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Reflexão e Ação

versão On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.30 no.1 Santa Cruz do Sul jan./abr 2022  Epub 22-Ago-2023

https://doi.org/10.17058/rea.v30i1.16011 

Artigos do Fluxo

O papel da tecnologia na educação em tempos de pandemia: concepções sobre o legado de Paulo Freire

The role of technology in education in pandemic times: conceptions about Paulo Freire's legacy

El papel de la tecnología en la educación en tiempos de pandemia: concepciones sobre el legado de Paulo Freire

Antongnioni Pereira Melo1 
http://orcid.org/0000-0002-1257-9633

Nelson Adriano Ferreira de Vasconcelos2 
http://orcid.org/0000-0003-3925-7279

João César da Fonseca Neto3 
http://orcid.org/0000-0002-9332-0948

1 Universidade Católica de Brasília - UCB - Brasília - Distrito Federal - Brasil.

2 Universidade Católica de Brasília - UCB - Brasília - Distrito Federal - Brasil.

3 Universidade Católica de Brasília - UCB - Brasília - Distrito Federal - Brasil.


RESUMO

Este artigo analisa a educação brasileira em tempos de Covid-19, o uso e o fetiche das tecnologias da informação e comunicação (TICs) à luz das categorias de opressão e exclusão, presentes na obra de Paulo Freire. A pesquisa, bibliográfica e exploratória, a partir da vida e do pensamento freireano, estudou o incremento do uso das TICs durante a crise sanitária e as contradições que emergiram a partir das relações de opressão-libertação e inclusão-exclusão que impactaram a vida escolar neste cenário. Por fim, oferecem-se reflexões a partir das inconclusões da temática, com vistas a novas incursões epistemológicas.

Palavras-chave: Covid-19; Exclusão; Opressão; Paulo Freire; Tecnologias da Informação e Comunicação

ABSTRACT

This article analyzes Brazilian education in times of Covid-19, the use of information and communication technologies (ICTs) in front of the categories of oppression and exclusion, present in Paulo Freire’s work. The bibliographical and exploratory research, based on Freirean life and thought, studied the increased use of ICTs during the health crisis, and the contradictions that emerged from the relationships of oppression-liberation and inclusion-exclusion that impacted school life in this scenario. Finally, reflections are offered based on the inconclusions regarding this topic, with a view to new epistemological incursions.

Keywords: Covid-19; Exclusion; Oppression; Paulo Freire; Information and Communications Technology

RESUMEN

Este artículo analiza la educación brasileña en tiempos de Covid-19, el uso y el fetiche de las tecnologías de la información y comunicación (TICs) en frente de las categorías de opresión y exclusión, presentes en la obra de Paulo Freire. La investigación, bibliográfica y exploratoria, a partir de la vida y del pensamiento freireano, estudió el incremento del uso de las TICs durante la crisis sanitaria, y las contradicciones que emergieron a partir de las relaciones de opresión-liberación e inclusión-exclusión que impactaron la vida escolar en este escenario. Finalmente, se ofrecen reflexiones a partir de las inconclusiones de la temática, con miras a nuevas incursiones epistemológicas.

Palabras clave: Covid-19; Exclusión; Opresión; Paulo Freire; Tecnologías de la información y Comunicación

INTRODUÇÃO

A História é tão vir a ser quanto nós, seres limitados e condicionados, e quanto o conhecimento que produzimos. Nada por nós engendrado, vivo, pensado e explicitado se dá fora do tempo, da História. Ter certeza, estar em dúvida, são formas históricas de estar sendo (FREIRE, 2006, p. 19).

Uma feira popular na cidade de Wuhan, na China: acredita-se ter sido este o local onde, no final do ano de 2019, ocorreram os primeiros casos em seres humanos de uma doença que rapidamente se espalhou trazendo mortes, preocupação e pânico para todo o mundo. A Covid-19 (Coronavirus Disease 2019) é uma doença respiratória infecciosa, altamente contagiosa e frequentemente letal, causada pelo vírus SARS-CoV-2. O surto da doença espalhou-se rapidamente para outros países e continentes, sendo declarada uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março de 2020.

A partir de então, autoridades brasileiras passaram a recomendar o isolamento social como forma de inibir o seu alastramento, de modo que o Sistema Único de Saúde pudesse absorver os acometidos em situação grave para tratamento. Dentre outras medidas, tornou-se obrigatório o uso de máscaras, cobrindo o nariz e a boca, em espaços públicos. Foram fechadas todas as instituições de ensino, teatros, cinemas e outros espaços propícios à aglomeração de pessoas. Medidas estas que, com maior ou menor flexibilização entre as diferentes localidades, em geral permanecem até o momento da escrita deste texto (novembro de 2020).

No cenário pandêmico, o chamado “ensino remoto” reconfigurou rapidamente o ambiente escolar, do material para o virtual. O maravilhamento e o discurso otimista em relação ao papel das tecnologias de informação e comunicação (TIC) na educação ganham, então, novo impulso. A intensificação do uso dessas tecnologias em sala de aula, que antes se apresentava como tendência (quase que um fim em si mesma), passa a condicionar, sobretudo nas instituições particulares, a própria continuidade da prestação dos serviços escolares.

No entanto, a pandemia aprofundou os processos de exclusão e opressão escolar já existentes. Segundo a UNICEF, mais de 97% do total de estudantes da América Latina e do Caribe ainda estão fora da sala de aula, por conta das medidas sanitárias de prevenção à Covid-19. Esse percentual representa mais de 137 milhões de crianças e adolescentes, principalmente oriundas dos sistemas públicos de ensino, que estão impedidas de frequentar a escola e sem recursos tecnológicos mínimos para acompanhar as aulas remotas (UNICEF, 2020a).

A entidade afirma, ainda, que essa crise deve aumentar a já grave desigualdade educacional entre famílias ricas e pobres na região. A percentagem de crianças e adolescentes que não recebem nenhuma forma de educação formal aumentou sensivelmente ao longo de 2020, passando de 4% para 18%, sendo que apenas um em cada dois estudantes de escolas públicas tem acesso ao ensino a distância em casa (IDEM).

O problema da falta de acesso às TICs em um momento de calamidade em que elas são necessárias para a manutenção das aulas remotas contribui para o discurso acrítico de defesa da sua incorporação à rotina escolar. Por trás da retórica de neutralidade e tecnicidade, há intencionalidades que merecem ser investigadas.

Não se trata aqui da dualidade tecnologia versus humanidade, objeto recorrente das ficções científicas. Em vez disso, buscaremos problematizar o papel que as tecnologias, como produtos do trabalho e do pensar humano, desempenham na contradição opressor versus oprimido, bem como seu potencial de contribuir para a superação dessa contradição a partir de uma educação de base libertadora.

Para isso, iniciamos com uma breve apresentação da vida do educador pernambucano Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira, cujas ideias serão a base deste artigo.

PAULO FREIRE, PATRONO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

O educador brasileiro Paulo Reglus Neves Freire nasceu em 1921, em Recife, no estado de Pernambuco. “Começou a leitura da palavra, orientado pela mãe, escrevendo palavras com gravetos das mangueiras, à sombra delas, no chão do quintal da casa onde nasceu, na Estrada do Encanamento, 724, no bairro da Casa Amarela” (FREIRE, 1996a, p. 28). Tendo perdido o pai, na idade de 13 anos, sofreu ao testemunhar a angústia da mãe para criar sozinha quatro filhos, numa família já empobrecida em decorrência da crise econômica mundial de 1929.

Cursou o ensino secundário no Colégio Oswaldo Cruz, onde posteriormente veio a trabalhar como professor de língua portuguesa. Aos 22 anos ingressou na Faculdade de Direito do Recife. No ano seguinte, casou-se com Elza, uma professora primária que o inspirou a observar as primeiras questões acerca do ler e escrever, transpondo tais reflexões e práticas para suas obras e contribuições para a educação de jovens e adultos. Uma vez formado, desistiu da advocacia já na primeira causa, quando lhe atribuíram a tarefa de despejar um dentista do consultório por seu débito com o aluguel da sala comercial. Ao deparar-se com o quadro e conversar com o trabalhador ameaçado, Paulo recuou em seu procedimento de despejo, decretando sua carreira como advogado algo impraticável e incompatível.

Voltando-se à educação, no Serviço Social da Indústria foi cuidar da educação de adultos e adultas trabalhadores em 1947, permanecendo por quase dez anos. Em 1952 foi nomeado professor catedrático da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Recife. Em 1959 obteve o doutorado em Filosofia e História da Educação defendendo a tese que virou livro, Educação e Atualidade Brasileira (FREIRE, 2003). Tornou-se professor efetivo em 1961. No mesmo ano foi-lhe conferido o título de livre docente da cadeira de Filosofia e História da Educação. Em 1962 criou o primeiro serviço de extensão cultural da Universidade do Recife, tendo sido nomeado seu primeiro diretor.

Em 1963 organizou uma experiência de alfabetização no município de Angicos, no Rio Grande do Norte, na qual alfabetizou trabalhadores e trabalhadoras do campo em quarenta dias, por meio de um método inovador que posteriormente ficou conhecido como “método Paulo Freire”.

A experiência de Angicos rendeu a Paulo Freire o convite do ministro da educação, Paulo de Tarso Santos, para criar as bases e dirigir o Programa Nacional de Alfabetização do governo do presidente João Goulart. Em 1964, o golpe militar interrompeu o programa.

Em 31 de março de 1964 Paulo estava em Brasília, quando soube que foi destituído de suas funções de conselheiro estadual de educação de Pernambuco, sem ter tido a chance de assinar a carta de demissão coletiva junto a seus companheiros pioneiros deste colegiado.

Sentindo-se ameaçado, asilou-se na embaixada da Bolívia e seguiu no mesmo ano para o país andino até a ocorrência de um novo golpe de estado militar, desta vez na Bolívia, que aconteceu logo em seguida. Partiu para o Chile, país em que viveu com sua família até 1969. Lá, trabalhou no ministério da educação e na UNESCO trazendo grande contribuição para a área de educação. Durante seu exílio no Chile, escreveu a Pedagogia do Oprimido, entre 1967 e 1968.

Em 1969 foi convidado para lecionar na Universidade de Harvard, onde trabalhou até 1970, quando aceitou então um convite para, em Genebra, trabalhar no Conselho Mundial das Igrejas. Nesse período teve a oportunidade de desenvolver um trabalho educacional pela África, Ásia e Oceania e também pela América, com exceção do Brasil. Ainda na Suíça, ensinou na Faculdade de Educação de Genebra.

Com a anistia política, retornou ao Brasil definitivamente em 1980 e passou a atuar como professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e na Universidade de Campinas

O Prêmio UNESCO da educação para a Paz lhe foi ofertado em 1986. Em 1987 passa a integrar o júri internacional da UNESCO que agracia anualmente os melhores projetos e experiências dos cinco continentes na área de alfabetização. Em 1988 casou-se com Ana Maria Araújo Hasche. Em 1989 assumiu a Secretaria de Educação do município de São Paulo durante a administração de Luiza Erundina. Neste período procurou promover uma gestão democrática aproximando a educação pública da educação popular.

[...] ele deu provas de que os trabalhos em colegiados e o entendimento mútuo levam à responsabilidade coletiva e à reinvenção do ato de educar com mais eficiência e adequação. Suas decisões políticas, nascidas de sua própria teoria e de suas práticas de educador pelo mundo - não seria exagero dizer do mundo - como também nascidas da práxis educativa das pessoas da equipe técnica que o assessorou, as quais traziam a vontade e a necessidade das comunidades, marcaram, indelevelmente, a educação da rede de ensino do município de São Paulo” (FREIRE, 1996a, p. 47).

Deixou a administração municipal em 1991, retornando à docência superior na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e demite-se da Unicamp. Neste período, foi também professor convidado da Universidade de São Paulo. Entre 1988 e 1997 escreveu Pedagogia da Esperança, Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha prática, Política e Educação, À Sombra desta Mangueira, Educação na Cidade, entre outros escritos e reflexões.

Junto com grandes educadoras e educadores como Carlos Alberto Torres, Francisco Gutiérrez, José Eustáquio Romão, Moacir Gadotti e Walter Esteves Garcia, funda, em 1991, o Instituto Paulo Freire, com o objetivo de “reunir pessoas e instituições que, movidas pelos mesmos sonhos de uma educação humanizadora e transformadora, pudessem aprofundar suas reflexões, melhorar suas práticas e se fortalecer na luta pela construção de “um outro mundo possível” (IPF, 2020).

Vítima de uma parada cardíaca, faleceu no outono de 1997. Suas ideias permanecem vivas, reinventadas por educadores e educadoras e por movimentos sociais. Sua obra mais conhecida, a Pedagogia do Oprimido, escrita em 1968, durante o exílio no Chile, foi traduzida em mais de 30 idiomas. Inúmeras escolas, instituições, cátedras e ruas levam o seu nome. É cidadão honorário de nove cidades brasileiras. Recebeu o título de doutor honoris causa de 28 diferentes universidades e de professor emérito de três. A Lei nº 12.612, de 13 de abril de 2012 declara o educador Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira (BRASIL, 2012).

Sua vida e obra continuam orientando as discussões contemporâneas entre educadores e educadoras do mundo inteiro e no Brasil, incluindo a perspectiva da educação tecnológica libertadora.

APROXIMAÇÕES À TEORIA SOCIAL DE PAULO FREIRE

Paulo Freire está em constante reinvenção e seu legado traz em si uma ontologia cuja complexidade teórica é capaz de fundamentar questões basilares do pensar e do fazer pedagógico em todo espaço que se diz educativo, abrindo possibilidades e criando campos de atuação, de pesquisa e abordagens inovadoras até para questões ditas clássicas na área da educação como, por exemplo, a relação entre educador e educando, mediatizada pelo mundo e pelos processos didático-pedagógicos, incluindo-se nesse contexto o uso das tecnologias no ensino e as possibilidades ou barreiras para a sua democratização.

Para o exercício desta reflexão convoca-se aqui um conjunto de categorias freireanas, com destaque para as da “opressão”, “exclusão”, “educação bancária” e “educação problematizadora”, que ao discutir uma determinada ontologia também promova a reflexão acerca da desmistificação do fenômeno do uso acrítico das TIC na educação escolar.

Antes de adentrar no tema da tecnologia, faz-se oportuno resgatar a noção de humanidade de que parte Freire (1987). Para ele, a consciência da sua incompletude diante de uma realidade exterior que, por ser ela mesma inacabada, está em constante transformação, é o que caracteriza a humanidade. Diferentemente dos animais -que também são seres incompletos, mas que não se percebem como tal- o ser humano tem essa percepção e se vê diante de duas possibilidades: a da humanização, que consiste na busca pelo “ser mais”, e a da “desumanização”, que resultaria no “ser menos”. Desta forma, a humanidade “não é”, está sempre “sendo” objetivamente no espaço e no tempo, o que lhe confere um caráter de ser histórico.

Para o autor, a educação, como manifestação eminentemente humana e que tem nessa consciência da própria incompletude a sua origem, é “[...] um que-fazer permanente. Permanente, na razão da inconclusão dos homens e do devenir da realidade” (FREIRE, 1987, p. 41).

Sendo assim, é na contradição permanência-mudança que estariam as duas concepções educativas distintas identificadas pelo pensador: a “bancária”, que é fixa, estável, inerte, reacionária e focada na busca pela permanência e a “problematizadora” ou “libertadora”, tida como dinâmica, instável, viva, revolucionária e voltada para a transformação da realidade em que se insere o ser humano como sujeito.

O termo “bancário” surge como uma analogia ao tipo de relação que se dá entre educadores e educandos no modelo hegemônico de escola e educação, em que o conhecimento é tido como algo que o educador ou educadora transfere para o aluno através de práticas pedagógicas narrativas e dissertadoras. Educar, nessa concepção, é transmitir conhecimento. Daí que, para Freire, o educando ou educanda é objetificado(a), deixando de explorar seu potencial de sujeito (ser humano), para se tornar recipiente, mais ou menos eficaz, para o acúmulo de conteúdos escolares. A relação aqui é de poder e contradição entre dois polos: o do educador ou educadora, que sabe e ensina, e o do educando ou educanda, que ignora e aprende.

A concepção problematizadora que o autor defende, por sua vez, pressupõe uma relação dialógica em que o conhecimento não é transferido unilateralmente, mas construído ativamente pelas duas partes na práxis educativa. O diálogo entre educador/educadora e educandos/educandas, contudo, só pode se dar com o reconhecimento da humanidade de ambos, ou seja, dos sujeitos e das suas histórias. Assim, a contradição educador(a)-educando(a) é aqui substituída pela conciliação, de tal modo que ambos se fazem, simultaneamente, educadores e educadoras e educando/educanda (FREIRE, 1987).

Se a educação problematizadora contribui para a vocação humana de “ser mais”, a bancária, ao contrário, impõe o “ser menos”, servindo de instrumento à violência da opressão do ser humano pelo ser humano, abrindo caminho para todas as formas de exploração e injustiça pelas quais o opressor busca se apoderar do mundo e de outros seres já que “[...] o que vale é ter mais e cada vez mais, à custa, inclusive, do ter menos ou do nada ter dos oprimidos. Ser, para eles, é ter e ter como classe que tem” (FREIRE, 1987, p. 23).

Nessa perspectiva do opressor, em que ser mais se confunde com ter mais, sua humanização é vista também como posse exclusiva. É o que os difere dos oprimidos e oprimidas, a quem precisa controlar para que não o ameace. Impedir o oprimido ou oprimida de se perceber como sujeito de sua própria existência, sendo capaz, portanto, de modificar sua realidade como ser humano que é, ao mesmo tempo, parte e autor do mundo em que se insere, constitui a base da sádica estratégia de opressão.

Na compreensão bancária da educação criticada por ele, a opressão ocorre quando educadores e educadoras detêm o saber e também os recursos didáticos, incluindo a dinâmica avaliativa. O autoritarismo se transveste de autoridade para melhor controlar essa relação pedagógica verticalizada na qual a comunicação é vista de modo unilateral.

O opressor desumaniza-se no ato da opressão, enquanto o oprimido é desumanizado pela realidade objetiva da opressão e pela internalização da imagem do opressor que o faz um ser duplo. Assim, é o opressor oprimido ou, se quisermos, a opressão do opressor que impossibilita não só a humanização do oprimido, mas também frustra sua própria vocação de sem mais. (OLIVEIRA, 2008, p. 300)

Coloca-se como desafio a superação dessa relação “professores opressores - alunos oprimidos” pela via da inclusão pedagógica. O seu oposto, a exclusão, é termo corrente, cuja definição banalizou-se. Na compreensão freireana, os excluídos e excluídas não estão simplesmente à margem, mas fazem parte desse mesmo sistema de opressão e desumanização. Estão incluídos(as) na exclusão.

Duas observações importantes de Freire sobre a marginalidade podem também aplicar-se ao conceito exclusão social. Se há marginalizados, não é por opção. Assim, os marginalizados seriam vítimas de uma violência que os expulsa do sistema. Na verdade, são violentados, [...] Vê-se portanto, que Freire jamais abre mão de recolocar o problema nos marcos da sociedade de classe [...] chamando a atenção para a violência e para a desumanização próprias da sociedade de classe (OLIVEIRA, 2008, p. 182).

A exclusão em educação está diretamente ligada à outra ideia que é a da comunicação. “Todo ato de pensar exige um sujeito que pensa, um objeto pensado, que mediatiza o primeiro sujeito do segundo [...]. O mundo humano é, desta forma, um mundo de comunicação (FREIRE, 1982, p. 66). A comunicação pedagógica, dada ou não pelo uso das tecnologias em sala de aula, implica:

[...] co-participação ativa de ambos os sujeitos envolvidos, o que descarta ação expositiva, com pouca inteligibilidade, comumente vivenciada por nós nesta sociedade dita do conhecimento de um sujeito a outro, mas em sua co-participação no ato de aprender a significação do significado. Essa é uma comunicação que se faz criticamente. Lembramos que na codificação pedagógica, há comunicação verdadeira, que é a intercomunicação (BASTOS, 2008, p.88).

A prática pedagógica embasada no diálogo considera a própria dimensão histórica do dialogar como sendo algo intrínseco da natureza humana. Vista desse modo, em respeito à compreensão de que a leitura do mundo precede a leitura da palavra, o processo educativo torna homens, sujeitos de seu próprio conhecimento. “O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História.” (FREIRE, 1996b, p. 136).

E por fim, trazemos uma categoria freireana que sintetiza a denúncia do estado de coisas no campo da educação dominado pela relação opressor-oprimido, pelo desumanizante, pela desesperança, mas que traz em si a possibilidade da transformação, da superação das dicotomias e da alienação do trabalho pedagógico. Trata-se da ideia do inédito viável. Para Freire, no âmbito da comunicação humana:

[...] os temas se encontram encobertos pelas “situações limite” que se apresentam aos homens como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face às quais não lhes cabe outra alternativa, senão adaptar-se. Desta forma, os homens [e mulheres] não chegam a transcender as “situações limites” e a descobrir ou a divisar, mais além delas e em relação com elas, o “inédito viável”. (FREIRE, 1975, p. 110)

O advento da Pandemia Covid-19 impôs uma situação limite ao sistema educacional como um todo: o da continuidade das atividades escolares fora do espaço físico da escola e com isolamento social. Nesse sentido, a adoção generalizada do ensino remoto mediado pelas TICs surge como um “inédito viável”. A sua realização, contudo, tem se dado de forma desigual entre aqueles(as) que dispõem de meios para a adaptação à nova realidade e aqueles ou aquelas que não os possuem.

Reedita-se, assim, o problema histórico da exclusão educacional mais elementar: a de crianças e jovens sem acesso à escola. Essa versão atualizada da exclusão, contudo, é peculiar porque se faz de estudantes que, mesmo estando devidamente matriculados(as), não podem acessar sua escola por conta das medidas sanitárias e da carestia de meios tecnológicos que os possibilitem ingressar em um espaço escolar virtualizado.

Afora os (graves) prejuízos para o desenvolvimento desses(as) estudantes excluídos(as) do processo educacional durante o período da calamidade pública, os efeitos da pandemia não devem se encerrar com o fim da suspensão das aulas presenciais. A instituição escolar pós pandemia não deverá ser a mesma de antes dela. A questão é: que escola será essa? Que papel as TICs cumprirão nela? Como a disputa entre as concepções libertadoras e bancárias da educação responderão às demandas de assimilação de recursos tecnológicos trazidos para a relação educanda(o)-educador(a) no novo contexto?

Essas são questões fundamentais para as quais ainda não temos uma resposta, mas que a partir das categorias freireanas discutidas até aqui podemos desvendar pistas e traçar alguns cenários.

AS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO (TICS) ENTRE A EDUCAÇÃO BANCÁRIA E A LIBERTADORA NO CONTEXTO DA COVID-19

A evolução das TICs nas últimas décadas tem contribuído decisivamente para a transformação das relações sociais, do mundo do trabalho e da educação. A sociedade contemporânea se organiza em redes cada vez mais densas e ramificadas, o comércio e a economia se reconfiguram no momento em que o capitalismo cede espaço para o informacionalismo, no qual as transações financeiras mundiais se tornam instantâneas (CASTELLS, 2019).

À medida que cresce a sua importância na mediação das relações humanas, ampliam-se as possibilidades de exclusão daqueles que não as possuem, de modo que sua utilização deixa de ser uma opção e assume um caráter imperativo. “Dos smartphones, que prometem mais liberdade, parte uma coação fatal, a saber, uma coação de comunicação. Com isso se tem uma relação quase obsessiva, compulsória [zwanghaft] com o aparato digital” (HAN, 2018, p.65).

No campo educacional, em que pese a demanda por tecnologias possa ter sido impulsionada a partir da pandemia, seu surgimento se deu já na década de 1990 com o advento da popularização dos computadores pessoais e da internet e, posteriormente, dos smartphones e de toda miríade de programas de softwares disponibilizados pelo mercado.

Em paralelo à popularização das TICs, foi se constituindo um discurso predominante de que quanto mais tecnológica a escola, melhor. A intensificação da sua aplicação no contexto escolar se apresenta, então, como um fim em si mesmo ou, ainda, como solução mágica para aulas mais interessantes e modernas, sem a devida crítica dos impactos do fenômeno tecnológico na educação.

Nesse sentido, Selwyn (2017) chama a atenção para as propostas de reformas educacionais que teriam como intuito preparar a escola para uma era de transformações digitais e demográficas, mas cuja principal preocupação estaria em torno do que funciona e do que não funciona bem em sala de aula. Subjaz a esse movimento reformista o ideário neoliberal da eficácia e da performance, que se esquiva de questões fundamentais como: por que reformar, no que exatamente essas reformas podem implicar ou a quem elas podem interessar.

Se de um lado tem havido um entusiasmo exacerbado com as possibilidades da tecnologia na Educação, de outro percebem-se resistências conservadoras com posicionamentos críticos simplistas que negam, de princípio, os aspectos positivos dos avanços tecnológicos. O autor ressalta, então, a importância de um posicionamento crítico embasado, objetivo e com o rigor necessário para abordar a temática com ceticismo, mas de forma construtiva, o que pode ser alcançado com o auxílio da tradição da teoria crítica:

A teoria crítica nos aproxima do envolvimento com educação e tecnologia como um campo de engajamento político que existe na dialética de um poder tecnológico potencialmente democratizador e totalizador. Essa abordagem coloca em primeiro plano a necessidade de se identificar - e então de se testar - a diferença entre a potencialidade e a realidade da tecnologia na educação. Essa abordagem também coloca em primeiro plano a necessidade de se forjarem e defenderem movimentos em prol do empoderamento, da igualdade, da justiça social e da democracia participativa. (SELWYN, 2017, p. 23)

Paulo Freire é um dos principais expoentes da tradição da teoria crítica na Pedagogia e na Educação e, apesar de não ter se dedicado especificamente ao estudo das TICs, abordou a temática no bojo da sua crítica à Educação Bancária e de defesa da construção de uma Educação Libertadora. No cenário pandêmico, em que as TICs ganham novo impulso com a ampliação dos ensinos remoto, à distância e híbrido, a teoria crítica freireana nos auxilia na compreensão do papel que elas podem assumir enquanto instrumentos de opressão e exclusão, mas também de resistência e de emancipação dos sujeitos.

A Educação como Prática de Liberdade proposta por Freire é fundamentalmente problematizadora, no sentido de fomentar, pelo diálogo, análises contextualizadas dos aspectos positivos e negativos de cada fenômeno social, suas causas, consequências, os interesses envolvidos, as intencionalidades e as relações de poder que o permeiam e, sobretudo, como o educando está nele situado e de que forma pode modificá-lo.

Assim como o alfabetizador Paulo Freire se utilizou da palavra geradora “sapato” para suscitar nos educandos e educandas de Angicos/RN a reflexão dos porquês de muitos deles estarem descalços, mesmo residindo e trabalhando num pólo produtor de couro para calçados - introduzindo, a partir dessa situação problema, um debate sobre as relações de dominação capitalistas e de que forma elas afetavam a vida daquelas pessoas-, a adoção de tecnologias educacionais deve ser também problematizada, reconhecendo-se sua dimensão cultural (como a do sapato).

O primeiro esforço necessário para essa problematização talvez seja o da desmistificação. Partindo do ideário freireano, Zeferino (2020) vale-se da categoria marxista de “fetiche” para alertar para o risco de alienação frente à inserção das tecnologias na educação: “como se uma ‘mão invisível’ fosse sua responsável e coubesse aos seres humanos somente a adaptação e acomodação” (ZEFERINO, 2020, p. 163).

Adaptação e acomodação são atitudes apontadas por Freire (1987) como desumanizadoras e reflexos de situações de opressão. Afinal, o ser humano não deve se contentar em se adaptar passivamente, ele (a) se insere ativamente no mundo, participando da construção da sua realidade. O fatalismo que muitas vezes acompanha os discursos entusiasmados em favor das TICs parte do princípio de que não há outro caminho possível, que essa é uma tendência inexorável. Mesmo que seja uma tendência que mais cedo ou mais tarde abrangerá todas as escolas, a questão é: que tecnologias são inseridas, como são inseridas e de que forma se integram aos contextos sociais específicos, se para aumentar a autonomia e a liberdade dos sujeitos ou a para ampliar sua dependência e alienação cultural.

No tocante à intencionalidade por trás das tecnologias no capitalismo, ele já indagava: “a máquina está a serviço de quem?” (FREIRE, 1984, p. 7). A quem interessaria controlar os gostos, hábitos, desejos, modos de expressão, sonhos e até preferências políticas dos sujeitos? A resposta oferecida pelo autor é a figura do opressor, que instrumentaliza a ciência e a técnica para a consecução de seu projeto de manutenção da ordem que lhe favorece: “Daí que vão se apropriando, cada vez mais, da ciência também, como instrumento para suas finalidades. Da tecnologia, que usam como força indiscutível de manutenção da ‘ordem’ opressora, com a qual manipulam e esmagam” (FREIRE, 1987, p. 25).

Com o ensino remoto, por exemplo, a tão almejada “ordem” na sala de aula, passa a ser mais facilmente alcançada, já que os microfones e câmeras podem ser desligados, enquanto o/a professor(a) expõe sua aula, compartilha telas e distribui os momentos de fala entre os estudantes. A educação bancária, que se fundamenta na suposta transferência de conhecimentos do(a) professor(a) para o estudante, impõe o uso das TICs para potencializar sua dominação. A virtualização do ambiente escolar passa a oferecer novas possibilidades de controle para o aprofundamento das relações hierárquicas entre educadores/educadoras e educandos/educandas, reproduzindo e contribuindo para as relações de poder na sociedade baseadas na dominação.

Da mesma forma, as TICs reduzem as barreiras da distância física e ampliam enormemente as possibilidades de interação de educandos/educandas e educadores/educadoras entre si e com o mundo, abrindo espaço para novas formas de organização política e de vivências políticas e culturais, indispensáveis para uma Educação Libertadora.

A reconfiguração do espaço e tempo é outra importante consequência da adoção das TICs na educação escolar (SELWYN, 2017). Sob a promessa de eliminação das fronteiras, cresce a ideia de uma educação escolar virtual e expandida (a qualquer tempo e a qualquer lugar), em que não se tem mais uma divisão clara dos momentos de estudo, de trabalho, de lazer e de descanso, de escola, de trabalho ou de rua. Essa reconfiguração pode vir a atender a uma lógica de integralidade do processo educacional, conferindo maior flexibilidade e autonomia para educandos/educandas e educadores/educadores, mas também pode servir à lógica da produção e da produtividade.

Nessa lógica, que também é de competição, estar à frente significa acumular mais conteúdo, o que faz com que educando/educanda e educador/educadora se vejam pressionados a serem menos para pretensamente aprenderem ou ensinarem mais. O maior volume de informações a serem processadas inibe ambos de dizerem a sua própria palavra ou de sequer desvendá-la. Em vez de compreender, se inserir e modificar seu mundo, os sujeitos são condicionados a absorver ideias e conceitos que muitas vezes sequer conseguirão aplicar a sua realidade. Nesse sentido, as TICs podem reforçar o caráter antidialógico e homogeneizador do modelo bancário de educação, aumentando o volume e a velocidade de informações transferidas unilateralmente do professor ao aluno.

Neste ponto, é importante recuperar a noção freireana de que o diálogo só pode ocorrer entre sujeitos inseridos no mundo: “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987 p. 39). O mundo que mediatiza a educação hoje contém cada vez mais componentes digitalizados e os espaços ditos “virtuais” (tanto quanto os físicos) se constituem, na realidade, em arenas de disputas para oprimidos e opressores, por mais que estes últimos se esforcem para conferir-lhes uma conotação de neutralidade e tecnicidade.

As TICs se revestem de peculiaridade em relação a outros produtos culturais humanos justamente por conta dos novos espaços de mediação que estabelece. Para Vivanco (2015), elas se convertem de simples instrumento em um novo tipo de ecossistema comunicacional para expressão das subjetividades, que pode tanto favorecer a homogeneização quanto a diversidade cultural. Essa natureza dupla, ou dual, das TICs permite que elas sejam utilizadas tanto para a manutenção das relações de opressão no contexto educacional quanto para a sua superação e libertação dos sujeitos. No segundo caso, é indispensável que elas se convertam em espaços de promoção do diálogo e da tomada de consciência crítica.

Se a inserção acrítica das TICs pode contribuir para o aprofundamento das relações de dominação e o viés bancário na Educação, esses são problemas ainda restritos aos considerados “incluídos(as)”, ou seja, da minoria que consegue ter acesso às tecnologias educacionais e, no caso da pandemia, à própria educação formal, sendo a maior parte formada por alunos(as) de escolas particulares. Não é o caso da maioria de alunos(as) de escolas públicas, que já não tinham acesso satisfatório às TICs antes, e que se encontram total ou parcialmente privados da educação escolar nesse período por não terem acessos às TICs requeridas pelo ensino remoto.

A desigualdade que tanto aflige a sociedade brasileira nos mais diversos aspectos (social, econômico, racial de gênero, etc.) se faz presente também na Educação, e enquanto discutimos os benefícios e malefícios da adoção de tecnologias educacionais, muitas escolas públicas ainda carecem de banheiro, de materiais didáticos, de carteiras escolares ou mesmo de professores. Isso não significa que devamos postergar o debate acerca das TICs na Educação até que todas as escolas tenham condições básicas de funcionamento, mas que qualquer debate dessa natureza deva ser contextualizado e levar em conta como os alunos das regiões menos desenvolvidas do país terão seu direito à igualdade e à aprendizagem assegurados num contexto em que as TICs se tornam fatores diferenciais de qualidade do ensino.

Ainda é cedo para avaliar com precisão os impactos da pandemia no aumento da desigualdade educacional no Brasil, mas os primeiros sinais começam a aparecer, como o recorde de mais de 50% de abstenção no Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM em 2020 (Oliveira, 2021), o que pode ser atribuído, entre outros fatores, à desistência de candidatos que não tiveram acesso regular à educação formal preparatória para o exame.

De todo modo, ela explicitou a urgência de avançarmos na compreensão dos impactos, das limitações, dos riscos e das potencialidades da aplicação das TICs na educação. Sem descuidar das questões de cunho técnico como da disponibilidade de infraestrutura e conectividade para todos, da formação de professores ou de adequações curriculares, é preciso combater as pressões pela mera digitalização da educação bancária diante da situação limite que a pandemia impôs e construir, a partir dessa crise, um inédito viável de educação emancipatória e democrática.

As possibilidades são consideráveis nesse sentido, mas elas não ocorrerão espontaneamente. Continua sendo necessária, talvez mais ainda agora, a práxis da Pedagogia do Oprimido, não para ele (o oprimido) mas dele enquanto sujeito que afirma sua vocação humana na busca do ser mais (Freire, 1987).

(IN)CONCLUSÕES

A esperança é exigência ontológica dos seres humanos. Mas à medida que homens e mulheres se tornaram seres de relações com o mundo e com os outros, sua natureza histórica se acha condicionada à possibilidade de concretizar-se ou não. (FREIRE, 2006, p. 30)

Importante ressaltar que algumas questões deste artigo podem seguir em aberto, em rotas ainda desconhecidas, na forma de estudos propositivos para compreensão das consequências atuais e futuras da pandemia que se desenvolvem no mundo de maneira acentuada.

Ao analisar o fenômeno da ampliação do uso das TICs na Educação durante a crise sanitária, buscou-se chamar a atenção para a necessidade de adoção de uma postura crítica que possibilite a sua objetificação enquanto produto da atividade cultural e do trabalho humano: “o que me parece fundamental para nós, hoje, mecânicos ou físicos, pedagogos ou pedreiros, marceneiros ou biólogos é a assunção de uma posição crítica, vigilante, indagadora, em face da tecnologia. Nem, de um lado, demonologizá-la, nem, de outro, divinizá-la” (FREIRE, 1998, p. 133).

Reconhecidamente, as telas dos computadores e dos smartphones no período da pandemia têm servido para conectar educandos/educandas e educadores/educadoras, mas até que ponto elas têm servido como canal de diálogo efetivo? Estariam elas possibilitando uma aproximação de fato desses sujeitos em um processo criativo e colaborativo de construção do conhecimento ou, pelo contrário, estariam contribuindo para o afastamento deles, na medida em que seu uso excessivo e acrítico personifica o aparelho e objetifica o usuário?

As tecnologias da comunicação e da informação podem tanto contribuir para a criação de novos espaços de diálogo entre educando e educanda e educador e educadora, e destes com o mundo, quanto para o aprofundar práticas bancárias de educação focadas na transmissão massiva, acrítica e antidialógica de conteúdos. Não é na tecnologia, portanto, que está a chave para uma educação voltada para a humanização dos sujeitos, mas nas próprias relações humanas que elas passam a mediar no ambiente escolar.

A luta pela libertação deve partir dos oprimidos e oprimidas, que primeiramente precisam desvelar os mecanismos de opressão que sobre eles atuam para então comprometerem-se com a sua transformação por meio de uma práxis de libertação permanente (Freire 1987). Reside aí a Pedagogia do Oprimido defendida por Paulo Freire, cuja necessidade continua atual.

As educadoras e educadores comprometidos com sua própria libertação e com a de seus educandos e educandas devem promover práticas pedagógicas que possibilitem a objetificação das tecnologias por eles e elas, para que se compreendam como parte desse mundo cada vez mais digitalizado e construam por si os significados que as TCIs podem ter em suas vidas como instrumentos da opressão que sofrem ou da libertação que almejam.

A docência não pode, portanto, se pretender neutra; pelo contrário, educadores e educadoras precisam ter consciência e atuação política sobre seu contexto para fazer frente aos padrões de dominação que sobre si também se abatem, como o da busca incessante pela transmissão de conteúdos de forma unilateral aos educandos e educandas. O clamor da educadora ou do educador pode soar como um alerta no sentido de despertar nas e nos estudantes a disposição de lutar por sua liberdade e pelas possibilidades de quem eles e elas possam vir a ser a partir de uma educação libertadora.

Para o retorno às aulas presenciais, projetam-se muitos desafios a serem vencidos pela educação, os quais vão além das questões da aprendizagem, englobando também aquelas relativas à sociabilidade e à afetividade. A própria concepção de escola como espaço delimitado por muros, grades e paredes foram relativizados com o isolamento social da pandemia. Também o currículo, a carga horária e as práticas pedagógicas deverão passar por reformulação a partir da midiatização das novas TICs incorporadas ao ambiente escolar.

O sentido dessas transformações, se em direção a mais liberdade ou mais opressão, não é um dado, mas uma construção coletiva que perpassa a contradição freireana opressor(a)- oprimido(a). Mais importante do que o formato atividades educativas daqui para frente e dos instrumentos didáticos utilizados é o tipo de relação que se estabelecerá entre educandas(os) e educadores(as), se baseados no diálogo crítico, criativo e democrático para a promoção do ser mais, ou nas relações hierarquizadas, acríticas, tecnicistas e de controle que levam ambos ao ser menos.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 26 de Novembro de 2020; Aceito: 26 de Novembro de 2020

Antongnioni Pereira Melo Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Brasília (PPGEdu-UCB-DF), Mestre em Educação Social e Intervenção Comunitária (IPS, Santarém Portugal), Especialista em Gestão de TI (IMP), graduado em Computação (UnB), membro do Grupo de Pesquisa Juventude, Educação e Sociedade (PPGEdu-UCB-DF).

Nelson Adriano Ferreira de Vasconcelos Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Brasília (PPGEdu-UCB-DF), historiador (CEUCLAR-SP), mestre (PPGE-UnB-DF), membro da Associação Nacional de História (ANPUH-DF), membro do Grupo de Pesquisa em Políticas Federais de Educação (PPGEdu-UCB-DF).

João César da Fonseca Neto Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Brasília (PPGEdu-UCB-DF), mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento (IPEA), especialista em Planejamento, Orçamento e Gestão Pública pela (FGV), graduado em Relações Internacionais (UnB) e servidor efetivo no cargo de Especialista de Financiamento e Execução de Programas e Projetos Educacionais do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE.

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