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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.62 Uberlândia May/Aug 2017  Epub Mar 09, 2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n62a2017-p1055a1088 

Artigos

Uma ontologia negativa do indivíduo em Althusser

A negative ontology of the individual in Althusser’s work

Une ontologie négative de l’individu chez Althusser

Roberto Goto* 

*Doutor em Educação pela Universidade de Campinas (Unicamp). Professor do Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da Unicamp. E-mail: goto@unicamp.br


Resumo

Em sua teoria da ideologia em geral, exposta em Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado, Louis Althusser sustenta que os sujeitos nunca são constituintes, mas sempre e constituídos na e pela ideologia, a partir de algo que os precede - os indivíduos. Aí está, senão exposta, ao menos sugerida, uma ontologia do indivíduo, ainda que negativa, na medida em que o indivíduo que se torna sujeito pelas artes e artimanhas da ideologia é uma espécie de origem, fonte ou fundamento que nunca existe concretamente, abortado que é no instante mesmo em que a interpelação ideológica faz dele um sujeito, destinado a viver a ambivalência de ser simultaneamente ativo e passivo. Este ensaio especula sobre essa ontologia no contexto do célebre pedido de desculpas que entremeia o texto althusseriano, confrontando-a com a questão que ele suscita a respeito do que chama de “heróis”.

Palavras-chave: Herói; Indivíduo; Ontologia; Sujeito

Abstract

In his theory of the ideology in general, exposed in Ideology and Ideological State Apparatuses, Louis Althusser sustains that subjects aren’t constituents, but they are always and immediately constituted in and by ideology, from someone that goes before them - the individuals. There it is, exposed or, at least, suggested, a ontology of the individual, however negative, in view of the individual which becomes subject by the ideology’s crafts and tricks is a kind of origin, source or basis that never exists concretely, aborted that he is in the same moment in which the ideological calling changes him into a subject, destined to be ambivalently active and passive. This essay speculates on that ontology in the context of the famous excuses’ petition that intermixes the althusserian text, confronting the ontology with the question that the petition rouses about those the author names “heroes”.

Keywords: Hero; Individual; Ontology; Subject

Résumé

Dans sa théorie de la idéologie en général, exposé dans Idéologie et Appareils Idéologiques d’État, Louis Althusser affirme que les sujets jamais sont constitutives, mais toujours-déjà constitués dans et par la idéologie, à partir de quelque chose qui les précède - les individus. Voici, sinon exposé, au moins suggéré, une ontologie du individu, quoique négative, en ce que l’individu qui devient sujet par les arts et artifices de la idéologie est une espèce de origine, source ou fondement qui jamais existe concrètement, avorté dans l’instant même de la interpellation idéologique qui fait de lui un sujet, destiné à vivre la ambiguïté d’être en même temps active et passive. Cet essay spécule sur cette ontologie dans le contexte de la célèbre demande de pardon qui s’entremêle dans le texte althusserian, en la confrontant avec la question que cette demande suscite sur ce que le texte appelle des «héros».

Mots-clés: Héros; Individu; Ontologie; Sujet

Naquele que é provavelmente o trecho mais citado de Aparelhos Ideológicos de Estado, no final da parte “Sobre a reprodução das relações de reprodução”, Louis Althusser (1987, p. 80-81), longe de criar ou alimentar expectativas de ação, as desencoraja expressamente:

Peço desculpas aos professores que, em condições assustadoras, tentam voltar contra a ideologia, contra o sistema e contra as práticas que os aprisionam, as poucas armas que podem encontrar na história e no saber que “ensinam”. São uma espécie de heróis. Mas eles são raros, e muitos (a maioria) não têm nem um princípio de suspeita do “trabalho” que o sistema (que os ultrapassa e esmaga) os obriga a fazer, ou, o que é pior, põem todo seu empenho e engenhosidade em fazê-lo de acordo com a última orientação (os famosos métodos novos!). Eles questionam tão pouco que contribuem, pelo seu devotamento mesmo, para manter e alimentar esta representação ideológica da escola, que faz da Escola hoje algo tão “natural” e indispensável, e benfazeja a nossos contemporâneos como a Igreja era “natural”, indispensável e generosa para nossos ancestrais de alguns séculos atrás.

Contra o que, no palavreado marxista (ou no chamado marxismo vulgar), costuma ser classificado como subjetivismo voluntarista - ou voluntarismo subjetivista -, o autor apresenta uma espécie de princípio de realidade: “caros professores, não se iludam, não sejam voluntaristas; é tarefa ingrata e inglória tentar mudar o sistema voltando-se contra a ideologia que contribui para a sua reprodução”. Trata-se, como se diz - ou se dizia -, de “cair na real”; mas essa injeção de desilusão - como antídoto da ilusão - dói; daí o pedido de desculpas...

Nessa passagem tantas vezes replicada (reproduzida...), mas nem por isso suficientemente explorada no que respeita às ressonâncias de seu significado, ressoam ecos de um diálogo ou confronto com, de um lado, a fenomenologia e o existencialismo, e, de outro, o marxismo em sua vertente humanista - ou, se se quiser, com o humanismo, em suas versões fenomenológico-existencialista e socialista. No primeiro caso, o diálogo se trava e se explicita em torno da categoria de sujeito, especialmente a de “sujeito transcendental”, que em Sartre, segundo Althusser (1978, p. 69, grifos do original), assume a forma de uma

teoria da Liberdade originária de uma infinidade de sujeitos transcendentais “concretos” (Tran-Duc-Thao1 disse certa ocasião, tentando explicar Husserl: somos todos, você e eu, cada um de nós, “egos transcendentais”, [“] iguais transcendentais”), teoria que desemboca efetivamente na Tese segundo a qual “os homens” (os indivíduos concretos) são os sujeitos (transcendentais, constituintes) da história.

No segundo caso, o diálogo/confronto envolve não só uma ofensiva (contra o que o autor chama de humanismo socialista) como uma defesa - a da ideia ou tese de um “anti-humanismo teórico de Marx”. Essa polêmica, além de estabelecer e implicar, como aquela, uma demarcação de território, tanto de fato quanto de direito (concretamente: o que é propriamente marxista, o que pode ser dito em seu nome), é tributária do procedimento2 do corte epistemológico e da distinção entre ciência e ideologia: o anti-humanismo de Marx é teórico na precisa medida em que não é ideológico. Parte do princípio de - e tem como corolário - que o humanismo (inclusive o socialista) é uma ideologia, no sentido de que sua função predominante é prática, não de conhecimento.

Ao dizer que o conceito de humanismo é um conceito ideológico (e não científico) afirmamos ao mesmo tempo que ele designa antes de tudo um conjunto de realidades existentes, mas que, diferentemente de um conceito científico, não dá o meio de conhecê-los [sic]. Ele designa, de um modo particular (ideológico), existências, mas não dá a sua essência. Confundir essas duas ordens seria interditar-se todo conhecimento, manter uma confusão e correr o risco de cair em erros (ALTHUSSER, 1979, p. 196).

Na constituição da teoria marxista, o caráter antitético e seu aspecto de novidade radical articulam-se numa relação de reciprocidade: tratarse-ia de uma teoria totalmente nova, diferente das anteriores, por conta justamente de ela constituir-se pelo rompimento com o(s) humanismo(s) que caracteriza(m) as filosofias que a precederam, como a de Feuerbach. Marx teria empreendido uma “revolução teórica total” que implicaria “uma nova problemática, um novo modo sistemático de apresentar as questões ao mundo, novos princípios e um novo método”, o que representaria não só “uma nova ‹filosofia› de implicações infinitas”, mas “uma nova concepção de ‹filosofia›” na medida em que propõe “novos conceitos (forças produtivas, relação de produção etc.)” no lugar do “velho par indivíduo-essência humana”. Dessa maneira (a do corte epistemológico), ela teria deixado para trás “os antigos postulados (empirismo-idealismo do sujeito, empirismo-idealismo da essência) que estão na base não só do idealismo como também do materialismo pré-marxista”, substituindo-os

por um materialismo dialético-histórico da praxis: isto é, por uma teoria dos diferentes níveis específicos da prática humana (prática econômica, prática política, prática ideológica, prática científica) nas suas articulações próprias, fundadas nas articulações específicas da unidade da sociedade humana. Em uma palavra, em lugar do conceito “ideológico” e universal da “prática” feuerbachiana, Marx coloca um conceito concreto das diferenças específicas que permite situar cada prática particular nas diferenças específicas da estrutura social (ALTHUSSER, 1979, p. 202).

Mas, justamente por ser teórico (ou seja, por se dar no âmbito da teoria), o anti-humanismo pode conviver com a ideologia, a qual, dada no âmbito da prática, o complementa, ao mesmo tempo em que nele se funda: ele “não suprime [...] de nenhum modo a existência histórica do humanismo” - um humanismo prático, ideológico - e mesmo

reconhece, ao pô-lo em relação com as suas condições de existência, uma necessidade ao humanismo como ideologia, uma necessidade sob condições. O reconhecimento dessa necessidade não é puramente especulativo. É somente sobre ele que o marxismo pode fundar uma política concernente às formas ideológicas existentes, quaisquer que sejam elas: religião, moral, arte, filosofia, direito - e humanismo em primeiro lugar (ALTHUSSER, 1979, p. 204; grifos do original).

O reconhecimento dessa “existência histórica do humanismo” como ideologia não significa, entretanto e portanto, a admissão (na teoria) de uma concepção humanista de História, isto é, daquela que toma o Homem ou os homens como sujeito(s) dos processos históricos. Nesse caso, a postura althusseriana é de oposição tanto ao que interpreta como próprio do pensamento sartriano quanto ao que atribui a Hegel. Não só não há sujeito(s) da História - o que há, diz o autor (1978, p. 67), são agentes/ sujeitos na História - como também a História “não é um texto em que fale uma voz (o Logos), mas a inaudível e ilegível anotação dos efeitos de uma estrutura de estruturas” (ALTHUSSER, 1979a, p. 15-16). Ler a História como um texto sem levar em conta a “opacidade do imediato”, confundindo “o imaginário e o verdadeiro” - ou seja, não distinguindo o ideológico do científico - é um procedimento exegético calcado no “mito religioso da leitura”, ilusão na qual ainda incorre o jovem Marx, que nos Manuscritos de 1844 “lia em livro aberto, imediatamente, a essência humana na transparência de sua alienação”, porém da qual se livra o Marx maduro, uma vez que O Capital “toma [...] a exata medida de uma distância, de um deslocamento interior ao real, inscritos na sua estrutura e de tal modo que tornam seus próprios efeitos ilegíveis, e façam da ilusão de sua leitura imediata o último e final de seus efeitos: o fetichismo” (ALTHUSSER, 1979a, p. 15, grifos do original).

Trata-se então, para Althusser, não de abstrair e extrair da História a “essência” de Marx, mas de desenhar sua identidade ou mesmo singularidade. Em tal caso, justamente, a categoria de corte epistemológico não deve ser superestimada, na medida em que não constitui um objetivo ou fim autônomo, mas um meio ou instrumento (“ferramenta”, dir-se-ia hoje) para determinar o papel específico de Marx. Do caráter desse esforço são expressivos os termos em que se estrutura uma frase como: “Marx só pôde tornar-se Marx fundando uma teoria da história e uma filosofia da distinção histórica entre a ideologia e a ciência [...]” (ALTHUSSER, 1979a, p. 15).

Todavia, seria especioso não incluir esse esforço no processo exegético da obra marxiana. O próprio Althusser encarrega-se de estendê-lo a Sartre, ao denunciar o que seria um contrabando de categorias fenomenológico-existencialistas para o território marxista; é o que ocorreria com a interpretação sartriana da frase do 18 Brumário que, na que seria a tradução correta, diz: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem a partir de elementos livremente escolhidos (ausfrein Stücken), em circunstâncias escolhidas por eles, mas em circunstâncias (Umstände) que eles encontram imediatamente diante de si (vorgefundene), dadas e herdadas do passado.” (ALTHUSSER, 1978, p. 70; grifos do original). A posição de Sartre, ao explorar o significado da frase no contexto de sua “teoria da Liberdade”, como a classifica Althusser, “rebaixa as categorias kantianas ao nível não mais de uma filosofia antropológica (Feuerbach), mas de uma vulgar psico-sociologia filosófica” e “não apenas nada tem a ver com o marxismo, mas também constitui uma verdadeira porfia teórica, praticamente impossível de ser pensada e retida” (ALTHUSSER, 1978, p. 69-70; grifos do original).

Como pode sugerir o tom dessa diatribe, Althusser não se dispõe a abrir mão do critério que permite separar o “imaginário” do “verdadeiro”. Em O futuro dura muito tempo (ALTHUSSER, 1978, p. 158), classifica ironicamente o filósofo existencialista como um “brilhante espírito, autor de fantásticos ‘romances filosóficos’, como O ser e o nada e a Crítica da razão dialética”, e que “nunca entendeu nada nem de Hegel, nem de Marx, nem, evidentemente, de Freud. Eu o enxergava, no máximo, como um desses ‘filósofos da história’ pós-cartesianos e pós-hegelianos de que Marx tinha horror.” Numa tal alusão, é possível não só ler a irritação do intelectual “entendido”, proprietário da interpretação apropriada dos autores citados, como também ouvir ecos do célebre necrológio que Marx (1977, p. 328-331) escreveu sobre Proudhon, o qual, ao que tudo indica, precedeu Sartre na imprópria e inadequada compreensão de Hegel: “No decorrer de longos debates, que se prolongavam frequentemente por toda a noite, contaminei-o, causando-lhe grave dano, com o hegelianismo que, dada a sua ignorância do idioma alemão, ele não podia estudar devidamente.”

É a tal espírito que convém associar a letra daquele pedido de desculpas que figura no meio do texto de Aparelhos Ideológicos de Estado, (re)tomando-o contra o pano de fundo de um certo senso de realidade calcado na percepção e na pressuposição de estruturas que existem e operam independentemente da vontade dos “sujeitos”. Ignorá-las e/ou afirmar, em contraposição, a liberdade subjetiva, soa, aos ouvidos estruturalistas de Althusser, como uma impropriedade. Assim, interpretar a escola, essa instituição da sociedade capitalista, em função da pauta (ideológica) do humanismo socialista e daí retirar as consequências e/ ou exigências em termos de prática, não seria apropriado, isto é, não estaria de acordo com os pressupostos da teoria autenticamente marxista, cujo ponto de partida não são os homens, mas as relações sociais, as quais constituem os sujeitos, determinando suas posições e seus papéis respectivos nas estruturas.

Althusser não é Sartre: não escreve “romances filosóficos”, mas concentra-se num sério trabalho teórico, opera uma “prática teórica”, balizada pelo que é propriamente marxista - baliza que ela própria estabelece. Tentar revolucionar a escola, anulando e/ou mudando o sentido de sua função como instância reprodutora da sociedade capitalista, não é só dar mostra de espontaneísmo e voluntarismo, não é só (para recordar outra das expressões em voga nas décadas de 1960 e 1970) “dar murro em ponta de faca”, mas algo que não “cai bem”, algo que desborda a teoria e a ciência e despenca na ficção, no imaginário, na ideologia - em suma, não é algo muito científico nem propriamente (e/ou apropriadamente) marxista.

Tampouco seria apropriado esperar e cobrar dessa teoria que mostrasse “o caminho para uma ação emancipatória da educação no contexto estrutural analisado” (FREITAG, 1979, p. 34), pela simples razão de que se trata, justamente, de um discurso que se estrutura nos limites autoimpostos da teoria. Leituras com aquele tipo de cobrança e expectativa implicam um descompasso, uma sobreposição de planos: nos termos dos conceitos althusserianos, supõem aplicar um viés ideológico sobre o teórico, interpretando o texto numa perspectiva que ele repele - a do humanismo socialista.

Mas esse texto, de alguma forma, não dá margem a esse deslocamento de perspectiva? Não é um texto, até certo ponto, ambíguo? A brecha pode estar naquele pedido de desculpas, que talvez seja por isso tão citado e reproduzido: sob o discurso de dissuasão, que busca explicitamente desencorajar os quixotescos e iludidos, é possível que haja algo parecido com o seu oposto. Por que falar em heróis? Heróis são personagens de romance, categorias do mundo da ficção, daí retirados para classificar pessoas “de carne e osso” e suas ações - nesse caso, como em outros (como no da própria palavra “romance”, que designa tanto a forma literária quanto o caso amoroso entre “pessoas reais”), a ficção tem precedência sobre a realidade, na medida inclusive em que fornece os modelos e critérios classificatórios.

O que são aqueles que Althusser qualifica como “uma espécie de heróis”? São, retomemos o trecho, os “professores que, em condições assustadoras, tentam voltar contra a ideologia, contra o sistema e contra as práticas que os aprisionam, as poucas armas3 que podem encontrar na história e no saber que ‘ensinam’”. Se os cotejarmos com alguns heróis sartrianos, personagens de seus romances propriamente ditos (os ficcionais, não os “filosóficos”), veremos que esses últimos, em alguns casos (como Roquentin, ou o Mathieu d’A Idade da Razão), não chegam a tanto: embora afrontem a sociedade e os valores burgueses, não fazem muito mais do que deixarem-se viver, o que significa que não dão murros em ponta de faca, não se põem a querer mudar ou reformar o mundo. Sobretudo, a “espécie de heróis” mencionada por Althusser possui o dom da existência (real), justamente na medida em que é franqueada pela teoria, não pela ficção: é rara, mas real - existe de fato, não apenas imaginariamente. Trata-se, então, de uma presença diminuta, quase recessiva, mas nem por isso desprezível; pelo contrário, se o autor a ressalva é na mesma medida em que a destaca, a respeita, e seu pedido de desculpas não deixa de ser uma forma de a enaltecer, de lhe prestar homenagem - justamente pelo heroísmo...

Não ressoa, assim, ainda que em surdina - mas num nível suficientemente audível para elevar-se a um impercebido primeiro plano em algumas leituras -, esse outro significado abrigado na ambiguidade do texto, esse duplo do sentido mais explícito? Não pode alguém - um leitor meio desavisado, talvez - derivar ou infletir para ele, invertendo a sequência do discurso, desprezando ou secundarizando as advertências a respeito do peso das estruturas? Por que não? Por que não ser - ou, pelo menos, desejar ser - esse herói, mesmo e inclusive esse que dá murros em ponta de faca? Por acaso não vivem a repetir por aí, sobretudo nas assembleias sindicais, o elogio brechtiano àqueles que “lutam toda a vida” e que são “imprescindíveis”?4

Motivo secundário, cantado a meia voz, o - digamos - subtexto do heroísmo nem por isso resta sem sustentação: remete a outro subtexto, que soa como um baixo-contínuo e no qual há algo como um retorno do reprimido - o tema do sujeito que Althusser chama de “transcendental”, no sentido que atribui ao termo de extração fenomenológica. É de se crer que esse sujeito não existe concretamente, ou seja, seria tão ficcional ou fictício quanto os conceitos e personagens dos “romances filosóficos” de Sartre. O que existe realmente são sujeitos constituídos na e pela ideologia por meio de um processo de interpelação mútua e de espelhamento: a ideologia se estrutura e funciona de tal forma que, nela e por ela, os indivíduos são necessariamente constituídos como sujeitos, os quais vivem como se fossem livres e responsáveis ao mesmo tempo em que levados (e educados) a se submeterem a um “sujeito absoluto” no qual se espelham e que é, desse modo, seu modelo ou mesmo sua matriz, nele podendo “contemplar sua própria imagem (presente e futura).” (ALTHUSSER, 1987, p. 102)

Portanto, de acordo com tal concepção (a da teoria da ideologia em geral), os sujeitos de fato nunca são constituintes, mas concretamente (sempre e , nos termos althusserianos), constituídos na e pela ideologia, cumprindo como um fado uma ambiguidade, por assim dizer, de nascença: o termo designa “uma subjetividade livre: um centro de iniciativas, autor e responsável por seus atos” e, simultaneamente, “um ser subjugado, submetido a uma autoridade superior, desprovido de liberdade, a não ser a de livremente aceitar a sua submissão” (ALTHUSSER, 1987, p. 103-104). Essa ambiguidade, que está na raiz da constituição dos sujeitos (concretos) em sua relação (de interpelação e espelhamento) com o “sujeito absoluto”, articula-se com outra, na qual, por sua vez, parece radicar a própria teoria do sujeito/sujeitado. Segundo a teoria althusseriana da ideologia em geral, os sujeitos têm uma espécie de gênese: são constituídos ou produzidos a partir de algo que os precede, que existe previamente - os indivíduos.

Sendo a ideologia eterna, devemos agora suprimir a temporalidade em que apresentamos o funcionamento da ideologia e dizer: a ideologia sempre/já interpelou os indivíduos como sujeitos, o que quer dizer que os indivíduos foram sempre/já interpelados pela ideologia como sujeitos, o que necessariamente nos leva a uma última formulação: os indivíduos são sempre/já sujeitos. Os indivíduos são portanto “abstratos” em relação aos sujeitos que existem desde sempre (ALTHUSSER, 1987, p. 98; grifos do original).

O texto citado comporta a seguinte leitura: concreta e efetivamente somos sujeitos, mas tal condição - a dessa subjetividade sujeitada, submetida a algum “sujeito absoluto” como o Estado - pressupõe, como fundamento ou origem, uma outra condição, que permanece abstrata (entenda-se: não se concretiza, não se efetiva, não é realmente vivida, uma vez que a realidade é a das relações constituídas na e pela ideologia) mas que parece ser necessária como uma espécie de estado originário. Em suma, ser sujeito concreta e necessariamente pressupõe ser indivíduo abstratamente, significando que se é indivíduo “antes” de ser sujeito, embora efetivamente esse “antes” não exista, pois “sempre/já” se é sujeito.

Essa presença/ausência da categoria do “indivíduo”, a qual a existência do sujeito concreto parece não poder dispensar, afigura-se como uma matéria-prima num processo de produção, de modo que só se pode ter sujeitos na medida em que a ideologia os produz, ao interpelar - “sempre/ já” - os indivíduos5. Tratar-se-ia, no entanto, duma matéria-prima que, antes que propriamente formada, seria deformada, estragada nesse e por esse processo, o qual (pre)determina o sujeito em seus traços essenciais ainda no útero materno:

Todos sabemos como e quanto é esperada a criança a nascer. Deixando de lado os “sentimentos” [,] isto, prosaicamente, quer dizer que as formas de ideologia familiar/paternal/maternal/conjugal/fraternal, que constituem a espera do nascimento da criança, lhe conferem antecipadamente uma série de características: ela terá o nome de seu pai, terá portanto uma identidade, e será insubstituível. Antes de nascer a criança é portanto sujeito, determinada a sê-lo através de e na configuração ideológica familiar específica na qual ele é “esperado” após ter sido concebido. Inútil dizer que esta configuração ideológica familiar é, em sua unicidade, fortemente estruturada e que é nesta estrutura implacável, mais ou menos “patológica” (supondo-se que este termo tenha um sentido determinável) que o já-presente futuro-sujeito “encontrará” o “seu” lugar, quer dizer “tornando-se” o sujeito sexual (menino ou menina) que ele já é (ALTHUSSER, 1987, p. 98-99).

Difícil evitar a impressão ou a suspeita de uma tonalidade metafísica, de uma ontologia do indivíduo, ainda que negativa. Entranhada na teoria da ideologia, soando como um baixo-contínuo em surdina, ela dá voz ao que repousa e se agita, latente e latejante, sob o que, de um modo todo palpável e evidente, existe e atua de fato. Não há tempo nem espaço de que o “indivíduo” possa dispor para existir, para vir à luz; mal ele é concebido, já (e sempre) é tomado, capturado, adotado - “interpelado” - pela e na ideologia e (já) é “sujeito”. Possibilidade frustrada, projeto falhado, potência não atualizada (para dizer com Aristóteles) mas obstruída, inutilizada: a individualidade é abortada, apesar de sempre suposta, como uma espécie de essência perdida antes mesmo de poder ser realizada - à qual portanto a sociedade, por meio da ideologia, nega desde o princípio as condições de realização.

Esse “indivíduo” estaria aí (no discurso althusseriano), como uma cunha ideológica numa aparelhagem científica, para lamentar esse processo todo de constituição e “predeterminação ideológica” dos sujeitos (numa estrutura que é, repitamos, “implacável”, “mais ou menos ‘patológica’”) e acenar para, talvez, a possibilidade (utópica?) de os “indivíduos” existirem como tais (como eles “mesmos”), ou, pelo menos, de terem a chance de respirarem o ar do mundo (“real”) antes de serem apanhados nas e pelas malhas da ideologia, da interpelação que os converte automaticamente em sujeitos?

Se é mesmo o caso, essa ontologia6 se enraizaria e se enredaria nas lianas de outra ambiguidade - a que o autor atribui à própria ideologia, em sua função prática. O fato de que a ideologia deforma, como todo marxista afirma ou “sabe”, persevera, e com um significado “profundo”, pois a deformação que se dá por obra e graça da estrutura e do funcionamento da ideologia alcança os sujeitos em sua própria gênese ou geração.7 Contudo, ela não é “falsa consciência”, mas um inconsciente (social, pode-se acrescentar) no qual, paradoxal e justamente, “os homens tomam consciência do seu lugar no mundo e na história: é no seio dessa inconsciência ideológica que os homens chegam a modificar as suas relações ‘vividas’ com o mundo, e a adquirir essa nova forma de inconsciência específica que se chama ‘consciência’” (ALTHUSSER, 1979, p. 206, grifos do original). À diferença da ciência, cuja “função de conhecimento” predomina sobre a “função prática”, a ideologia não exprime propriamente as relações entre os homens tais como elas se dão “nas suas condições de existência”, mas

a maneira como [eles] vivem a sua relação às suas condições de existência: o que supõe, ao mesmo tempo, relação real e relação ‘vivida’, ‘imaginária’. [...] Na ideologia, a relação real está, inevitavelmente, investida na relação imaginária: relação que exprime mais uma vontade (conservadora, conformista, reformista ou revolucionária), mesmo uma esperança ou uma nostalgia, que não descreve uma realidade” (ALTHUSSER, 1979, p. 206-207, grifos do original).

No discurso althusseriano do indivíduo (discurso que se inscreve num texto que se autointitula “Notas para uma pesquisa”) ficam borradas as fronteiras entre ideologia e ciência. Aí se diz que, se é possível “situarse fora da ideologia, isto é, no conhecimento científico”, é justamente “para poder dizer: estou na ideologia (caso excepcional) ou (caso mais geral): estava na ideologia.” E se “a acusação de estar na ideologia vale apenas para os outros e nunca para si”, a exceção seria o verdadeiro spinozista ou marxista, que sabe que “a ideologia não possui um exterior (para si mesma) mas que ao mesmo tempo ela é exterioridade (para a ciência e para a realidade)” (ALTHUSSER, 1987, p. 97-98, grifos do original). Em suma, (res)salvando as distinções entre ideologia, de um lado, e ciência e realidade, de outro, o autor deve admitir que a visada científica não lhe possibilita, sendo ele verdadeiramente spinozista e marxista, mais que perceber que, ainda quando trata da ideologia, também ele “está (ou, pelo menos, estava) na ideologia”.

Não há motivo, assim, para recusar aquela impressão ou suspeita de que há algo como uma ontologia do indivíduo no texto de Althusser, ontologia que pode - deve, talvez - ser jogada para as (e nas) bandas da ideologia, essa mesma que as “sociedades humanas segregam [...] como o elemento e a atmosfera mesma indispensáveis à sua respiração, à sua vida histórica”, somente ocorrendo a “uma concepção ideológica do mundo [...] imaginar sociedades sem ideologias, e admitir a ideia utópica de um mundo em que a ideologia (e não uma de suas formas históricas) desapareceria sem deixar rastro, para ser substituída pela ciência.” Sendo “uma estrutura essencial à vida histórica das sociedades” (ALTHUSSER, 1979, p. 205, grifos do original), a ideologia, “numa sociedade de classes”, é “o relais pelo qual, e o elemento no qual, a relação dos homens com as suas condições de existência se regula em proveito da classe dominante”; já numa “sociedade sem classes”, seria “o relais pelo qual, e o elemento no qual, a relação dos homens com as suas condições de existência é vivida em proveito de todos os homens” (ALTHUSSER, 1979, p. 209).

A teoria, relembre-se, não trata e/ou não parte de homens, indivíduos, sujeitos, mas de relações, forças, estruturas - e por isso é (teoricamente...) anti-humanista. Mas na ideologia pode-se retomar aquelas categorias. Ideologicamente - ou, o que dá na mesma, no terreno da ideologia - cabe interpretar, portanto, os ataques e lamentos de Althusser como se (pressu) pusessem uma ontologia negativa do indivíduo, em cuja figura parece dormir a possibilidade de sujeito(s) outro(s). Nesses ataques e lamentos, que deixam a marca do indivíduo/sujeito Althusser em sua denúncia do quanto o processo de constituição de indivíduos em sujeitos, numa certa sociedade de classes (a capitalista francesa), carrega de patológico e de mascaramento da sujeição em liberdade, não é possível ouvir, para além (ou aquém) da “descrição da realidade”, uma nostalgia, uma vontade, uma esperança? No vago rumor que se desprende desses “indivíduos” - como categoria teórica, inclusive - não se devem ouvir os vagidos de um outro sujeito, que ainda não é, mas pode ser, que não se constitua num processo tão implacável e patológico, que não seja “livremente” sujeitado ou o seja menos?... Em resumo: imaginará Althusser - ou imaginaria, se se desse tal direito, desfrutando sem culpa dessa condição universal e trivial de “estar na ideologia”, cujo traço essencial, segundo ele, é jogar com o (e no) imaginário - que, numa sociedade sem classes, os “indivíduos” não se constituiriam “sempre/já” em sujeitos/sujeitados, livres/submissos, mas como “verdadeiros” e “autênticos” sujeitos, semelhantes àqueles que ele chama de “transcendentais”, ou seja, sujeitos de e não meramente sujeitos a e sujeitos em? Nesse caso, uma ontologia do indivíduo significaria: o “verdadeiro” indivíduo não se realiza ao ser transformado (na sociedade capitalista) nessa espécie de sujeito que, por sua vez, também não é um autêntico sujeito, na medida em que só pode ser livre e responsável na medida em que é submetido e sujeitado; no baixo-contínuo do “indivíduo” ressoaria a categoria rejeitada, reprimida, contestada, do “sujeito transcendental”.

É provável que a ambiguidade acima assinalada encontre sua expressão mais dramática em L’avenir dure longtemps, título que admite a tradução O porvir leva [ou demora] muito tempo. Nada de “ficar inventando histórias”: esse lema, tomado como divisa materialista e princípio marxista (ALTHUSSER, 1992, p. 188)8 a orientar o esforço filosófico e a empresa teórica, ecoa pelo livro como preceito de escrita, mantra de sua própria fatura. O texto, o autor adverte, “não é um diário, nem memórias, nem autobiografia” (ALTHUSSER, 1992, p. 34), tripla negativa que espera e reclama ser interpretada sob a égide de um projeto que persegue acima de tudo a objetividade. Os que lerem o relato

far-me-ão o favor de considerar que intervenho com o máximo humanamente possível de garantias objetivas: não pretendo confiar ao público somente os elementos de minha subjetividade. Consultei, pois, longa e cuidadosamente, todos os numerosos amigos que seguiram de perto tudo o que me aconteceu [...]. Consultei também especialistas em farmacologia e biologia médica sobre pontos importantes. Naturalmente, compulsei a maioria dos artigos de imprensa publicados no momento do assassinato de minha mulher, não só na França mas em vários países estrangeiros onde sou conhecido. Aliás, pude verificar que, salvo raras exceções (de inspiração manifestamente política), a imprensa foi muito “correta”. E fiz o que ninguém quis ou pôde fazer até agora: reuni e confrontei, como se tratasse do caso de outrem, toda a “documentação” disponível, à luz do que vivi - e inversamente. E decidi, em total lucidez e responsabilidade, tomar, por minha vez e finalmente, a palavra para me explicar publicamente. (ALTHUSSER, 1992, p. 33-34).

Substituir a consciência de si pelo conhecimento dos - e pelos - outros, cujas vozes devem ser ouvidas porque aquela consciência falhou ou faltou: deixar que elas falem, então. Nada mais coerente: combina com o fato - o dano - que dá origem à narrativa e que é, ao mesmo tempo, objeto do empreendimento de compreensão que está no cerne da mesma. Em suma, impõe-se dar voz aos outros nessa tentativa de explicar o que aconteceu na manhã de um domingo, 16 de novembro de 1980, entre o momento em que Louis Althusser, professor da Escola Normal Superior - num de cujos apartamentos mora há muito com sua esposa -, começa a massagear o pescoço de Hélène, e aquele em que constata que a matou por estrangulamento. Nada mais coerente, também, com sua leitura dos pressupostos da teoria marxista, na qual é a ciência que explica a consciência, sendo essa pouco mais que um epifenômeno do inconsciente ideológico, ou seja, como já citado, “uma forma de inconsciência específica”.

Contudo, as linhas de coerência do quadro se quebram de encontro ao exame da questão do sujeito, no qual imperam as sombras do paradoxo. Há, indubitavelmente, um autor, um sujeito que constitui o discurso e o assina, mas cuja investigação - por diagnósticos e depoimentos alheios - redunda na descoberta, posta logo no início do relato, de que ele não existia propriamente, de que ele próprio se constituíra como um não-sujeito: fora concebido à sombra da imagem do tio paterno, irmão mais velho de seu pai, e ao qual sua mãe havia sido destinada em casamento. Louis Althusser, o tio, morre num acidente aéreo, no início de 1917, e Charles, o irmão mais novo, resolve substituí-lo no compromisso assumido com a noiva. Ela o aceita: casam-se em fevereiro de 1918 e no mesmo ano, a 16 de outubro, nasce o filho, batizado com o nome do tio morto.

Louis: um nome de que por muito tempo eu tive, literalmente, horror. Achava-o curto demais, com uma só vogal, e a última, o i, terminava num agudo que me feria [...]. Talvez esse nome dissesse um pouco demais, em meu lugar: oui, e eu me revoltava contra esse “sim” que era o “sim” ao desejo de minha mãe, não ao meu. E, sobretudo, ele dizia: lui, esse pronome da terceira pessoa que, soando como a chamada a um terceiro anônimo, me despojava de toda personalidade própria, e fazia alusão a esse homem às minhas costas: Lui, c’était Louis [ele, mesmo, era Luís], meu tio, que minha mãe amava, e não eu.

Esse nome foi desejado por meu pai, em memória do irmão Louis morto no céu de Verdun, mas sobretudo por minha mãe, em memória daquele Louis que ela amara e não deixou, a vida inteira, de amar (ALTHUSSER, 1992, p. 42).

Nessa gênese negativa - a de um eu constituído à sombra de um ele, a de um eu transparente, através do qual a genitora enxerga não o filho vivo, mas o noivo morto - estariam as raízes de um drama (existencial, psíquico, emocional, afetivo) que se desdobrou em internações psiquiátricas por depressão, na união com Hélène, em seu assassinato. Difícil dizer e saber se aquela gênese explica tudo ou se raízes outras (como a repressão sexual) se emaranham às primeiras para compor um entrecho que vai se tornando mais complexo à medida que é lido. De toda a forma, há contrastes e contrapontos. A médica russa que faz o parto comenta, a propósito da cabeça grande do bebê: “Esse não é como os outros!” - classificação que, no início da adolescência do menino, tomará forma sintética na expressão typapart, cunhada pela irmã e pela prima-irmã a partir da contração de três palavras, type à part (ALTHUSSER, 1992, p. 36). Quando, em 1965, seu trabalho acadêmico (nomeadamente Lire “Le Capital” e Pour Marx) alcança-lhe a notoriedade sancionadora do status de sujeito excepcional, extraordinário - o sentido positivo de “caraparte”, ou seja, cara-à-parte -, ele cai em depressão,

acometido de um pavor incrível, diante da ideia de que aqueles textos iam me mostrar totalmente nu ao mais vasto público: totalmente nu, ou seja, tal como eu era, um ser inteiramente de artifícios e imposturas, e nada mais, um filósofo que não conhecia quase nada da história da filosofia e quase nada de Marx (cujas obras de juventude havia de fato estudado de perto, mas de quem só tinha estudado seriamente o Livro I de O Capital, naquele ano de 1964 em que dei um seminário que resultou em Ler “O Capital”). Sentia-me um “filósofo” lançado numa construção arbitrária, bastante alheia ao próprio Marx. [...] Em suma, eu temia me expor a um desmentido público catastrófico. Em meio a meu temor da catástrofe (ou seu desejo: temor e desejo sempre andam sorrateiramente juntos), lancei-me naquela catástrofe e “fiz” uma impressionante depressão. Dessa vez, bastante séria, pelo menos para mim, pois ela não enganava meu analista (ALTHUSSER, 1992, p. 133-134).

Sua inclinação consciente é para o anonimato. Desde sua juventude católica, estudando no liceu do Parc, em Lyon, e fazendo retiros num convento trapista de Dombes, a cem quilômetros daquela cidade, sabe que “desaparecer no anonimato” é sua “única verdade”, a que “sempre ficou sendo a minha verdade, e ainda agora, apesar de minha notoriedade e contra ela, com a qual sofro horrivelmente” (ALTHUSSER, 1992, p. 90). O anonimato remete a “uma questão de princípio e de angústia” que lhe interessa profundamente e que retoma o tema do não-sujeito, do eu inexistente: “Como para mim mesmo eu não existia, concebe-se facilmente que desejasse consagrar essa inexistência por meio de meu próprio anonimato. Sonhava então com a fórmula de Heine que fala9 a respeito de um célebre crítico: ‘Ele era conhecido por sua notoriedade’” (ALTHUSSER, 1992, p. 187). Analogamente, ele mantém sua “feroz defesa [...] contra qualquer publicidade” em torno de seu nome ao admitir uma fama apenas - “a fama de um selvagem, enclausurado em meu velho apartamento da Escola do qual não saía quase nunca, e, se alimentava todas as aparências dessa selvageria reclusa, era para tentar entrar no anonimato no qual pensei encontrar meu destino e, de quebra, a paz” (ALTHUSSER, 1992, p. 187-188).

“Destino”: a palavra não só ecoa como põe o tema do anonimato em consonância com o leitmotiv do sujeito constituído como não-pessoa. Retomemo-lo, então.

Minha mãe me amava profundamente, mas só foi muito mais tarde, à luz de minha análise, que entendi como. Diante dela e longe dela eu me sentia sempre arrasado por não existir por mim mesmo e para mim mesmo. Sempre tive o sentimento de que as cartas tinham sido mal distribuídas, e que não era realmente a mim que ela amava ou sequer olhava. Anotando esse traço, não a estou recriminando, de jeito nenhum: a infeliz vivia como podia o que lhe acontecera: ter um filho a quem não pôde se impedir de dar o nome de batismo de Louis, o nome do homem morto que amara e continuava a amar, dentro da alma. Quando me olhava, provavelmente não era a mim que ela via mas, às minhas costas, no infinito de um céu imaginário para sempre marcado pela morte, um outro, esse outro Louis cujo nome eu carregava, mas que eu não era, esse morto no céu de Verdun e no puro céu de um passado sempre presente. Eu era assim como que atravessado por seu olhar, eu desaparecia para mim nesse olhar que me sobrevoava para se juntar na morte longínqua ao rosto de um Louis que não era eu, que jamais seria eu. Recomponho aqui o que vivi e o que compreendi. Pode-se fazer toda a literatura e a filosofia que se queira sobre a morte: a morte, que circula em toda parte na realidade social na qual é “investida”, tal como o dinheiro, nem sempre está presente sob as mesmas formas na realidade e nos fantasmas. Em meu caso, a morte era a morte de um homem que minha mãe amava acima de tudo, além de mim. Em seu “amor” por mim, alguma coisa me transiu e me marcou desde a primeira infância, fixando por muito tempo o que deveria ser meu destino. Não se tratava mais de um fantasma, mas da própria realidade de minha vida. É assim que, para cada um, um fantasma se torna vida (ALTHUSSER, 1992, p. 54, grifos do original).

Apesar do tom lírico e plangente, o raconto pretende não ser história inventada ou imaginada, mas realidade vivida; se se fala em destino, portanto, a tragédia a que a palavra pode remeter não é a do teatro, mas a da chamada vida real. Destino, nesse caso, é a impossibilidade de ser aquele “sujeito transcendental” constituinte, que escolhe o seu ser e responde por ele; cada um é, ao contrário, aquilo que lhe acontece ser na trama das circunstâncias, dos eventos, das relações econômico-sociais - daí a irritação para com Sartre, que podia sustentar o conceito daquele sujeito em seus “romances filosóficos” mas jamais em nome de Marx, o qual ele “nunca entendeu”. A Louis Althusser sobrou e calhou o destino de ser um morto-vivo, um indivíduo constituído como não-sujeito, a desejar pela vida inteira o anonimato como uma morte, confirmando o mesmo destino. Sua realidade, seu verdadeiro eu, é esse sujeito que não existe nem caminha por si mesmo, não porque não o quer, mas porque não o pode. O “cara-à-parte”, o sujeito extraordinário e famoso, é uma espécie de falso eu, que o primeiro vive e denuncia, em sua própria carne, como uma impostura. A vida do autor - seu destino - parece ratificar assim a teoria do sujeito tal como é formulada em Aparelhos Ideológicos de Estado: o sujeito autônomo, livre e responsável, é uma ilusão, uma aparência assumida e vivida imaginariamente por indivíduos constituídos por meio da - e em meio à - ideologia para serem, de fato, sujeitados. O caso Althusser seria, se não a comprovação, a ilustração viva - na e pela realidade - de como uma determinada configuração da família, em seu papel de aparelho ideológico de Estado, distribui por sua vez a todos os membros seus papéis respectivos, sem que os escolham e sem que deles tenham consciência, mas ao contrário, para usar a expressão recorrente na academia, “determinando-os pelas costas”. Em L’avenir dure longtemps a escola como instituição praticamente perde seu status de aparelho ideológico dominante a favor da família, nominada como o “terrível”, o “pavoroso”, o “mais assustador de todos os aparelhos ideológicos de Estado”:

Posso dizer que mesmo em Lyon, durante três anos - quando tinha de dezoito a vinte e um anos! - fora meus colegas de khàgne e meus professores, não conheci absolutamente ninguém? E isso, por que razão, senão por uma mistura atroz de medo, de educação, de respeito, de timidez, de culpabilidade, que me fora inculcada por quem? por meus próprios pais, presos eles mesmos e imobilizados como nunca na estrutura ideológica atroz para minha mãe e também para meu pai, por menos que parecesse, e isso, para quê, então, senão para inculcar numa criança pequena todos os altos valores que são úteis na sociedade em que ela vive, o respeito absoluto a toda autoridade absoluta e, acima de tudo, ao Estado, o qual, desde Marx e Lenin, e graças a Deus, se sabe que é uma terrível “máquina” a serviço (sim, Fossaert, sim, Gramsci) não da classe dominante, que nunca está sozinha no poder, mas das classes que constituem o “bloco do poder” [...]?” (ALTHUSSER, 1992, p. 97, grifos do original).

Esses rompantes de revoltado, no entanto, não deixam de trair um apreço - se não como alternativa, ao menos como valor - pelas categorias que, teoricamente, o autor nega ou repudia. Por exemplo, a categoria de pessoa, encarnando a figura do sujeito que existe e caminha por si mesmo, se não habita o horizonte do possível, apresenta-se no do desejável ou do preferível, afirmando-se (justamente como categoria, como valor) na referência à realidade em que ela é concretamente anulada, abortada: “essa mãe que eu amava com todo o meu corpo amava um outro através e além de mim, um ser ausente como pessoa através de minha presença como pessoa, isto é, um ser presente como pessoa através de minha ausência como pessoa” (ALTHUSSER, 1992, p. 56). Ser - ter sido - essa “ausência como pessoa” significa que Louis Althusser não tinha a alternativa - a possibilidade - de ser efetivamente uma pessoa, de existir por si próprio; só pôde ser e existir à sombra do tio morto - foi o seu “destino”. Rua de mão única? Em tal caso, sua investigação toda, seu esforço de compreensão é estritamente um trabalho epimeteico, um voo de coruja: descobrir a posteriori - isto é, tarde demais - toda a trama do destino, quando tudo se consumou e não é possível nem voltar atrás nem consolar-se com pensar que as coisas poderiam ter sido diferentes. Desde o início, desde sempre, a escolha é impossível, o “sujeito transcendental” uma quimera: ninguém, a rigor, se constitui assim ou assado, todo sujeito é constituído, não constituinte; não há, portanto, alternativa, não há possibilidade(s) mas só efetividade(s), se está sempre no terreno do efetivo, da realidade - isso significa, de resto, entender devida e propriamente Marx e “não ficar inventando histórias”.

O que fazer, então, com as imagens de um pai que, apesar de tudo e no final das contas, era, ele também - ou ele sobretudo, mais que o filho -, um “caraparte” (ALTHUSSER, 1992, p. 45)? Esse pai, “extremamente inteligente, e não só de uma inteligência prática” (ALTHUSSER, 1992, p. 43-44), exercia a direção dos bancos em que trabalhou “sem jamais realmente se fazer ouvir, maneira talvez de deixar seus colaboradores diante de uma responsabilidade que eles sabiam estar sancionada, mas não definida explicitamente” - uma forma de “governo dos homens” que “nem sequer Maquiavel teria imaginado, e cujo sucesso foi espantoso” (ALTHUSSER, 1992, p. 45). Autoritário, “às vezes arrastado a violentos estouros”, o pai “ao mesmo tempo sentia-se, e talvez profundamente, paralisado em sua expressão por uma espécie de impotência para aparecer diante do outro, temor que o jogava na reserva e o tornava inapto para as decisões claramente expressadas” - mas talvez “tenha sido essa reserva sem expressão manifesta que o tornou, em Lyon e em Casablanca, a única personalidade a não entrar no jogo das pessoas de elite e das autoridades da época” (ALTHUSSER, 1992, p. 46).

Como não ver nessas imagens um modelo? Um modelo que, ao que parece e para todos os efeitos, o filho não imitou, nem podia fazê-lo, preso que sempre esteve ao papel - ao destino - de substituto, no amor e no imaginário da mãe, do tio morto. Um modelo, portanto, que não figura como alternativa, como possibilidade, mas se projeta em paralelo, um tanto esquizofrenicamente, como um valor. Louis Althusser não foi nem poderia ter sido como seu pai, à sua imagem e semelhança. Mas a figura do pai aí aparece, não raro, como admirável10. A complexidade dessa figura rompe, no varejo, com o que o texto de Aparelhos Ideológicos de Estado prescreve e descreve, no atacado: no caso do autor, o jogo especular entre o Sujeito e os sujeitos parece não se consumar, ou ocorre de um modo que desde o início sacrifica o sujeito autônomo, livre e responsável por seus atos, que caminha por si mesmo, à “imagem de uma mãe mártir e sangrando como uma chaga”, uma

mãe sofredora, destinada a uma dor ostensiva e repleta de censuras, martirizada em sua casa pelo próprio marido, com todas as feridas abertas: masoquista mas, por causa disso, também terrivelmente sádica em relação a meu pai que tomara o lugar de Louis (portanto fazia parte de sua morte) e em relação a mim (porquanto não podia deixar de querer minha morte, pois aquele Louis, que ela amava, morrera). Diante desse doloroso horror, eu iria sentir permanentemente uma imensa e infinita angústia e a compulsão de me dedicar de corpo e alma à minha mãe, de socorrê-la oblativamente para me salvar de um sentimento de culpa imaginário e salvá-la de seu martírio e de seu marido, além da convicção inextirpável de que aquela era minha missão suprema e minha suprema razão de viver (ALTHUSSER, 1992, p. 42; grifos do original).

Também, a confirmar a ambivalência do próprio autor e a aconselhar reserva na leitura da teoria do sujeito tal como ela aparece em Aparelhos Ideológicos de Estado, há o fato (real) da impronúncia (o non-lieu) com que o Estado francês (burguês) contemplou o assassino confesso de Hélène, abstendo-se de tomá-lo e tratá-lo como “centro de iniciativas, autor e responsável por seus atos” (ALTHUSSER, 1987, p. 103). Não ser responsabilizado juridicamente por matar a esposa: o autor de L’avenir dure longtemps reconhece aí “vantagens evidentes”, considerando que tal procedimento “protege o acusado, julgado não responsável por seus atos”. Não obstante, vê nisso um prejuízo, no duplo sentido de dano e prejulgamento, à medida que “submetido a tutela por um decreto do diretor da polícia de Paris, eu não mais dispunha de liberdade nem de meus direitos cívicos. Privado de toda escolha, estava na realidade engajado num procedimento oficial que eu não podia eludir, ao qual só restava me submeter” (ALTHUSSER, 1992, p. 25).

Afinal, a impronúncia é também um “destino”, que se cumpre “na realidade” como “pedra sepulcral do silêncio” (ALTHUSSER, 1992, p. 25). L’avenir dure longtemps é justamente a tentativa que o autor empreende de romper esse silêncio imposto, de explicar o cometimento do crime. Ele reivindica para si, concretamente, o estatuto que a lei francesa lhe nega - pela impronúncia - e que ele próprio - em Aparelhos Ideológicos de Estado - havia tachado de ilusório. Então, parece ser possível uma certa liberdade, não só para o indivíduo aceitar “livremente” sua submissão ao Estado, seus ditames e valores, mas também para tomar a iniciativa de confrontar suas leis - que lhe retiram a cidadania e o condenam ao silêncio - e de explicar-se publicamente. Surge aí um sujeito Althusser que não se submete, que não se permite ser unicamente “subjugado, submetido a uma autoridade superior”, mas que, ao contrário e para além disso, tenta ele mesmo subjugar, ou, pelo menos, controlar:

E, agora, que confio ao público que quiser lê-lo esse livro muito pessoal, é mais uma vez, mas por esse viés paradoxal, para entrar definitivamente no anonimato, não mais da pedra sepulcral da impronúncia, mas da publicação de tudo o que se pode saber sobre mim, e assim terei paz para sempre diante das perguntas indiscretas. Pois dessa vez todos os jornalistas e outras pessoas dos meios de comunicação ficarão totalmente satisfeitos, mas vocês verão que não ficarão necessariamente contentes. Primeiro, porque em nada contribuíram para isso: segundo, porque o que podem acrescentar ao que escrevo? Um comentário? Mas sou eu mesmo que o faço!! (ALTHUSSER, 1992, p. 188, grifos do original).

Controlar para evitar ser controlado, subjugar para não ser subjugado, dar a público tudo sobre si mesmo para, então, ser deixado em paz, para deixar de ser julgado pela opinião alheia, para satisfazer e anestesiar o medo de ser o objeto constante do olhar do outro: o instrumento, a arma para isso é a verdade de si mesmo - e quem melhor para expressá-la e revelá-la que esse si mesmo? Antes: quem, no lugar dele, pode dizê-la e dá-la a público? O autor não só persegue a última palavra como se considera na posse dela. Para isso, no entanto, precisa pressupor e sustentar que sua obra não é literária - nem diário, nem memórias, nem autobiografia - mas o resultado e a expressão de pontos de vista objetivos, que ele não faria muito mais que recolher e confrontar, e o depoimento veraz e responsável de alguém que, à semelhança do Rousseau das Confissões, se compromete a dizer “com todas as letras: eis o que fiz, o que pensei, o que fui”, e além disso “o que compreendi ou acreditei compreender, isso que não domino mais totalmente, mas isso que me tornei” (ALTHUSSER, 1992, p. 34). Em suma, ele “não inventa histórias”: não se leia o que escreveu como se lê um romance...

Ocorre que tampouco é possível lê-lo como um discurso sem sujeito, como uma reprodução do concreto real no concreto pensado. Não só por conta da autoevidente e necessária presença do sujeito individual - e/ou pessoal -, não só pela igualmente evidente forma autobiográfica, mas também por essa tentativa de furtar-se ao inevitável julgamento alheio buscando controlá-lo. Caberia, em tal caso, reconhecer que essa escrita autobiográfica “está na ideologia” na medida mesma em que relata e exprime a realidade da vida de seu autor, uma vez que essa realidade, para usar a formulação que apresenta em Pour Marx, não é o real bruto, não é as condições mesmas da existência, mas o modo como Althusser viveu - imaginariamente - sua relação ante suas condições de existência; como ele próprio narra e explica, ela resulta de um “fantasma” que “se torna vida”, ou seja, é o que seu investimento11 imaginário nas relações familiares produziu como vida e “destino”, é como ele viveu (imaginária, portanto realmente) as imagens, as fantasias12 investidas nas figuras materna e paterna.

Se imaginário e real (con)fundem-se desse modo na e pela ideologia - a mesma na qual e pela qual todo indivíduo é necessária e concretamente constituído como sujeito e todo sujeito pode existir efetivamente -, imagens e fantasias têm valor de fatos reais na medida em que são vividas e influem no cotidiano: com efeito, raramente - nunca, talvez - agimos em função do que as pessoas são “realmente”, mas na dependência das imagens que elas próprias projetam e/ou procuram projetar de si e, sobretudo, do que nelas investimos em termos de afetos e desejos. Althusser explica e justifica o que chama de seu “destino” (no qual se inclui o estrangulamento de Hélène) ao frisar, justamente, que sua fantasia se constituiu como realidade vivida, como um drama real. Mas pretende, ao mesmo tempo, que sua narrativa escapa à ideologia, como se desse conta de revelar a “deformação imaginária” que, correlata à fantasia que engendrou e urdiu seu destino, explicaria tal (de)formação ideológica. Em suma, insiste em que não inventa histórias e acredita-se capaz de explicar “cientificamente” - isto é, à maneira da teoria marxista - a ideologia em que está imerso e que o constitui como sujeito, num esforço que acaba redundando em efeito contrário, passível que é de ser interpretado como um “relato autoficcional”, como tentativa de “manipular para melhor poder (se) explicar.”13 Ao fazê-lo, não está vivendo (imaginariamente) o papel (ideológico, portanto) daquele “sujeito transcendental” que ele, tomando-o como personagem de “romances filosóficos”, recusa como categoria teórica? Althusser não pretende ser o próprio “sujeito transcendental” de seu discurso autobiográfico? Não o constitui - justamente como seu constituinte, não seu “constituído” - de tal forma que esgota toda sua verdade de indivíduo e sujeito a fim de não deixar nenhum resto passível de ser comentado, contestado, refutado, sequer julgado?

Se assim é, Althusser prova tácita e praticamente que há um modo possível de existência do que chama de “sujeito transcendental”, que não é ilusório na medida mesma em que é ideológico: ao contrário, assim como “um fantasma se torna vida”, basta “investir-se” da fantasia de ser esse sujeito constituinte para sê-lo efetivamente, para dele fazer uma realidade vivida. Todavia, como o estatuto epistemológico desse sujeito é nulo, não sendo ele digno de ser objeto de nenhuma ciência, de nenhum discurso sem sujeito aplicado a reproduzir o concreto real como concreto pensado, ele não pode ser cogitado como uma alternativa real no processo de constituição de sujeitos, os quais só ilusoriamente podem imaginar-se constituintes, porquanto na realidade são constituídos como sujeitados.

Explicitamente, na teoria althusseriana, a hipótese de existência real, verdadeira - não imaginária, não ideológica - de algo como autodeterminação só se põe em paralelo à (oni)presença do determinismo, o que implica, euclidianamente, que seu encontro se pode dar apenas no infinito. O porvir que demora muito é o depois que nunca termina e o futuro que nunca chega: no círculo fechado de seu destino não há espaço para acaso e contingência14, assim como em sua angústia não há abertura para a possibilidade. Seu destino é concebido e vivido unicamente como fatalidade e sua angústia claustrofóbica, que paralisa e congela o tempo em torno do trauma aninhado em sua fantasia - a mesma que o deflagrou, tornando-se realidade vivida -, não é a angústia formada pela possibilidade, “a mais pesada de todas as categorias”, como Kierkegaard (2010, p. 164-165) a compreende:

É certo que se ouve com frequência o contrário: que a possibilidade é tão leve, a realidade, porém, tão pesada. [...] Em geral entende-se [...] por esta possibilidade, da qual se diz que é tão leve, a possibilidade da sorte, do êxito, etc. Mas essa não é de jeito nenhum a possibilidade, é uma invenção mentirosa em que a corrupção humana aplica nova maquiagem para poder, sem embargo, ter motivo para queixar-se da vida e da Providência, e ter uma chance de se atribuir importância aos próprios olhos. Não, na possibilidade tudo é igualmente possível, e aquele que, em verdade, foi educado pela possibilidade entendeu aquela que o apavora tão bem quanto aquela que lhe sorri. Quando, pois, um tal sujeito concluiu a escola da possibilidade e sabe, melhor que uma criança no seu ABC, que não pode exigir absolutamente nada da vida, e que o horrível, [a] perdição, [o] aniquilamento moram na porta ao lado de qualquer homem, e aprendeu com proveito que toda angústia, diante da qual ele se angustiava, no momento seguinte avançou sobre ele, então ele dará uma outra explicação da realidade; haverá de louvar a realidade, e mesmo quando ela pairar pesadamente sobre ele, lembrar-se-á [de] que esta é muito, muito mais leve do que o era a possibilidade. Somente assim a possibilidade pode formar; [...].

Tomar a própria história na dimensão do possível, para além da esfera do efetivo, implicaria, no caso (de) Althusser, admitir que ela em algum momento ou por algum aspecto poderia ter sido diferente, e exigiria arcar com o peso da escolha e da responsabilidade por gestos que a compuseram. O efetivo, com toda sua carga de fatalidade, é assim menos pesado que o possível. O conceito de uma sociedade que funciona e se reproduz com a contribuição de aparelhos ideológicos de Estado fornece o modelo teórico que, num mesmo ato, acusa e conforta os sujeitos por sua participação na intriga fatal: personagens enredados numa trama sem Autor, embora eles acreditem/imaginem que há um - na forma de um Sujeito “absoluto” -, no qual são levados a espelhar-se para cumprirem seus papéis de sujeitos, sofrem seus destinos na medida mesma em que não são responsáveis por eles, cabendo-lhes consolar-se lançando todo o peso do inevitável e do irremediável às costas dos personagens principais - o Estado, o “bloco dominante” - e/ou, em última instância, ao próprio processo, que os empurra ao (e pelo) enredo fatal. Do ponto de vista da responsabilização dos agentes, os sujeitos individuais, constituídos sempre/já na e pela ideologia, é que são abstratos em relação ao sujeito “absoluto”, no qual termina-se depositando concretamente a autoria dos fatos e fados. É assim que o controle que Althusser tenta exercer sobre as leituras desde o interior de seu discurso não impede - pelo contrário, permite - interpretações como a de Michel Contat (1992, p. 221):

Todo homem mata o que ama. Essa já era a escapatória de Oscar Wilde em De profundis: estender a uma culpabilidade universal a responsabilidade de um ato para, desse modo, isentar-se pessoalmente.

Não há dúvida: o marxismo althusseriano, essa visão da história como processo sem sujeito nem fim, dá à luz esta proclamação desolada: não responsável!15

Liberdade e responsabilidade até podem ser vividas, mas como fruto e elemento da relação imaginária dos homens com suas condições (reais) de existência, o que implica uma deformação (pelo imaginário) do real - real que só é acessível pela ciência ou pela teoria, não pela ideologia. Assim, concretamente, alguém pode imaginar-se livre e responsável por seus atos, pode imaginar-se no papel daquele sujeito que existe e caminha por si mesmo, mas isso em última instância não passa de ilusão, justamente a ilusão com que a ideologia joga para que o sujeito imagine escolher e responder por coisas e atos que realiza numa relação (real) de submissão e sujeição. Na realidade, trata-se de processos sem sujeito(s) constituinte(s), nos quais os sujeitos concretos, constituídos na e pela ideologia, são apanhados para cumprirem papéis dos quais não têm consciência, investidos que se encontram em suas fantasias, o que não os impede de - ao contrário, os estimula a - se responsabilizarem e culparem uns aos outros.

No esquema teórico de Althusser não há propriamente ações no sentido de iniciativas deliberadas, voluntárias, conscientes e responsáveis tomadas por sujeitos individuais, mas processos nos quais as ações se inscrevem e/ou são conduzidas, processos que empurram os sujeitos “por trás”, isto é, sem que eles disso tenham consciência. São esses processos que constituem a História na medida em que se repetem e reproduzem a formação social que lhes é própria, não os acontecimentos únicos e singulares, irrepetíveis, os quais acabam também engolfados e enredados neles. A própria História, toda ela, é um processo, que se move porque possui um motor - a luta de classes. Ela não tem sujeitos que a constituam mas agentes, isto é, sujeitos constituídos no e pelo próprio processo. Os determinismos marxista (ou marxiano) e freudiano confluem no sentido de indicar que a única realidade é a desses processos que se dão independentemente da vontade do indivíduo e à revelia de sua consciência - no caso da teoria de Freud, os que “funcionam”, inconscientemente, no “aparelho psíquico”.

A lição de Althusser é de uma ambivalência visceral: substancialmente determinista, não pode admitir uma existência teórica - ou categórica - para a autodeterminação pessoal, o que significa que ela não conta como categoria teoricamente válida para descrever e explicar a realidade, para reproduzir o concreto real em concreto pensado. Mas, ao mesmo tempo, categorias como a de sujeito constituinte se dispõem ao lado da teoria, numa espécie de limbo em que se projetam e caminham paralelas ao espaço teórico. Não são teoria, mas ideologia; não são realidade, mas imaginário, mas de qualquer forma não saem de cena, inclusive para que o autor, num tom de irritação e lamento, advirta quanto à sua inexistência ou irrelevância: imaginar-se sujeito de algo, meter-se no papel de “herói” é coisa de quem, definitivamente, não entendeu nada da teoria de Marx e da realidade social, do funcionamento de suas formações e estruturas. A leitura correta da teoria deve propiciar, justamente, o necessário para distinguir o real do imaginário, a ciência do “romance filosófico”.

Como no caso da leitura de Marx por Althusser, haverá o modo correto ou apropriado de interpretar o texto do próprio Althusser? Qual será ele? Certamente, aquele que apontar para a realidade e denunciar o imaginário em - e por - sua irrealidade: pode-se mesmo querer bancar o herói, mas o fato é que a escola, como instituição, inscreve-se num processo do qual participa essencialmente como aparelho ideológico de Estado, contribuindo para a reprodução da formação social. Não cabe, portanto, cobrar do autor uma proposta pedagógica que pavimentaria “o caminho para uma ação emancipatória da educação no contexto estrutural analisado”. No máximo, tratar-se-ia de esperar dele um detalhamento da teoria acerca do “funcionamento” da luta de classes - em sua condição de “motor” da História - no interior desse aparelho ideológico, uma explicitação e/ou sistematização das estratégias passíveis de inscreverse nessa luta, dos papéis que os agentes cumpririam nesse processo, na medida mesma em que fossem determinados por ele. Desse tipo de leitor diria Althusser que entendeu seu texto - e o de Marx -, ao invés de “inventar histórias” e de confundir o romanesco (ou seja, o ideológico) com o teórico...

Por que, então, aquela cobrança? Nossa hipótese remete àquela ambivalência: o discurso de Althusser “provocou” o “sujeito transcendental” projetado (ou fantasiado) por certos leitores - os que acha(va)m poder “fazer e acontecer”, os que, ainda hoje, pretendem (ou posam de) “fazer a diferença”. Tais expressões devem lembrar, numa análise do contexto histórico-cultural, o apelo emblemático ao voluntarismo político que vicejou no período imediatamente anterior à eclosão do estruturalismo no Brasil: “Vem, vamos embora/ que esperar não é saber/ quem sabe faz a hora/ não espera acontecer”[...] A propósito da cunhagem dessa fórmula - que ecoou paradigmaticamente nos corações e mentes dos que ansiavam por participação política, na medida mesma em que se percebiam à margem dela - convém recordar que representou uma resposta a críticas que pressupunham e exigiam a assunção daquele “sujeito transcendental”. A investida mais explícita e representativa, nessa direção, partiu da ensaísta Walnice Nogueira Galvão, que em texto datado de 1968 pôs reparo na figura de “O dia que virá”, recorrente na que classifica de Moderna Música Popular Brasileira (MMPB) e da qual Geraldo Vandré seria “especialista” com canções como “Aroeira” (“Vim de longe, vou mais longe,/ quem tem fé vai me esperar/ escrevendo numa conta/ pra junto a gente cobrar/ no dia que já vem vindo/ [...]/ e a gente fazendo conta/ pro dia que vai chegar”) - na qual, segundo a autora,

O DIA QUE VIRÁ aparece na plenitude de seu significado e função. O homem abdica de seu papel de sujeito da história, e o sujeito da história passa a ser O DIA, ser dotado de vontade e de movimento. Não sou eu, sujeito humano, que vou chegar lá, mas é O DIA que se encaminha para mim. “A gente”, então, fica dispensada de agir. Quem age é O DIA, “a gente” se dedica apenas a registrar os agravos, enquanto O DIA não vem. Trata-se, portanto, de uma proposta imobilista e espontaneísta. Imobilista porque prega os braços cruzados. Espontaneísta porque delega a ação aO DIA, essa abstração mitológica. “A gente” não é responsável, por isso se considera absolvida (GALVÃO, 1976, p. 95-96).

O autor por excelência da chamada “canção de protesto” teria apre(e)ndido e absorvido exemplarmente essa lição, consubstanciando em seu célebre trabalho, de duplo nome (“Caminhando”, “Pra não dizer que não falei das flores”), a “virada”, a substituição de “O dia” por “A gente” - ou o nós coletivo - no papel de “sujeito da história”, tal como advogava a ensaísta.

Manifestamente, a lição de Althusser, na forma do não menos célebre - por muito citado - pedido de desculpas, tomou direção diametralmente oposta à de Walnice Galvão, buscando demover os leitores da realidade e/ou efetividade daquele “sujeito da história”. Mas, se funcionou como provocação, despertando o senso de ação e participação no lugar mesmo em que procura afastá-lo e desacreditá-lo, é porque ela própria é atravessada, num movimento de retorno do reprimido, pela perspectiva - e/ ou expectativa - do “sujeito transcendental”, no que arriscamos chamar de ontologia negativa do indivíduo, traduzível numa dialética: a desse indivíduo formado como não-sujeito, desse indivíduo que, negado e/ou anulado no processo de produção do sujeito, ao mesmo tempo extrapola sua função (de sujeito), nem sempre desempenhando, como previsto e esperado, os papéis que lhe reservam as estruturas (que o constituem como sujeito). Essa ontologia, então, inverteria a formulação que se apresenta em Aparelhos Ideológicos de Estado, segundo a qual os indivíduos são “‘abstratos’ em relação aos sujeitos que existem desde sempre” (ALTHUSSER, 1987, p. 98): à medida que o sujeito é negado, ou seja, é um não-sujeito, ele é que seria “abstrato” em relação ao indivíduo - esse mesmo que a ideologia “transforma” em sujeito.

Caberia perguntar, afinal, se Aparelhos Ideológicos de Estado não interpelou - e não prossegue interpelando - esse indivíduo que, pela própria admoestação para que evite o heroísmo voluntarista e quixotesco, acaba sendo mais concreto que o sujeito no qual ele se torna ou deve se tornar - “já/sempre” - por arte da interpelação ideológica. Se a resposta for afirmativa, ela explicará talvez porque, não raramente, as leituras do texto althusseriano se pautaram por reações psicologizantes, expressas em queixas a respeito do sentimento de impotência política que ele, dando margem ao imobilismo denunciado pela crítica, suscitaria: no vazio explícito de propostas de ação latejaria tacitamente aquela expectativa de existência - e ecoaria silenciosamente o lamento pela inexistência - de um indivíduo que, a despeito mesmo das chamadas condições objetivas (vale dizer, das estruturas), se constitui, se autodetermina como sujeito.

Referências

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1Filósofo vietnamita (1917-1993), autor de Fenomenologia e Materialismo Dialético (1951). Em sua segunda autobiografia, O futuro dura muito tempo, Althusser (1992, p. 160) atribui-lhe a mesma frase e aproxima-o de Merleau-Ponty, o qual, “filósofo muitíssimo mais profundo, devia ser muitíssimo mais fiel a Husserl” que Sartre, cuja filosofia seria “de preferência, uma teoria cartesiana do cogito no campo de uma fenomenologia generalizada e portanto completamente deformada”. Referindo-se às aulas de Merleau-Ponty na Escola Normal Superior, Althusser comenta: “Tudo era extremamente esclarecedor. Em privado, Thao nos dizia: ‘Vocês todos são uns ego-iguais transcendentais!’. Ele sempre sorria, mas que verdade profunda!”

2Althusser procede ao corte epistemológico, pratica-o, tanto quanto teoriza sobre ele.

3A palavra “armas”, repercutindo uma problemática e um senso-comum que orbitavam a ideia de luta de classes, era tão assídua no linguajar universitário quanto o é, hoje, a palavra “ferramenta”, a qual (sinal dos tempos...) aponta, evidentemente, para significados mais práticos e operacionais.

4Nos anos da década de 1980, férteis em greves do magistério oficial paulista, não era raro ouvir jovens professores declamando nas assembleias o poema de Brecht para incitar os “companheiros” a resistir às pressões e manter o movimento grevista. Eis uma das versões do texto, pinçada da internet: “Há homens que lutam um dia, e são bons;/ Há outros que lutam muitos dias, e são muito bons;/ Há homens que lutam muitos anos, e são melhores;/ Mas há os que lutam toda a vida - esses são imprescindíveis!”

5Na nota 18 de Aparelhos Ideológicos de Estado (p. 100), Althusser oferece a seguinte “justificativa”: “Embora saibamos que o indivíduo é sempre e antecipadamente sujeito, continuamos a empregar este termo, pelo efeito de contraste que produz.”

6Palavra que, ressalve-se, vai a contrapelo da filosofia de Althusser, portanto só pode ser empregada aqui malgré lui, i.e., malgré Louis...

7Cf. o trecho em que Althusser (1987, p. 100, grifo meu), explorando como exemplo da estrutura e do funcionamento da ideologia em geral a “ideologia religiosa cristã”, afirma: “[...] devemos observar que todo este ‘procedimento’, gerador de sujeitos religiosos cristãos [...]”.

8Nessa passagem, estabelece-se a distinção entre o imaginário (ideológico) e a imaginação (científica, epistemológica), entre histórias (imaginárias) e a história (como ciência): “se queríamos ‘pensar por nós mesmos’ diante da impressionante ‘imaginação da história’ contemporânea, tínhamos por nossa vez de inventar novas formas de pensamento, novos conceitos - mas sempre segundo a inspiração materialista de Marx, para ‘jamais ficar inventando histórias’, e permanecermos atentos à novidade e à invenção da história”.

9Ironicamente, como se percebe...

10Em Os fatos, o outro relato de caráter autobiográfico, Althusser (1992, p. 303) faz o elogio do general-presidente De Gaulle, “um equilibrista político genial”. A narração de seus encontros com o presidente tem um quê de fantasista, levando o leitor a desconfiar que se trata de episódio de um de seus acessos de mania: teriam se topado primeiramente, de maneira casual, numa rua do sétimo arrondissement. “Oito dias depois, a mesa telefônica da Escola [Normal Superior], aflita, transmitia-me uma ligação da Presidência da República, convidando-me para ir jantar. De Gaulle fez-me perguntas e mais perguntas, sobre mim, minha vida, meu cativeiro, a política, o Partido Comunista, mas sem dizer nenhuma palavra sobre si. Três horas. Depois, despedi-me. Revi-o durante a travessia do deserto [sic] e, dessa vez, foi ele quem falou.” (ALTHUSSER, 1992, p. 302)

11Na acepção psicanalítica, o termo designa o “fato de uma determinada energia psíquica se encontrar ligada a uma representação ou grupo de representações, a uma parte do corpo, a um objeto, etc.” (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 254)

12“Fantasia” é o termo em Português para o que em língua francesa se denomina fantasme: “Roteiro imaginário em que o sujeito está presente e que representa, de modo mais ou menos deformado pelos processos defensivos, a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo inconsciente”. (Laplanche; Pontalis, 2001, p. 169)

13Título de artigo de autoria de Peter Vandendriessche, Manipuler pour mieux pouvoir (s’) expliquer. Le récit autofictionnel L’avenir dure longtemps de Louis Althusser [Manipular para melhor poder (se) explicar. O relato autoficcional O porvir dura muito tempo de Louis Althusser].

14Em contraste, para Kierkegaard (2010, p. 104) “destino é justamente unidade de necessidade e casualidade. Isso se exprime de modo engenhoso quando se diz que o destino é cego, pois quem avança cegamente, tanto anda necessariamente como casualmente. Uma necessidade que não tem consciência de si mesma é eo ipso, ‘por essa mesma razão’ casual com relação ao momento seguinte.”

15Contat faz paródia da última frase do personagem Hugo na peça de Sartre, As mãos sujas: “Não recuperável!” (SARTRE, s.d., p. 156).

Recebido: 18 de Julho de 2015; Aceito: 22 de Fevereiro de 2017

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