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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.71 Uberlândia maio/ago 2020  Epub 06-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n71a2020-50642 

Artigos

A DIFERENÇA COMO VALOR HUMANO: Ensaio sobre as contribuições do pensamento de Boaventura Sousa Santos, Gilles Deleuze e Homi Bhabha para o Paradigma da Inclusão

DIFFERENCE AS HUMAN VALUE: Essay on the contributions of the thoughts of Boaventura Sousa Santos, Gilles Deleuze and Homi Bhabha to the Inclusion Paradigm

DIFERENCIA COMO VALOR HUMANO: Ensayo sobre las contribuciones de los pensamientos de Boaventura Sousa Santos, Gilles Deleuze y Homi Bhabha al paradigma de la inclusión

*Doutora em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: seorru7@gmail.com


Resumo

A economia e a particularização marcam a sociedade contemporânea como importantes vetores para a ampliação das desigualdades sociais e produção de variados mecanismos de exclusão social. A diferença é parâmetro para categorizar e apartar pessoas à invisibilidade social. O presente ensaio tem como objetivo o diálogo junto aos autores Boaventura Sousa Santos, Gilles Deleuze e Homi Bhabha e seus respectivos pensamentos como contribuintes no entendimento da diferença como valor humano no contexto do paradigma da inclusão. Nos caminhos e entre-lugares da descolonização de nosso ser, é preciso desnaturalizar as barbáries produzidas pelo colonizador e aceitar as diferenças como próprias da espécie humana para a (re)invenção de nossa educação e sociedade.

Palavras-chave: Inclusão; Diferença; Educação; Descolonização

Abstract

Economics and particularization mark contemporary society as important vectors for widening social inequalities and producing various mechanisms of social exclusion. The difference is a parameter to categorize and separate people to social invisibility. This essay aims to dialogue with the authors Boaventura Sousa Santos, Gilles Deleuze and Homi Bhabha and their respective thoughts as contributors to the understanding of difference as a human value in the context of the inclusion paradigm. In the ways and places between the decolonization of our being, we must denaturalize the barbarism produced by the colonizer and accept the differences as proper to the human species for the (re)invention of our education and society

Keywords: Inclusion; Difference; Education; Decolonization

Resumen

La economía y la particularización marcan a la sociedad contemporánea como vectores importantes para ampliar las desigualdades sociales y producir diversos mecanismos de exclusión social. La diferencia es un parámetro para clasificar y separar a las personas de la invisibilidad social. Este ensayo tiene como objetivo dialogar con los autores Boaventura Sousa Santos, Gilles Deleuze y Homi Bhabha y sus respectivos pensamientos como contribuyentes a la comprensión de la diferencia como un valor humano en el contexto del paradigma de inclusión. En los modos y lugares entre la descolonización de nuestro ser, debemos desnaturalizar la barbarie producida por el colonizador y aceptar las diferencias como propias de la especie humana para la (re)invención de nuestra educación y sociedad.

Palabras clave: Inclusión; Diferencia; Educación; Descolonización

Introdução

A questão da diferença como natureza própria e constitutiva da espécie humana se mantém emergente nos mais diversos modos de debates. Ainda que abordada por muitos estudiosos, principalmente, filósofos, a diferença como valor humano, parece ainda não ter afetado de maneira tangível, a sapiência da geração contemporânea e, de forma sensível, a educação corrente em toda sua complexidade. A educação, em si mesma, não é redentora; entretanto, ela é a clave que dá o tom e o ritmo às transformações sociais de um povo. Entendemos ser quimérica a apreensão do conceito de diferença como extensivo a todas as pessoas quando concluímos, exclusivamente, que o diferente é aquele que se encontra desviado dos padrões que já estão postos em nossa sociedade por meio da história e perpetuados pela cultura - diferente é sempre o outro. Sempre que a diferença servir para apartar e/ou segregar o outro pela sua diferença, haverá também o tolhimento colonizador ao direito de Ser, sendo diferente.

Numa perspectiva angular sobre os mecanismos de exclusão que são produzidos em nossa sociedade pelas cisternas de gênese colonialista, patriarcal e capitalista, busca-se fazer uma discussão introdutória na forma de um ensaio despretensioso, distante do esgotamento dos embates e debates, relevando-se não mais do que alguns recortes de achegamentos possíveis, acerca de contribuições do pensamento de Boaventura Sousa Santos (Pensamento pós-abissal), Gilles Deleuze (Filosofia da Diferença) e Homi Bhabha (Entre lugares) em conexão com o Paradigma da Inclusão, tema com o qual, e sobre o qual, já temos versado em estudos primeiros sob a lente da diferença como atributo medular da espécie humana.

Cisternas da exclusão

As sociedades contemporâneas se mostram cada vez mais desiguais quanto à isonomia, equidade e justiça social. De forma símil, diversos e distintos mecanismos de exclusão são produzidos, em sua maioria, por pelo menos duas profundas cisternas: a da economia e a da particularização. Neste contexto, o mundo globalizado flui a partir de políticas neoliberais supressoras. Estas, por sua vez, multiplicam a pobreza material e imaterial - provocam a corrosão insustentável do sistema social que declina numa esfera de naturalização dos problemas sociais, verticalmente profunda, de modo a estabelecer abismos tão encavados, onde a invisibilidade dos seres é paisagem morta, apocalíptica.

O efeito da economia neoliberal é nefasto. Pela ganância e vontade de poder, um sem-número de pessoas é massacrado pelas atrocidades produzidas e (re)produzidas a cada minuto. O desejo sequente pelo crescimento da economia que se alimenta das livres pelejas dos arroubos do mercado, custe o que custar, decorre em demência social que procede à des-humanização do indivíduo. Quando esse indivíduo está na condição arbitrária de exercer poder econômico, abusar, explorar, oprimir e excluir o outro que se encontra em situação de desvantagem social, tornam-se práticas regulares tão comuns que os princípios de Humanidade se esvaem como areia que não pode ser segurada pelas mãos ou como água em cisterna rota.

Neste sentido, o utilitarismo passa a ser vertente de regra. A economia, do grego oikos e nomein, não se acomoda no sentido de gerir um lar onde há várias pessoas que fazem parte de uma mesma parentela e linhagem. Porém, toma o significado de forma de prover o reservatório de riquezas de alguns por meio do abuso de outros bilhões de pessoas. Enquanto uns poucos são donos de cisternas, outros muitos são explorados para a manutenção destas mesmas cisternas. E, dentre os próprios explorados, outros inúmeros são impedidos de se aproximarem do produto da cisterna. Numerosos são aqueles que sequer experimentaram, alguma vez, o líquido do tanque que se ocupam em tomar conta. E, quando a cisterna já não mais é imprescindível ao seu proprietário, em negligência, há falta d’água ou, pelo descaso, lesa o carente por sua impureza. Insensibilidade, indiferença e irresponsabilidade social são as principais características dos des-humanos.

A particularização, por sua vez, diz respeito à tipificação de pessoas pela diferença agrupada. Pessoas são tipificadas pelas suas particularizações abalizadas pela sociedade dominante. A diferença que incomoda a sociedade padrão é categoria que justifica a minoria. A minoria, no que lhe concerne, sustenta-se do que lhe é oferecido pelos dominantes (leis, políticas públicas, exceções, adaptações, água da cisterna...) ou, então, sem conformismos, (re)inventa seus modos de ser e estar no mundo, com o mundo e com os outros. A particularização, tipificada e categorizada, fixa a identidade como produto - perpetuado pela cultura excludente onde uns dominam enquanto outros são dominados - criado na história.

Longe de nós está o ataque às matrizes identitárias em defesa a uma teoria da essência imutável dos seres. Mas se faz necessário problematizar a construção das mesmas que são marcadas por feições e arranjos dualistas e binários que hierarquizam as relações. Não é à toa que os binômios ricos/pobres, normais/anormais, mulheres/homens, negros/brancos, capazes/incapazes, exitosos/fracassados são instituídos e consolidados no corpo social, configurando-se matéria para um incomensurável distanciamento da apropriação dos múltiplos sentidos das diferenças como multiplicidades substantivas que sempre podem se (re)compor, (re)arranjarem-se em suas conexões. Não é de agora que a diferença é denominador comum para a produção de mecanismos de exclusão social.

No entanto, na travessia da compreensão de que a legítima identidade de Ser humano é ignorada e atravessada pela criação de identidades fixas que servem a distintos propósitos (ora para lutas e conquistas em movimentos sociais, ora para reconhecimento do lugar de fala, ora para protagonismo e empoderamento, ora para encabrestamento, ora para controle e ora para tantos outros fórceps sociais...), que separam as pessoas pelas particularizações ao mesmo tempo em que as junta em categorias, re-afirma-se aqui a salvaguarda de que essa identidade de ‘Ser humano’, em si mesma, múltipla e plural, deveria ser suficiente para que TODOS os seres humanos, sem nenhuma discriminação, fossem respeitados em sua condição humana, em seu direito à diferença sendo diferente (ORRÚ, 2017).

Embora se saiba que as cisternas sejam reservatórios práticos de água, portanto, de riqueza, uma vez que a água é um bem sem preço à humanidade, sua propriedade é discutível se confrontada à água da nascente. E, não apenas isso, mas também porque, apesar da utilidade das cisternas, elas são buracos cavados pelo próprio ser humano, onde a água precisa ser introduzida por ele mesmo ou pela chuva. Neste sentido, a água das cisternas pode cerrar, principalmente, se o revestimento que impede que a água verta para a terra, não for cuidado com diligência. Uma cisterna malcuidada e sem proteção, também pode ter sua água contaminada por micro-organismos. A cisterna não é garantia de qualidade de vida e inclusão social, apesar de reservar água. E, além disso, aos que estão pra lá da margem, nem cisternas costumam haver. Em analogia, a economia e a particularização, ainda que pareçam ser vias de benefícios a todos, são como cisternas: não garantem qualidade de vida e direitos sociais e, por isso, são produtoras de mecanismos de exclusão, uma vez que não estão ao alcance de todos. As desigualdades sociais produzidas pelos mecanismos de exclusão na sociedade contemporânea são abissais.

O cientificismo como chancela do discurso e das políticas públicas socioeducacionais corrobora, mantém e perpetua inúmeros mecanismos de exclusão pela naturalização dos problemas sociais e ausência de problematização de suas origens. Isto posto, não é suficiente diagnosticar as causas dos problemas sociais; precisamos também conhecer as profundezas de suas origens. Não é o bastante identificar que a maioria das crianças com deficiência se encontra na causalidade entre pobreza e deficiência, ou seja, a pobreza levaria à deficiência pela falta de recursos econômicos para evitar seu acontecimento e, na outra extremidade da ponte, a deficiência levaria à pobreza pela restrição às oportunidades de melhores condições de vida no contexto socioeconômico por sua derivação. Problematizar os problemas - e não os naturalizar como causa-efeito - é ação de debruçamento arqueológico, onde culturas e modos de vida das sociedades humanas, é examinado com cuidado a partir da análise de evidências e indícios descobertos, mas também com espírito crítico e ação cônscia e transumanar.

A abissal invisibilidade dos excluídos

A obra de Boaventura Sousa Santos desponta como uma referência ao pós-colonialismo de oposição. A lógica do pensamento abissal diz respeito a uma característica própria do pensamento moderno ocidental em que universos que são de origem ontológica distinta entoam razões de existência que se diferem entre si e, por isso, dividem-se em realidades sociais dissemelhantes, aqui estabelecidas como visíveis e invisíveis. O lado de cá da linha do universo corresponde, epistemologicamente, ao Norte que domina pela ação colonizadora. O lado de lá da linha se simetriza ao Sul epistêmico da colonização onde se encontram os oprimidos, silenciados e excluídos de nossa sociedade contemporânea. Essa linha divisória entre tais gentes é tão profunda que torna invisível tudo o que decorre do lado de lá da linha em desmedida inexistência. E tudo o que é inexistente é radicalmente excluído, pois não faz parte do universo, diz respeito somente ao “outro”. No pensamento abissal não é possível a co-presença dos dois lados da linha, pois “o universo ‘deste lado da linha’ só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante: para além da linha há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética” (SANTOS, 2007, p.71).

O sentido de abissal, facultado pelo autor, é propício ao entendimento e às discussões sobre a invisibilidade dos violentados pelo colonialismo, pois o termo se relaciona às descomunais profundezas da Terra, como é o caso dos oceanos. O que ali decai torna-se distante, portanto, inacessível, ignorado e, como consequência, imperceptível e ausente para aqueles que se encontram do lado de cá da linha, na banda do Norte. A realidade daqueles que se encontram no Sul apenas existe para servir aos interesses do Norte colonizador, que empreende pela apropriação e violência. Logo, não há uma realidade própria dos invisíveis, pois a eles não é permitido estar presente ou existir, uma vez que o lado de cá da linha, o Norte epistêmico, esgota todo campo da realidade. Assim, “a negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que constitui a condição para que a outra parte da humanidade se afirme como universal” (SANTOS, 2007, p. 76).

Nesta lógica do pensamento abissal, a ciência e o direito expressam a força e o movimento dos colonizadores, daqueles que dominam por vias da opressão e subjugo daqueles que se encontram em desvantagem social. É por esses dois campos de conhecimento que a verdade é estabelecida: assim como o falso é determinado, igualmente, define-se a separação entre o que é legal e o que é ilegal, de modo que tal universalização abarque o contexto internacional. Só tem (re)conhecimento aquilo que é considerado verdadeiro e legal. Nesta perspectiva, o território dos invisíveis também é despercebido no tocante às suas experiências e vivências, bem como são ignorados os seus sujeitos. Para os colonizadores, o que antes existia sem eles, era o “sem lei”. Neste compasso, a apropriação e a violência dos que dominam tomam diferentes formas na linha abissal: destruição física, material, cultural e humana (SANTOS, 2007).

As forças da apropriação e da violência por aqueles que dominam, debaixo do manto do biopoder criado pela ciência e do poder político legitimado pelas políticas maiores do Estado, impõem a aniquilação das diferenças e do entendimento de que somos seres híbridos, constituídos de nossa natureza biológica como também pela nossa cultura, em permanente mutação biocultural. O poder de vigiar, o poder de disciplinar e de controlar justificam a tipificação e a separação entre o normal/anormal, o produtivo/improdutivo, o diferente/igual, o são/doente, perpetuando, desta maneira, o abismo profundo entre os que estão do lado de cá da linha e os que se encontram do lado de lá.

Onde há um colono, haverá um colonizador. O colono sempre será híbrido, mutante. Embora oprimido pela violência do colonizador, a força de sua constituição é, incomparavelmente, mais potente que a do dominador, uma vez que para sobreviver às hostilidades da ocupação e desempoderamento gerado pelo que coloniza, o que é colonizado (re)inventa seus modos de permanecer existindo, seus modos de ser, de estar, e de transformar o mundo com o próprio mundo na e em coletividade (ORRÚ, 2017). Permanecer existindo já é um ato revolucionário perante a violência do dominador, pois é condição de resistência e re-existência para mobilização e transformação social.

É certo de que as políticas cartográficas desenhadas pelas ciências que hierarquizam os saberes e pela economia que rege as políticas maiores definem quem estará de que lado da linha abissal. No que diz respeito à educação em um sentido restrito à escola cuja função é escolarizar, a hierarquização dos saberes, que supervaloriza alguns conhecimentos em detrimento de outros, também superlativou as capacidades de quem pode estar do lado de cá da linha, ou seja, determinou quem são os que podem aprender e extremou para o lado de lá da linha aqueles que determinou serem incapazes de aprender os conhecimentos estabelecidos como necessários e importantes para a formação de profissionais úteis ao mercado de trabalho.

Sob este prisma, têm-se pelo menos três categorias de sujeitos: 1) aqueles que já se encontram do lado de cá da linha. Garantia, acesso, ingresso, permanência e segmento pós escolarização não lhes serão negados; possivelmente, chegarão aos níveis mais elevados de ensino; 2) aqueles oprimidos que estão do lado de lá da linha mas, por se enquadrarem nas políticas maiores e servirem aos interesses dos colonizadores para a prestação de serviços e manutenção de suas riquezas, terão alguma garantia, acesso, ingresso, permanência e segmento pós escolarização, possivelmente, com restrições; 3) aqueles excluídos que, por não condizerem ao padrão determinado pela sociedade dominante, são impedidos pelas próprias políticas maiores em seus distintos dispositivos de controle social; não conseguirão usufruir de garantias, acesso, ingresso, permanência e segmento pós escolarização. Estes últimos são os que sofrem, drasticamente, com a invisibilidade e com a desimportância social; são os esquecidos, os sem-voz, os indesejáveis pela roda dominante. Logo, a questão da exclusão radical se torna também inexistente, pois entende-se que aqueles que são considerados subumanos, que sequer aspiram à inclusão social, são negados a todo tempo. Para Santos, “[...] a humanidade moderna não se concebe sem uma subumanidade moderna” (2007, p. 76).

Neste movimento de ocupação e desempoderamento do local do outro, de seu silenciamento e da apropriação do próprio outro, a linha abissal é sustentada por dispositivos criados e aceitos pelas próprias políticas maiores que estão a serviço daqueles que dominam e colonizam. Assim, a escola como instituição que serve aos interesses do Estado se expropria da educação como um bem comum que deve ser oferecido a todas as pessoas e se entrega à particularização e tipificação de pessoas produzida pela ciência que, por meio do instrumento diagnóstico, psicometriza inteligências e capacidades como forma de determinar quem aprende e quem não está apto a aprender. Ao se render à expropriação da educação, a escola participa do processo de aniquilação da identidade do outro, pois esse já não é compreendido em sua legítima identidade de Ser humano (pois é o que somos antes de qualquer outra possibilidade de nos constituirmos ou nos agregarmos à outras matrizes identitárias), mas sim, reduzido a um cognome patológico, fruto de uma construção social que ratifica os processos de exclusão e a própria exclusão (ORRÚ, 2017).

Na invariabilidade determinada da cartografia abissal de sistematizar o ato de colonizar, escravizar e utilizar do outro para suas finalidades econômicas, manutenção de riquezas e estabilização de suas zonas de conforto social, o que se encontra variável são as formas de viabilizar seus objetivos por meio do controle da economia, da autoridade, do gênero, da subjetividade, da sexualidade, dos saberes, da cultura, da natureza e seus recursos. No fim da segunda década do século XXI é possível perceber que o colonialismo não se findou; apenas mudou de roupagem (SANTOS, 2018).

No caso da escola como instituição responsável para prover educação, a maquiagem para encobrir processos excludentes é acobertada pelo sistema nacional e internacional que orienta uma educação para todos, mas que contempla apenas parte do “todos”. Em meio a tantas políticas maiores para o acesso à escola (não à educação), o diagnóstico como dispositivo do biopoder, ainda fala mais alto e tem força de convencimento sobre o gestor/professor acerca da determinação de quem é ou como se desenvolverá o aluno a partir do cognome que lhe foi imputado socialmente. O ensino ainda se configura como linear e homogêneo, moldando-se à colonização da hegemonia. Os exercícios repetitivos do “para casa” reforçam à família que o aluno “não dá conta” de reproduzir o que já foi feito em sala de aula. A avaliação uniforme e inflexível sentencia o rumo do subordinado, ela desloca o aluno para o lado de lá da linha abissal. Entre mocinhos e bandidos, os que estão do lado de cá da linha, ‘normalmente’ serão justificados e absolvidos pelas políticas maiores que escracham os ímpares dentro do sistema excludente. E, no compasso, legitimando e naturalizando os problemas sociais e as respostas às perguntas que sequer fizemos, vamos nos acostumando com o que não deveríamos nos aclimar.

Na congruência sistêmica do pensamento abissal nem a escola e nem a universidade são para todos. Numa conversa fiada que mascara a perversidade dos que dominam, o discurso é que um lugar “especial” deve ser fator de ponderação a ser ofertado para “anjos”. Pela comoção e ingenuidade, os menos avisados são desviados de seus olhares e caem nas armadilhas do nexo abissal, caminhando por si mesmos, sem resistência, para ao lado de lá da linha, em analogia, onde o que é sobrenatural não é visto com olhos humanos. Em outras palavras: pessoas com autismo, síndrome de Down, paralisia cerebral ou qualquer outra singularidade, não são anjos especiais, mas sim, pessoas com direitos sociais emanados de movimentos de luta por direitos e liberdades para todos. A especialidade é engenhada pela fragmentação que desconsidera o Ser humano, restringindo-o à particularização pela diferença que esteia o agrupamento de divergentes à referência de normalidade. Dessa forma, já não é Marielle ou Luiz, mas sim o autista, o down, o incapaz, o anjo - o diferente.

De forma similar, o mesmo sucede com a discriminação do pobre, do negro, da mulher, do homoafetivo, do indígena, do migrante: não há lugares e nem realidades para as minorias sociais pertencerem à roda dominante. À margem do território é o lugar destinado aos importunos, porém úteis aos interesses da roda. Esses são ajuntados no grupo particularizado do discurso ultraliberal: “vai para universidade quem pode pagar”. Assim, naturalizando os problemas sociais pelas condições e processos de acesso à educação superior, sem levar em conta as desvantagens sociais de milhares de indivíduos acalcados pelo sistema econômico obcecado pela obtenção de lucro e acumulação de riquezas, de modo que colonizar, escravizar e subjugar o outro se torna hábito comum e inquestionável ao senhor feudal com apoio legitimado pelos poderes jurídico, político e econômico, por ele, monopolizados.

Para além da periferia da margem, só restam as profundezas do abismo da exclusão, onde os radicalmente esquecidos e invisíveis se encontram. A bússola sempre aponta para o Norte territorial como para o epistêmico. Semelhantemente são as políticas maiores que fundamentam e sustentam toda uma sociedade de cunho patriarcal, colonialista e capitalista.

Apesar dos movimentos sociais de luta pela garantia e acesso à educação, os acontecimentos históricos e as políticas criadas, rodam e deslocam os que se encontram em desvantagem social e histórica para territórios de exclusão e os concentram para lá da linha abissal. A exemplo, os filhos de refugiados somam cerca de 75 milhões de crianças presas sob conflitos pelo planeta. É uma geração inteira sem acesso à educação (ONU, 2019). Pelas políticas maiores, justificam os carimbos em seus passaportes nos postos de controle firmados nas fronteiras territoriais. Sem condições de exercerem cidadania nos territórios de onde são naturais, buscam serem aceitas e acolhidas em territórios estrangeiros. Pelas diferenças étnico-raciais e culturais são discriminadas e por suas diferenças, firmam-lhes uma identidade fixa de forasteiro. Embora cruzem a fronteira territorial de jurisdição e ali acampem por permissão legal, um sem-número delas vive a contradição do arcabouço regulamentador que não lhes concede o direito de serem matriculadas em uma escola e viver com dignidade junto à família. Na ilha grega de Lesbos, por exemplo, a violência implica em “destruição física, material, cultural e humana” onde a linha abissal é tão aterrorizante e inacessível que até crianças se lançam ao suicídio (SANTOS, 2007, p. 75; NYE, 2018). Embora a Grécia seja considerada o berço da democracia, permanece em pleno século XXI, produzindo mecanismos de exclusões para mulheres, estrangeiros, escravizados e crianças, tal como em seus primórdios, e sem uma roupagem muito diferente.

O policiamento do colonizador sobre os movimentos sociais de inclusão sempre (re)torna com fardagens diversas que se (re)estabelecem para discriminar e excluir o concebido como desigual. Esse difícil caminhar contra a marcha imperadora, suscita um sentimento de estancamento e retrocesso à educação em uma perspectiva inclusiva e à sociedade como possibilidade democrática.

O colonizador trabalha para capsular o colonizado em uma identidade fixa e estável. Não admite que o subalterno se mova para onde queira ou da forma que anele conseguir. Aprisioná-lo e mantê-lo em uma identidade fixa e no reservatório que melhor lhe convém, é modus operandi de disciplina e controle biopolítico. E, como forma de manipular e controlar a massa popular, usa de recursos midiáticos e sistemas de informação diversos para impor seus regimes de verdade a partir da produção de imagens que representam o que querem comunicar. Deste modo, plantam ideias absolutistas que estrangeiros são mal-intencionados, que deficientes são improdutivos, que indígenas são incivilizados, que mulheres são propriedades, que pobres não devem procriar, que a escravidão trouxe benefícios, que a violência se combate com mais violência.

Estas imagens com suas respectivas (in)formações, adentram o pensamento daquele que não é forçado a pensar e se expande de tal maneira que insensatezes se tornam referência de modos de ser, de estar no mundo, com o mundo e com os outros. Um modo de ser regido pelo princípio da discriminação pela diferença; um modo de estar no mundo que ignora as realidades dos outros, onde o ego e o narcisismo orientam e a indiferença compele. Contudo, vale dizer que a imagem nunca é a realidade. A imagem não pode ser representativa de universalidades construídas socialmente. A imagem é sempre uma distorção da realidade contextual e social (ORRÚ, 2020).

Dentro da racionalidade do pensamento abissal, a diferença incomoda e sua neutralização é meta secular de colonizadores. Evitar e paralisar ações conjuntas de pessoas que se encontram pelas bifurcações construídas pelos movimentos sociais, é crucial aos que dominam rotas em territórios de apropriação. Isto porque o indivíduo sozinho não tem potência de força contrária ao sistema opressor e excludente. Logo, resistir se torna ainda mais improvável. No entanto, quando o indivíduo se torna sujeito em movimento na coletividade e por meio das vivências em coletividade, ele vive, aprende e constrói alternativas para permanecer existindo, porém, junto com os outros e não no resguardo desassistido e desacompanhado do individualismo. Entretanto, não é o fato de ser um indivíduo amontoado com muitos outros indivíduos que transforma uma situação desfavorável no contexto social para uma circunstância socialmente propícia, onde direitos sociais e liberdades são primaciais. O que transforma a sociedade é a ação conjunta de vários sujeitos cônscios acerca da força coletiva e da potência dessa força para (re)existir, resistir e produzir linhas de fuga que possibilitem sabotar e contornar o sistema, de maneira que juntos e unidos, os oprimidos possam se fortalecer e re-inventar rotas alternativas que os conduzam à emancipação social contígua. Não obstante, claro está que:

Não há emancipação social; há emancipações sociais unidas (porque diferentes) por uma aspiração que uma vez resumi assim: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. [...]. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades (SANTOS, 2010; 2003, p. 56).

No ciclo do pensamento abissal, parece complexo resgatar nossas origens que foram dispersas e extingues pelo colonizador. A cultura excludente da ocupação e da violência se apropriaram de nossa vida, de nosso modo de existir, de ser e estar no mundo, com o mundo e com os outros. Aprendemos que para se ter um lugar ao sol, é preciso competir, afastar o outro para que não nos tome esse lugar almejado e nos faça sombra. Assimilamos a ideia de que a vida é difícil e que por isso, cada um que dê conta de seus próprios problemas. Criamos muralhas visíveis e invisíveis para separar indivíduos. Selecionamos indivíduos e identidades e os transformamos em dados estatísticos. A máxima “cada um por si e Deus por todos” evidencia que a noção de pessoa é sufocada pela redução do humano a um indivíduo qualquer da sociedade. A intolerância e a tolerância quase que se dão as mãos na violência contra o outro, pois suportar o que se mostra muito diferente de nós e daquilo que pensamos, mostra-se insuportável nas relações sociais. Na era pós-verdade, as (in)verdades são aquelas que mais convém e convencem o indivíduo, enquanto o pensamento dos outros já não tem mais nenhuma importância. Triunfa o individualismo e o coletivo comum, porém, a coletividade enquanto modo de existir, re-existir e resistir, vive a emergência de se re-inventar (ORRÚ, 2020). É preciso (re)conhecer a presença e a persistência do pensamento abissal em nós e no mundo que nos rodeia para seguirmos além dele e construirmos uma outra herança imaterial às futuras gerações.

Todavia, apesar da complexidade e da dimensão do pensamento abissal e da herança do colonialismo brutal estendido em nossa sociedade contemporânea, mover-se na construção de um pensamento distinto que suplante as rudezas contra os direitos humanos e sociais, sempre será possível - mesmo que possa ser profundamente aflitivo. O (re)torno e o (re)encontro “dos outros”, das Vozes outrora silenciadas, dos corpos abatidos, dos seres oprimidos e excluídos, é contestação aos atores das práticas nefastas que não os tornou superiores ou vencedores, mas sim, des-humanos, nada menos que bestas-feras. Na coletividade e pelas vivências de sobrevivência aos mecanismos de exclusão, os oprimidos/excluídos se rebelam às determinações coloniais.

Em metáfora epistemológica, o Sul é a subversão dos oprimidos e excluídos a partir de suas experiências e modos alternativos de responder ao paradigma hegemônico. O Sul compõe esse projeto uma vez que interrompe com o projeto moderno da epistemologia do Norte e propõe a demanda de um (re)pensar e (re)construir de saberes. O Sul é insurreição à hegemonia. Neste movimento contra hegemônico, encontra-se o conceito do pensamento pós-abissal:

À luz do que foi dito anteriormente, ficamos com a ideia de que, a menos que se defronte com uma resistência activa, o pensamento abissal continuará a auto reproduzir-se, por mais excludentes que sejam as práticas que origina. Assim, a resistência política deve ter como postulado a resistência epistemológica. Como foi dito inicialmente, não existe justiça social global sem justiça cognitiva global. Isto significa que a tarefa crítica que se avizinha não pode ficar limitada à geração de alternativas. Ela requer, de facto, um pensamento alternativo de alternativas. É preciso um novo pensamento, um pensamento pós-abissal (SANTOS; MENESES, 2009, p. 41).

Na lógica do pensamento abissal e de sua herança cultural, os direitos humanos universais também acabam por trazerem consigo o ranço do pensamento colonialista europeu, de forma que as linhas abissais ainda prevalecem à efetivação plena dos direitos. Essas linhas são representadas principalmente pelo direito e o conhecimento. O direito estatal que estabelece o que é legal e ilegal e o conhecimento que legitima a ciência moderna para sentenciar o que é falso e verdadeiro. Tanto um como o outro, desconsidera outras formas de produção de direito e de conhecimento.

A luta combatente ao pensamento abissal só é possível a partir do pensamento pós-abissal por meio de uma racionalidade “não-diretiva” que rompe com o ciclo abissal que promove a manutenção da hegemonia e a perpetuação de ações excludentes que negam, ameaçam, discriminam, apartam e segregam outros pelas suas diferenças. Esse processo de exclusão é de tal maneira profundo que esses outros têm sua identidade aniquilada, tornando-se invisíveis perante a sociedade dominante. No entanto, o movimento do pensamento pós-abissal se mostra potente em sua força e capacidade para resgatar para o lado de cá da linha abissal, tudo o que outrora fora lançado no abismo social, de modo que as monoculturas sejam deslocadas por ecologias. Tal pensamento possibilita “crear otra manera de entender, otra manera de articular conocimientos, prácticas, acciones colectivas, de articular sujetos colectivos” (SANTOS, 2006, p. 32).

Considerando as contribuições de Santos, é possível criar outras maneiras de entendimento, de articulação de conhecimentos, de ações em coletividade, principalmente, a partir do (re)conhecimento das diferenças e de sua aceitação de maneira cônscia e não pela sutilidade do modismo ou tendência social que mascaram e velam o espírito excludente em nós e entre nós. Jargões como: “ser diferente é normal”, “somos todos iguais”, “Brasil um país de todos”, “educação de qualidade para todos” e similares, sublimam a dimensão abismal de nossas (des)igualdades em nossa sociedade, nos espaços escolares, bem como na forma de ofertar educação. Essa anunciação não enuncia, fundamentalmente, o rompimento com o pensamento abissal colonialista. Mas espelha o ranço da indiferença com relação aos outros oprimidos e excluídos que não existem para a roda dominante, os que se encontram em desvantagem histórica e sobrevivem à invisibilidade social.

A Diferença em si mesma

O sentido da diferença que encarrilha a concepção deste ensaio se estriba no que ainda necessita ser amplamente dialogado junto à sociedade contemporânea. A diferença não é sinônimo do diverso que se encontra numa perspectiva estática daquilo que já se encontra e que está posto na natureza e na cultura. O diverso comunga com seu congênere. Não obstante, a diferença se difere e se multiplica em sua própria diferença. Ela não está fixa em identidades e não é imutável. Dessarte, a diferença está em movimento. Logo, Gilles Deleuze, expoente da corrente francesa pós-estruturalista com destaque à Filosofia da Diferença, propõe, acerca do sentido da diferença:

Queremos pensar a diferença em si mesma e a relação do diferente com o diferente, independentemente das formas da representação que as conduzem ao mesmo e as fazem passar pelo negativo. [...]. É na hybris que cada um encontra o ser que o faz retornar, como também a espécie de anarquia coroada, a hierarquia revertida, que, para assegurar a seleção da diferença, começa por subordinar o idêntico ao diferente (DELEUZE, 1988, p. 8, 49).

O aporte do autor nos desperta à ruptura com o pensamento tradicional e conservador que é possível fixar identidades e cravar modelos de existência, de ensino, de aprendizagem no mundo, por consequência, na escola e na universidade. Quando as pessoas são percebidas a partir de identidades fixas por uma determinada característica acentuada em seu modo de ser ou estar no mundo, elas são também reduzidas àquilo que qualifica a identidade. Sem embargo, somos constituídos de múltiplas diferenças que nos permitem o movimento de aproximação com distintas identidades. Sobretudo humanos, somos seres que também se encontram em diferentes locais de fala porque outras identidades nos somam, mas nunca nos fazem igual a esse diverso com o qual nos identificamos. Neste prisma, a (re)produção de pessoas nunca será possível, pois pessoas não se repetem. Pessoas são seres únicos, singulares, originais.

Buscamos o conceito da diferença enquanto esta não se deixa reduzir ao grau, nem à intensidade, nem à alteridade, nem à contradição: uma tal diferença é vital, mesmo que seu conceito não seja propriamente biológico. A vida é o processo da diferença. [...] Assim, a palavra “diferença” designa, ao mesmo tempo, o particular que é o novo que se faz (DELEUZE, 2004, p. 44, 51).

Pensar a vida como processo da diferença é pensar a diferença em si mesma e pensar a relação do diferente com o diferente no entendimento que somos todos, igualmente, diferentes. Sendo nós, todos diferentes, não é razoável insistir na produção, manutenção e perpetuação de um sistema hegemônico e homogêneo de ensino. Não pode ser aplaudível nivelar pessoas por testes psicométricos ou por índices nacionais e internacionais de avaliações correferidas que tentam medir o incomensurável. Não é aceitável circundar pessoas a classes sociais e condicionar o acesso, o ingresso, a permanência e a caminhada egressa do aprendiz pela educação, aos grilhões condicionais do capital, pois educação e formação profissional para o mundo do trabalho, é (ou deveria ser) direito de todos e não apenas dos mais abastados. Não se pode permitir que o embate preconceituoso e discriminador pautado na particularização de gênero, sexo e religião seja termômetro para opressão e estrangulamento pelos punhos do patriarcado cultural, destinando milhares de não-machos-brancos à periferia do trabalho braçal e à ignorância pela privação de educação e aquisição do conhecimento científico.

A diferença constitui a espécie humana e nas relações sociais e culturais da humanidade, muitas outras diferenças e identidades são, a todo tempo, elaboradas. Por esta vereda se enjeita uma concepção essencialista do ser. Sem dúvida, o encontro com a identidade social dos indivíduos e seu reconhecimento é um necessário movimento tático de luta por direitos sociais, fortalecimento e empoderamento social das minorias. Não menos importante, há que se aperceber-se, também, que existe uma maquinaria de produção sociocultural de identidades e diferenças para a legitimação de políticas excludentes, alimentadoras da perpetuação das muitas fardagens do ato de colonizar e patriarcalizar para capitalizar. Atinar-se às muitas máscaras dos que dominam, possibilita ao oprimido em luta, não (re)produzir opressões e repressões aos outros que também se encontram nas trincheiras, mas, sim, criar linhas de fuga para lutar, resistir e re-existir em coletividade ao opressor-dominador. Avantajada e dilatada ameaça aos divergentes, ininterruptamente, é espelhada onde menos se procura: nas entrelinhas de políticas públicas de inclusão que para serem implementadas, copiosas vezes, flertam com as perversidades liberais.

Deleuze (1988) propõe um pensamento discordante, onde a representação é entendida como coisa estática, sem movimento, condenatória e repulsiva de diferenças constitutivas do Ser que sempre estão em deslocamento. Nesta lente, a diferença se afirma e se encontra na própria diferença que sempre se diferencia. O eterno (re)torno da diferença é que se repete e, por isso, ofusca a representação de identidades fixas. Essa presença e movimento permanente da diferença, também movimenta o mundo e as relações que nele ocorrem. “Tudo é multiplicidade, mesmo o uno, mesmo o múltiplo” (DELEUZE, 1988, p. 174). Constrange-nos a pensar que sendo a diferença uma qualidade de todo Ser humano, nossas formas relacionais também se diferem entre cada um de nós. Diferindo nossas relações dialógicas, por conseguinte, as relações entre os processos interdependentes de ensinar e aprender, também se dissentem e necessitam ser compreendidas em um contexto sócio-educacional onde a diferença é linha de partida como de chegada. Se há algo congênere, este é o direito à educação e à inclusão social em sua plenitude, sem maquiagens liberalistas. Isto posto, há que se enfrentar a iteração do conservadorismo hegemônico e homogêneo das instituições e sistemas de ensino e se (re)inventar as maneiras de ofertar e promover a educação pois esta, constitui-se pública em sua condição nata, uma vez que é a herança de todos os humanos desde o princípio, não devendo ser encadeada por usurpadores e déspotas - uma educação libertadora em que a diferença e as liberdades são valores humanos - disto se trata.

Com vistas ao paradigma da inclusão e a diferença como preceito, acolher as demandas das minorias menos favorecidas não se alude a deixá-los frequentar um mesmo espaço junto àqueles considerados bem-fadados. Isto não é inclusão. Ora, “para que uma ilha deixe de ser deserta não basta, com efeito, que ela seja habitada” (DELEUZE, 2004, p. 7). Na mesma intensidade, para que uma instituição de ensino deixe de ser excludente, ela precisa gerar vida e modos democráticos e inclusivos de ocupação e habitação para que todos possam existir, ser, estar neste espaço e com todos os outros neste universo que, por sua capacidade de respeitar, aceitar as diferenças e humanizar-se, transbordará para além dos muros institucionais e fecundará uma comunidade, uma sociedade cada vez menos excludente, portanto, cada vez mais inclusiva (ORRÚ, 2017). Neste sentido, para que esta Ilha seja habitada, novos métodos de compartilhar saberes, novas tecnologias facilitadoras do acesso ao conhecimento, novas veredas que desloquem os velhos currículos de formação, novas linguagens de conversação, leitura e interpretação de mundo, novos processos de prezar aprendizados que substituam os instrumentos rígidos de avaliação, novas possibilidades de aprendizagens precisam ser (re)inventadas para que a materialização do paradigma da inclusão alimente toda uma sociedade maltratada pelo pensamento colonizador, patriarcal e capitalista que violenta e se apropria dos espaços formais de ensino.

Captar e vigiar os sentidos da diferença, tomar posse de seu conceito como constitutiva do Ser humano e des-acolher a ideia do encaixe fixo em categorizações pelo que nos torna diferentes, é des-locar-se para um afastamento perduravelmente contrário à colonização do pensamento que fixa os modos de ser e estar no mundo, com o mundo e com os outros, bem como na forma de perceber e reagir aos acontecimentos desse mundo. Criar linhas de fuga para se escapar das armadilhas coloniais, patriarcais e capitais arquitetadas pelas comoções político-discursivas sobre representações sociais de igualdade e diferença, é desafio para o florescimento de novas possibilidades de vida e convívio em comunidade.

Ser nos Entre-lugares

Homi Bhabha, teórico pós-colonialista, destaca o plano conceitual de entre-lugares e o hibridismo, dentre outras categorias, no espaço em que se situa em contraposição à ideia de identificações e diferenças fixas. Sendo indiano e britânico, o próprio autor nos traz, por meio de sua obra, que também é sua marca histórica, o conceito de se constituir um sujeito híbrido nos entre-lugares do espaço cultural.

Se hibridismo é heresia, blasfemar é sonhar. Sonhar não com a passado ou o presente, e nem com a presente contínuo; não é o sonho nostálgico da tradição nem o sonho utópico do progresso moderno; é o sonho da tradução, como sur-vivre, como "sobrevivência", como Derrida traduz o "tempo" do conceito benjaminiano da sobrevida da tradução, o ato de viver nas fronteiras. Rushdie traduz isto como o sonho de sobrevivência do migrante: um interstício iniciatório; uma condição de hibridismo que confere poder; uma emergência que transforma o "retorno" em reinscrição ou redescrição; uma iteração que não e tardia, mas irônica e insurgente. Isto porque a sobrevivência do migrante depende, como afirma Rushdie, da descoberta de "como o novo entra no mundo". A questão central e a elaboração de ligações através dos elementos instáveis da literatura e da vida - o perigoso encontro marcado com o "intraduzível" - em vez de se chegar a nomes pré-fabricados (BHABHA, 1998, p. 311).

Em meio à importância que o pensamento de Frantz Fanon e a corrente teórica pós-estruturalista se mostram presentes em sua obra, como também o é para Santos e Deleuze, seu entendimento sobre a noção de diferença também se apropria desses pressupostos teóricos.

À medida que uma série de grupos cultural e racialmente marginalizados assume prontamente a máscara do negro, ou a posição da minoria, não para negar sua diversidade, mas para, com audácia, anunciar o importante artifício da identidade cultural e de sua diferença, a obra de Fanon torna-se imprescindível. A medida que grupos políticos de origens diversas se recusam a homogeneizar sua opressão, mas fazem dela causa comum, uma imagem pública da identidade da alteridade, a obra de Fanon torna-se imprescindível - imprescindível para nos lembrar daquele embate crucial entre máscara e identidade, imagem e identificação, do qual vem a tensão duradoura de nossa liberdade e a impressão duradoura de nos mesmos como outros (BHABHA, 1998, p. 102).

A despeito da noção de diferença, Bhabha afirma:

A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lapide fixa da tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O "direito" de se expressar a partir da periferia do poder e do privilegio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão "na minoria". O reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação (BHABHA, 1998, p. 20-21).

Em fluxo com o pensamento de Santos e Deleuze, mexe-nos e nos revira às (in)certezas da estrutura regulada do pensamento acerca da lógica binária, daquilo que é entendido como homo e desigual, da representação social por meio da imagem produzida pela cultura, do sentido de identidade fixa. Chama à atenção à cultura imperativa do colonialismo que (ainda) se faz presente entre e dentro de nós, bem como sobre o poder dominador que recobre a sociedade atual, no aqui agora, resultado do movimento colonialista que não desapareceu na temporalidade do “pós”: “a crítica pós-colonial dá testemunho desses países e comunidades - no norte e no sul, urbanos e rurais - constituídos, se me permitem forjar a expressão, "[...] de outro modo que não a modernidade" (BHABHA, 1998, p. 23, 26).

A questão da solidariedade social demanda encontros entre pessoas em suas culturas e não apenas encontros entre “diferentes” produzidos pela tradição homogeneizadora e cultura dominante que marginaliza e alonga distanciamentos e desvantagens sociais.

O acesso ao poder político e o crescimento da causa multiculturalista vem da colocação de questões de solidariedade e comunidade em uma perspectiva intersticial. [...] Agora não há razão para crer que tais marcas de diferentes não possam inscrever uma "historia" do povo ou tornar-se os lugares de reunião da solidariedade política. [...]. Este significa o destino da cultura como um lugar não simplesmente de subversão e transgressão, mas que prefigura uma espécie de solidariedade entre etnias que confluem para o ponto de encontro da história colonial (BHABHA, 1998, p. 21, 222, 317).

Para haver encontros, é necessário também haver quem produza esse espaço de negociações, de interposições, para que seja estabelecido o local de articulações de diferenças culturais extremamente complexas. Problematizar a complexidade dos problemas, dos processos, dos cenários sociais, é caminho para a construção de possíveis negociações e respostas a partir dos próprios problemas, sem precipitações, imediatismos ou importações de soluções que não nos servem. De maneira que nos entre-lugares se constituam os sujeitos e as respectivas estratégias de atuação ou aquisição de poder em toda pluralidade e multiplicidade de diferença. É a tensa fronteira onde negociações e atuações são decididas, é neste “momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão”, é onde a tradição cultural colonialista não fixa mais identidades e diferenças, pois nos entre-lugares emanam a constituição de uma “negociação complexa, em andamento, que procura autoridade nos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica” (BHABHA, 1998, p. 19, 21).

O entre-lugar é, portanto, a nascente emergente do discurso da minoria. É de onde se depreende que o outro, sempre narrado pela supremacia, deve narrar a si mesmo, recontar os acontecimentos que até então foram contados na história e arrastados pela cultura sob uma única lente monócula onde se estabilizam as relações de poder e os mecanismos de marginalização e exclusão social. Neste sentido, é preciso olhar para trás com outros olhos e questionar as bases de naturalização do modus operandi dos mecanismos de atravessamento do direito à diferença, sendo diferente. Dispositivos e engrenagens que funcionam muito bem a partir das bases entrelaçadas do trio - patriarcalismo, colonialismo e capitalismo - que, em seus ismos de aniquilação, já sufocam e silenciam aqueles que subestimam, que desprezam, que inferiorizam, que exploram, que escravizam, que usurpam, que anseiam dominar e controlar para seus próprios interesses.

O discurso da minoria situa o ato de emergência no entre-lugar antagonístico entre a imagem e o signo, o cumulativo e o adjunto, a presença e a substituição. Ele contesta genealogias de "origem" que levam a reivindicações de supremacia cultural e prioridade histórica. O discurso de minoria reconhece o status da cultura nacional - e o povo - como o espaço contencioso, performativo, da perplexidade dos vivos em meio as representações pedagógicas da plenitude da vida (BHABHA, 1998, p. 221-222).

No que diz respeito às conexões do recorte teórico neste ensaio, a inclusão como ato é esse movimento em trânsito que possibilita a constituição de sujeitos empoderados que contestam as imposições compulsórias dos colonizadores dos seres, dos corpos, do pensamento e das diferenças por meio de suas políticas maiores que se traduzem em mecanismos de exclusão produzidos na história e perpetuados pela tradição da cultura patriarcal, colonialista e capitalista. No acontecimento e no movimento da inclusão, outros seres são constituídos a partir do processo cônscio que emerge do protagonismo social, fruto dos encontros e das negociações articuladas na e pela resistência dos que se (re)conhecem como sujeitos oprimidos e excluídos à margem da sociedade dominante, portanto, designados a lugares desviados, insulados, recuados e desprivilegiados do corpo social (ORRÚ, 2017). Lugares desamáveis e hostis como os corredores dos hospitais onde ficam os pobres moribundos, o canto da sala de aula dos maus alunos, as colônias manicomiais para os perturbados, os guetos para a escória étnica, o exílio para os subversivos, a sala de tortura para os transgressores, os subempregos para os descendentes de escravizados, o lugar no “banco calado” das igrejas para as mulheres, a cavidade da submissão às esposas obedientes, o não-lugar aos transgêneros... São territórios inóspitos onde a exclusão e a invisibilidade predominam e cuja régua de corte é a diferença que destoa do padrão social estabelecido.

Há que se ressaltar que a solidariedade social é movimento basilar e disparador de encontros para o processo cônscio de empoderamento para o acontecimento da inclusão. Processo cônscio de empoderamento porque não é o outro que me empodera, mas eu me empodero a partir das vivências pessoais e de meu movimento próprio de me constituir sujeito protagonista, autônomo e emancipado. Todavia, esse processo complexo se cunha junto à coletividade e na própria coletividade que (re)úne pessoas que confluem, ou seja, que fluem umas com as outras, em um ponto de encontro. Um ponto de encontro que não se configura local de repouso ou habitação fixa, mas um terreno social que se desloca e que se acolhe em entre-lugares andantes, em espaços de luta e disputa de territórios antes colonizados. Esse locus privilegiado da produção cultural contém a fronteira como um espaço de entre-lugares, uma vez que não se coloca como um lugar em si mesma. É nesse espaço que emergem as enunciações não polarizadas e não representativas de identidades fixas, porém, transbordantes da presença intercultural e marcadas pela diferença e pelo hibridismo na constituição dos sujeitos. Portanto, o locus de enunciação é o terceiro espaço: é este o local da cultura que possibilita a constituição de novos signos de identidade, criação e contestação aos problemas sociais que necessitam ser problematizados em oposição a serem simplificados à banalização em forma de respostas absolutistas e decorrente naturalização. É neste terceiro espaço que aquelas e aqueles que se protagonizam como revisionistas da história contada, evocam seu lugar de fala ao mesmo tempo que se encontram com outras e outros que se amalgamam como coadjuvantes para uma re-significação dos significados postos na sociedade. É na ação de incluir o outro que eu também me incluo com ele e juntos nos mobilizamos em um mesmo espaço fronteiriço que se prolonga buscante da igualdade de direitos, de outros direitos ainda não nascidos, da equidade de oportunidades, da educação libertária, da justiça histórica e social.

Na oscilação entre o apocalipse e o caos, vemos a emergência de uma ansiedade associada com a visão narcísica e seu espaço bidimensional. E uma ansiedade que não diminuirá porque o terceiro espaço vazio, o outro espaço da representação simbólica, ao mesmo tempo barreira e bandeira da diferença, está fechado a posição paranóica do poder. No discurso colonial, esse espaço do outro está sempre ocupado por uma idée fixe: déspota, pagão, bárbaro, caos, violência. [...] A temporalidade não-sincrônica das culturas nacional e global abre um espaço cultural - um terceiro espaço - onde a negociação das diferenças incomensuráveis cria uma tensão peculiar às existências fronteiriças (BHABHA, 1998, p. 149, 300).

Em cinesia de empossamento deste senso, pensamos que o acontecimento da inclusão e seu fortalecimento pode convir e suceder com novos sujeitos socioculturais. Sujeitos aprendentes e transformadores, recursivamente, de si mesmos e do mundo que integram. Sujeitos singulares, múltiplos e plurais que compreendem que a diferença é constitutiva do Ser humano, portanto, é fundamento da humanidade. A ação cultural que busca estratégias novas, transformações sociais e culturais nos territórios colonizados, é decursiva de um modo de pensar distinto daquele aprisionado pelo dominador. Pelo movimento da inclusão, os sujeitos se aproximam de si mesmos e de suas comunidades e, nesse movimento tático, porém, não determinado ou previsível, (re)únem e potencializam forças para a criação e (re)criação de articulações sociais promissoras da permanente constituição de seus modos de ser e estar no mundo, com o mundo e com os outros enquanto sujeitos protagonistas de sua própria história em coletividade.

O acontecimento da inclusão é o terceiro espaço. É o entre-lugar onde se encontra o contraditório e o ambivalente para a produção da enunciação que desequilibra a estabilidade dos significados e representações simbólicas instituídas na história e pela cultura como universais e imutáveis. Neste espaço se dá a nascente de identidades híbridas, onde a diferença é natureza legítima de Ser humano e não unidade de particularização, tipificação, separação e grupamento social pela desigualdade. E, não sendo vão iterar: o entendimento da diferença como própria da natureza do Ser humano, não se faz motivo para encaixes implicantes em uma teoria das essências.

A descolonização do pensamento e o paradigma da inclusão

Em vias à (re)valorização dos conhecimentos e das práxis insurgentes àquelas que se encontram postas em e pela supremacia da alta-roda dominante mundial, abrigamo-nos junto aos elementos que constituem o núcleo duro da inclusão e a ‘inclusão menor’ como ação de resistência e, ao mesmo tempo, constituinte de um pensamento para além das atrocidades colonialistas, neoliberais, patriarcais e proficuamente mobilizadoras de processos de des-humanização da contemporaneidade.

O núcleo duro da inclusão prima e (re)conhece a diferença como sendo própria da espécie humana e por essa razão, corrobora no entendimento que todos os espaços de aprendizagem se configurem plurais em todos os sentidos, sem restrições. Preza pela construção dos processos de ensinar e de aprender a partir das relações dialógicas e democráticas de seus próprios protagonistas, rejeitando todo absolutismo e ordenação hierárquica de saberes. Demanda a combinação e a mistura de elementos em prol de um aprender a pensar por si mesmo, a conhecer domínios diversos que extrapolam a sala de aula, a conviver com as diferenças na diferença, a ser resiliente. Em seu processo de permanente (re)invenção pelo respeito às demandas dos aprendizes enquanto protagonistas de seu aprender, a inclusão potencializa a aprendizagem como um acontecimento não-diretivo à previsibilidade, porém, considera o imprevisto como linha de fuga para a criação do novo, do pensamento singular que não se amolda ao ensino colonizado pelas práticas hegemônicas (ORRÚ, 2017).

A inclusão em seus pressupostos se aproxima dos fundamentos do pensamento pós-abissal (SANTOS, 2007), demandando uma nova maneira de pensar, fazer, promover e ofertar a educação para além do conservadorismo conteudista e vertical. Por sua natureza revolucionária, a inclusão em seu núcleo duro, não se alinha a métodos homogêneos e receituários sobre como ensinar e teses exclusivas e generalistas sobre como se aprende, tampouco contemporiza adestramentos comportamentais para nivelar pessoas ao padrão social hegemônico. A inclusão transgride os métodos pedagógicos de controle e mensuração do processo de aprendizagem. Sua insurgência se aproxima da Filosofia da Diferença (DELEUZE, 1988), pois concebe a diferença como valor humano e a atrela ao entendimento pedagógico de que a aprendizagem acontece de maneira singular com cada pessoa, e o que ainda não está aprendido é simplesmente um devir a ser.

A inclusão, fundamentalmente, abeira-se também à dimensão dos entre-lugares (BHABHA, 1998) à medida que ela é um acontecer de gentes híbridas, sobreviventes aos diversos e distintos dispositivos de exclusão abissal. Sobretudo, daqueles que sobrevivem a um “outro” que traz por herança cultural, a austeridade colonial. Ela é mobilização de superviventes que lutam contra a maré bravia dos mecanismos excludentes, ao que é inóspito, ao que é repulsivo, ao que lhes atormenta usurpar a vida para escravizá-la em seus interesses ou descartá-la pelos seus desinteresses. A inclusão, portanto, é para seus protagonistas e coadjuvantes, uma experiência vital de vida, de autofortalecimento, de capital relevância para a transformação social (ORRÚ, 2017).

Santos (2007) ao afirmar que somente um pensamento pós-abissal pode romper com o pensamento abissal e sua produção massiva de desigualdades sociais, contribui para uma percepção notória que o paradigma da inclusão insurge à improbidade das brechas legislativas do direito, bem como das ambivalências das ciências do biopoder que ora legitima direitos, ora empurra o inadequado à lei e ao posto verdadeiro à margem da exclusão. No entendimento opositivo da inclusão, não existe espaço para meia inclusão. Não há espaço para o menos pior ou para o menos mal na inclusão. Por essa razão, ela é radical, plural, múltipla e singular, simultaneamente. Em si mesma, a inclusão é o ato e o espaço transformador.

Uma vez que os territórios estão colonizados pelo pensamento abissal e colonizador, a inclusão é ato potencialmente revolucionário e descolonizador. O aluno colonizado é aquele depreciado, que tem suas diferenças, suas singularidades, sua subjetividade, seu corpo, desconsiderados. Ele é apenas um número nos dados estatísticos do Estado que quantifica sua existência para seus interesses, mas que não o qualifica para lhe prover direitos por justiça social. Este aluno-colono é um elemento a mais dentro dos mecanismos de enriquecimento do capital e, nesta condição, ele é sucumbido em sua identidade, tornando-se invisível à sociedade em suas demandas e dignidade. Assim, ele é apartado do viver social para subsistir nas profundezas da exclusão e do esquecimento. Nas palavras de Frantz Fanon, influente pensador do século XX, enunciado por Santos (2007, 2009), Deleuze (2010) e Bhabha (1998),

A descolonização é o encontro de duas formas congenitamente antagonistas, que têm precisamente a sua origem nessa espécie de substantificação que a situação colonial excreta e alimenta. O primeiro confronto dessas forças se desenrolou sob o signo da violência, e sua coabitação - mais precisamente a exploração do colonizado pelo colono - prosseguiu graças às baionetas e aos canhões. O colono e o colonizado são velhos conhecidos. E, na verdade, o colono tem razão quando diz que “os” conhece. Foi o colono que fez e continua a fazer o colonizado. O colono tira a sua verdade, isto é, os seus bens, do sistema colonial (FANON, 2005, p. 52).

Não obstante, em estudo anterior a este ensaio, entendemos que a inclusão, enquanto paradigma, torna possível o acesso e a permanência de todas as pessoas em suas distintas fases da vida nos espaços de aprendizagem. Ela provoca a rebentação com o paradigma cartesiano de ensinar a todos da mesma maneira, pois reivindica considerar as singularidades no processo de aprendizagem a partir do problema da re-invenção de estratégias metodológicas que emergem a potência criadora junto aos aprendizes de modo a transgredir o que está posto conceitualmente, inclusive a descolonização do pensamento em prol da produção de saberes não hierarquizados (ORRÚ, 2017, p. 52). Desta maneira, entendendo a diferença e as liberdades de Ser e estar no mundo com o mundo e com os outros como valores humanos, só quem libertou-se a si mesmo dos grilhões do pensamento excludente e aniquilador das diferenças, pode avançar à genuína liberdade removendo as glosas dominantes de uma narrativa patriarcal e colonial, subservientes, mantenedoras e perpetuadoras do capitalismo.

Num entendimento que apesar dos pressupostos da inclusão permearem as políticas públicas e normativas do Estado, também são desconsiderados pelas próprias políticas maiores a partir dos interesses e desinteresses estatais das cisternas da economia e da particularização, tais pressupostos inclusivos apenas se materializam no espaço social quando emerge dos próprios oprimidos e excluídos uma força que os movimenta a (re)criarem seus modos de existir, de ser e de estar no mundo, com o mundo e com os outros. Neste sentido, o acontecimento de uma ‘inclusão menor’ se movimenta na (re)invenção da própria inclusão maior nos diversos espaços sociais, inclusive, dentro e em meio aos diversos espaços de aprendizagem. Ela não se atém ou detém à cisterna dos sistemas excludentes, mas se constitui nascente das relações e articulações sociais dialógicas e genuínas. A ‘inclusão menor’ é movimento descolonizador daqueles que se emaranham à procura da desconstrução de (in)verdades absolutas, do desnudar dos discursos manobrados por comoções, do desvelar de culturas mantenedoras de apartheids - daqueles que criam novas rotas e re-inventam seus modos de seguir resistindo aos projetos nefastos da tríade embrutecedora.

Emprestando o conceito de “menor” encontrado em “Kafka” (DELEUZE E GUATTARI, 2003), compreendemos que a ‘inclusão menor’ não é uma inclusão minguada, de menos-valia ou inferior. Mas “a inclusão que se faz todos os dias nos mais diversos e minúsculos espaços de aprendizagem, independente da lei maior, mas sim pela convicção de que seus pressupostos são como uma organização de crenças, um belief system, uma filosofia de vida que a minoria gera no território de uma política maior” (ORRÚ, 2017).

Na construção de um pensamento-ação pautado nos pressupostos do paradigma da inclusão e materializados pelos protagonistas e coadjuvantes por meio da ‘inclusão menor’, encontramos um possível diálogo entre o pensamento pós-abissal (SANTOS, 2007), a Filosofia da Diferença (DELEUZE, 1988) e o conceito de entre-lugares (BHABHA, 1998) que não se negam ao compromisso de sobrelevação dos elos de colonização e colonialidade. Embora os autores evidenciem distinções em suas bases e trilhos teóricos, os quais esse ensaio não se alvitra perscrutar, no que diz respeito à temática aqui proposta, a tríade se constitui de importantes estudiosos para uma discussão fértil e contributiva na observância da necessidade de se (re)inventar a inclusão, permanentemente, pois os acontecimentos sociais são movimentos que exigem de todos os protagonistas da inclusão, uma atualização que não vergue às novas roupagens coloniais. Nesta sensibilidade, configura-se uma ‘inclusão menor’:

Aquela que se faz presente para além do papel, para além do abstrato e do intelectual das políticas promulgadas, [...] que coexiste nas fronteiras, na linha divisória do enlace binário, excluídos/incluídos. [...] Ela não desqualifica alguém pela materialização de quadros sintomáticos. [...]. Para além de uma revolução, a inclusão menor cria condições para que transformações ocorram na sinuosidade da educação. [...]. Ela não pode ser categorizada e fixada ou compreendida como algo estático. Mas com radical inovador ela coexiste no campo molar e molecular e possibilita o aprender e o compartilhar saberes por meio de variadas formas de expressão, sempre considerando as singularidades dos sujeitos, a diferença na diferença em sua multiplicidade. Ela é um movimento sempre em atualização (ORRÚ, 2017, pp. 50- 54).

A ‘inclusão menor’ é potência materializada daqueles que decidem resistir e re-existir frente as estruturas de opressão e repressão que têm o claro propósito de silenciar e destruir as vontades e as possibilidades de se transformar, radicalmente, a sociedade atual, em uma sociedade revestida e preenchida por liberdades, equidade de oportunidades e justiça social. Ela é a veia pulsante que desestabiliza o fluxo normal da naturalização e banalização do mal no corpo social que se encontra enfermo. A ‘inclusão menor’ que se desprende do legalismo, muitas vezes, hipócrita e excludente, lateja denunciando a precariedade de nossa democracia colonizada e irradia indignação contrária aos que se prostram às paragens da omissão. Enquanto ação e espaço para linhas de fuga, ela é a própria hora dos que se plugam como protagonistas e coadjuvantes, desdobrando-se ao acolhimento dos outros que se encontram para lá da margem abissal - os sem poder - invisíveis sub-humanos.

A ‘inclusão menor’ como acontecimento que subiste e coexiste à inclusão legalista, fortalece-se na coletividade dos sujeitos resilientes às forças de seus opressores a partir dos pressupostos que constituem seu belief system e que tornam esse encontro possível. Um encontro que em si mesmo é a própria intersecção, é o entre-lugar, o terceiro espaço, a fronteira que não pode ser colonizada.

Considerações Finais

Na latência do paradigma da inclusão, importa-nos um entendimento cônscio acerca das consequências bárbaras de um sistema fixado no liberalismo selvagem do capital, na apreensão e violência do colonialismo, da colonialidade e na nocividade e bestialidade do patriarcado. Importa-nos essa ciência para não nos limitarmos ao desejo ingênuo da destruição do sistema ou transformação da sociedade apenas pelo braço forte empunhado por meio de um conjunto de aglomerados de gentes. A força bruta bem como a verborragia, não descolonizam e não transformam o mundo em um lugar melhor para todos viverem. Tampouco, essas mesmas ações, conseguem transformar a escola, local criado para educar gerações, em espaço democrático de educação. Para além da força, descolonizar nosso ser, é preciso!

Descolonizar nosso ser tem a ver com um processo de profundo pensar sobre nosso modo de ser, de estarmos nesse mundo e sobre como vivemos nesse mundo com as outras pessoas. Tem a ver com as coisas que valoramos e a razão pela qual nós as estimamos. Tem a ver com o reconhecimento do lugar de fala das Vozes protagonistas e suas próprias narrativas por meio da re-visitação do passado histórico. Tem a ver com a liberdade acadêmica para a expressão do espírito e do pensamento crítico. Tem a ver com a reconhecença de que mulheres filósofas e pensadores prógonos das outras civilizações foram esquecidos e massacrados pela própria academia que supervaloriza determinados conhecimentos e teoristas brancos-machos, em detrimento de outros saberes não-eurocêntricos compartilhados sem consagração clássica. Tem a ver com o escancaramento da admissão de que o racismo e o machismo são pilares da cultura de silenciamento do não-branco e do feminino. Tem a ver com afectos e perceptos que nos abraçam e que por eles nos deixamos abraçar. Tem a ver com aquilo que escolhemos nos importar, por que e para que nos importamos. Tem a ver com o que queremos e deixamos prevalecer no viver diário. Tem a ver com o que queremos que reverbere. Tem a ver com a re-invenção da inclusão nos espaços sociais, bem como escolares e acadêmicos desde a escuta e o reconhecimento das respectivas Vozes incluídas para novas transformações sociais e pedagógicas a partir de seus próprios pareceres pós anos de políticas públicas maiores e educação na perspectiva inclusiva, pois se não for assim, acabamos por colonizar a própria inclusão com os saberes, superlativamente, especialistas. Tem a ver com a re-invenção da inclusão e seus movimentos “menores” em espaços fronteiriços onde protagonistas e coadjuvantes se conectam na pluralidade e multiplicidade de suas diferenças.

Não se é possível romper à descolonização se mantivermos o espírito do colonizador escravagista vivendo em nosso corpo social de luta e resistência contra nossos próprios pares. Não é viável descolonizar se a diferença nos é repulsiva. Deixar as cisternas e rumar à nascente é (re)inventar outros modos de ser e de existir no mundo, com o mundo e com os outros. Para além do respeito, aceitar as diferenças é, realmente, uma deliberação das liberdades de Ser e tem a ver com a compreensão da diferença como valor humano que constitui a subjetividade de todo ser humano. A diferença não é apenas do outro, dos que sofrem a particularização e a tipificação dos mecanismos de exclusão presentes na sociedade, mas a diferença é de todos nós.

No processo de tomada da descolonização de nosso ser domesticado pelas práticas do pensamento abissal, faz-se necessário saber de que lado estamos, pois, a neutralidade também é vultosa munição dos opressores. Para descolonizar a nós mesmos, é preciso estar do lado dos oprimidos e excluídos para descortinarmos de nossos olhos as manobras e as consequências abissais dos processos de exclusão pela diferença que avolumam as desigualdades sociais e nutrem a categoria de subumanos. No entanto, é agudamente complexo esse movimento e exige um mover-se com energia comum, pois na solitude da escalada abismal, é presumível a ruína e aniquilação do ser.

Em busca da descolonização de nosso ser, é preciso desnaturalizarmos e nos desacostumarmos com as barbáries produzidas pelo colonizador. Na lógica do movimento colonial, igualar, normalizar, normatizar, uniformizar, portanto, padronizar, é estandarte com espada em punho. Ao sermos colonizados barbaramente, também assimilamos, ao longo dos acontecimentos históricos e pela irradiação cultural, os costumes, as tradições, as crenças e os comportamentos sociais cruéis daqueles que tinham como objetivo, a dominação. Desaperceber-se das violências embutidas em nossos pensamentos e ações, é uma das piores formas de (re)produção de bárbaros. A naturalização e cristalização da violência em nós, embrutece-nos de modo que a indiferença com os outros passa a ser um estilo de vida adjunto à preservação do pensamento e práticas abissais.

Se há dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu pela brutalidade do pensamento abissal e seus mecanismos de exclusão social, há também todos os outros dias em que podemos ser ativos cultivadores das mais lindas roseiras da Inclusão que trazem vividez e esperança no horizonte. A roda viva da história está sempre em movimento de maneira que, pela educação libertária e pela paz como direito universal, é possível transformarmos o mundo em um lugar melhor para todos viverem.

Roda mundo, roda-gigante

Rodamoinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração

(Chico Buarque)

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Apoio:CNPq

Recebido: 21 de Setembro de 2019; Aceito: 22 de Julho de 2020

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