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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.65 Uberlândia maio/ago 2018  Epub 21-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n65a2018-12 

Artigos

Prática educativa, vivência e afetos na constituição de alunos com histórias de sucesso na escola

Educational practice, experience and affections in the constitution of students with success stories in school

La práctica educativa, experiencia y afectos en la constitución de estudiantes con casos de éxito en la escuela

Eliana Sousa Alencar Marques* 

Maria Vilani Cosme Carvalho** 

*Doutora em Educação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professora adjunta do Curso de Pedagogia no Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professora Colaboradora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: esalencar123@gmail.com

**Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professora Associada da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e do Programa de Pós-graduação em Educação no Centro de Ciências da Educação (CCE) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: vilacosme@ufpi.edu.br


Resumo

A prática educativa que se realiza na escola tem como objetivo colaborar com a aprendizagem e, consequentemente, com o desenvolvimento dos alunos. Quando isso acontece, depreendemos que houve ali um bom ensino. O bom ensino para Vigotski é aquele que leva ao desenvolvimento de funções psicológicas superiores, enfim, ao desenvolvimento do que há de mais humano no homem. Nesse sentido, o artigo analisa a constituição social da prática educativa bem-sucedida a partir da relação entre vivência e afetos sob o ponto de vista da Psicologia Socio-Histórica e da Filosofia de Espinosa. Essas análises resultantes de pesquisa apontam que a dialética entre vivência, afetos e sentidos ativa o desejo humano de ser mais na escola, portanto, a prática educativa bem-sucedida se constitui na ativação de desejos e produção de sentidos.

Palavras-chave: Prática educativa; Vivência; Afetos; Mediação

Abstract

The educational practice that takes place in school aims to collaborate with learning and consequently with the development of the students. When this happens we realize that there was a good teaching there. The good teaching to Vigotski is that one that leads to the development of high psychological functions, in short, the development of what is the most human about the man. In this sense, the article analyzes the social constitution of the successful educational practice from the relation between the living and affections from the point of view of Socio-Historical Psychology and Philosophy of Spinoza. These analyzes resulting from research show that the dialectic between living, affections and senses activates the human desire to be bigger at school, therefore, the successful educational practice consists of activating desires and productions of senses.

Keywords: Educational practice; Experience; Affections; Mediation

Resumen

La práctica educativa que se lleva a cabo, tiene como en la escuela objetivo colaborar con el aprendizaje y, en consecuencia, el desarrollo de los estudiantes. Cuando esto sucede, se deduce que hubo una buena enseñanza. La buena enseñanza para Vygotsky es siempre la que conduce al desarrollo de las funciones psicológicas superiores, finalmente, el desarrollo de lo que es más humano en el hombre. En este sentido, el artículo analiza la constitución social de la práctica educativa con éxito de la relación entre la experiencia y los afectos desde el punto de vista de la Psicología Histórico-Social y de la Filosofía de Spinoza. Estos análisis resultante de la investigación muestran que la dialéctica entre experiencia, afectos y sentidos activa el deseo humano de estar en la escuela, por lo tanto, la práctica educativa exitosa se constituye en la activación de deseos y producción de significados.

Palabras-clave: Práctica educativa; Experiencia; Afectos; Mediación

Introdução

A educação escolar é prática social que se constitui pela mediação dos sujeitos envolvidos em contextos educativos. Nesse contexto, professores e alunos assumem lugar de protagonistas, pois a relação que se dá entre eles é, algumas vezes, determinante de situações bem-sucedidas ou fracassadas. Disso decorre que pesquisas realizadas com o propósito de investigar as mediações pelas quais se constituem essa prática social não podem prescindir de analisar professores e alunos em atividade com o mundo e no mundo, sobretudo porque essa atividade acontece pela apropriação e produção de significações.1

De acordo com Vigotski, as significações medeiam a atividade humana. O soviético quer dizer que toda atividade realizada pelo homem é significada socialmente, ou seja, vincula-se ao social, ao mesmo tempo em que é impregnada de sentidos pessoais, de motivações. Essa premissa teórica será usada por nós nesse artigo para explicar a constituição social da prática educativa escolar bem-sucedida. Mas o que estamos chamando de práticas educativas bem-sucedidas? Para fundamentar nossas ideias acerca do que estamos compreendendo por práticas educativas bem-sucedidas, nos apoiamos na Psicologia Socio-Histórica, sobretudo nas ideias de Lev S.Vigotski (2009, 2004, 1998, 1996) e nas ideias de Baruch de Espinosa (2008, 2007).

Vigotski (1998), ao fazer referência ao aprendizado, esclarece que todo bom ensino é aquele que promove desenvolvimento e surgimento do novo e que a aprendizagem é efetiva quando, como condição prévia, se transforma em desenvolvimento real do sujeito. Para esse teórico, a qualidade do desenvolvimento psicológico da criança não é inerente a qualquer atividade que se realiza na escola, mas depende de como essa atividade está organizada. Baseados nessa proposição, consideramos práticas educativas bem-sucedidas todas as ações socialmente planejadas, organizadas e operacionalizadas em dado contexto educativo, destinadas a criar oportunidades de aprendizagem que impulsionem zonas de desenvolvimento iminente, tornando o humano mais humano do ponto de vista socio-histórico. Essas ações constituem a atividade de ensino e aprendizagem no contexto das práticas educativas escolares.

Com Espinosa (2008), expandimos essa compreensão e passamos a entender que a prática educativa pode tornar-se bem-sucedida quando os afetos produzidos na relação ensino e aprendizagem aumentam a potência dos sujeitos (professores e alunos), tornando-os mais ativos e, portanto, mais desejosos por novas aprendizagens. Isso acontece quando o processo educativo se constitui em encontros alegres, onde se produz ideias adequadas sobre a escola, sobre os conteúdos de ensino, sobre os processos avaliativos. Afetados de alegria, professores e alunos produzem sentidos pessoais (LEONTIEV, 1978) para continuarem apreendendo e se desenvolvendo juntos, em processo de colaboração.

Apoiados nessas compreensões teóricas, realizamos pesquisa acerca da realidade de professores e alunos que, mediados por determinadas condições existência, têm conseguido produzir transformações em suas vidas e na realidade social na qual vivem. Nesse texto, reunimos parte dos resultados dessa pesquisa com o objetivo de esclarecer o movimento realizado na investigação que levou à formulação da seguinte tese: o professor que afeta positivamente seus alunos (de alegria) é afetado por satisfação, significa que ele mesmo é afetado positivamente (de alegria). Para manter o estado de satisfação que aumenta a potência de agir, o professor continua desenvolvendo práticas educativas que colaborem com o sucesso dos alunos, porque o sucesso dos alunos é o seu sucesso, é a expansão da sua alegria. Os alunos, por sua vez, ao serem afetados positivamente, criam relação de sentido que potencializam o desejo por continuar aprendendo e se desenvolvendo.

O texto apresenta-se organizado em três sessões. Na primeira delas, argumentamos apoiados em Vigotski e Espinosa em favor da constituição social, histórica e cultural do ser humano, a partir das categorias vivência e afetação. Acerca da categoria vivência, nos apoiamos em Vigotski (1996) para fundamentar as ideias aqui defendidas. Sobre afetos, nos deteremos nas ideias de Espinosa (2007, 2008). Entretanto, não constitui objetivo apresentar análises dicotômicas e que distanciem esses dois teóricos. O objetivo é exatamente tentar aproximá-los e demonstrar a relação existente entre o monismo espinosano e vigotskiano na explicação da constituição do humano. Na segunda sessão, discutimos acerca dos procedimentos metodológicos da pesquisa realizada entre os anos de 2011 e 2014. Na última sessão, analisamos como as vivências e os afetos medeiam a constituição histórica de alunos bem-sucedidos na educação e na vida. Nas considerações finais, apontamos os desdobramentos da pesquisa e levantamos questões a fim de provocar movimentos na direção da realização de mais pesquisas em educação assentadas no pensamento desses teóricos.

Vivência e afetação na gênese da constituição do humano: considerações a partir de Vigotski e Espinosa

Com a intenção de esclarecer que o psiquismo humano constitui-se culturalmente, Vigotski (1996) recorre à categoria vivência para explicar que o desenvolvimento da consciência é um processo, ao mesmo tempo, racional e afetivo, ligado à vida real das pessoas, isto é, “as vivências englobam tanto a tomada de consciência quanto a relação afetiva com o meio e da pessoa consigo mesma, pela qual se dispõem, na atividade consciente, a compreensão dos acontecimentos e a relação afetiva com eles” (TOASSA, 2011, p. 231). Mas o que vem a ser vivência para Vigotski?

Ao esclarecer sobre a importância desse conceito na obra de Vigotski, Prestes (2012) ressalta que o conceito de perejivanie (vivência) está muito ligado ao conceito de situação social de desenvolvimento. Para Vigotski, perejivanie (vivência) não diz respeito a uma particularidade da criança e nem ao ambiente social em que ela se encontra, mas à relação entre os dois. Significa que para Vigotski, a situação social e as especificidades da criança formam uma unidade. Tal processo se explica porque o ambiente não existe em absoluto, ao contrário, o ambiente social tem sentidos diferentes para a criança em fases de vida diferentes, ou seja, crianças em idades diferentes podem viver a mesma situação social, mas cada uma terá sua perejivanie (vivência) de modo diferenciado.

Vigotski (1996) parte do pressuposto de que o processo de tomada de consciência tem início mediante a relação dialética entre indivíduo e meio, tendo como mediador fundamental as vivências. Em que momento, dada situação deixa de ser mera experiência e passa a ser vivência na vida da criança é uma explicação que o psicólogo russo vai se preocupar em realizar para comprovar que o desenvolvimento humano está vinculado ao processo de significação da realidade.

A vivência representa na teoria de Vigotski a categoria que comprova a lei geral do desenvolvimento. Para o soviético, “todo desenvolvimento, antes de ser individual, é social”. Antes de ser capaz de significar a realidade, não há possibilidade de desenvolvimento da consciência, porque a consciência se desenvolve historicamente no processo de significação da realidade, na relação do homem com o social. Antes de ser individual, a consciência é social e, nesse processo, a linguagem tem importância fundamental.

Ao se apropriar da linguagem, a criança apropria-se do seu conteúdo semântico, ou seja, dos significados, tornando-se capaz de generalizar. As generalizações ajudam a criança a estabelecer diferenciação entre mundo interior e mundo exterior, passando então a ter consciência de seus estados afetivos, ou seja, passa a compreender o que vive e atribuir sentido a isso. A criança passa a compreender seus afetos e, especialmente, o que a afeta. Vigotski esclarece isso explicando que “Se antes ela sentia fome, frio, sede, mas não tinha consciência disso, agora ela não só sente fome, frio e sede como toma consciência desses estados” (VIGOTSKI, 1996, p. 380).

A capacidade de significar as próprias vivências leva a criança a estabelecer novas relações com o meio e consigo mesma. Vale lembrar que o meio a que se refere Vigotski (2003, p. 197) é o social, nunca visto como invariável e permanente, mas sim como “Uma imensa quantidade de aspectos e elementos muito diversos, que sempre estão em flagrante contradição e luta entre si”. Essa vai ser a razão pela qual Vigotski vai considerar vivência a verdadeira unidade dinâmica da consciência. A vivência é processo que permite compreender como cada pessoa se relaciona com o mundo e como esse mundo é subjetivado, porque a vivência envolve a produção de afetos e sentidos. Os sentidos evidenciam os motivos que impulsionam os sujeitos a agir. A ação dos sujeitos pode ser de atividade ou de passividade. E o que vai determinar que os sujeitos ajam ativamente ou passivamente? A natureza da relação afetiva.

A relação do homem com o mundo e com os outros é sempre relação afetiva produtora de sentido. Os sentidos são produzidos em função dos afetos constituídos nas vivências de cada ser humano. Entendemos com isso que são os afetos que colocam os indivíduos em situação de atividade ou de passividade, porque são os afetos que determinam a qualidade do sentido produzido pelo indivíduo na relação com a realidade. Queremos dizer que enquanto para uns uma situação social é vivida de forma positiva, para outros a mesma situação pode ser vivida de forma negativa. Isso acontece porque somos afetados e afetamos o tempo inteiro, e essas afetações podem ser alegres ou tristes.

Resumindo, entendemos que não há entre o homem e o mundo uma relação direta. Sua visão de mundo, sua percepção, suas escolhas, enfim, sua atividade no mundo e com o mundo passa pela mediação das significações. Isso quer dizer que o modo como professores e alunos significam suas relações, significam o que fazem e o que vivenciam, determina sua subjetividade e, consequentemente, sua atividade. Nesse processo de mediação, os afetos movimentam os sujeitos porque orientam a produção de sentidos e, por conseguinte, o modo como se relacionam com a realidade.

Para esclarecer essa relação entre homem e mundo mediada pelos afetos, recorremos à filosofia de Baruch de Espinosa (2008). A filosofia de Espinosa ajuda-nos a compreender a educação como processo afetivo. Para esse filósofo, o ato de educar ou educar-se pode ou não acontecer por meio da razão2, mas jamais acontece na ausência de afetos. Portanto, nem sempre a razão participa dos processos educativos. Entretanto, o desejo, este sim, sempre participa desse processo, uma vez que não há educação sem desejo, nem desejo sem educação (MERÇON, 2013).

Fundamentada nesse princípio, Merçon (2013) explica que em toda situação educativa em que se aprende ou se ensina algo, imaginativo ou racional, o desejo está presente. Entretanto, mesmo estando presente em toda e qualquer situação educativa, nem sempre esse desejo é ativo, significa que nem sempre os indivíduos são ativos. Eles, muitas vezes, são passivos. E o que significa ser ativo ou passivo para Espinosa? A explicação acerca da situação de atividade ou passividade do homem nas relações sociais está ligada à explicação de como o homem conhece o mundo.

Segundo Espinosa (2007), existem três gêneros de conhecimento. O primeiro gênero, ele chamou de imaginativo, ou seja, é o conhecimento que nasce “quando a mente humana considera os corpos exteriores por meio das ideias das afecções de seu próprio corpo” (ESPINOSA, 2007, p. 119). Espinosa considera esse conhecimento como inadequado, porque é um conhecimento mutilado, superficial, que existe em função de uma experiência vaga, física. É inadequado porque não revela as causas de dada realidade, apenas sentimos seus efeitos, ou melhor, os vestígios que ele deixa em nós. Por exemplo, imaginamos que o sol está perto de nós porque sentimos a nossa pele queimando. Desconhecemos as verdadeiras causas do calor e passamos a conhecer a realidade pela sensação da pele, pelo desconforto que o calor nos provoca (afecções do corpo). É isso que Espinosa define como passividade: a incapacidade de o homem conhecer pela natureza o essencial das coisas.

Ao segundo nível do conhecimento, Espinosa (2007) chamou conhecimento adequado, ou melhor, o conhecimento que provêm da razão. O conhecimento que se constitui das noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas, enfim, das causas. Quando passamos a conhecer o fenômeno a partir da sua causa e não do efeito que ele provoca em nós, a consciência toma lugar nessa relação, pois nossa visão acerca da realidade não é mais opaca, e sim clara e distinta. Isto é, sabemos exatamente o que queremos e porque estamos a agir de uma forma e não de outra. Nisso consiste o agir ativo para a filosofia de Espinosa. O agir que envolve a consciência, o conhecimento adequado das causas (MARQUES, 2014).

O terceiro gênero do conhecimento é o intuitivo, entendido como o mais alto nível de conhecimento e que, portanto, se aproxima da essência do fenômeno. Por ser o mais elevado, é o conhecimento que mais nos aproxima de Deus, pois ao atingir esse nível de conhecimento, o homem entra em harmonia com a natureza.

Na escola, a produção do conhecimento precisa sair do primeiro gênero (imaginativo) e passar ao segundo gênero (conhecimento racional). Acontece que a ascensão de um gênero a outro depende do nosso esforço, ou seja, da potência do nosso desejo. Segundo Espinosa (2008), a essência dos homens é o desejo. O desejo é o que nos movimenta. Podemos nos movimentar ativamente ou passivamente. Somos ativos quando em nossos encontros somos afetados de alegria.

A alegria ativa nossa mente e nos leva a construir ideias adequadas sobre aquilo que desejamos. Ter ideias adequadas sobre o que desejamos significa maior consciência na relação com os fenômenos da realidade, porque a alegria aumenta nossa potência de pensar e agir. O aumento da potência leva ao entendimento racional, adequado da realidade. Na escola, contribuímos para o aumento da potência dos nossos alunos quando motivamos um pensar adequado, racional, organizado. Quando reconhecemos suas potencialidades, quando enfatizamos suas conquistas e valorizamos seus êxitos.

A escola, portanto, e a sala de aula podem vir a ser local de encontros nos quais os alunos fortalecem a confiança em si mesmos e acreditam que podem alcançar um nível mais avançado de desenvolvimento intelectual com a ajuda e colaboração dos colegas e dos professores. Quanto mais somos afetados de alegria, maior a possibilidade de desejarmos aquilo que nos faz bem e que colabora para nossa felicidade. Ou seja, maior a possibilidade de construir um sentido para frequentar e permanecer feliz na escola.

Somos passivos quando somos afetados de tristeza. A tristeza diminui a nossa potência, leva-nos a um conhecimento inadequado, mutilado da realidade. Agimos motivamos não por uma vontade consciente, mas por forças que desconhecemos e que controlam nossas necessidades. A mente enfraquecida torna-se distraída, desatenta.

Quando os alunos não conseguem sentir e viver a escola como espaço de trocas, de alegria, de crescimento, de conquista, de estímulo, de descoberta, esta torna-se propícia à produção de afetações negativas, e nesse caso, tudo converge para a diminuição da potência de pensar e agir. Os alunos mostram-se cada vez mais distraídos porque frequentar a escola não é algo desejado, a ida a escola é uma obrigação cumprida para satisfazer uma exigência externa (os pais, a sociedade, os professores). A necessidade de ir à escola é produzida em função dos outros e não de si mesmos, ou de suas necessidades pessoais.

Para transformar essa realidade, os encontros na sala de aula, na escola, precisam constituir-se em encontros alegres, ou seja, em encontros nos quais os alunos tenham a possibilidade de construir um sentido pessoal para estarem na escola, na sala de aula e para aprenderem. Portanto, a transformação de um desejar passivo em um desejar ativo ocorre em virtude de nossos encontros que podem ser alegres ou tristes, que provocam o aumento ou a diminuição de nossa potência.

É, portanto, nas relações sociais que essa potência pode ser aumentada ou diminuída. Nesse sentido, o que professores e alunos vivenciam na escola converte-se em fonte de afetos que levam à produção de novos sentidos. Na escola, professores e alunos são afetados de diversas maneiras, fato que impulsiona aumentando ou diminuindo a potência de pensar e agir de cada um, o que contribui tanto para o sucesso como para o fracasso das ações educativas. Isso porque o que aumenta ou diminui, favorece ou coíbe a potência de agir de nosso corpo, a ideia desta mesma coisa aumenta ou diminui, favorece ou coíbe a potência de pensar da nossa mente (ESPINOSA, 2008).

A afetação é, portanto, mediação importante capaz de revelar muito sobre a constituição do humano. A filosofia de Espinosa (2008) nos ajuda a compreender como se constitui, na vida, o processo de afetação entre os homens e de que modo, nesse processo, são constituídos os sentidos que direcionam nossa atividade e aumentam nossa energia vital, impulsionando-nos para sermos mais. Por tudo isso, consideramos que as mediações afetivas são fundamentais no entendimento acerca de como o professor consegue realizar um ensino capaz de mediar o desejo ativo de aprender dos alunos. A filosofia de Espinosa (2008) mostra que todas as relações sociais são, ao mesmo tempo, mediadas/mediadoras de afetações. A partir disso, entendemos que os processos educativos, ao se constituírem no conjunto das relações sociais, produzem e são produto de afetações. Isso significa que tanto os professores quanto os alunos afetam e são afetados pelo que vivenciam em suas relações.

As práticas educativas são da ordem do encontro que acontece entre professores e alunos. Nesse sentido, é preciso entender quais condições precisam ser produzidas para que, na escola, professores e alunos vivenciem encontros alegres, ou seja, práticas educativas que levem ao aumento da potência de ambos e, consequentemente, a um desejar ativo. Porém, isso não se constitui em tarefa simples tendo em vista as contradições que constituem o real. A educação, como unidade de uma totalidade, carrega as contradições do real. Por essa razão, não é fácil para professores e alunos encontrarem na escola as condições de desenvolvimento de encontros alegres.

A escola pública brasileira, ao mesmo tempo em que é a instituição social que tem a responsabilidade de sistematizar, organizar e preparar as gerações futuras para o pleno desenvolvimento de suas capacidades humanas é, em sua grande maioria, tratada com descaso pelo poder político e não oferece as mínimas condições de desenvolvimento nem para professores muito menos para alunos. Os professores são sempre responsabilizados pela preparação de excelência das futuras gerações em todas as suas dimensões, no entanto, diante das condições objetivas de formação e trabalho não conseguem garantir o mínimo de qualidade às suas práticas porque a grande maioria absoluta dos docentes desse País, para sobreviver, assumem carga horária de trabalho que extrapola todos os limites de tempo e disposição física e psicológica.

Considerando que as práticas educativas são produções humanas e como tal, se desenvolvem expressando os movimentos contraditórios que emergem do processo de lutas e interesses, muitas vezes antagônicos de quem as realiza, não faz nenhum sentido analisá-las abstratamente, pois se trata de uma dimensão da vida humana que, como tal, se transforma historicamente, acompanhando-se e articulando-se às transformações do modo como professores e alunos produzem sua existência. Portanto, a análise de práticas educativas requer, em última instância, a análise acerca do processo histórico de constituição dos homens que produzem essas práticas. Nesse sentido, na próxima sessão, analisamos uma pequena parte das histórias de vida de quatro alunos, contadas por meio de memoriais, para entender em quais condições e em meio à quais contradições, os encontros educativos podem produzir encantamento, prazer e convívio frutífero, constituindo assim subjetividades felizes em seus processos de aprendizagem e desenvolvimento.

Metodologia da pesquisa

A pesquisa a qual nos referimos nesse artigo foi realizada entre os anos de 2011 e 2014. Envolveu 1 (um) professor de matemática e 4 (quatro) ex-alunos desse mesmo professor. Os sujeitos foram escolhidos por serem reconhecidamente (em âmbito nacional e internacional) sujeitos de histórias bem-sucedidas em educação3. Os sujeitos são identificados no relato com nomes fictícios.

A pesquisa de natureza qualitativa foi realizada num primeiro momento com o professor, por meio de entrevista semiestruturada e do tipo reflexiva. Em um segundo momento, reunimo-nos com os alunos e propomos a escrita do memorial. Nesse texto, exploramos parte das narrativas extraídas dos memoriais dos alunos.

Como procedimento de análise utilizamos a proposta desenvolvida por Aguiar e Ozella (2013) conhecida como “Núcleos de Significação”.4 Esse procedimento analítico, segundo Aguiar e Ozella (2013), permite apreender as mediações sociais constitutivas dos indivíduos em atividade, por meio de significações expressas nos discursos. Nesse procedimento, partimos da apreensão dos significados para chegar às “zonas mais instáveis, fluidas e profundas, ou seja, as zonas de sentido” (AGUIAR; OZELLA, 2013, p. 304). Os significados revelam o que está na aparência, no discurso, mas o que nos interessa é o que está no subtexto, aquilo que não se mostra sem uma análise cuidadosa e profunda, o sujeito na sua essência, o que o singulariza.

Nesse artigo trazemos os resultados alcançados com as análises dos memoriais desenvolvidos pelos alunos. Por meio do procedimento analítico, chegamos à identificação de três núcleos de significação. É importante esclarecer que cada Núcleo de significação é formado por um conjunto de indicadores que expressaram, dentre outras cosias, os motivos, as escolhas, os percursos históricos, as vivências, as relações importantes e decisivas para o desenvolvimento desses alunos.

Para nós, os núcleos de significação que organizamos expressam parte da singularidade de cada aluno em particular. E, por serem representativos das mediações constitutivas desses sujeitos em seus percursos históricos, esses núcleos foram nomeados considerando essas mediações. Um exemplo disso é o núcleo que vamos apresentar aqui: A relação com os professores, as práticas educativas e a educação escolar constituindo alunos com histórias bem-sucedidas. Esse núcleo é formado a partir de três indicadores: 1) Afetos constituídos na relação com os professores; 2) As Olimpíadas de Matemática mediando a produção de ideias adequadas sobre o processo de escolarização e 3) A educação escolar como produtora de transformações na vida pessoal e social.

Desse conjunto de indicadores, escolhemos analisar nesse artigo o segundo indicador: as Olimpíadas de Matemática mediando a produção de ideias adequadas sobre o processo de escolarização. Nas análises, articulamos discussões com a finalidade de demonstrar de que forma essa prática educativa em particular mediou a produção de vivências afetivas que levaram a constituição do desejo dos alunos de estudar para aprender e se desenvolver.

A dialética entre vivência, afetos e sentidos ativando o desejo de ser mais na escola

A ideia de que as significações se transformam no curso da vida que se vive, e que essas transformações indicam que houve mudança na relação do indivíduo com o mundo, é o pressuposto que orienta a discussão nesse núcleo de significação. Esse pressuposto encontra respaldo na categoria vivência, desenvolvida por Vigotski (2010), para explicar a relação dialética entre homem e realidade. O psicólogo russo esclarece que a vivência não é algo apenas experimentado, mas também um trabalho interior, um trabalho mental, algo emocionalmente forte, que altera a relação do indivíduo com o mundo, porque envolve a produção de afetos.

Assim, a discussão envolve a identificação de peculiaridades constitutivas de vivências dos alunos pesquisados, o que, nas palavras de Vigotski, representa aquilo que determina o papel e a mediação do meio no desenvolvimento psicológico dos indivíduos; “a vivência é a unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que se vivencia está representado [...] e, por outro, está representado como eu vivencio isso” (2010, p. 689). O autor esclarece que não se trata de analisar tudo o que foi vivido pelos indivíduos, mas as peculiaridades constitutivas determinantes na definição das atitudes do sujeito frente dada situação.

Para confirmar esse pressuposto, extraímos dos memoriais dos alunos trechos discursivos que expressam de que forma a relação afetiva com os professores, as peculiaridades de determinadas práticas educativas e o modo como cada aluno significa a educação escolar vão mediar a constituição do sentido de estudar para aprender e se desenvolver. Enfim, explicitaremos as relações que, em nosso entender, medeiam a constituição de alunos com história escolar bem-sucedida.

Essas significações refletem que, na relação histórica dos discentes com os professores no processo de escolarização, algumas práticas educativas constituíram-se em situações sociais de desenvolvimento porque foram produtoras de vivências. Essas vivências foram fontes de afetos, ora alegres, ora tristes, que orientaram a produção de sentidos pessoais relacionados aos estudos e à escola que potencializaram a atividade de estudo, levando-os a experimentarem transformações importantes para o desenvolvimento de cada um, seja como aluno, seja como pessoa.

Essas vivências estão muito relacionadas a uma prática educativa em particular, realizada pelo professor Torricelli5 que, assim como outros professores, se vê diariamente obrigado a despertar o desejo de estudar dos alunos. Aí está uma das grandes contradições na prática educativa, ensinar com o propósito de levar os alunos a produzirem um sentido pessoal para aprender e estar na escola. É uma relação na qual existem forças que se opõem, ou seja, alguém querendo ensinar aqueles que nem sempre querem aprender. A contradição reside no fato de que para ensinar é preciso que haja alguém com desejo de aprender, entretanto, o desejo de aprender dos alunos não é um processo natural, é antes de tudo, social e produzido nas relações. Portanto, quem ensina também tem que se preocupar em afetar o outro de desejo em aprender. E essa relação nem sempre se desenvolve na ausência de conflitos.

Afetado pelo desejo de levar seus alunos a aprenderem matemática, o professor Torriceli resolveu preparar todos os seus alunos do 6º ano para participar de uma prática educativa diferente. Essa prática refere-se à participação nas Olimpíadas Brasileiras de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP). O professor organiza, desde 2005, a preparação dos alunos para participarem de todas as etapas das olimpíadas na sua escola. Essas etapas envolvem desde a inscrição dos alunos à preparação para cada fase. Para discutir essa vivência selecionamos alguns trechos dos memoriais dos alunos para ilustrar como os alunos significam o envolvimento com essa prática educativa:

Lembro-me que o Torricelli nos apresentou a esta competição ,6 mas a priori não dei muito crédito, pois achava não ser possível obter frutos, mesmo assim me reuni com os demais alunos nos grupos de estudos por ele marcados, foi aí onde a magia começou a acontecer . (Pitágoras)

A partir daí [das olimpíadas], comecei a ter algo especial para estudar , não mais para manter viva a doutrinação escolar, mas porque sentia, e ainda sinto, uma sensação diferente ao estudar matemática, um misto de felicidade e completeza. (Pitágoras)

O fato que mudaria a minha história de vida e veio a me tornar quem eu sou hoje ocorreu na 6ª serie, foi nesse período que o então professor de matemática, o professor Torricelli, inscreveu todos os alunos do colégio para a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas - OBMEP. (Isaac)

[...] Quando vi eu tinha sido premiado com medalha de prata, então me perguntei, o que isso viria a significar? E a partir daí tudo em minha vida viria a mudar [...] eu tinha descoberto algo que eu era bom. (Isaac)

Eu era muito criança, não entendia o valor que essas olimpíadas teriam em minha vida, entretanto, o prof. Torricelli nunca desistia de me incentivar. (Raquel)

Consegui passar nesse mesmo ano pra 2ª fase da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas [...] Consegui duas Menções Honrosas, e uma Medalha de Bronze. Foram nesses três últimos anos de estudo em minha cidade que as influências dos meus professores falaram mais alto. (Raquel)

Eu adorava estudar biologia química, matemática [...] e com os resultados nas olimpíadas, eu comecei a me animar cada vez mais. (Raquel).

E todos os outros professores vendo os bons resultados que eram obtidos ano após ano nos colégios onde o prof. Torricelli ensinava, começaram a se empenhar também. (Raquel)

GN era o nome do meu professor de química [...] ele começou a fazer do mesmo jeito que o Torricelli, preparando alunos pras olimpíadas de química e como foi esperado, muitas medalhas foram obtidas! [...]. Todos os outros professores começaram também a se empenhar em olimpíadas e davam aulas extras. (Raquel)

Os trechos das narrativas, embora de modo diferente, expressam significações que sinalizam que os alunos, ao participarem das Olimpíadas de Matemática, vivenciaram transformação no modo de se relacionar com a matemática, com os estudos em outras disciplinas e com a escola. Isso indica que os alunos modificaram a relação com o contexto escolar, e o que antes era sentido de uma forma, com a participação nas olimpíadas, passou a ser sentido de outra. Temos, assim, indicativos de que os alunos vivenciaram situações e relações na escola que desencadearam a produção de afetos e, consequentemente, produziram novos sentidos para estudar.

Pitágoras retrata bem essa transformação quando afirma que “foi aí onde a magia começou a acontecer”. Ao se referir ao momento em que se iniciou a preparação para as olimpíadas, o aluno ressalta que foi mágico, enfim, não foi algo rotineiro, conhecido, foi algo especial. Esse sentido revela que houve mudança no estado psicológico de Pitágoras. Antes de se aventurar na preparação para a competição, ele considerava que essa atividade não lhe traria resultados positivos, porque não se sentia capaz de viver essa experiência, mesmo assim aceitou o desafio de estudar e se preparar para participar da competição.

Seu envolvimento com outros alunos e a aproximação com uma nova maneira de estudar matemática levaram-no à produção de um novo sentido de estudar essa matéria. Se antes estudar significava cumprimento de obrigação, essa atividade deixou de ser sentida como obrigação e passou a significar alegria, felicidade e orgulho. Ele agora sentia que “tinha algo de especial para estudar”. Não se tratava mais de estudar para passar de ano, para cumprir as tarefas e para atender as exigências dos professores. Essas particularidades, embora existindo, já não mediavam predominantemente sua atividade de estudo, elas cederam lugar ao desejo de manter a felicidade que o estudo na matemática lhe proporcionava. A sua decisão em fazer o curso de Matemática no Ensino Superior reflete que o seu envolvimento com essa área do conhecimento ultrapassou o processo de escolarização, trata-se de escolha para a vida, tanto é verdade que ele afirma “Hoje sou aluno do curso de Matemática na UFPI, e me sinto muito feliz por isso”. Essas significações revelam que a vivência proporcionada pelas Olimpíadas de Matemática levaram Pitágoras à transformação dos motivos para estudar matemática, suas motivações não se encontram submetidas ao mundo externo, mas no desejo de aprofundar um conhecimento que o completa, que o anima. Ele é causa de si mesmo e, sendo causa de si mesmo, passa a ter ideias adequadas sobre estudar matemática. (ESPINOSA, 2008)

Espinosa (2008) utiliza as definições de ação e paixão para mostrar que os indivíduos, na relação com a realidade, podem ser causa de si mesmo, ou apenas, se submeter à variação das causas externas. Quando o ser humano age submetido por causas externas das quais desconhece, ou por particularidades das quais ele é causa parcial, ele na verdade padece, pois, é comandado por forças externas. Quando a causa de sua atividade é fruto de suas necessidades e não de necessidades impostas, quando sua ação existe não para atender apenas as particularidades do cotidiano, mas para alcançar algo que lhe é útil e, ainda, quando sua ação é regulada por afetos que ele conhece, Espinosa (2008) considera que o sujeito está em atividade no mundo. A capacidade ou a não capacidade de agir dos seres humanos, segundo esse autor, encontra relação com as necessidades. Para o filósofo, ser livre não significa não ter necessidades, mas consciência delas:

Não se pode imaginar nenhum outro remédio que dependa do nosso poder que seja melhor para os afetos do que aquele que consiste no verdadeiro conhecimento deles, pois não existe nenhuma outra potência da mente que não seja a de pensar e de formar ideias adequadas. (ESPINOSA, 2008, p. 373)

Com Isaac, esse processo foi ainda mais significativo. O discente reconhece que não gostava de assistir aulas, não se via como um aluno aplicado e fazia o mínimo possível, apenas para garantir a média e ser aprovado. Essas significações reforçam a tese de que Isaac não produzia sentido pessoal para estar na escola, para estudar ou se esforçar como aluno. Esse sentido foi sendo produzido quando passou a participar das olimpíadas. Tal fato, segundo ele, mudou a sua vida. Observamos que Isaac teve a sua relação com o contexto escolar transformado com a participação nas olimpíadas pelo fato de ganhar medalhas, porque isso significou para ele a valorização do seu potencial. Essas foram situações e relações que o afetaram de alegria, aumentando a potência de agir. As Olimpíadas de Matemática favoreceram o reconhecimento de si como capaz, a tomada de consciência de um potencial, “E a partir daí tudo em minha vida viria a mudar [...] eu tinha descoberto algo que eu era bom”. Se levarmos em consideração o que ressalta Vigotski (2010), sobre a vivência estar relacionada ao processo de tomada de consciência, entendemos que o fato de Isaac perceber-se como capaz, como alguém capaz de aprender algo novo, revela, mais uma vez, que a participação nas Olimpíadas de Matemática se constituiu em vivência para Isaac, porque o aluno transformou sua relação com os estudos porque tomou consciência das suas potencialidades.

Raquel também traz significações que revelam o quanto a participação nessa prática educativa mediou a sua transformação como aluna. No seu relato ela deixa claro que não foi um processo tranquilo; ao contrário, ela narra que passou por dificuldades e que a mediação do professor foi muito importante para não deixá-la desistir, “Eu gostava muito de matemática! Mas mesmo assim não conseguia passar pra segunda fase dessas olimpíadas [...] Eu era muito criança, não entendia o valor que essas olimpíadas teriam em minha vida, entretanto, o Prof. Torricelli nunca desistia de me incentivar”.

O fato do professor não desistir de incentivá-la foi uma particularidade que a afetou de forma determinante e viria a produzir na sua vida escolar estados de satisfação que a levariam a mudança em relação aos resultados que ela tanto perseguia, “Consegui passar nesse mesmo ano para 2ª fase da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas [...] Consegui duas Menções Honrosas, e uma Medalha de Bronze. Foram nesses três últimos anos de estudo em minha cidade que as influências dos meus professores falaram mais alto”.

A menção que Raquel faz aos professores comprova a importância do professor no desenvolvimento das potencialidades dos alunos. Vigotski (2010), fazendo referência a essa questão, resume que o professor, como par experiente e detentor da forma final e ideal do desenvolvimento que busca alcançar para o seu aluno, ao organizar na escola práticas educativas de qualidade possibilita a interação do aluno com essa formal final de desenvolvimento. A organização dessas práticas educativas nos espaços escolares garante que a escola se consolide como “meio de desenvolvimento que desempenha com relação às propriedades específicas superiores do homem e das formas de ação, o papel de fonte de desenvolvimento”. (VIGOTSKI, 2010, p. 697)

O relato de Raquel mostra que as premiações conseguidas por meio das olimpíadas foram vivenciadas com alegria. Essa vivência, fonte de afetos alegres, produz autoestima, autoconfiança, prazer e satisfação. Se antes ela se ressentia porque não conseguia passar de fase, nesse momento de sua vida ela não somente passava de fase, mas se destacava e se sentia estimulada para estudar outras disciplinas: “adorava estudar biologia química, matemática... e com os resultados nas olimpíadas, eu comecei a me animar”. Esses afetos foram responsáveis pelo aumento da potência de Raquel. Com sua potência aumentada, a aluna consegue se destacar não apenas em matemática, mas também nas demais disciplinas que representam as diferentes áreas do conhecimento humano. Espinosa (2008) adverte que somente a potência racional do conhecimento permite transformar gradualmente a vida dos indivíduos e conduzi-los a gozar dos afetos ativos; afetos que levam a aprendizagem ativa.

Considerando o que aconteceu com Pitágoras, Isaac e Raquel, convém ressaltarmos que esses alunos experimentaram situação de vivência. Nossa afirmação encontra respaldo na ideia vigotskiana de que a vivência sintetiza a relação entre o indivíduo e o mundo. O modo como o indivíduo toma consciência e concebe os acontecimentos do mundo em que vive e o modo como se relaciona afetivamente para com certos acontecimentos, enfim, a vivência “é o prisma que determina o papel e a influência do meio no desenvolvimento do caráter da criança, do seu desenvolvimento psicológico e assim por diante”. (VIGOTSKI, 2010, p. 686)

A vivência, portanto, representa, de um lado, o meio, aquilo que está representado, aquilo que está localizado fora da pessoa. No caso aqui referido, o meio é representado pela escola, pelas atividades de estudo, pela relação com a matemática e pelas olimpíadas, pela mediação dos professores. De outro lado, está representado como a pessoa vivencia o meio, como ela sente o vivido, os afetos constituídos na relação com o meio. No caso dos alunos, refere-se ao modo como eles estão subjetivando essa relação, o que estão sentindo, como estão significando o envolvimento nas olimpíadas. Significa, portanto, que a vivência sintetiza a dialética das particularidades que são, ao mesmo tempo, do meio e da pessoa. Nesse sentido, concordamos com Brandão (2012) sobre a vivência ser a categoria da Psicologia Sócio-Histórica que atesta a concepção monista de Vigotski, porque pela vivência, homem e realidade constituem-se dialeticamente.

O desenvolvimento dessa prática educativa produziu mudanças na vida não apenas dos alunos que estavam diretamente envolvidos, mas também incentivou mudança de comportamento no coletivo da escola. Professores e alunos passaram a assumir um compromisso que ia além da sala de aula, responsabilizando-se pela formação uns dos outros, como uma espécie de afetação coletiva, “E com passar do tempo foi se formando um grupo de estudo [...] e esse grupo [...] agora cabia a eles preparem os alunos mais novos”.Assim, criava-se uma cultura de valorização do ensino e aprendizagem, onde se pratica a cooperação: “Já no ensino médio [...] O projeto do professor Torricelli agora era seguido por outras disciplinas, que começaram a seguir a mesma metodologia e preparar os alunos agora para outras olimpíadas”. O que acontece nessa escola, ou seja, o fato de outros professores e alunos sentirem-se estimulados a participar e se envolver com as Olimpíadas de Matemática, ou até mesmo, o fato de outros professores procurarem organizar práticas semelhantes em suas disciplinas acontece porque, segundo Espinosa (2008, p. 325):

Quem vive sob a condução da razão deseja, também para um outro, o bem que apetece para si próprio. Por isso, por ver alguém fazer o bem a um outro, seu próprio esforço por fazer o bem é estimulado, isto é, ele terá uma alegria, a qual vem acompanhada da ideia daquele que fez bem a um outro e, por isso, lhe é reconhecido.

Nessa explicação reside o sentido de que, na cooperação, há o aumento de potências individuais, porque na cooperação os indivíduos partilham interesses comuns, suas naturezas combinam entre si, por isso sua potência de agir tende a ser estimulada e reforçada. Portanto, confirma-se assim o que afirma Espinosa (2008) a respeito de que nada pode combinar melhor com a natureza de um ser que outros indivíduos da mesma espécie, que partilham dos mesmos interesses e que descobrem necessidades comuns. Estamos convencidos que professores e alunos dessa escola descobriram necessidades comuns e, por essa razão, sentem-se estimulados a partilharem das mesmas experiências, uma vez que “Todos os outros professores começaram também a se empenhar em olimpíadas e davam aulas extras”.

Por tudo que foi aqui assinalado, consideramos que a olimpíada de matemática foi uma prática educativa fundamental no processo de transformação do sentido constituído pelos alunos sobre a atividade de estudo. As análises mostraram que, ao organizar esse encontro, o professor produziu as condições pelas quais os alunos, afetados pela vivência produzida no envolvimento com essa prática, sofreram transformações que ativaram o desejo de aprender, não apenas para atender necessidades imediatas, mas, sobretudo, para mudarem de vida.

Estudar tornou-se um compromisso pessoal assumido por cada um, porque todos eles foram afetados de tal maneira que essa atividade não representa apenas uma etapa nas suas vidas, mas sim, uma forma de se afirmarem como humano. Dessa forma, confirmamos a tese anunciada na introdução desse artigo: o professor que afeta seus alunos positivamente (de alegria) é afetado por satisfação, significa que ele mesmo é afetado positivamente (de alegria). Para manter o estado de satisfação que aumenta a potência de agir, continua desenvolvendo práticas educativas que colaborem com o sucesso dos alunos, porque o sucesso dos alunos é o seu sucesso, é a expansão da sua alegria. Os alunos, por sua vez, ao serem afetados positivamente, criam relação de sentido que potencializam o desejo por continuar aprendendo e se desenvolvendo.

Essa tese leva-nos a muitas conclusões, e a mais importante delas é a ideia de que o professor eticamente comprometido com a educação desenvolve sua prática educativa com esforço, educa para tornar os corpos de seus alunos outros corpos, transformados, capazes de muito mais coisas e de maiores ações do que se possa imaginar. Educar afetado pelo desejo de afetar de desejo o aluno, essa é a condição que precisa ser produzida pelos professores que buscam realizar prática educativa bem-sucedida.

Considerações finais

O propósito nesse artigo foi de analisar a relação dialética entre vivências, afetos e sentidos no desenvolvimento histórico de alunos protagonistas de práticas educativas bem-sucedidas em seu processo de escolarização. Para realizar tal análise, apreendemos significações que revelassem vivências afetivas constituídas na relação com os professores, no envolvimento com as Olimpíadas de Matemática e na relação com a educação escolar.

As análises apontaram que as situações sociais desencadeadas pelas práticas educativas organizadas inicialmente por um professor e, posteriormente, assumida por outros professores, produziram muitas vivências. Essas situações são identificadas como vivências porque levaram à produção de novos sentidos que alteraram de forma significativa a relação dos alunos com os estudos, com a escola e com a vida.

As análises realizadas, tendo como suporte as significações produzidas nos memoriais demonstraram, o processo de transformação da consciência dos estudantes em relação aos estudos e a escola. Essa transformação foi sendo operada na medida em que os alunos foram se envolvendo em práticas educativas que ativaram o desejo de aprender não mais com a finalidade de satisfazer necessidades externas, mas necessidades afetivas. O envolvimento com tais práticas educativas foi a condição objetiva que possibilitou a constituição de subjetividades bem-sucedidas na escola e na vida.

A preparação e a participação nas olimpíadas representaram situações sociais de desenvolvimento porque produziram vivências, porque promoveram transformação no modo como cada um dos três alunos se relacionava com a matemática e com os estudos de modo geral. Isso indica que os alunos modificaram a relação com o meio, porque o que antes era sentido de uma forma, com a participação nas olimpíadas, passou a ser sentido de outra. A vivência de situações e relações escolares desencadeou a produção de novos afetos e a reorientação do sentido de estudar e viver os processos educativos.

A pesquisa nos ajudou a compreender que o aumento ou a diminuição da potência dos sujeitos passa pelo tipo de afetação que provoca o desejar ativo ou passivo. Entendemos, portanto que, na educação, determinadas práticas educativas transformam-se em vivências capazes de aumentar ou diminuir a potência humana. Fundamentados nessa ideia, defendemos a tese de que o professor consegue realizar prática educativa bem-sucedida quando afeta positivamente seus alunos. Os alunos, por sua vez, ao serem afetados positivamente, criam relação de sentido que potencializam o desejo por continuar aprendendo e se desenvolvendo. Mas, como fazer isso diante da escola e dos currículos que temos? Como produzir desejo para ser professor na sociedade brasileira? Como se constitui o professor afetado de alegria diante das contradições que engendram a carreira docente?

Essas questões nos lançam muitos desafios, e, na atualidade, o maior deles é continuar acreditando que é possível investir no desenvolvimento de práticas educativas que levem à potencialização do desejar ativo de professores e alunos capazes de continuar sonhando e trabalhando em prol de uma realidade social e educacional na qual seja possível aprender, se desenvolver e ser feliz.

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1Produção de significado e sentido acerca de tudo que se vive. É o que fundamenta todas as nossas relações sociais e nossas ações concretas.

2Para Espinosa a razão está presente no ato educativo quando dela se configura um conhecimento adequado das coisas. Nem sempre isso acontece. Às vezes adquirimos um conhecimento imaginativo, parcial e imediato, ou seja, conhecimento inadequado. Nesse sentido, para Espinosa a razão não está presente porque o conhecimento está sendo produzido em função da imaginação (conhecimento distorcido). A razão é o que leva ao conhecimento adequado ou racional. É a isso que ele faz referência quando menciona que o ato educativo pode se orientar ou não por meio da razão.

3A história de sucesso do professor e dos alunos vem sendo divulgada amplamente pela mídia local e nacional desde 2011. A divulgação mais recente foi veiculada em reportagem do Fantástico exibida na Rede Globo em 16/03/2014, como parte da série Educação.com. Para mais detalhes, consultar o link: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/03/escola-publica-de-cidade-do-piaui-tem-alunos-motivados-e-otimos-resultados.html.

4Esse procedimento de análise parte da palavra com significado e envolve basicamente três etapas: seleção de pré-indicadores, levantamento de indicadores e constituição de núcleos de significação.

5Nome fictício do professor de Matemática que participou como sujeito da pesquisa.

6Todos os trechos em negrito são chamados de pré-indicadores.

Recebido: 02 de Fevereiro de 2017; Aceito: 22 de Agosto de 2017

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