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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.65 Uberlândia mayo/agosto 2018  Epub 21-Sep-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n65a2018-01 

Artigos

As contradições do mundo e a unidade do discurso: filosofia e retórica em Antônio Vieira

The contradictions of the world and the unity of discourse: philosophy and rhetoric in Antônio Vieira

Les contradictions du monde et l'unité du discours: philosophie et rhétorique chez Antônio Vieira

Admar Almeida da Costa* 

*Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor associado do Programa de pós-graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Coordenador do GT de Filosofia Antiga da ANPOF no biênio 2017-2018. Apoio: PRAGMA-UFRJ. Zétesis-UFRRJ. E-mail: costa.admar@gmail.com


Resumo

Este trabalho versa sobre a presença do pensamento heraclítico no célebre discurso do Padre jesuíta Antônio Vieira, intitulado “As lágrimas de Heráclito”. Este discurso nasce a pedido da Rainha da Suécia, Cristina Alexandra, recentemente instalada na Itália e fundadora, em 1674, da academia “A Arcádia Romana”, sede do embate retórico-filosófico em torno da seguinte questão: “se o mundo era mais digno de riso ou de lágrimas; e qual dos dois gentios andara mais prudente, se Demócrito, que ria sempre, ou Heráclito, que sempre chorava”. Debatendo com o também jesuíta Jerônimo Catâneo, a quem coube a defesa de Demócrito, Vieira produz um ensaio de forte teor filosófico e de rara beleza literária.

Palavras-chave: Retórica; Filosofia e tradição clássica

Abstract

This work is on the presence of the heraclitic thought in the famous speech by the Jesuit priest Antônio Vieira entitled “The Tears of Heraclitus”. This speech was made as a request from the Queen of Sweden, Cristina Alexandra, founder of the academy “The Arcadia Romana” in 1674 recently accommodated in Italy, seat of the rhetorical-philosophical clash on the following matter: Debating with the also Jesuit priest Jerônimo Catâneo, to whom the defense of Democritus fell, Vieira produces an essay of strong philosophical content and rare literary beauty.

Keywords: Rhetoric; Philosophy and classical tradition

Résumé

Cet article traite de la présence de la pensée héraclitéenne dans le fameux discours du jésuite Antônio Vieira intitulé «Les larmes d'Héraclite». Ce discours a été écrit à la demande de la Reine de Suède, Cristina Alexandra, récemment installée en Italie et fondatrice de l'académie "L'Arcadie Romana" en 1674, berceau du conflit entre rhétorique et philosophie sur la question suivante: " le monde est-il plus digne de rire ou de larmes; et lequel des deux Gentils a été plus sage, Démocrite, qui se moquait toujours, ou Héraclite, qui pleurait toujours. Se basant sur une argumentation avec le jésuite Jerônimo Catâneo, qui assure la défense de Démocrite, Vieira produit un essai de fort contenu philosophique et d'une rare beauté littéraire.

Mots clés: La rhétorique; La philosophie et la tradition classique

Este trabalho versa sobre o discurso “As lágrimas de Heráclito1”, do padre jesuíta Antônio Vieira. Tal discurso nascera de um problema proposto em 1674, no seio da academia “A Arcádia Romana”2, patrocinada pela Rainha da Suécia, Cristina Alexandra, em que o ponto de partida era este: “se o mundo era mais digno de riso ou de lágrimas; e qual dos dois gentios andara mais prudente, se Demócrito, que ria sempre, ou Heráclito, que sempre chorava”. Coube ao padre jesuíta Jerônimo Catâneo a defesa de Demócrito, em primeiro lugar, e a Vieira o panegírico3 de Heráclito, logo em seguida.

À época de Vieira, o tema “riso de Demócrito” versus “lágrimas de Heráclito” já tinha sido tratado por uma longa tradição de sábios, filósofos e artistas. Não sendo novidade, parece que qualquer um dos oradores seria capaz de argumentar em favor do riso ou do choro, motivo de Vieira ver-se “obrigado” a defender Heráclito. No entanto, de tal modo a concepção de mundo heraclítica aparece perfeitamente harmonizada à retórica e, pensamos, à própria vida de Vieira, que teríamos de dar alguma razão à percepção do tradutor espanhol4 que sugere que os temas foram escolhidos pelos oradores.

As referências aos autores clássicos presentes nos dois discursos comprovam a erudição dos dois padres jesuítas. As citações de Aristóteles5, no que tange a concepção do riso e da comédia e, em especial, de Cícero6, permite-nos identificar as fontes que nortearam o tratamento do tema e a compreensão da obra de Heráclito e de Demócrito. Além das fontes citadas, podemos supor a presença indireta de outros autores, como Hipólito7, que nos oferece uma exposição sobre o atomismo de Demócrito, e talvez do próprio Diôgenes de Laêrtios, onde encontramos a mesma anedota contada por Catâneo, em defesa de Demócrito, que diz “que esse teria retardado por três dias a própria morte, por meio do aroma de pães quentes, para não interromper a alegria da irmã e dos amigos que estavam em festa”8. As primeiras alusões textuais ao riso de Demócrito e às lágrimas de Heráclito encontram-se em Cícero9, mas Diógenes, citando Tímon (320 - 230 AC), também menciona a “obscuridade” e a “melancolia” de Heráclito, a que Vieira se refere. Para Kirk10, porém, melancolia não implica lágrimas, ao menos na antiguidade, sendo mais provável que a percepção de Heráclito como chorão advenha de referências humorísticas - inspiradas no diálogo Crátilo (440c) de Platão - e que se consagraram na tradição latina, o que poderia sugerir certa preferência pelo riso em detrimento do choro, ao menos nessa época.

A começar pelos autores citados por Catâneo, que abre o debate, temos a manifesta preferência de Cícero e de Sêneca pelo riso de Demócrito. Sêneca, ao defender o riso afirma que devemos “aceitar todas as coisas superficialmente suportando-as com bom humor: pois está mais em conformidade com a natureza humana rir-se da existência do que lamentar-se dela”11. Provavelmente ecoando a opinião de Sêneca e influenciado por esse seu contemporâneo, Juvenal também aborda o assunto e se exprime desse modo:

Aos filósofos dois, razão não achas,

Que de casa um saindo, deparava

De rir um, outro de chorar motivo?

Para os costumes repreender do povo

É melhor arma o riso; espanto causa

Que o outro para chorar tão pronto fosse!

Demócrito suster não pode o riso

Contínuo, em cidades não vivendo...12

Ao chegarmos ao renascimento, a temática continuava a instigar diversos intelectuais. No campo das artes plásticas, o quadro “Heráclito e Demócrito”13 vem à luz, pelas mãos de Donato Bramante, pintor romano, arquiteto famoso pela construção do “Tempietto de San Pietro in Montorio”, encomenda do Papa Julio II e responsável pelo projeto inicial da Basílica de São Pedro. O Afresco mostra Heráclito em lágrimas, bem ao estilo da “Escola de Atenas” de Rafael.

No campo das letras, Montaigne (que não podemos garantir se foi ou não lido por Vieira) consagrou um ensaio inteiro ao tema e concluiu o seguinte: “Demócrito e Heráclito eram dois filósofos. O primeiro, achando que a condição humana é vã e ridícula, apresentava-se sempre em público a rir e motejar. Heráclito, tomado de piedade por essa mesma humanidade, andava permanentemente triste e de lágrimas nos olhos. Prefiro o primeiro, não porque seja mais agradável rir do que chorar, mas porque sua atitude é testemunha de seu desdém, porque ela nos condena mais do que a outra e acho que nunca podemos ser desprezados quanto o merecemos”14. Na última linha do referido ensaio lemos ainda que “Nossa condição própria é tão ridícula quão risível”.

Dos clássicos aos renascentistas, portanto, os argumentos com que se defendeu Demócrito sofreram pequenas alterações, e o mesmo se pode dizer do discurso do padre Catâneo. Sua habilidade de encontrar em Aristóteles referências que confirmam ser o riso filho da razão parece impossibilitar a defesa das lágrimas. Interpretando o riso como desdém pelas coisas terrenas e apreço pelas coisas celestes, facilmente ele nos convence que sua teoria do riso é apropriada aos cristãos, mesmo que as sagradas escrituras o tenha condenado. Para tanto, Catâneo separa o riso em dois gêneros: “um que é filho do júbilo, o outro que é filho do desprezo”. “Aquele tem origem num coração fraco, e este se concebe na construção de um entendimento severo, como o de Palas Atena, e entre luzes de um magnânimo desdém de uma boca radiante”. Alçado ao mais alto grau imaginado, o riso torna-se signo da grande sabedoria e da perspicácia, o que teria levado o próprio Platão, por inveja de Demócrito, a roubar e queimar os escritos deste para que a posteridade não pudesse compará-los15. Ensinando aos homens a conhecer os bens da terra, mas também a desprezá-los, Demócrito torna-se benemérito do próprio Deus, motivo de ter chegado ao leito de morte com calma e tranquilidade suficientes para decidir o dia exato em que iria morrer e assim não contrariar a irmã e os amigos, como já mencionado.

Ao contrário, a morte de Heráclito foi horrível e causou exasperação até mesmo às pessoas desconhecidas: uns contam que ele foi dilacerado por cães, outros contam que ele se enterrou num monte de esterco e outros contam ainda que ele se esturricou ao sol. Para terminar e arrebatar a plateia, Catâneo lembra os versos de Virgílio que afirmam que o choro é próprio das bestas e dos cavalos, ao passo que o riso - em referência a Aristóteles - é exclusividade do homem.

Demócrito e Heráclito: a caricatura

Ora, quando analisamos o tratamento dispensado à oposição riso choro, por esses vários autores, podemos notar, com certa facilidade, que Demócrito e Heráclito foram convertidos rapidamente em ícones e personagens por seus admiradores e críticos, e a análise de suas respectivas obras não parece ter influenciado em nada as caricaturas que os consagraram. No entanto, se a obra de Heráclito, tal como conhecemos hoje, não nos oferece bases sólidas para justificarmos a imagem do filósofo das lágrimas, a sua caricatura motivou a produção de uma larga discussão e parece ter dividido a raça humana em simpatizantes seus ou de Demócrito. Longe de uma abordagem mais profunda dos textos, preferia-se sempre a liberdade ensejada pela interpretação das anedotas, que circulava no mundo culto, sobre os dois gregos. Valendo-se do tema para exercícios retóricos e para recriação, o interesse inicial, portanto, não parece ser outro que o de assumir tal caricatura já consagrada pela tradição e compor argumentos a partir dela, razão de Vieira encontrar-se em ligeira desvantagem com a defesa de Heráclito, porque vários autores de peso deram provas robustas de que Demócrito é o preferido, do que se valeu Catâneo que, respaldando-se nesse conjunto de sábios, defendeu o riso, com maestria. Nesse ponto, porém, creio que Vieira vê-se obrigado a fugir, ainda que sutilmente, do domínio da caricatura, para converter o tema em paradoxo - o que não deixa de ser uma estratégia retórica - para explorar a questão da contradição no pensamento de Heráclito, ponto mais que fundamental para a própria vida de Vieira: homem barroco; religioso de um mundo recém-dividido entre protestantes e católicos; erudito dividido entre a corte e as tribos indígenas do Brasil; e entre um mundo influenciado pelo racionalismo de Descartes e pela perseguição da Inquisição. Com a hipótese de que o discurso “As lágrimas de Heráclito” é fruto de um maior envolvimento de Vieira com o pensamento heraclítico, não queremos diminuir a habilidade que o grande retórico teria em tratar qualquer tema de modo brilhante. Por outras vias, e para destoar do coro de vozes que afirma que o discurso de Vieira nada contribuiu para o conhecimento do Efésio,16 trataremos de propor uma interpretação do seu discurso que buscará reforçar a presença do pensamento heraclítico em nosso escritor, bem como reencontrar na retórica algo mais que estilo e eloquência.

O discurso

Logo às primeiras linhas de “As lágrimas de Heráclito”, pode-se notar a presença do pensamento heraclítico na estratégia de converter o pranto em riso: “Em seu lugar apareceu o pranto, porque segue e vem depois do riso”.

Partindo da concepção de unidade dos contrários, Heráclito apresenta o movimento de vir a ser convertendo água em fogo e fogo em água17. Perscrutando esta unidade, este elo capaz de manter a conexão dos opostos mais extremos, o exercício mesmo da palavra manifesta-se como este elo, isto é, como o “lógos”18 - o discurso - responsável único por restituir à concepção de todo, àquilo que aparece sempre como parte, como particular e separado do todo. Isso é possível, primeiro, porque o discurso descobre e revela a origem e a causa e, depois, porque o bom discurso, desconfiado de si mesmo, rebela-se contra o sentido aparente e convencional conferido às palavras e às coisas. Como é da natureza da aparência manifestar-se e esconder-se19, o que aparece em oposição pode, em um nível menos perceptível aos olhos não treinados, estar em harmoniosa conexão20 com a verdade nua e, assim, desvencilhada dos “suntuosos trajes da eloqüência”, como afirma Vieira. Esta harmonia, mais forte que a aparente, garante outra conexão não menos forte: O arrebatamento da alma do ouvinte pela persuasão.

Ressoa o riso na boca, como eloquente, mas cala o choro nos olhos, vestido de luto. Como desmontar a contrariedade do riso com o choro? Como resolver a questão: O mundo é mais digno de pena ou de riso? Como negar a Demócrito ou a Heráclito alguma razão, no certame da palavra onde eles combatem?

Convertendo a oposição no paradoxal, Vieira abre caminho para o pleno efeito do poder da retórica, isto é, daquela habilidade de fazer os opostos se curvarem à reciprocidade do que é relativo. Uma vez no campo do relativo, o discurso persuasivo torna-se senhor e medida do verdadeiro. Assim sendo, pode-se dizer uma coisa e significar outra, isto é, que “a primeira propriedade do racional é o risível” e que “a maior impropriedade da razão é o riso”. Logo, pranto é o uso da razão - é o labor e a dificuldade de ser racional - ao passo que o riso é o resultado final desse processo. Além disso, há vários tipos de riso. O riso apressado e imaturo, que não resultou da investigação do mundo, função do racional, é impróprio e, como tal, é ridículo aquele que ri sem saber do quê. A falta de maturidade ao riso é prova de ignorância, pois, “Quem conhece verdadeiramente o mundo, precisamente há de chorar; e quem ri ou não chora, não o conhece”.

Mas por que chora? Chora porque o mundo é um teatro, um palco aberto para um jogo de aparências e manifestações efêmeras, aonde “cada dia que passa” é “um estrago”. O mundo - como entedia Heráclito - é fluxo e vir a ser, é a correnteza de um rio, onde não se pode entrar duas vezes21.

Mas, se há vários risos e o próprio Demócrito - grande entre os homens - foi visionário de muitos mundos, de que mundo ria ele e que tipo de riso era o dele?

Em se tratando de viver no mesmo mundo de Heráclito, o riso de um e o choro do outro podem vir a ser a mesma coisa, ou melhor, o riso do sábio Demócrito só podia ser choro. Senão, como seria sábio? Antes do veredicto final, é preciso realizar uma investigação acerca do riso: qual a origem e qual a natureza do riso?

O riso não desfrutou, entre os filósofos gregos, de prestígio sempre igual, nem é o mesmo riso aquele que ri Demócrito e aquele que ri a escrava trácia, quando passa por Tales de Mileto, no momento em que esse cai no buraco. Rindo-se do sábio que de tanto olhar o céu esqueceu-se da terra, a escrava, como conta Platão22, denuncia tanto a inutilidade quanto a falta de espaço da filosofia na cidade. Ao fazer isso, o riso parece desafiar constantemente o filósofo e fazê-lo lembrado de que o ridículo acompanha, quase sempre, a sua tarefa23.

Assim sendo, quando é o filósofo que está a rir, seu riso é justo o oposto. Logo, afirma Vieira, “Demócrito e Heráclito ambos choravam, cada um a seu modo”, pois quem ri sempre, como Demócrito, nunca ri. “Todos os filósofos ensinam que o riso nasce da novidade e da admiração”, mas não há uma novidade e admiração que não cessem, motivo porque Demócrito não ria, “já que ria dos ordinários desconcertos do mundo”. Ausentes as causas do riso, modificados restam seus efeitos e alterado seu verdadeiro significado. Ademais, como o riso deve brotar de uma causa que agrada e Demócrito tinha por intenção mostrar que aquilo que ele via era digno de desdém, ele não ria mas chorava. Chorava a seu modo, por haver muitas formas de chorar, a saber: “chorar com lágrimas é sinal de dor moderada; chorar sem lágrimas é sinal de maior dor; e chorar com riso é sinal de dor suma e excessiva”. Isso ensina Heródoto24 sobre a história do rei egípcio Psaménito, que tendo retido o choro nas maiores desgraças, arrebentou-se em lágrimas frente às dores moderadas. Da mesma forma Andrômaca25 adverte: “Porque banhais de lágrimas as faces?/ Leves desgraças sofremos, se as podemos chorar”.

Porque se provou que há vários tipos de choro, Vieira conclui que “Demócrito ria como ferido pelos desconcertos do mundo”; ele “chorava com a boca enquanto Heráclito com os olhos”; o pranto dos olhos é mais fino, o da boca é mais mordaz. O riso de Demócrito era ironia e, portanto, significava o contrário do que parecia”26.

Levando o auditório a duvidar da aparente intenção do riso de Demócrito, Vieira não só busca anular a oposição entre o riso e o choro, como provar que o riso é uma forma de escarnecer do mundo. A partir daí, ele passa a diferenciar aquele que “chora das misérias do mundo” daquele que “ri das ignorâncias do mundo” e, com isso, retoma o elogio de Heráclito e retorna ao tema que lhe fora proposto. Daqui duas alternativas são facultadas ao ouvinte, desfazer a oposição riso/choro e convencer-se que o mundo é um mar de lágrimas segundo a interpretação dos filósofos gregos ou, por outro lado, convencidos de que o mundo está longe de ser perfeito, dar razão apenas a Heráclito.

Com passos firmes Vieira continua. Choro é lástima e riso é desprezo. No teatro, só rimos das deficiências de alguém quando as mesmas são representadas e fingidas, isto é, rimos das aparências e não dos defeitos verdadeiros. Por esse motivo, as lágrimas são mais eficientes para persuadirmos às pessoas acerca das reais e verdadeiras misérias do mundo. O choro atinge a sensibilidade do outro enquanto que o riso provoca distanciamento: “somente com lágrimas moverás os corações de pedra”27, afirma Ovídio. Citando também Plutarco e Díon de Prusa, ficamos sabendo que o riso excessivo ofende, motivo pelo qual Catão censurou o cônsul Cícero, publicamente.

O mestre Aristóteles ensina ainda, cita Vieira, que “Os meninos riem-se muito facilmente e os doidos sempre riem, os meninos se riem porque têm pouco siso, e os loucos, porque de todo o não têm”. A conclusão é inevitável: Demócrito devia ser louco, pois “um homem que de um mundo via muitos mundos, era sinal que tinha perturbadas as espécies e enferma a fantasia”. O argumento é cortante: se o único mundo que temos fosse causa de tanto riso, por que inventar outros mundos? Não será porque esse mundo é dor e sofrimento que nos vemos motivados a reinventá-lo? E como se fundamenta tal concepção e quem perpetua tal tradição?

Breve digressão sobre Heráclito e Platão

Começo com uma não muito breve citação do Filebo de Platão:

Sóc.: - Repetidas vezes afirmamos que, quando a natureza de qualquer ser se corrompe, por concreções ou dissoluções, repleção ou esvaziamento, crescimento ou diminuição, ocorrem dores, mal-estar e sofrimento, e tudo o mais a que damos designações parecidas”

Prot.: - É fato...

Sóc.: - E quando tudo retorna à condição natural que lhe é própria, essa restauração é prazer.

Prot.: - Certo.

Sóc.: - E o que acontece, quando nosso corpo não passa por nenhuma dessas transformações?

Prot.: - Nessas condições, Sócrates, é evidente que ele não sentiria prazer nem sofrimento de qualquer espécie.

Sóc.: - Falaste admiravelmente bem. Mas decerto admitirás, segundo penso, que teremos sempre de passar por alguma modificação, conforme dizem os sábios, pois tudo não pára de mover-se para cima ou para baixo” - Platão. Filebo, 42d-43b.

A referência aos sábios e ao mesmo caminho que sobe e desce alude a Heráclito. O verbo gígnomai, o mesmo usado por Sócrates no Filebo é, dentre muitos outros termos de movimento, o mais utilizado por Heráclito28 para descrever esse processo de transformação ao qual tudo que nasce e morre está implacavelmente submetido. O elo familiar e comum que une todo ser que nasce e morre consiste no movimento sempre refeito entre o pleno e o vazio. Da phýsis à alma, de Heráclito a Platão, o movimento converte-se em desejo e todo desejo se dirige ao vazio e à falta do que não se tem, ao passo que o prazer é a repleção dessa falta e sua efêmera satisfação. Experimentar o prazer não significa furtar-se à condição daquilo que se transforma, o que leva o Sócrates do Górgias a afirmar, com o aval de Cálicles, que “toda carência e todo desejo são dolorosos” (GÓRGIAS, 496d 4-7).

A dor, portanto, que por ora parece romper com o frágil equilíbrio entre falta e repleção advém não só da ausência do prazer, mas também da lembrança, tão bem gravada na alma, de que a falta é certa enquanto a repleção é mera expectativa. Em outras palavras, se o desejo é a percepção ou sensação do vazio, ele impõe sempre a esperança da repleção. No entanto, uma vez ciente da impossibilidade de satisfazer-se e tocar o objeto de sua falta, o indivíduo é lançado em um duplo sofrimento (Fil. 36b). Por tudo isso, e como testemunho dessa longa tradição, afirmamos que chorar é mais próprio que rir e a vida é dor mesclada com breves momentos de esquecimento, esquecimento da dor.

Conclusão

O fim do discurso, “As lágrimas de Heráclito”, é recheado de citações em favor do choro e contra o riso, de tal modo que o riso de Demócrito resta afogado nas lágrimas de Heráclito. Valendo-se não mais de suas opiniões, mas da “prova do mundo”, Vieira invoca Virgílio e revela que “Essas são as lágrimas das coisas, e nossa mortalidade corta o coração”29. Associada à opinião de Plínio, de que “o homem nasce já chorando, sem outra culpa mais que haver nascido”, o jesuíta demonstra que se o homem vem ao mundo, vem para chorar. O choro lhe é natural e para tanto nasce ensinado; a prática das outras artes ele aprenderá depois, com o tempo.

Valendo-se dessa prova, ele retoma o argumento - repetidas vezes invocado nos dois discursos - de que o homem é o único animal capacitado para o riso. E para confirmar a co-naturalidade do choro, tem-se que “a primeira propriedade do racional é o risível, o exercício próprio do mesmo racional e o uso da razão é o pranto”. Assim sendo, se ficou provado que o riso e o choro são duas propriedades do humano, há de se provar também que o riso está por ora ocioso, pois, para Vieira - filósofo natural e homem cristão - se na felicidade do paraíso o choro é inútil, inútil é o riso na miséria deste tempo.

Referências

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2A criação de diversas academias no século XVII foi de fundamental importância para a manutenção de um espaço de discussões diversas, de “entretenimento culto”, onde imperava um “jogo acadêmico” (p. 40), misto de espaço sério e prazeroso. A criação da “Arcádia Romana” segue tal propósito e serve de palco para a “disputa” entre Catâneo e Vieira.

3Em carta a Vieira, o geral da companhia, Padre Oliva, afirma que “Agora que com todo o vagar li e tornei a ler sua oração quase fiquei extático pelo assombro que qualquer dos parágrafos tem causado na minha alma... Este panegírico... (SALOMÃO, 2001, p. 13).

4Essa informação, constante na edição espanhola, teria influenciado André de Barros, em sua introdução à edição de 1710. (SALOMÃO, 2001, p. 148).

5ARISTÓTELES. Metafísica: Heráclito: 984a. Demócrito: 985b. Demócrito é citado ainda em De Caelo, III, 2, 300b8 e em Geração e corrupção I 1.314a21.

6CICERO (106-46 AC): Do sumo bem e do sumo mal. II, 5, 15.

7Salomão indica que Vieira também teria se utilizado das obras de Hipólito (Refutações, I, 13) e de Estrabão (Fragmentos, XVI, 25) In: SALOMÃO, 2001.

8LAÉRCIO, Diógenes: Livro IX.

9CICERO. Orat. II 58, 235: referência ao riso de Demócrito. Cf. comentário e tradução do “De riduculis” e do “De risu” de Cícero por Ivan Neves Marques Júnior. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8143/tde-13102008-154439/. Em Do sumo bem e do sumo mal, (II, 5) encontramos a referência ao termo “skoteinós”, obscuro.

10 KIRK; RAVEN, 1990, p. 185.

11SENECA (4-65 DC) Da tranquilidade da Alma, p. 114.

12JUVENAL. Os Vates (Sátira X).

13Donato Bramante (1444-1499). Pinacoteca di Brera, Milão. Tela de 1477. Cf. imagem 2

14MONTAIGNE (1533-1592). Ensaios - Sobre Demócrito e Heráclito. [Capítulo L, p. 266-269, primeira publicação: 1595].

15História contada por Catâneo e igualmente presente em Diógenes de Laêrtius.

16“Embora o discurso nada contribua para o conhecimento do Efésio, sobre ser magnífico testemunho do humanismo vieirense, é um interessante documento da tradição heraclítica daqueles dias”. (BERGE, 1969, p. 17).

17Cf. “A morte da terra é tornar-se água, a morte da água, tornar-se ar e do ar tornar-se fogo e vice-versa” (DK 22 [12]B 76). Para interpretação mais detalhada de Heráclito consultar a obra: Acerca da Natureza, Dissertação defendida pelo autor no PPGF da UFRJ, no mês de outubro do ano de 2000.

18Cf. “Escutando não a mim, mas ao lógos, é sábio concordar que tudo é um”, HERMANN DIELS E WALTHER KRANZ, 2006, indicada a partir de agora por DK mais o número do fragmento, p. ex.: (DK 22 [12] B 50).

19Cf. “A natureza ama esconder-se” (DK 22 [12] B 123).

20Cf. “A harmonia invisível é mais forte do que a visível” (DK 22 [12] B 50).

21Cf. “Para os que entram nos mesmos rios, sempre afluem outras águas” (DK 22 [12] B 123).

22O riso e a filosofia: história contada acerca de Tales por Platão, no Teeteto 174a. O filósofo é motivo de riso na cidade porque se ocupa de temas e pensamentos alheios ao interesse prático e imediato dos seus concidadãos.

23Sobre o papel do riso na filosofia platônica confira: AUGUSTO, M. G. M., Le sourire du philosophe et le rire du poète: vérité et mechancité au livre V de La République.

24 HERÓDOTO, 1950, p. 211.

25Como aponta Salomão, o tradutor português trocou Andrômaca, de as “Troianas”, vv. 410-413, por Hécuba, erro repetido por outros editores que não tiveram acesso a versão original em italiano. Cf. SALOMÃO, 2001, p. 151, nota 22.

26Trata-se, sem dúvida, da definição de ironia concebida por Quintiliano, certamente influenciado por Cícero (cf. De Oratore, 2.67), autor citado no contexto do livro IX, em que lemos: ironia é “in utroque enin contrarium ei quod decitur intelligendum est”, Institutio Oratoria, 9.2.44.

27Tradução da uma frase encontrada em A arte de amar: “com lágrimas você amolecerá o diamante”, 2001, p. 43.

28Cf. Fragmentos (DK 22 [12] 1, 7, 20, 31, 36, 39, 63, 68, 69, 76, 77, 80, 91 e 110).

29Tradução livre o verso da Eneida (I, 462) de Virgílio: “Sunt lacrimae rerum, et mentem mortalia tangunt”.

Recebido: 21 de Setembro de 2017; Aceito: 14 de Agosto de 2018

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