em que o currículo passa a pautar-se em um discurso “[...] que valoriza a mistura e o hibridismo de culturas, a pluralidade e as diferenças culturais. [Nele], [a] celebração da diferença se constitui [em] uma de suas ideias básicas” (Maria José da Silva, Maria Rejane Brandim, 2008, p. 58). Algumas pesquisas (Pâmela Esteves, 2015; Pâmela Esteves, 2016) consideram que assumir tal horizonte multiculturalista é exatamente o melhor meio que temos para combater o bullying escolar.
Ocorre, no entanto, que a partir do multiculturalismo, surge um embate entre as concepções filosóficas universalistas e relativistas. De maneira sintética, o relativismo defende que não existem realidades e/ou verdades absolutas que não estejam diretamente relacionadas às construções socioculturais. O universalismo, por sua vez, e ao contrário, acredita que existem sim alguns valores que independem da cultura e da formação social. Mesmo diante deste campo de tensões, nem sempre inteligíveis e, portanto, nem sempre percebidas, a escola segue pensando e criando estratégias que tenham como objetivo final o estabelecimento de relações cada vez mais igualitárias (Ana Canen, 2007).
Igualdade. É este o termo que provoca Carla Akotirene (2019); Édis Lapolli, Will [William Roslindo]7 Paranhos, Inara Willerding (2022); Will [William Roslindo] Paranhos, Nágila Aguiar, Eduarda dos Santos (2021) a realizarem alguns questionamentos. Em suma, para es autories a igualdade tem sido utilizada dentro de uma perspectiva universalista como forma de homogeneizar os mais distintos grupos, provocando o apagamento das diferenças, o que, por sua vez, traduz-se em mais uma, e talvez a mais virulenta, forma de violência. Nas palavras de Carla Akotirene (2019,p. 45), o universalismo, na verdade, nos dá uma “[...] falsa impressão de existir empatia e homogeneidade” na diferença. A diversidade multicultural:
[...] que se constitui de algum modo como uma harmônica colagem de esferas culturais benignas é uma modalidade conservadora e liberal de multiculturalismo que, a meu ver, merece ser jogada fora. Quando tentamos transformar a cultura num espaço imperturbado de harmonia e concordância, onde as relações sociais existem dentro da forma cultural de um acordo ininterrupto, endossamos um tipo de amnésia social onde esquecemos que todo conhecimento é forjado em histórias que se desenrolam no campo dos antagonismos sociais (Peter McLaren, 1992, s. p. apud bell hooks, 2017, p. 47).
Faz-se extremamente necessário compreendermos que é neste quadro que a noção de bullying surge e começa a ser estudada, levando-nos, mais uma vez, às manchetes anteriores. Em nenhuma delas a gordofobia é lida/tida como tal, mas sendo apresentada como se tratando de mais uma das diversas formas assumidas pelo bullying escolar. O estudo desenvolvido por Lilia Schraiber et al. (2003), se desenha justamente no sentido de demonstrar a importância de que as violências - no caso específico da pesquisa, a violência contra as mulheres, mas que aqui ampliamos - sejam nomeadas a fim de que se torne possível combatê-las com os instrumentos específicos.
O uso de silêncio, do não dito, ou seja, a não nomeação da violência é uma prática extremamente comum, utilizada em muitos casos, inclusive, como uma estratégia no combate aos próprios atos violentos. Todavia, para Fabrício Guimarães, Gláucia Diniz e Fábio Angelim (2017), a não nomeação reforça o não ver e, se não vemos algo, consideramos que ele não existe. Deste modo, as violências passam despercebidas e continuam a ser reproduzidas no cotidiano.
Apesar de aterem-se ao chamado bullying homofóbico, Hugo Santos, Sofia da Silva e Isabel Menezes (2017, p. 119, grifos do original) apresentam algumas considerações bastantes pertinentes que também nos levam a rever o conceito em questão. Para es autories, o bullying é “[...] incapaz de ilustrar, descrever e explicar todas as formas de violência homofóbica (e, sobretudo, heteronormativa) da e na escola que não podem ser confinadas a uma noção restritiva e monolítica de bullying”. Deslocando o debate para o campo da gordofobia, tal incapacidade também é percebida, ao considerarmos o fato de este tipo de violência não se apresentar, tão somente, de maneiras e em formatos intencionais, mas estar, em grande parte das vezes, ligado a aspectos estruturais e, em se tratando da escola, institucionalizados.
De acordo com Marcos Francisco e Renata Libório (2015, p. 22), os conceitos fundamentais em torno do bullying escolar estão ainda relacionados a concepções que não englobam os aspectos sociais e culturais, “[...] como se o fenômeno fosse reflexo da relação imediata entre dois indivíduos abstratos”. Deste modo, é imprescindível, ainda para es autories, que a escola desenvolva um trabalho que possibilite lidar com as questões estruturantes que levam à concretização da violência, seja ela direta ou indireta, rompendo “[...] com o caráter abstrato e universalista presente em tal constructo social” (Marcos Francisco, Renata Libório, 2015, p. 10), adotando uma perspectiva interseccional (Will Paranhos, Elizabeth Macedo, 2023).
A escola, a mídia e a sociedade, porém, seguindo a lógica neoliberal universalista, “[...] insiste[m] em negar as diferenças sob a égide da uniformização” (Pâmela Esteves, 2019, p. 5). Quando um estudante sofre por ser xingado de “[...] bolo fofo” (G1, 2022, s. p.), quando uma estudante é chamada, pejorativamente, de gorda pelo professor durante a aula (G1, 2015, s. p.), quando uma secretaria de educação decidi imprimir cartilhas que comparam crianças gordas a botijões de gás (Estadão, 2018), ou, atingindo o nível máximo da violência, quando uma adolescente se suicida por “[...] não aguentar mais” (Sabrina Oliveira, 2018, s. p.), não há bullying, mas gordofobia!
“POR UMA ESCOLA GORDA!”: CRIANDO POSSIBILIDADES E APROXIMANDOSE DA(S) DIFERENÇA(S)
Nesta seção final, nos ancoramos nos estudos do corpo gordo, campo epistemológico que questiona o preconceito estrutural que alicerça os estudos calcados no paradigma da obesidade, provocando-nos a pensar de diferentes maneiras a respeito das corpas, além de se lançar na construção de outros modos de olhar para essas corporalidades e produzir conhecimento sobre elas. A pesquisa Gorda8 - estudos transdisciplinares das corporalidades gordas é um exemplo de espaço construído sobre tais alicerces. Nela, pessoas pesquisadoras das corpas gordas, além de denunciarem os casos de gordofobia, propõem-se a pensar em novas epistemologias em torno das corporalidades.
Sendo assim, “Por uma escola gorda!” tem um ar de manifesto. Somos corpas gordas que experienciaram na escola, e experienciam na sociedade, os reflexos nefastos oriundos da violência gordofóbica. Fomos crianças levadas a acreditar que nossas corpas não prestavam, não serviam. Éramos feias, não éramos merecedoras de cuidados, amizades, amores. E éramos culpades por isso tudo, “[...] por não ser mais magro [...], não ser o que eu deveria ser. E isso só aumentava meu ódio contra o meu corpo numa severa tentativa de ser quem as pessoas falavam que eu deveria ser (Wilker Ramos-Soares, 2021, p. 5). Se sofríamos, era porque não nos dedicávamos o bastante para emagrecer, porque éramos preguiçoses demais, guloses demais, medroses demais e, sempre demais, fomos construindo ideias e percepções equivocadas sobre nós mesmes (Wilker Ramos-Soares, 2021).
Nosso desejo não é o de criar ou definir nada, pois acreditamos que a fixação consiste, também, numa forma requintada de colonização, impossibilitando novos emaranhamentos. O que queremos é apresentar caminhos outros, explorar “[...] elementos para re-elaborarmos estratégias de sobrevivência y ataque no interior da atmosfera tóxica do regime racista e cis-heterossexista colonial” (abigail Campos Leal, 2021, p. 113) - regime este que é corponormata9 -, lançarmonos a novas possibilidades que (re)pensem as tessituras do campo curricular, abrindo a escola às novas, e sempre fluidas, formas de alteridade.
A articulação de discursos que não se atenham somente às críticas é urgente, pois focar no negativo, naquilo que deu errado, é uma maneira de reforçar os sistemas hegemônicos que nos subalternizam (Marlene Wayar, 2021), traduzindo-se “[...] em prova cabal da vitória normativa” (Thiago Ranniery, 2022, p. 32) sobre os dispositivos curriculares, motivo pelo qual passamos a imaginar como seria uma escola que percebe e valoriza as distintas corporalidades existentes, o que, afetuosamente, decidimos chamar de escola gorda.
Em se tratando de um campo transdisciplinar, os estudos do corpo gordo, e a escola gorda, por nós proposta, busca no feminismo negro de bell hooks (2018, local. 15) algumas de suas bases.
[Se u]ma revolução feminista sozinha não criará esse mundo; precisamos acabar com o racismo, o elitismo, o imperialismo. Mas ela tornará possível que sejamos pessoas - mulheres e homens - autorrealizadas, capazes de criar uma comunidade amorosa, de viver juntas, realizando nossos sonhos de liberdade e justiça [...]. Aproxime-se. [...] Aproxime-se e verá: o feminismo é para todo mundo.
Assim o é com uma escola gorda. Pensar em novas corporalidades não se traduz em um exercício que tornará possível o reconhecimento das corpas gordas, tão somente, mas também de outras constituições e construções corporais que diariamente surgem e se reinventam, resguardando seu direito à diferença, direito este que é intocável, inalienável e irrevogável. E, nesse processo, a escola gorda também luta contra todos os tipos de violências. Somos contráries ao racismo, ao sexismo, ao elitismo, à LGBTIAP+ e queerfobia, à aporofobia, e tantos quantos outros locais de poder e dominação existirem.
A escola gorda entende que o feminismo gordo, localizado numa perspectiva epistemológica decolonial, propõe romper com o regime político de saber-poder, de ciência única e com a hierarquização de saberes, intencionando formas subalternas de sobreviver, de construir saberes, novas maneiras de viver, em que se opõe a uma educação que dociliza as corpas, tornando-as obedientes e silenciadas. Assim, agimos de modo a livrar o pensamento das amarras coloniais, libertando-nos da culpa em nós cravada, dado o fato de sermos corpas dissidentes, possibilitando um novo modo de compreender-se e colocar-se no mundo (Malu Jimenez-Jimenez, 2022).
Em um paralelo a Wilker Ramos-Soares (2021), a escola gorda opera numa tentativa de que todes, todas e todos reconheçam seus privilégios, expressos em suas corporalidades, entendendo, no entanto, que estes não anulam as dissidências em virtude das corpas gordas ou de qualquer outra que se apresente. Nessa escola, “[...] fazemos rotas de fuga com trocas de afago” (Tatiana Nascimento, 2019, p. 31-32), tomamos as opressões pelos chifres e torcemos, giramos, fraturamos, mas sempre pela amorosidade e pela afetação. Amor não romântico, mas aquele que indica a potência existente nas comunidades, agrupamentos e relações (bell hooks, 2017).
A escola gorda busca morada na educação transgressora de bell hooks, propondo o contínuo exercício de romper com as fronteiras impostas pela colonização das corpas, dos saberes e dos sentires. Nela, todes, todas e todos são capazes de aprender, buscando “[...] não somente o conhecimento que está nos livros, mas também o conhecimento acerca de como viver no mundo” (bell hooks, 2017, p. 27). Nossa proposta pedagógica é engajada (bell hooks, 2017), resistente e sustentada no contraposicionamento, o qual “[...] refuta os pontos de vista e as crenças da cultura dominante e, por isso, é orgulhosamente desafiador” (Gloria Anzaldua, 2019, p. 324).
Neste processo contínuo, pois nunca se encerra, de senti-pensar (Raul Ferrera-Balanquet, 2015) a educação, enfatizamos a busca pelo bem-estar de todes, ampliando a percepção que temos de que ações que miram no bem viver devem se desenhar somente em torno do corpo discente. Se vivemos em confluência, não há como constituir o bem-estar de ume enquanto outre sofre. Em nossa escola, primamos pelo “[...] processo de autoatualização” (bell hooks, 2017, p. 28) com/para todes, todas e todos.
Porém, neste para todes, a escola gorda vigia para que não caia em perspectivas universalizantes. Primamos pelo “[...] e/u otobiográfico, esse nome provisório para algo que está sempre y já diferenciando-se, esfacelando-se, y arquivando isso. a inteireza esfacelada do meu corpo arquiva as mudanças dos meus e/us afetados pelas outrizações raciais y de gênero” (abigail Campos Leal, 2021, p. 77, grifos do original), somando-se, também, as outrizações corponormatas. Percebemos e reconhecemos nosso esfacelamento, mas adotamos posturas outras que nos possibilitem pensar em outros contextos, outros mundos, guiades pelo exercício imaginativo e criativo. Com os estilhaços (Jota Mombaça, 2021), artesanalmente, criamos mosaicos e vitrais.
A escrita deste texto se deu por inúmeros motivos. Relembrar nossas infâncias gordas é, também, uma maneira de se curar das violências que sofremos no passado. Porém, nosso objetivo maior não é olhar para as dores, mas sim propor uma guinada discursiva (Marlene Wayar, 2021) que nos possibilite a construção de outros caminhos, de outros saberes, de outros fazeres e sentires. Escrevemos com emoção, pois é isso o que vaza de nossas corpas gordas e transbordantes.
“Seguimos, nos delírios de uma criação solitária y coletiva, afirmativa y frustrada, quebrada y ajuntada, produzindo ontografias esfaceladas de refeituras que não mais se deixam inscrever nas onto/logias negativas e essencialistas, brancas. Sigo, seguimos, escuiresendo” (abigail Campos Leal, 2021, p. 132, grifos do original). Assim, numa releitura, desde já, engordurada, pela construção de uma ontoepistemologia gorda, seguimos, solitáries e juntes, em imensidões gordosféricas, militando e acreditando nas potências existentes em todas as formas que transbordam os limites hegemônicos. Seguimos, sigamos, engordesendo.10