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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.74 Uberlândia maio/ago 2021  Epub 15-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n74a2021-52169 

Artigos

Para uma crítica da objetividade no monitoramento da qualidade da educação básica no Brasil

For a review of objectivity in quality monitoring of basic education in Brazil

Para una revisión de la objetividad en el monitoreo de la calidad de la educación básica en Brasil

Abelardo Bento Araújo* 
lattes: 5480800213669820; http://orcid.org/0000-0002-2441-0384

*Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Pedagogo do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). E-mail: abelardo.bento@gmail.com


Resumo

O objetivo deste texto analisar criticamente os aspectos da política de monitoramento da qualidade da educação básica no Brasil que se orientam por uma suposta possibilidade de controle científico/objetivo da qualidade do ensino. Trata-se de uma discussão de base bibliográfica. Por meio da abordagem de algumas concepções e consequências dessas políticas, discute-se a cientificidade alegada pela política de monitoramento da qualidade da educação como categoria ideológica. Por fim, evidencia-se a possibilidade de as medidas adotadas na política educacional desviarem o foco do enfrentamento real das desigualdades educacionais, convertendo-se em mera gestão de dados do fracasso escolar.

Palavras-chave: Monitoramento; Qualidade da educação; Ciência; Ideologia

Abstract

The purpose of this text is to analyze critically the aspects of the policy for quality monitoring of basic education in Brazil, which is guided by a supposed possibility of scientific control/objective of the quality of education. This is a bibliographical discussion. By approaching some conceptions and consequences of these policies, we discuss a scientificity alleged by the policy of monitoring the quality of education as an ideological category. Finally, the evidence can be adopted as measures adopted in deviated educational policy or in the real focus of facing educational inequalities, becoming the management of school education data.

Keywords: Monitoring; Quality of education; Science; Ideology

Resumen

El objetivo de este texto es analizar críticamente los aspectos de la política de monitoreo de la calidad de la educación básica en Brasil, que se guía por una supuesta posibilidad de control científico / objetivo de la calidad de la educación. Esta es una discusión bibliográfica. Al abordar algunas concepciones y consecuencias de estas políticas, discutimos una cientificidad alegada por la política de monitoreo de la calidad de la educación como categoría ideológica. Finalmente, la evidencia se puede adoptar como medidas adoptadas en una política educativa desviada o en el enfoque real de enfrentar las desigualdades educativas, convirtiéndose en el manejo de los datos de educación escolar.

Palabras clave: Monitoreo; Calidad de la educación; Ciencia; Ideología

1. Introdução

E o que é a discussão?

A sentença de morte de todo o status quo, de todos os falsos princípios dominantes. Desde que uma coisa é trazida à discussão, não tem legitimidade evidente, e nesse caso o choque da argumentação é uma probabilidade de queda (Machado de Assis. A reforma pelo jornal, 1859).

No final da década de 1980, o Brasil iniciou um conjunto de políticas educacionais com base na testagem de alunos em larga escala e na responsabilização de agentes educacionais, que, neste artigo denomina-se monitoramento da qualidade da educação (ARAÚJO, 2016, p. 79). Após mais de três décadas, a avaliação de sistemas educacionais por meio da testagem e da responsabilização é utilizada nos âmbitos federal, estaduais e municipais no país. Também já se conta com grande número de estudos a respeito da avaliação em larga escala, avaliação sistêmica, avaliação externa, suas orientações políticas e suas consequências positivas ou negativas para a educação, a partir dos quais é possível analisar, do ponto de vista filosófico, concepções que embasam essas políticas.

O monitoramento da qualidade é marcado pela busca de formas de se avaliar externamente as escolas, com vistas a tornar possível a elevação da qualidade da educação básica. Enquanto avaliação, é perpassado pelas questões que tangem o campo da avaliação em geral, no qual a objetividade sempre foi preocupação e tema polêmico. Sob o monitoramento da qualidade da educação, no entanto, a objetividade ganha o caráter de princípio que orienta a política, a criação dos testes e desemboca no pressuposto da aferição objetiva dos resultados do trabalho educativo realizado nas unidades educacionais. Esses resultados do trabalho educativo seriam representados especialmente por meio de escores de desempenho dos alunos em testes (ARAÚJO, 2019). Essa complexa trama possui subjacente o problema da objetividade e as relações desta com a neutralidade. Relaciona-se com a ciência como ideologia, como a discute Marilena Chauí (2007).

Assim, este artigo tem como objetivo analisar criticamente os aspectos da política de monitoramento da qualidade da educação básica no Brasil orientados pela suposta possibilidade de controle científico/objetivo da qualidade do ensino. Com base em pesquisa bibliográfica e documental, coloca-se em evidência o viés ideológico do monitoramento da qualidade da educação básica no Brasil e questiona-se em que medida a pretensão de objetividade/neutralidade tem desviado as atenções do real enfrentamento do fracasso escolar no País. Trata-se de fazer a crítica da política de monitoramento quando à pretensão de objetividade/neutralidade; crítica no sentido que aplica José de Souza Martins:

[...] não empregamos essa noção no seu sentido vulgar de recusa de uma modalidade de conhecimento em nome de outra. O objetivo, ao contrário, é situar o conhecimento, ir à sua raiz, definir os seus compromissos sociais e históricos, localizar a perspectiva que o construiu, descobrir a maneira de pensar e interpretar a vida social da classe que apresenta esse conhecimento como universal. [...] A perspectiva crítica pode, por isso, ultrapassar ao invés de simplesmente recusar, descobrir toda a amplitude do que se acanha limitadoramente sob certos conceitos, sistemas de conhecimentos e métodos. (MARTINS, 1977, p. 02)

Essa crítica ao monitoramento se faz necessária na medida em que a defesa desse conjunto de políticas parece se apoiar, sem reservas, na objetividade de que elas seriam portadoras. A defesa da pretensa objetividade/neutralidade é evidente, por exemplo, no livro Educação Básica no Brasil: construindo o país do futuro (VELOSO, F. et al., 2009a), em que vários economistas se dedicam a defender a testagem e a responsabilização como bases de uma política educacional que se tornaria capaz de enfrentar desigualdades educacionais. Referindo-se às críticas à avaliação em larga escala, Marcos de Barros Lisboa (2009, p. xxv) declara que os discursos que criticam a “ciência aplicada” se afirmam para além daquilo que a realidade permite. Outro exemplo está na conclusão de Philip Fletcher (1995) sobre a relação causal e positivista entre incentivos/punições e elevação da qualidade da educação básica.

Este texto está organizado em quatro partes, incluindo esta introdução. Na segunda parte, a seguir, discute-se a objetividade como ideologia na política de monitoramento da qualidade da educação básica. Na terceira parte, busca-se fazer o que Chauí (2007, p.30) chama de “contradiscurso”, isto é, apontar as lacunas, as falhas do discurso ideológico, tendo presente que isso não significa reconstruir o discurso ideológico, mas, ao contrário, rompê-lo. Apontam-se “rachaduras no espelho1” desse discurso, que camuflam seu caráter político-ideológico sob o argumento da cientificidade. Busca-se, também, compreender aspectos da dinâmica da gestão do fracasso escolar configurada na política de monitoramento da qualidade da educação básica. Tendo submetido o viés científico-objetivista do monitoramento da qualidade da educação a essa crítica, na quarta parte, constituída pelas considerações finais, retomam-se possibilidades dessas políticas, tendo agora presente o caráter ideológico das perspectivas de gestão de dados objetivos.

2. A objetividade do monitoramento da qualidade da educação básica como ideologia

Do final dos anos 1980 até meados dos anos 1990, diversos artigos encontrados na literatura educacional podiam corroborar a criação de sistemas de avaliação em larga escala (BARRETO et al., 2001; FREITAS, 2007). Nesse momento inicial da avaliação em larga escala, a constatação da necessidade da avaliação e acompanhamento de escolas parecia ser evidente, em face do avanço quantitativo da educação, nem sempre acompanhado pelo avanço qualitativo. A partir desse momento, o discurso do monitoramento da qualidade foi apropriado pelo Estado, que se tornou, então, Estado avaliador2 e passou a incorporar a suposta possibilidade do controle objetivo, científico, absorvendo o caráter ideológico presente no par objetividade/neutralidade. Parafraseando Chauí (2007), quando o instituinte se torna instituído, ele é incorporado pela ideologia e perde as amarras com o tempo de sua instituição.

Tendo início em 1989, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) sofreu várias alterações ao longo da década de 1990 e dos anos 2000. O Saeb passou da perspectiva de criação de uma cultura avaliativa nas escolas, mais participativa, para uma perspectiva mais centralizada de concepção da avaliação e elaboração dos testes; passou da perspectiva amostral para o caráter censitário, entre outras mudanças (BONAMINO; FRANCO, 1999). Vinham-se estudando a Teoria de Resposta ao Item (TRI), que, criada na década de 1950, ainda não tinha ganhado notoriedade nem era utilizada no Brasil. Nesse período, criaram-se, ainda, sistemas estaduais e municipais de avaliação. Na década seguinte, no governo Luiz Inácio Lula da Silva, na gestão de Fernando Haddad como Ministro da Educação, em 2007 criou-se, ainda, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), com a primeira divulgação de dados em 2009.

O Ideb representou mais um passo da política educacional no que se refere ao monitoramento da qualidade da educação básica. O índice combina os resultados da avaliação em larga escala com dados contextuais (taxa de evasão e repetência). Reinaldo Fernandes (2007), então presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep), justifica a criação do indicador de desenvolvimento educacional afirmando que um índice dessa ordem deveria ser definido tanto a partir de informações de desempenho em testes padronizados como de informações sobre fluxo escolar. A estratégia seria atingir os dois pontos fundamentais do monitoramento, de modo a evitar a fragilização do processo educativo. Para coibir a aprovação em massa, se considerado somente o fluxo escolar, o índice vale-se também da obtenção de notas em testes padronizados. Desse modo, pensa-se obrigar as escolas tanto a manter bom nível de aprendizagem como adequado fluxo escolar. A partir desse momento, a coleta de dados, aprimorada desde os anos 1990, torna-se a possível ferramenta nas mãos dos gestores educacionais a permitir o controle efetivo da realidade educacional.

O Ideb se tornou, gradativamente, para diferentes espaços em que se aborda a educação, a medida para avaliar a qualidade da educação básica no Brasil. Jornais, revistas, telejornais e diversas pesquisas educacionais têm utilizado esse índice como parâmetro nas suas reivindicações de uma educação de qualidade3. Ao lado do Ideb, os diferentes meios que se propõem a abordar a qualidade da educação utilizam dados do Programa de Avaliação de Estudantes (Program for International Students Assessment - Pisa). O Pisa é aplicado pela Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE) desde o ano 2000. Atualmente, classifica estudantes de mais de 60 países.

Obviamente, essa apropriação dos dados produzidos por essas avaliações não se fez sem o confronto da crítica. Por exemplo, no dia seis de maio de 2014, o jornal inglês The Guardian publicou uma carta endereçada ao diretor da OCDE, assinada por 80 pesquisadores da área educacional. Nessa carta, catedráticos da área de Educação, Política Educacional, Currículo, História, ressaltam os prejuízos do Pisa. Nomes como Henry Giroux, Peter McLaren, Diane Ravitch e Stephen Ball são os mais conhecidos aqui no Brasil entre os que assinam a carta (OECD, 2014). Os pesquisadores que assinam a carta ressaltam que os resultados do Pisa já são aguardados por governos de todo o mundo, e já começa “a afetar profundamente práticas educativas em muitos países”. A preocupação é com a capacidade do Pisa de orientar reformas dos sistemas educacionais para a disputa de rankings.

A perspectiva de treinamento de alunos para a realização de testes, segundo os signatários da carta, conduz à redução do espectro curricular. Isso conduz ao esquecimento de objetivos menos facilmente mensuráveis, entre eles os que se relacionam com o desenvolvimento físico, artístico, moral, além de influenciar o estreitamento da representação coletiva sobre o que seja a educação e sobre que ela deveria ser. Os pesquisadores destacam, ainda, as possibilidades de empobrecimento da sala de aula, por meio da utilização de baterias de testes de múltipla escolha e dos manuais de aulas, reduzindo, por fim, a autonomia dos professores.

No entanto, é comum, nos debates acerca das políticas de monitoramento da qualidade da educação básica, recorrer à polarização cientificidade/não cientificidade para argumentar em favor da validade das medidas adotadas. Ao mesmo tempo em que afirmam a “objetividade” das medidas, alguns pesquisadores, professores, jornalistas, políticos, posicionam-se defensivamente, alegando que

[...] há verdades e visões de mundo que se afirmam para além das evidências e do trabalho empírico. Construções retóricas e opiniões desqualificam os trabalhos aplicados, acreditando-se verdadeiras sem qualquer corroboração a não ser o próprio discurso e o desejo sobre o como o mundo deveria ser. (LISBOA, 2009, p. xxv, grifo meu)

O autor completa esse trecho com a seguinte analogia:

Curiosamente, os mesmos que desqualificam a pesquisa aplicada sobre educação vacinam seus filhos. Esse é um dos fatos que mais me surpreendem: os críticos dos resultados da pesquisa aplicada aos problemas sociais, em decorrência de dificuldades inerentes à estatística, utilizam as conclusões de pesquisas equivalentes para escolhas sobre o bem-estar dos que lhe[s] são próximos. Os argumentos que justificam o maior gasto relativo em educação fundamental e pré-escola não são distintos dos que nos levam a vacinar nossos filhos contra poliomielite. (LISBOA, 2009, p. xxv)

Na citação, há a tentativa do autor de equiparar a pesquisa social, especificamente a educacional, à pesquisa nas ciências da natureza. Obviamente, a pesquisa dos fenômenos sociais e culturais não obedece às mesmas regras que a pesquisa de fenômenos biológicos, por exemplo como quis o positivismo sociológico. Esse argumento de autoridade, recorre a uma falsa simetria e permite questionar a conversão da objetividade em ideologia.

Se, num primeiro momento, a ideologia faz com que as ideias expliquem as relações sociais e políticas, como ideias independentes da forma da sociedade e da política, impedindo, inclusive, “perceber que tais ideias só são explicáveis pela própria forma da sociedade e da política” (CHAUÍ, 2007, p. 30), “o passo seguinte é dado pela ideologia no momento em que ultrapassa a região em que é pura e simplesmente a representação imediata da vida e da prática sociais para tornar-se um discurso sobre o social e um discurso sobre a política” (CHAUÍ, 2007, p. 30, grifo no original). Nesse momento, ela “pretende fazer coincidir as representações elaboradas sobre o social e o político com aquilo que o social e o político seriam em sua realidade.” (CHAUÍ, 2007, p. 31). Trata-se da tentativa de revestir a ideia de neutralidade, de “fazer com que o ponto de vista particular da classe que exerce a dominação apareça para todos os sujeitos sociais e políticos como universal e não como interesse particular de uma classe determinada.” (CHAUÍ, 2007, p. 31, grifo no original). A “ciência aplicada à educação” de Lisboa (2009, p. XXV) torna-se ideológica ao pretender-se universal e ocultar o ponto de vista sob o qual é formulada, bem como as limitações a que está sujeita, como pesquisa da realidade social.

A literatura do campo educacional de base crítica que podia corroborar a necessidade da avaliação de sistemas educacionais até os anos 1990 (FREITAS, 2007) o fazia com base na interrogação do presente, questionando o que pensar e o que fazer. No entanto, graças ao artifício de elevar as esferas da vida econômica e social à condição de “essências” e graças ao recurso da ideia de “organização”, passa-se à avaliação como pressuposto do monitoramento da qualidade da educação - supondo controle efetivo e científico da elevação dos padrões de qualidade do ensino.

Evidenciar a objetividade como discurso ideológico “falso”, mostrando algumas de suas lacunas, não é, conforme Chauí (2007, p. 33), elaborar o discurso ideológico “verdadeiro”, isto é, o discurso lacunar com suas lacunas preenchidas, pois é ilusório pensar que preencher as lacunas desse discurso revele a verdade. Seria cair na mesma criticada ilusão da divisão entre ciência e ideologia. Conforme a autora,

se quisermos ultrapassar essa ilusão, precisamos encontrar um caminho graças ao qual façamos o discurso ideológico destruir-se internamente. Isso implica ultrapassar uma atitude meramente dicotômica rumo a uma atitude teórica realmente dialética, encontrando uma via pela qual a contradição interna ao discurso ideológico o faça explodir. (CHAUÍ, 2007, p. 33, grifos no original)

Esse caminho é o que a autora denomina discurso crítico. É um discurso que não se opõe simplesmente ao discurso ideológico, mas é um “antidiscurso da ideologia, o seu negativo, a sua contradição” (CHAUÍ, 2007, p. 33, grifos no original). Dessa forma, nesta subseção, apontam-se algumas rachaduras do discurso sobre a política educacional do monitoramento. Tendo em vista que o discurso das políticas de monitoramento diz apoiar-se estritamente no real para elaborar suas conjecturas, é nessa mesma realidade que se encontram as evidências de suas lacunas - os elementos para um contradiscurso.

Para iniciar, convém lembrar com Hobsbawn (2007) que ninguém jamais parece aprender com a história. No caso da política educacional brasileira, é importante acrescentar que não se aprende com a história, sobretudo com a história “dos outros”. Apesar de as medidas das políticas brasileiras se espelharem nas estadunidenses, trata-se de uma tendência mundial, calcada na suposta possibilidade de controle que elas oferecem sob a forma gerencial de organização do Estado. No curso da história das políticas educacionais, no entanto, podem ser encontrados diversos escritos, entre os quais se cita aqui um livro, do tipo que se poderia dizer “para aprender com a história” - e não por acaso, sua autora é uma historiadora, que, apesar de conservadora, traz dados que permitem uma avaliação crítica da política de monitoramento da qualidade da educação calcada na testagem e na responsabilização.

Divulgado no Brasil no ano de 2011, o livro Vida e morte do grande sistema escolar americano: como testes padronizados e modelos de mercado ameaçam a educação, de autoria de Diane Ravitch, traz uma autocrítica do pensamento educacional e da trajetória da autora como consultora educacional e formuladora de políticas públicas educacionais nos Estados Unidos por mais de 20 anos. Enquanto Lisboa (2009, p. xxv) chama de pesquisa aplicada a o desenvolvimento das medidas políticas de monitoramento e controle do trabalho educativo, Diane Ravitch (2011) chama os reformadores da educação nessa perspectiva de corporate reformers (reformadores empresariais) e diz que eles demonstram sua precária compreensão da educação construindo falsas analogias entre a educação e o mundo empresarial.

Eles pensam que podem consertar a educação aplicando princípios de negócios, organização, administração, lei de marketing, e pelo desenvolvimento de um bom sistema de coleta de dados que proporcione as informações necessárias para incentivar a força de trabalho - diretores, professores e estudantes - com recompensas e sansões apropriadas. (RAVITCH, 2011, p. 26)

A autora afirma que a responsabilização, supostamente uma medida científica e objetiva, é, agora, o novo senso comum que todos aplaudem. Ela se tornou mecanicista e até mesmo contrária à boa educação. A testagem “não era apenas uma mensuração, mas um fim em si mesma” (RAVITCH, 2011, p. 27).

A ideologia admite que haja conflitos e que esse fato injusto deva-se a homens injustos, como maus governantes, desonestos, maus patrões, etc. “Assim, a divisão constitutiva da sociedade de classes reduz-se a um dado empírico e moral.” (CHAUÍ, 2007, p. 31). Aqui, para exemplificar as falhas daquilo que se defende na política educacional brasileira como essencialmente objetivo, é válido citar exemplos extraídos da obra de Diane Ravitch (2011) que evidenciam ser essa uma falácia.

Em 2001, Michael Bloomberg, magnata das comunicações, tornou-se prefeito de Nova Iorque. No governo dele, teve início uma sequência de medidas que pretendiam se tornar referências para o mundo em relação à reforma da educação. A política educacional da cidade previa testes que classificavam os alunos em três níveis de proficiência. Não obstante a “exigência” de Bloomberg quanto à pontuação e a cientificidade das medidas, grande parte dos alunos que ficariam com a pontuação no nível 1, que sujeitava o aluno à retenção, foi classificada no nível 2, portando apta a ser promovida. Os programas de incentivos a professores e diretores chegaram ao ápice quando incluíram, num programa piloto, até o pagamento de bônus a alunos para aumentar seus próprios escores.

Os números produzidos pelos testes passaram a ser a medida da qualidade e da responsabilização. As notas das escolas foram, nesse período, substituídas por um conceito que ia de A a F. Se, em 2007, os números revelaram grande número de escolas em situação difícil, “em 2009, o sistema de responsabilização da cidade produziu resultados bizarros. Um impressionante 84% das 1.058 escolas de Ensino Fundamental receberam um A (comparado com 23% em 2007)” (RAVITCH, 2011, p. 105). 13% das escolas receberam um B e apenas 27 escolas tiveram notas C, D ou F. Enquanto o departamento de educação comemorava os números, a imprensa denunciava os resultados como ridículos.

O New York Daily descreveu os relatórios como “um truque de cartas estúpido” e uma “grande bagunça” que tornou os relatórios escolares anuais “praticamente sem qualquer sentido para milhares de pais que procuram nesses documentos um guia para como melhor atenderem as necessidades de seus filhos” (RAVITCH, 2011, p. 105, aspas no original).

Não obstante o argumento de cientificidade, os dois motivos para o colapso do sistema de classificação foram, segundo a autora, os erros aleatórios de um ano para o outro e a inflação dos índices pelo próprio Estado, que reduziu os pontos necessários para a classificação. Além disso, havia os conflitos entre os dados apresentados pela prefeitura e os dados federais, porque os critérios de avaliação eram diferentes. Enquanto os testes do sistema municipal mostravam ganhos excepcionais, os escores federais denunciavam estagnação.

Confirmando a constatação de Chauí (2007), o discurso objetivista da política de monitoramento da qualidade da educação básica admite que “algumas distorções podem ocorrer” (VELOSO, 2009, p. 196). Uma dessas situações seria o treinamento para os testes, que influenciaria os escores, o que levaria também à desconsideração de aspectos importantes em educação, mas de difícil mensuração (VELOSO, 2009) - como se o mais importante e essencial fosse aquilo que os testes conseguem avaliar. Poderia ocorrer também a manipulação dos resultados dos testes por professores e gestores educacionais. No entanto, como já se ressaltou, essas possibilidades são reduzidas à imoralidade de determinados indivíduos. Para tentar corrigir isso, adicionam-se e acirram-se as sanções, os únicos meios que essa perspectiva passa a considerar adequados para induzir os professores a atingirem as metas desejadas, sem truques.

Ravitch (2011) demonstra evidências de que a prática de burlas para inflacionar números de escores de rendimentos em avaliações em larga escala vem ocorrendo nos Estados Unidos. Um dos casos descritos pela autora é a elevação dos escores da Escola 33 no bairro do Bronx. Nessa escola, a proporção de alunos que atingiram os índices de leitura mais do que dobrou de um ano para outro, subindo 46,7 pontos percentuais, tendo a diretora recebido elogios do próprio prefeito. Em seguida, essa mesma diretora “se aposentou com um bônus de US$ 15 mil, o que acrescentou US$ 12 mil por ano para sua pensão para a vida toda. No ano seguinte, os ganhos incríveis da Escola 33 evaporaram. A ascensão e queda meteórica nos escores da escola foram misteriosas.” (RAVITCH, 2011, p. 110) Mais uma controvérsia é a relação entre aprendizagem e preparação para realização de testes. Psicometristas fizeram alertas à testagem na política educacional americana. Ravitch recorre inclusive à fala de um deles para dizer que nem toda preparação para testes tem como objetivo a aprendizagem, mas vencer o teste (TOBIAS, 2005, apud RAVITCH, 2011).

Os apontamentos de Ravitch (2011), sobre aspectos que se fazem cada vez mais presentes na política educacional brasileira, permitem o questionamento da objetividade/cientificidade das medidas, em face da complexidade que representa a realidade escolar. Uma das medidas que expõem essa complexidade é a exposição de placas com a nota do Ideb na fachada das escolas no estado de Minas Gerais4 A medida começou pelo estado de Minas Gerais em 2012 e autoproclamava-se como exemplo. Isso tanto pode ser visto como valorização do trabalho das escolas como representar uma estratégia de exposição da suposta incapacidade - ou preguiça - dos membros da instituição escolar de realizar adequadamente seu trabalho. Assim, as questões sociais, políticas, históricas são reduzidas às questões pedagógicas. Além disso, uma escola pública de periferia tende a ser comparada com outra escola pública de área central sob os mesmos critérios “objetivos e científicos”, por exemplo.

Para além da comparação entre as escolas, a intenção das medidas é a competição entre as unidades educacionais, sob o princípio do quase-mercado. Conforme Alertou Ravitch (2011), as medidas pretensamente objetivas foram buscadas no mundo empresarial. Com o impulso do accountability movement (movimento da prestação pública de contas), “pressupõe-se que a demonstração do rendimento das escolas bem-sucedidas sirva para estimular a melhoria do desempenho nas outras escolas” (FLETCHER, 1995, p. 102).

Outra estratégia revelada por Ravitch (2011, p. 178) é o “reagrupamento” de alunos para interferir no cálculo do índice obtido, o que pode envolver reduzir “a participação de estudantes de baixa performance em testes”. Nos Estados Unidos ocorreu também a extinção de escolas em função do desempenho delas. Oliveira (2013) apresenta um relatório sobre desigualdades educacionais em que mostra que, de maneira não oficial ou até ilegal, as escolas adotam mecanismos por meio dos quais tendem a expulsar os alunos com baixa performance (pois são eles que “puxam” os índices para baixo) e a admitir alunos que ofereçam possibilidades de elevação dos índices de aproveitamento nos testes. Dessa forma, determinadas escolas - geralmente aquelas que já enfrentam maiores dificuldades - terão, inevitavelmente, que aceitar esses alunos e terão seus escores cada vez mais rebaixados.

O questionamento da objetividade como ideologia permite pensar para além do desvio da norma, porque permite ver tanto a obediência quanto a transgressão da norma como formas de mudanças no curso da história, em dada realidade. Em que medida a própria norma tem conduzido à adoção do treinamento para os testes, da burla, etc.?

Para os trabalhadores da educação básica, nesse caso, as medidas como burlar os resultados dos testes, adotar mecanismos para reunir mais alunos que possam elevar os índices, ao mesmo tempo em que exclui os que podem rebaixá-los pode configurar-se como tática para evitar os prejuízos da não elevação dos escores.

3. O monitoramento da qualidade, a produção de dados e a competição entre escolas: medidas objetivas?

Phillip Fletcher também afirma que o monitoramento da qualidade é portador de princípios de objetividade/cientificidade, ao argumentar que “quando critérios, informações e atribuições são claros, as pessoas por eles enquadradas conseguem se liberar das arbitrariedades administrativas e interferências indevidas” (FLETCHER, 1995, p. 98). O autor acrescenta que uma avaliação baseada nesses princípios afastaria as inseguranças, dúvidas, permitindo “maior descentralização das atividades e ampliar a margem de autonomia e liberdade de ação das pessoas” (FLETCHER, 1995, p. 98). No entanto, na prática, efeitos como a redução curricular, em que os professores tendem a focalizar Matemática e Linguagem, demonstra o contrário desse aumento de margem de autonomia.

Fletcher (1995, p. 98) continua: “O sentimento de pânico que costuma acompanhar uma investida administrativa sumária cede lugar a um relacionamento governado por procedimentos periódicos previsíveis, no interesse da promoção e progressiva melhoria das pessoas e das instituições.” É verdade que é desejável a eliminação de interferências subjetivas na avaliação e acompanhamento dos sistemas educacionais, ao sabor das mudanças de ocupantes dos cargos de gestão da educação básica. No entanto, é preciso problematizar a falácia que constitui a afirmação de uma suposta neutralidade nos critérios objetivos/científicos.

É preciso problematizar ainda a ideia de que esses dispositivos seriam portadores do gérmen da elevação automática da qualidade. Fletcher (1995, p. 98) entende que:

A iminência da retribuição é suficiente como controle administrativo na grande maioria das vezes, porque, normalmente, as pessoas conseguem tirar as devidas conclusões quando informadas sobre seu desempenho. Apenas muito eventual mente, e quando ações mais enérgicas se tornam inadiáveis, as investidas administrativas seriam necessariamente comprometidas com a busca de soluções mutuamente satisfatórias e implementadas com a devida transparência, exatamente por causa do rigor e clareza dos procedimentos da avaliação. (grifo no original)

Para Fletcher (1995, p. 98), “as pessoas conseguem tirar as devidas conclusões quando informadas sobre seu desempenho”. Essa concepção deixa implícito que são as pessoas que devem equacionar os problemas de desempenho escolar. Além disso, reduz a complexidade do fenômeno escolar às questões didático-pedagógicas e esquece-se de que o escore de desempenho é restrito e que as devidas conclusões podem ser entendidas como elevar os escores, mesmo que, para isso, seja necessário reduzir o currículo. As devidas conclusões podem levar à adoção do treinamento para a elevação dos escores, já que é isso que é devolvido como informação sobre o desempenho delas. Para se compreender o que significam as devidas conclusões a serem tiradas por professores e gestores de unidades educacionais, é preciso abordar a bonificação de professores para o aumento de escores, como medida associada.

As medidas que acirram o monitoramento da qualidade da educação básica são tomadas como objeto de defesa num editorial do jornal Folha de S. Paulo, em 2009. O editorial se alinha aos discursos que se problematizam neste texto, das supostas balas de prata com as quais se vai atacar o problema da qualidade da educação. Com frases impositivas como “ninguém deveria ser contra”, o discurso eleva as medidas adotadas para um patamar supostamente acima das ideologias. O longo trecho reproduzido a seguir é necessário, para se compreender inclusive a associação entre textos acadêmicos e jornalismo, na pretensão de formação do consenso na sociedade e justificação da cientificidade que, supostamente, elevaria as medidas para acima do campo ideológico.

Vai no rumo correto o projeto aprovado pela Assembleia Legislativa de São Paulo que institui progressão salarial para professores da rede estadual, baseada em avaliação de mérito. É um passo para enfrentar a medíocre qualidade do ensino no Estado mais rico da Federação, governado há quase uma década e meia pelo PSDB.

O sistema - proposto pelo Executivo - cria cinco faixas salariais e aumenta a distância até o topo da carreira docente. Se até agora o professor de educação básica contava com progressão de 73%, doravante poderá avançar até 242%. No ensino médio, o salário inicial de R$ 1.834,35 pode chegar, ao final, a R$ 6.270,78. O docente precisa permanecer três anos em cada patamar. Para passar de um a outro, tem de obter nota mínima numa prova de conhecimentos. Assiduidade e tempo de permanência na escola também contam pontos. Um máximo de 20% dos candidatos será premiado a cada ano.

Ninguém deveria se opor a uma medida destinada a motivar professores a melhorar suas aulas. Nesse sentido, seria desejável que a avaliação incluísse ainda o desempenho de seus alunos em exames padronizados, não só a prova docente. Mesmo as entidades sindicais que resistem à iniciativa de fato não se colocam contra a melhora da carreira, só divergem do modo de fazê-lo. Insistem na tecla populista do reajuste generalizado, quando deveriam tomar o partido dos melhores mestres e do aperfeiçoamento da categoria. O sistema proposto pelo governo nada faz além de premiar o mérito, um dos pilares do trabalho do professor.

O objetivo deve ser resgatar um contingente expressivo de professores dos níveis salariais medíocres como os atuais e, pior, da absurda situação dos professores temporários (hoje são 80 mil, 38% da categoria). A valorização é crucial para que a profissão se torne mais atrativa entre os formandos com bom desempenho nas faculdades. (VALORIZAÇÃO..., 2009, p. 1, grifo meu)

O discurso explícito do editorial elucida a orientação da política dos textos normativos. Já que as instituições educacionais são assemelhadas a organizações tipicamente capitalistas, onde a produção de mercadorias é apenas pretexto para a consecução do lucro, o relacionamento entre instituições e entre seus trabalhadores não é outro senão o modelo transposto da relação entre empresas capitalistas: a concorrência. A competição e o mérito tornam-se os principais motivadores para a realização de um trabalho de qualidade. Vistas sob a perspectiva daqueles que realizam o trabalho, as medidas constituem-se estratégias de controle do trabalho. Conforme Freitas (2004), de fato a escola torna-se “organização”, e o ensino, o serviço prestado. E é enquanto prestadora de serviços que a escola é avaliada e que se vem estimulando a pressão externa a essa instituição.

É justamente ao elevar as medidas de premiação do mérito, por exemplo, para um suposto campo acima das ideologias que o editorial se revela profundamente ideológico. Como conclui Freitas (2009, p. 60), “‘não ideologizar’ é apenas uma das formas de se ideologizar” (grifo no original).

Tomando o exemplo da afixação das placas com a nota do Ideb na fachada das escolas, pode-se verificar que, em última instância, é o indicador baseado em escores que conta nas comparações entre as unidades educacionais, inclusive aquelas que fazem parte de contextos sociais distintos. Como toda avaliação, a aplicação de testes e a geração de escores teriam função mediadora, para a consecução dos reais fins da educação, para elevar a efetividade com que se alcançam esses fins, que na educação básica estão ligados ao desenvolvimento do potencial humano, à formação de sujeitos, cidadãos em sentido amplo. No exemplo citado, o escore acaba se deslocando de “meio” para “fim em si mesmo”.

Desemboca-se, portanto, numa racionalidade instrumental, conforme a crítica de Max Horkheimer (2002). A racionalidade instrumental é resultado da conversão da razão em instrumento, numa perspectiva pragmatista, em que a razão se submete a conteúdos heterônimos. Exalta-se, assim, o caráter operacional da razão. Isto é, ela se desloca do seu papel na reflexão sobre os fins do fenômeno e passa a ter valor segundo as possibilidades que oferece na operacionalização de processos-meio.

Qualquer uso dos conceitos que transcenda a sumarização técnica e auxiliar dos dados factuais foi eliminado como um último vestígio de supersti ção. Os conceitos foram “aerodinamizados”, racionalizados, tornaram-se instrumentos de economia de mão de obra. E como se o próprio pensamento tivesse se reduzido ao nível do processo industrial, submetido a um programa estrito, em suma, tivesse se tomado uma parte e uma parcela da produção.” (HORKHEIMER, 2002, p. 26)

A ideia contida nas políticas educacionais de monitoramento da qualidade e que justifica toda a operacionalização racional descrita é a de elevação da qualidade da educação. No entanto, sob essa conversão de meios em fins em si mesmos, no máximo elas têm permitido uma espécie de gestão do fracasso escolar, por meio da “sumarização técnica” dos dados factuais, como diz Horkheimer (2002, p. 26).

Por fim, e ainda sobre o caráter ideológico que perpassa a suposta cientificidade das medidas envolvidas no monitoramento da qualidade da educação básica, é necessário ressaltar que, ao pretender o controle objetivo da elevação da qualidade da educação, essas políticas tendem a reduzir as possibilidades de elevação da qualidade da educação ao controle do trabalho educativo. Em se tratando de controle do trabalho, trata-se de gerência - uma vez que a característica central dos sistemas gerenciais é o controle do trabalho alheio (BRAVERMAN, 1987). Algumas das questões que se colocam, nesse sentido, referem-se aos limites desse controle gerencial do trabalho pedagógico. É possível visualizar nas políticas de monitoramento uma tentativa de identificação da relação sujeito/sujeito, característica do processo educativo com a relação sujeito/objeto, característica da produção material capitalista - ou produção de mercadorias -, na medida em que, por meio do controle do trabalho, pretendem elevar a qualidade da educação.

Na empresa capitalista, no âmbito da produção material, em que o interesse do trabalho não pertence ao trabalhador, mas ao capitalista5, o controle - a gerência - conseguiu levar o trabalhador à produtividade por meio de medidas como bônus e sanções, ampliando a extorsão da mais-valia. É desse âmbito que o Estado vem retirando os princípios da política educacional, justificadas como neutras e científicas. No entanto, se a relação entre o trabalhador e seu objeto de trabalho, na fábrica, é uma relação sujeito/objeto, no âmbito do trabalho pedagógico, o professor-trabalhador não lida com um objeto de trabalho qualquer, mas trata-se de uma relação sujeito/sujeito (PARO, 2015).

O discurso que apresenta o monitoramento da qualidade da educação básica como medida científica e objetiva também oculta a inspiração das medidas na gerência da empresa capitalista. A testagem e a responsabilização, como medidas decorrentes da globalização na educação, levam a escola a agir, “sutil e progressivamente”, conforme “regras de mercado e impulsiona a ideia de que somente a competitividade dos resultados, balizados por um núcleo central de saberes pragmáticos, pode solucionar os problemas da economia” (PACHECO, 2009, p. 386). É a chamada gestão científica do currículo, que nada mais é do que a aplicação dos princípios da gerência científica da empresa capitalista ao currículo escolar. Essa gerência, que se pretende universal e científica, nada mais é que a gerência capitalista, controle do trabalho alheio, como a define Harry Braverman (1987). “É neste sentido que o instrumentalismo técnico é uma ideologia que a globalização partilha e impõe às instituições educacionais [...].” (PACHECO, 2009, p. 386).

As medidas objetivas revelam-se, portanto, como estratégias de controle do trabalho. Ao mesmo tempo em que dissimula seu caráter ideológico, não responde a outras questões, como: quais os limites da aplicação dos métodos de controle gerenciais ao trabalho pedagógico? Em que medida a gestão dos dados do fracasso escolar se converteu em melhor qualidade da educação básica, considerada essa em sua inteireza, de apropriação da cultura em sentido amplo, e não apenas em Matemática e Linguagem. Essas são novas e mais específicas questões que surgem ao se colocar em discussão aquelas que deram origem ao artigo.

Considerações finais

Impregnadas por uma pretensa objetividade ou amparadas pelo discurso da cientificidade, as medidas adotadas pela política de monitoramento da qualidade da educação básica - o que também ocorre no nível superior, não discutido neste texto - tornaram-se o novo senso comum político e pedagógico das últimas décadas. No entanto, essa política pautada na gestão de dados tem suas fragilidades expostas de várias formas.

Burlas e reagrupamentos de alunos, de forma a alterar as somas dos escores obtidos por escolas nos testes sem nenhuma alteração na efetiva aprendizagem tornam-se “rachaduras” que deixam entrever o mascaramento do fracasso do Estado e da instituição escola na realização da educação de qualidade. Esse mascaramento, que decorre do próprio encobrimento/ilusão, inerente à ideologia, talvez possa mesmo fazer desaparecer o fracasso, mas apenas diluindo-o, com novos arranjos de dados, como demonstra Ravitch (2011).

É um mito de que a ciência finalmente tenha resolvido a nebulosa questão sobre como elevar a qualidade do ensino, por meio da gestão de dados, incentivos e punições. E é preciso cuidar para que essa gestão de dados ofereça mais que possibilidades matemáticas de refazer cálculos de índices que não se alteram em decorrência de efetiva melhor aprendizagem. Mesmo sem entrar no mérito da objetividade dos testes e sem discutir o quanto eles podem ser maleáveis para aumentar ou diminuir os escores, mas sem esquecer disso, pode-se revelar lacunas na política educacional. Revelando essas lacunas, não se conserta o discurso dela, mas cria-se um discurso que inevitavelmente a ela se opõe. Opõe-se dialeticamente, no sentido de confrontá-la. É possível evidenciar aí uma tendência à meritocracia e a uma racionalidade instrumental, em que valores e fins mais amplos são substituídos por processos operacionais. Ao apelar para os fins mediatos, como resultados em testes, conhecimentos supostamente objetiváveis, essas medidas tendem a excluir sujeitos no interior da escola, contradizendo seus próprios discursos e os fins mais amplos da educação.

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1A expressão “rachaduras no espelho” foi buscada em David Harvey (2006), em A condição pós-moderna. Harvey (2006) designa como rachaduras no espelho as incoerências do discurso pós-moderno.

2Dirce Nei Teixeira de Freitas (2007, p. 133) adota a expressão Estado avaliador em referência à expressão utilizada por Antônio Gramsci para qualificar o Estado em face de suas funções formativas ou conformadoras de um tipo de civilização. Nesse sentido, para a autora, a qualificação do Estado como avaliador diz respeito à incorporação da avaliação como dimensão da gestão dos sistemas educacionais.

3Note-se que no ano de 2005, conforme Niguel Brooke (2006), havia pouco interesse dos meios de comunicação no Brasil pelos resultados de testes aplicados em larga escala e que na atualidade esse interesse é evidente.

4ESCOLAS DE MG PASSAM A EXIBIR PLACA COM NOTA DO IDEB. Revista Veja. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/educacao/escolas-de-mg-passam-a-exibir-placa-com-nota-do-ideb/>. Acesso em: 26 dez. 2019.

5A isso Marx (2014) chama de subsunção formal do trabalho ao capital. Isto é, uma subordinação da forma social do trabalho ao capital, em que o trabalhador não realiza o trabalho interessado no objeto que produz, mas forçadamente o produz pelo salário, enquanto condição de sua sobrevivência.

Recebido: 27 de Dezembro de 2019; Aceito: 22 de Setembro de 2021

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