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Ensino em Re-Vista

versão On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.26 no.1 Uberlândia jan./abr 2019  Epub 06-Out-2023

https://doi.org/10.14393/er-v26n1a2019-1 

Dossiê Educação em Ciências, relações de gênero e sexualidades: velhos conflitos

“Eu comecei a dar uma aula mais biológica mesmo, porque é bem polêmico”: currículo de Ciências e Biologia e os atravessamentos de diversidade sexual e de gênero

"I started to minister a more biological class. Because it's very polymic ": curriculum of science and biology and dialogues of sexual and gender diversity

Roney Polato de Castro11 

Neilton dos Reis22 

1Doutor em Educação pela UFJF. Docente na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. E-mail: roneypolato@gmail.com.

2Doutorando em Educação pela UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail: neilton.dreis@gmail.com.


Resumo

O artigo se propõe a problematizar os atravessamentos entre educação em Ciências e Biologia e a abordagem das diversidades sexuais e de gêneros na escola. Tomamos como base as análises produzidas em uma pesquisa com professoras de Ciências e Biologia sobre gêneros não-binários. As análises inspiram-se nos estudos pós-críticos, que nos possibilitam lidar com as ciências, a educação, os gêneros e sexualidades como categorias históricas, sociais e culturais, constituídas nos jogos de poder e de linguagem. Sobretudo, direcionamos nosso olhar para currículos e conteúdos curriculares: tanto os forjados na cisheteronormatividade, que assumem narrativas científicas e ditas neutras, quanto os que desestabilizam conhecimentos e práticas normativas e anunciam outras relações, gêneros e sexualidades. Apostando no questionamento e na provocação, arriscamo-nos a ensaiar possibilidades para pensar as relações entre os currículos de ciências e biologia, as narrativas acerca dos gêneros e das sexualidades e a produção de experiências de estudantes e docentes.

Palavras-chave: Educação em Ciências e Biologia; Diversidade sexual e de gênero; Currículo

Abstract

The article proposes to problematize the crossings between education in Sciences and Biology and the approach of sexual and gender diversities in school education. We are based on the analyzes produced in a research with teachers of Sciences and Biology on non-binary genres. The analyzes are inspired by post-critical studies, which enable us to deal with science, education, gender and sexuality as historical, social and cultural categories, constituted in power and language games. Above all, we turn our attention to curricula and curricular content: both the forged ones in cisheteronormatividade, which assume scientific and "neutral" narratives, as well as those that destabilize normative knowledge and practices and announce other relations, genres and sexualities. Betting on the questioning and the provocation, and recognizing the limitations of this text, we risk to rehearse possibilities to think the relations between the school curricula of sciences and biology, the narratives about the genres and sexualities and the production of experiences of students and teachers.

Keywords: Education in science and biology; Sexual and gender diversity; Curriculum

A armadilha da identidade

A mais perigosa armadilha é aquela que possui a aparência de uma ferramenta de emancipação. Uma dessas ciladas é a ideia de que nós, seres humanos, possuímos uma identidade essencial: somos o que somos porque estamos geneticamente programados. Ser-se mulher, homem, branco, negro, velho ou criança, ser-se doente ou infeliz, tudo isso surge como condição inscrita no DNA. Essas categorias parecem provir apenas da Natureza. A nossa existência resultaria, assim, apenas de uma leitura de um código de bases e nucleotídeos.

Esta biologização da identidade é uma capciosa armadilha. Simone de Beauvoir disse: a verdadeira natureza humana é não ter natureza nenhuma. Com isso ela combatia a ideia estereotipada da identidade. Aquilo que somos não é o simples cumprir de um destino programado nos cromossomas, mas a realização de um ser que se constrói em trocas com os outros e com a realidade envolvente. A imensa felicidade que a escrita me deu foi a de poder viajar por entre categorias existenciais. Na realidade, de pouco vale a leitura se ela não nos fizer transitar de vidas. De pouco vale escrever ou ler se não nos deixarmos dissolver por outras identidades e não reacordarmos em outros corpos, outras vozes.

A questão não é apenas do domínio de técnicas de decifração do alfabeto. Trata-se, sim, de possuirmos instrumentos para sermos felizes. E o segredo é estar disponível para que outras lógicas nos habitem, é visitarmos e sermos visitados por outras sensibilidades. É fácil sermos tolerantes com os que são diferentes. É um pouco mais difícil sermos solidários com os outros. Difícil é sermos outros, difícil mesmo é sermos os outros.

Mia Couto (2011)

Introdução

No ano de 2007, Mia Couto proferiu uma intervenção no Congresso de Leitura COLE, na cidade de Campinas/SP, intitulada “Quebrando armadilhas”. Algum tempo depois a fala, junto a outras, compôs o livro E se Obama fosse africano? e outras interinvenções/Ensaios (2011). Mia Couto é biólogo como nós e se/nos coloca algumas reflexões muito pertinentes à área, entre elas o questionamento impiedoso ao essencialismo. O que o autor apresenta enquanto biologização nos parece ser os processos de fazer e ler a Biologia enquanto uma realidade inquestionável, uma verdadeira e definitiva descoberta de toda complexidade da vida, como a construção de verdades formuladas com tanto rigor que, também por isso, são mais legítimas que quaisquer outras. Trata-se de uma visão de Ciência que se coloca como discurso de verdade, silenciando o fato de que esse discurso é um constructo histórico, produzido em meio a cultura e às relações sociais.

Como licenciados em Biologia, atuando em escolas e no Ensino Superior, quando nos colocamos a pensar sobre os currículos de Ciências e Biologia e os (im)possíveis diálogos com as questões de gênero e sexualidade, somos surpreendidos, muitas vezes, pela verbalização de algumas justificativas para verdades que vão compondo esses diálogos: o conteúdo programático das disciplinas não prevê isso; a família não aceita que se possa discutir isso na escola; não é preciso discutir isso na sala de aula; ninguém está preparado o suficiente pra falar essas coisas. Frases como essas não são incomuns em nossas salas de aulas de formação docente, em projetos de extensão com professoras/es e estudantes da Educação Básica. Entretanto, consideramos potente o constante repensar e desnaturalizar essas verdades. É nesse sentido que Mia Couto inspira este início de artigo propondo a reflexão das armadilhas que nos colocamos quando pensamos as identidades e diferenças. O que (não) é um currículo de Ciências? Como se caracteriza uma aula de Biologia? Que (des)naturalizações acontecem nos discursos docentes? O que está em jogo nas disputas desses discursos? Qualquer dessas dimensões (sejam aulas, docentes ou verdades) possui alguma identidade essencial?

Da mesma forma como não somos “o simples cumprir de um destino programado nos cromossomas”, as aulas de Ciências e Biologia também podem ser encaradas como algo “que se constrói em trocas com os outros e com a realidade envolvente” e, assim, dignas de reflexão e questionamento para além de verdades engessadas. Da mesma forma que a escola pode se configurar para além “do domínio de técnicas de decifração do alfabeto”, professoras e professores de Biologia podem se “dissolver por outras identidades” e reacordar “em outros corpos, outras vozes”. Recebemos o convite de “viajar por entre categorias existenciais”, viajar pelo suposto antagonismo de natureza e cultura: aceitamo-lo.

Instigados por tudo isso, propomo-nos a pensar algumas pedagogias e conteúdos curriculares de Educação em Ciências e Biologia que se relacionam às questões de identidades, diferenças e diversidades sexuais e de gêneros. Esses currículos, como argumentaremos, são múltiplos e estão em constante disputa. Assim, lançamos olhar tanto aos forjados na cisheteronormatividade, que assumem discursos higienizadores, científicos e ditos neutros - aqueles que nos sinalizam que “difícil mesmo é sermos os outros”, quanto aos que desestabilizam conhecimentos e práticas normativas e anunciam outras relações, gêneros e sexualidades - percebendo que “o segredo é estar disponível para que outras lógicas nos habitem”.

Os materiais que nos agitam a esse movimento é um conjunto de narrativas produzidas em uma pesquisa com professoras de Ciências e Biologia sobre não-binaridades de gênero. Quatro professoras da rede estadual do Rio de Janeiro foram entrevistadas acerca de suas aulas, formações e saberes sobre as temáticas deste artigo. As entrevistas foram individuais, realizadas no ano de 2015 e seguiram um roteiro semiestruturado. Para este trabalho apresentaremos os trechos de falas de duas dessas docentes, nos quais identificamos elementos narrativos para pensar relações (im)possíveis entre Ciências e Biologia na escola e as diversidades sexuais e de gêneros. A Professora 1 é mulher, homossexual, formada em Biologia em 2005 na Faculdade de Formação de Professores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e com poucos anos de experiência docente. A Professora 2 é mulher, heterossexual, formada em 1985 na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e com mais de 20 anos enquanto professora da Educação Básica. As questões das entrevistas tiveram como foco a trajetória de formação e profissional, as compreensões das professoras sobre gênero, abordagens, práticas e objetivos da educação sexual em suas aulas.

Olhamos para as narrativas das professoras dentro de um tempo histórico, em meio a contextos sociais e culturais que nos permitem refletir sobre toda essa movimentação. Há tensões que desde a realização da pesquisa se tornaram mais presentes no debate público, como as discussões sobre os planos de educação e a base nacional curricular comum e o silenciamento e perseguição às abordagens sobre gênero e sexualidade nas escolas. Cientes desse contexto, prosseguimos as análises com foco no que as narrativas das professoras nos apresentam, nos colocando diferentes visões e formas de lidar com o tempo em que elas foram elaboradas. Seguimos discutindo algumas questões que nos agitam e que se enlaçam à proposta. Mia Couto permanece, trazendo para as reflexões aquilo que não podemos esquecer: a lembrança da disponibilidade para “visitarmos e sermos visitados por outras sensibilidades”.

1. “Às vezes a gente não tá sabendo lidar com essa efervescência...”: diversidades sexuais e de gêneros como novidade

É importante sinalizar que a agitação em discutir os enlaces entre diversidade, gênero, sexualidade e educação em Ciências e Biologia não é aleatória, não surge da imaginação das pesquisas acadêmicas. O relato de uma das professoras que concederam entrevista é significativo para pensar que, de certo modo, como fato ou como tema, nas aulas de Ciências e Biologia as diversidades sexuais e de gêneros podem aparecer como uma espécie de novidade. Às vezes inoportuna, incômoda, outras vezes indicativa de uma demanda que pode ser acolhida de diferentes modos, mas que frequentemente provoca insegurança e remete a uma formação que não teria contemplado essas questões.

Professora 23: Na época que eu tive essa situação no município; essa situação, por exemplo, da homossexualidade, não era uma coisa, não era algo que o município pegasse como base de trabalho. Então isso, no decorrer dos anos, é que a gente foi sentindo a necessidade de abordar. Aí a gente tem visto a necessidade de, pelo menos, conversar - conversar entre a gente, entre professores - porque, além de dúvidas que a gente percebe no grupo mesmo de professores - dúvidas em relação a como conduzir isso, às vezes a gente não tá sabendo em como lidar com essa efervescência que a gente tá vivendo na escola: menina com menina, menino com menino.

Pensando com a docente que narra suas primeiras aproximações com essas temáticas, problematizamos a ideia de que uma questão qualquer (e mesmo as formas de olhar para tal questão) está localizada temporal e espacialmente. Em outras palavras, ela diz de um tempo histórico que a possibilitou e impulsionou. É Michel Foucault que traz esse alerta, que a nossa investigação é algo que,

numa dada época, recorta na experiência um campo de saber possível, define o modo de ser dos objetos que aí aparecem, arma o olhar cotidiano de poderes teóricos e define as condições em que se pode sustentar sobre as coisas um discurso reconhecido como verdadeiro (FOUCAULT, 1999, p. 219).

Podemos dizer que as discussões que relacionam as diversidades sexuais e de gêneros com o campo da educação são recentes. Há poucas décadas, a escola e o currículo não eram espaços para sujeitos não-heterossexuais e não-cisgêneros, embora esses sujeitos os habitassem, marginalmente e de modo invisibilizado. Em seu relato, a professora diz desse movimento que constitui um fluxo entre as demandas sociais e políticas, em torno da afirmação de identidades subalternizadas e como, com o passar do tempo, os sujeitos vão reivindicando equidade no que refere aos direitos fundamentais. Os movimentos sociais organizados, tais como os feministas e LGBT+4, vêm reivindicanto a escola como espaço de problematização do status quo, ou seja, na potencialidade de mudança social a partir do trabalho sistemático com questões relacionadas às sexualidades e gêneros em seus aspectos sociais, culturais, históricos e políticos. Cada vez mais sujeitos dissidentes do regime heteronormativo que organiza a vida social contemporânea reivindicam a escola como espaço que deve acolher e respeitar as diversidades, mas que também teria como tarefa problematizar as hierarquias sexuais e de gênero (e tantas outras).

O fato de a professora e suas/seus colegas sentirem a necessidade de abordar, ou pelo menos de conversar, sobre a questão das homossexualidades é indicativo desse movimento e está para além dele, pois dialoga com a maior visibilidade que as sexualidades e gêneros vêm ocupando no debate público contemporâneo, a partir das políticas, das mídias, da Internet dentre tantas outras instâncias. Talvez possamos problematizar se essa demanda chega do mesmo modo para diferentes professoras e professores, no que se refere aos seus campos disciplinares de atuação. Em geral, podemos dizer que Ciências e Biologia são disciplinas com forte apelo às demandas por abordagem das sexualidades e gêneros, o que provoca, frequentemente, inseguranças que podem conduzir as professoras e professores a uma leitura condicionada pelo conhecimento biológico desvinculado das relações com o tempo histórico e com os condicionantes sociais e culturais.

2. “... a discussão, ela vem.”: o que escapa dos conteúdos de Ciências e Biologia

Professora 2: Então, assim, a abordagem atualmente, quando surge mesmo dentro do conteúdo ali alguma coisa que você possa escapar e que eles perguntem. Então, quando eles perguntam alguma coisa, que às vezes até foge, a discussão, ela vem. A gente não tem uma boa grade sistemática.

Pesquisador: Essas dúvidas e conversas informais, elas surgem em algum conteúdo específico, geralmente?

Professora 2: Surge em alguns conteúdos específicos. Quando você trabalha, por exemplo, a questão de genética, se você vai trabalhar a questão de gametogênese, a formação de gametas. Então, a gente acaba entrando num contexto que às vezes surge alguma pergunta. Eu tô falando assim nas séries que eu trabalho, que eu trabalho atualmente com segundo e terceiro ano, do Ensino Médio. Às vezes, mesmo quando você fala em alguma coisa que não seja da parte humana, vai falar de tipos de reprodução, hermafroditismo, vêm algumas questões. Por exemplo, a questão do hermafrodita, eles começam a colocar coisas que eles veem, do filme pornô, eles colocam muitas coisas assim. E aí são algumas questões de eles confundirem: hermafrodita com homossexual. Aí surge essas dúvidas. E aí às vezes eu coloco a questão biológica: então biologicamente você teria esses dois sexos, masculino e feminino, se você for olhar a sua cromatina lá sexual você vai ter essa definição. Mas no ponto de vista das relações, ou emocionalmente, você tem várias tendências ou vários caminhos. Então assim, eu tento colocar dessa maneira pra tentar desmistificar um pouquinho. [...] E aí a gente vai discutindo essa questão.

A mesma docente que, na sessão anterior, falava de sua aproximação com as questões de gênero e sexualidade, narra agora alguns exemplos das agitações que ocorrem no chão de sua sala de aula. Percebemos um voluntarismo da professora em tentar escapar das rigidezas impostas pelos conteúdos programáticos das disciplinas e, ainda, que esse é um movimento cada vez mais comum entre docentes que consideram a importância das discussões de diversidade e diferença (seja sexual e de gênero, seja étnico-racial, seja religiosa, etc.). Entretanto, é interessante pensar algumas concepções que permanecem pouco abaladas. Quando a professora traz, por exemplo, uma explicação da diferenciação sexo/gênero parece acionar conceitos de aspectos que seriam exclusivamente biológicos. Em outras palavras, aspectos que estariam em uma dimensão separada “do ponto de vista das relações”. No entanto, nos parece potente trazer a reflexão sobre a exclusividade de um determinismo natural para a ideia de sexo e a dicotomia que se produz quando se fala em sexo e gênero.

Pela narrativa da docente nos é apresentado o gênero como uma forma de organização social dos sexos, a partir de uma interpretação variável desses, em função de tempo e cultura. Essa definição tem acompanhado o debate tradicional desses termos há alguns anos. Mas, como faz Judith Butler (2003, p. 24), questionamos a “descontinuidade radical” entre um dado que seria essencialmente tido natural (o sexo biológico) e outro culturalmente fabricado (gênero). Sendo a própria ideia de que há um macho e uma fêmea na espécie humana (como na maioria das outras espécies) um dado culturalmente localizado, contestamos essa característica rígida do sexo. Ligamo-nos, então, à concepção de que o sexo (por ser um conhecimento) é tão cultural quanto o gênero. Judith Butler (2003, p. 34) provoca, ainda, apontando que “a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma”.

Sobre essa dicotomia, Anne Fauto-Sterling (2006, p. 17) diz que nossa concepção do que é o gênero masculino e o gênero feminino - o que é próprio de cada um, seus comportamentos e caráteres esperados - vão definir também o nosso sexo porque afeta o conhecimento científico que construímos sobre ele. É o que Judith Butler (2003, p. 25) vai definir dentro da matriz de normas de gênero, considerando o sexo como, também, “efeito do aparato de construção cultural que designamos por gênero”. Se pensarmos que a sociedade moderna se constituiu com base nos preceitos determinados pela Ciência e a importância que esta tem na (re)produção de saberes, podemos imaginar algumas armadilhas que enlaçam essa concepção polarizada gênero/sexo.

Com a problematização aqui tecida não apostamos no argumento de que os aspectos biológicos devam ser desconsiderados na compreensão dos processos de constituição que envolvem as sexualidades e gêneros. Tampouco estamos argumentando que as escolas devem adotar uma visão excludente desses aspectos ao promover Educação em Ciências e Biologia. O que propomos pensar é, como nos indica Butler (2003) acerca das distinções sexo/gênero, que talvez também não faça sentido investir na dicotomia biologia/cultura, ou seja, tomar esses temas na escola como questões pouco relacionadas ou, em alguns casos, até excludentes. Nosso argumento se situa na proposta de pensar que mesmo os conhecimentos biológicos são produto de uma cultura e de um tempo histórico, portanto, carregam consigo as marcas desse processo de produção. Isso afasta qualquer possibilidade de que as aulas de Ciências e Biologia possam tratar de forma pretensamente neutra temas como os apontados pela professora e outros.

Ao apresentar conhecimentos das Ciências Biológicas transpostos para o currículo escolar, as professoras e professores participam das operações de seleção que envolvem as decisões sobre o quê, como, quais e de que modos esses conhecimentos serão apresentados às/aos estudantes. Ao falar de reprodução, por exemplo, mesmo que não trate diretamente da vinculação desse processo biológico com uma possível leitura social e cultural, as/os docentes estão educando para a naturalização de um processo que é significado de diferentes modos nas distintas culturas humanas e mesmo no interior de uma dada cultura. Em especial, falar de temas como reprodução, gametogênese, ciclo menstrual, gravidez carrega as marcas do regime de verdade cisheteronormativo que organiza as relações sociais, de modo que nessas abordagens escolares é possível que se naturalize a hegemonia da heterossexualidade como única possibilidade legítima de sexualidade e a cisgeneridade como a composição normal dos corpos. Como nos alerta Jimena Furlani (2003), a ênfase do tratamento da sexualidade em seu aspecto reprodutivo diz do investimento em certa racionalidade que naturaliza o envolvimento sexual como atributo exclusivo de pessoas de sexo oposto; vincula e legitima o exercício da sexualidade ao que socialmente se atribui como etapas da vida naturalmente propícias à reprodução (como juventude e idade adulta), contribuindo para o argumento de que crianças e idosos não experienciam sexualidades; legitima a penetração vaginal como única prática sexual natural e aceitável, contribuindo para a marginalização de outras práticas sexuais; desvincula o exercício da sexualidade às experiências de prazeres e desejos; contribui para o engessamento de certa noção de família constituída por um casal heterossexual reprodutivo.

Transportar esses rompimentos para as aulas de Ciências e Biologia e colocar sob suspeita saberes forjados em certos processos formativos não é um movimento tranquilo. Mas, “a discussão, ela vem”. Felipe Bastos (2015, p. 129) indica que ela vem, geralmente, por três situações/abordagens dentro da Educação em Ciências e Biologia: do conflito, da ação isolada ou do gancho em outros temas. A abordagem da professora se aproxima do que o autor denomina de gancho, na qual “os conhecimentos tradicionalmente valorizados pelo currículo podem servir de apoio para legitimar outros saberes” (BASTOS, 2015, p. 140). Os conteúdos programáticos da Biologia, citados por ela, que permitiram tal abordagem (a reprodução, a gametogênese e o sistema urogenital) não servem apenas às professoras para fazer o gancho. Estes momentos do currículo parecem ser esperados por estudantes para, de certa forma, forçar discussões de diversidade, sexualidade e diferença na sala de aula. E nesse contexto, percebemos a importância das ações de estudantes como forma de trazer outros ares e outros conhecimentos ao conteúdo programático. Estudantes não apenas recebem um currículo, mas o compõem, o justificam, e são agentes fundamentais no processo de subjetivação a ele engendrado. Entendemos que as professoras, por vezes, sintam-se ameaçadas pelas culturas sexuais das/os estudantes, já que elas são vividas de modo distinto da cultura sexual escolar, ordenada por rígidas concepções normativas. As/os estudantes podem trazer questionamentos para os quais as professoras não se sentem preparadas. Porém, a agitação produzida pelos ares que elas/es fazem circular nas aulas de Ciências e Biologia é indicativo tanto da complexidade dessas categorias, quanto da produtividade de sua discussão ao tomarmos o currículo como produtor de subjetividades.

Rita Radl-Philipp (2014, p. 52) reforça essa concepção chamando a atenção para o papel das/os estudantes nas ações educativas. É inocente olhar esses indivíduos como sujeitos passivos. Seja numa cobrança em relação a expandir as discussões rumando à diferença, seja numa cobrança para retomar aos conteúdos tradicionais das Ciências Naturais. As atividades desenvolvidas por estudantes poderão manter padrões antigos sem o questionamento de relações de poder com docentes, por exemplo, ou assumir outros e novos significados e significantes. No que concerne ao gênero em específico, muitas vezes as/os estudantes reproduzem o esquema binário e heteronormativo, mas também podem completá-lo ou ressignificá-lo. Lorenzo Bernini (2012, p. 20) explora essa ressignificação apontando que gêneros e sexualidades marginalizados têm forçado a entrada no sistema educacional, rompendo com algumas matrizes.

Entretanto, Cláudia Vianna (2015, p.13) se posiciona nessa discussão, indicando que “o sistema educativo brasileiro segue ignorando a sexualização da infância e a existência das jovens e dos jovens LGBT”. Nesse sentido, a narrativa da professora 2 nos alerta para um currículo formalizado, que não parece favorecer a promoção da diversidade no Ensino Ciências e Biologia, ou mesmo no ambiente escolar.

Professora 2: São coisas interessantes, mas o que eu tenho sentido às vezes é que, por conta desse engessamento do currículo, essas discussões têm sido cada vez menores, a gente tem um espaço cada vez menor. Porque a gente é cobrado na questão desse cumprimento, porque quando você não cumpre - eu não cumpro, quase nunca consigo cumprir o que tem que ser dado ali dentro do conteúdo estabelecido pra que eles façam aquela prova - mas a escola cobra. E os alunos estão na tendência a cobrar também, porque caem coisas, de repente, que você não conseguiu abordar. Às vezes até essas discussões, algumas as coisas que a gente trata ali são, seriam mais proveitosas do que aquilo do currículo. Mas hoje eu tenho sentido essa restrição cada vez maior.

A fragmentação de conteúdos já é um caso histórico e amplamente discutido (COIMBRA, 2006, p. 70), mas as novas configurações (do Currículo Mínimo no estado do Rio de Janeiro, como o caso da professora) dificultam ainda mais uma abordagem desintegrada e não-sistêmica da disciplina. Em diversos momentos a professora relata que não há espaço para planejamento específico da unidade escolar e o planejamento imposto verticalmente está sendo testado a partir de avaliações de metas, como a prova do Saerjinho (Sistema de Avaliação Bimestral da Educação do estado do Rio de Janeiro). Além disso, em algumas avaliações externas, a quantidade de meninas grávidas compõe a nota da escola - quanto maior o número de grávidas, menor a pontuação da escola. Os dados das avaliações externas são tabelados de maneira comparativa entre as escolas e, na voz de Professora 2, o sistema funciona “igual uma empresa”. Tudo isso parece pressionar ainda mais a Educação em Ciências e Biologia. Em outras palavras, a prevenção à gravidez entre jovens escolares recaiu sobre a educação escolar com uma nova roupagem: a de metas a serem cumpridas para o bem da escola, a fim de atingir os bônus salariais prometidos pelas secretarias. Esse mecanismo pode gerar, ainda que indiretamente, uma obrigatoriedade no tratamento da temática da gravidez - e no tratamento dessa temática numa ótica negativa e naturalizada, colocando as meninas tanto como culpadas pelo fracasso na sua trajetória escolar idealizada, como pelo rendimento que a escola espera alcançar.

As aulas de Ciências e Biologia vêm sendo, frequentemente, utilizadas para abordar a gravidez de modo a prevenir que as jovens incorram no que as escolas tendem a interpretar como um erro. Não nos cabe problematizar todas as nuances que envolvem essa discussão nas escolas, mas apontamos alguns argumentos para pensar a educação em Ciências e Biologia nesse contexto. A naturalização do conhecimento biológico como isento de vínculo com as culturas e relações sociais pode dificultar uma análise mais contextualizada das experiências de gravidez entre jovens, organizando práticas pedagógicas pautadas nas concepções morais que as professoras e professores carregam consigo. Assim, as aulas podem se transformar em prescrição de comportamentos moralmente adequados, tomando como base as lições científicas.

Embora os temas tratados nas aulas possam parecer desvinculados de qualquer significado cultural, social e histórico, as abordagens sobre gravidez e outros temas atravessados pelas sexualidades e gêneros, são orientadas por determinadas concepções. Pode ser relevante tomar contato com essas concepções e perceber quais nos constituem e, portanto, constituem nossos saberes, práticas e relações com as/os estudantes. Com isso, é possível que as professoras e professores transformem os temas abordados em algo mais complexo, como por exemplo, no caso da gravidez, colocando sob suspeita a naturalização do cuidado com filhos/as, proteção e amor materno como características femininas relacionadas com o controle dos corpos de mulheres. Junto a isso, problematizar a desresponsabilização dos homens nos processos de gravidez e educação de crianças. Se as aulas de Ciências e Biologia são recheadas de oportunidades para abordar as sexualidades e gêneros como organizadores sociais e constituidores de subjetividades, pode ser relevante estar em contato com as concepções que subjagem essas abordagens.

3. “... eles começaram a perguntar algumas coisas muito sem noção mesmo”: currículo de Ciências e Biologia e as culturas sexuais das/os estudantes

Pesquisador: Nas suas aulas de Ciências ou Biologia, você costuma falar de sexualidade em algum conteúdo?

Professora 1: Sim, sim. Principalmente na parte do oitavo ano que fala de corpo humano. A gente acaba abordando a questão da reprodução, sistema reprodutor masculino feminino, né! E no EJA, que é Educação de Jovens e Adultos, eu tentei ir um pouco além, falar um pouco de sexualidade, das coisas que não são normativas, não somente heterossexual, mas homossexual. Enfim, com o EJA eu consegui até ter uma discussãozinha, que a sexualidade é muito mais que o ato sexual reprodutivo em si, tem várias expressões. Com o EJA deu. Agora com os alunos adolescentes foi meio traumático, porque sempre tem um aluno que é muito pra frente, assim, na turma. E eu sou um pouco tímida, vou reconhecer. Então eu comecei a falar, tentar puxar algumas coisas e eles começaram a perguntar algumas coisas muito sem noção mesmo. Sem noção tipo, posso dar até um exemplo: “ah, porque tem gente que sente prazer com dedada no cu”. Porra, assim cara, isso aí assim, nesses termos assim.

Apesar das diferenças nas experiências, formações, identidades e gerações das duas professoras entrevistadas, nos parece possível perceber quaisquer aproximações quando observamos as concepções e práticas docentes. A tentativa de explorar as questões de gênero e sexualidade a partir da associação com certos conteúdos permanece presente: “a gente acaba abordando a questão da reprodução, sistema reprodutor masculino feminino né”. Da mesma forma, algumas problemáticas dessas abordagens também permanecem (a ideia de um sistema reprodutor, por exemplo), o que pode se caracterizar como uma concepção e complexidade própria dessa dinâmica. Como utilizar esse gancho com conteúdos tão tradicionais para expandir a discussão sem problematizar? Como não questionar a própria produção do conhecimento e conteúdo que será utilizado para a associação? Como fazer esse questionamento dentro de uma área tão tradicional? São perguntas que não carecem de respostas concretas ou generalizantes, mas nos indicam que algumas reflexões são possíveis.

Quando, por exemplo, a professora exemplifica o que chama de “algumas coisas muito sem noção mesmo”, com a afirmação do estudante de que “ah, porque tem gente que sente prazer com dedada no cu”, podemos pensar no distanciamento que ela tem e/ou assume naquele momento de alguns saberes que circulam entre estudantes e que não estão previstos nos conteúdos programáticos. As diversas formas de prazeres, os desejos, as identidades não-heteronormativas, as diferenças são só alguns exemplos daquilo que pode emergir e ser silenciado, indicando novamente a possibilidade de tratar o currículo como lugar de operações de poder, que envolve seleções, escolhas, hierarquias. Como indicava a Professora 2, existem conhecimentos que vêm de filmes pornôs, de dúvidas, de outras experiências. Conhecimentos que ganham forma e vão ressignificar currículos e práticas docentes. Conhecimentos que são acontecimentos, uma vez que vão mais longe e fazem “com que o encontro com as relações penetre e corrompa tudo, que mine o ser, faça-o vacilar” (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 70). A professora vacila - “é complicado” -, mas a “dedada no cu” já está lançada na sala de aula, o acontecimento e o conhecimento do prazer já circulam.

Acontecimentos que fazem vibrar os currículos, que ensinam, que constroem experiências, que produzem sujeitos. “Se aprender é uma experiência que envolve todo o ser, e não a troca entre um sábio e um ignorante, o ensino ajusta-se às condições da aprendizagem, desde que ele próprio seja uma experiência” (ZOURABICHVILI, 2005, p. 1310). Não são apenas estudantes que se produzem a partir dos acontecimentos dos encontros entre diferença e diversidade e Educação em Ciências e Biologia, mas também docentes que podem se transfigurar. Não haverá o sábio versus o ignorante, mas muitos sujeitos e discursos disputando sentidos e currículos, imbricados em relações de poder-saber.

As duas professoras acionam em seus relatos um dos componentes que Deborah Britzman (2001) indica como interessantes para pensar a abordagem escolar das sexualidades e relações de gênero: a curiosidade. Tal elemento se expressa no inesperado que contraria as respostas estáveis e esperadas que organizam a cultura da escola, a qual tem valorizado o ensino de fatos. Nessas ocasiões, em que a curiosidade é abafada, as/os estudantes “saem da aula sem ter obtido qualquer compreensão sobre suas preocupações, sobre seus desejos, sobre relações sexuais” (BRITZMAN, 2001, p. 86). A autora nos auxilia a pensar na complexidade dessas relações, ou seja, não se trata somente da proibição e da repressão, existem muitos obstáculos quando se coloca a questão dos atravessamentos entre curiosidade, liberdade e sexualidade. Algo que passa pelas professoras e suas dificuldades, limitações, medos e dúvidas, mas também pela própria cultura escolar e o modo como tende a engessar as relações pedagógicas, sustentando as grades que aprisionam os saberes. As “coisas muito sem noção mesmo”, como relata a professora 1, desafiam a estabilidade dos conhecimentos biológicos escolarizados e a ordem escolar que coloca o conhecimento como “expressão de respostas certas ou erradas e, portanto, apenas como conhecimento de fatos” (idem, p. 68).

“Aí depois dessa turma eu comecei a dar uma aula mais biológica mesmo, porque é bem polêmico”: o acontecimento se desdobra. A professora que não se sente preparada, propõe nova pedagogia: a aula que é mais biológica. As reflexões também se desdobram: o que pode ser considerado “mais biológico”? Que dinâmicas estão associadas a essa concepção? Com que dimensões deixamos de operar quando assumimos essa postura e como se produzirão as consequências disso? A polêmica se instaura para quem, por quais motivos, em quais circunstâncias?

4. “... não me sinto preparada pra discutir isso...”: interrogando a formação

Professora 1: E aí uma coisa que a gente não tá, que eu não me sinto preparada pra discutir isso com adolescente. Aí depois dessa turma eu comecei a dar uma aula mais biológica mesmo, porque é bem polêmico. Começa as perguntas assim e eu não me sentia tão confortável pra entrar nesse assunto com os jovens. Talvez até uma falta de formação minha, mais específica. Porque eu também nunca fiz nenhuma pós, nem nada, nenhum curso mais específico nessa área. Apesar de ler bastante coisa sobre. Eu gosto de ler, mas depois dessa aí, depois dessa turma eu já fiquei com um pé atrás. É complicado.

Não sentir-se preparada: a justificativa para uma aula “mais biológica”. Algo que nos dá a pensar: a professora sente-se preparada quando se trata de uma aula “mais biológica”? E por que não com outros tipos de aula? Haveria uma preparação que dê conta da complexidade das relações em sala de aula? Tensões se produzem na relação entre cultura escolar e formação docente, já que existem assuntos considerados “mais polêmicos” nas aulas de Ciências e Biologia, encampados pelas/os estudantes a partir de perguntas com as quais as professoras não se sentem confortáveis. Perguntas, portanto, que desestabilizam uma proposição pedagógica, um currículo, uma ordem escolar. Assuntos cuja polêmica pode se situar na tensão entre a vontade de saber das/os estudantes no que tange às sexualidades e gêneros e um currículo factual, científico, que associa às aulas de Ciências e Biologia essas categorias, o que esbarra na formação: ela contemplaria tais discussões? E por que o questionamento da formação? Que formação? Apesar de “ler bastante coisa sobre”, a professora 1 sente falta de uma formação que pudesse dar conta das perguntas que a fazem ficar com “um pé atrás”.

A formação inicial, nos cursos de licenciaturas, tem sido alvo de questionamentos sobre sua eficácia, sua vinculação prática com o cotidiano escolar e sua capacidade de instrumentalizar docentes na tarefa de ensinar conteúdos considerados relevantes para a vida social e para o trabalho, promovendo uma educação de qualidade. “Tais enunciados são parte de uma rede discursiva que faz circular significados e construir sentidos sobre a docência e a formação docente tomando, com frequência, tais conceitos como dados não problematizáveis.” (CASTRO, 2014, p. 56). A professora 1, em sua fala, aponta outro questionamento: uma formação que não daria conta de preparar para questões que emergem das/os estudantes e que não estão previstas, formalmente, no currículo oficializado. Colocar sob suspeita essa formação pode ser um caminho para pensar nas relações entre Educação em Ciências e Biologia e as abordagens das diversidades sexuais e de gêneros. Um primeiro aspecto a considerar são os modos como as licenciaturas vêm se organizando, a partir de uma ênfase nos conteúdos conceituais específicos das áreas em detrimento valorativo dos conhecimentos que concernem ao que se designa por uma formação pedagógica. A formação conteudista investe sobre os sujeitos, reforçando uma noção de que formar-se como docente, e ser um/a bom docente, é dominar todo o conteúdo de uma área. A pretensa segurança para as aulas “mais biológicas” pode estar relacionada a esse investimento.

Outro aspecto a destacar na fala da professora é que ela identifica um hiato entre a formação universitária e as práticas escolares, como se existissem dois tempos: o tempo da teoria, nos cursos de formação inicial, quando podemos conhecer e utilizar diversas perspectivas teóricas ao analisar as questões educacionais; e o tempo do cotidiano da escola, que exigiria uma resposta rápida, muitas vezes imediata, fazendo com que as/os docentes não consigam parar e pensar, no tempo necessário, que distanciaria a realidade da teoria. Isso se acentua quando se trata das expressões das sexualidades e dos gêneros, vistas como incêndios a serem apagados, porque perturbam a normalidade das relações pedagógicas (CASTRO, 2014). Consideramos relevante problematizar essa noção. A descontinuidade entre formação e escola não seria um modo de indicar que os conteúdos biológicos, atrelados aos campos das ciências de referência (Zoologia, Botânica, Bioquímica, Genética, Biologia Celular, etc.), estariam pouco ou nada relacionados com as sexualidades e gêneros. Preferimos pensar que a formação não tem investido na complexidade desses conteúdos, ou seja, pouco investe na relação deles com as experiências do vivido pelos sujeitos em suas interações com o mundo. O hiato, portanto, não seria sinônimo de falha dessa formação, como se fosse possível que ela contemplasse tudo o que o cotidiano escolar pode vir a apresentar, mas sim certa concepção de conhecimento.

Colocando em questão a aposta na ideia de que haveria um distanciamento entre a formação universitária, representando a teoria, e as escolas, que representariam a realidade, pode estar em jogo certa noção de que os currículos de formação nas licenciaturas em Ciências Biológicas estariam impregnados por uma visão padronizada de sexualidade e gênero normais, que atravessa e constitui as relações sociais e a cultura, e, portanto, também os currículos das licenciaturas e das escolas. Tal noção dialoga com pressupostos que tomam uma heterossexualidade e cisgeneridade como destino ao qual todas as pessoas devem se submeter e que, portanto, subjaz as práticas pedagógicas, construindo uma visão padronizada de estudante - sujeito masculino ou feminino e heterossexual, gerando sentimentos de desprepararo “para lidar com aquelas/es que são posicionados nas margens da normalidade, nas fronteiras entre o masculino e o feminino, entre a heteroe a homossexualidade, escapando ao binarismo instituído para as expressões dos gêneros e para os desejos e prazeres.” (CASTRO, 2014, p. 67).

Seria uma formação mais específica, uma “pós”, algo que traria a preparação ou a segurança necessárias a uma abordagem sobre as diversidades sexuais e de gêneros nas escolas? O relato da professora 1 que tomamos como objeto de problematização nos faz pensar na lógica que organiza a constituição das docências: o lugar do saber, do saber científico, um saber totalizante capaz de abarcar quaisquer perguntas ou situações na sala de aula. Sobretudo, uma lógica em que saber e verdade estão mutuamente implicados, tornando invisível o efeito de poder que dirige as ações de docentes e estudantes nas salas de aula. A insegurança, portanto, estaria atrelada a uma falha no processo de formação entendido como aquisição de conhecimentos e competências que seriam garantia exercitar a docência de modo adequado.

A fala da professora nos dá a pensar nos sentidos de formação que atravessam as licenciaturas e participam da construção das noções de pertencimento à docência. Considerando os processos formativos a partir das microrrelações constitutivas dos sujeitos, através das quais nos tornamos, continuamente, o que somos, deslocamos esses sentidos para algo mais que uma relação de aprendizagem direta de elementos da profissão docente, ou seja, mais que conteúdos conceituais a serem ensinados e técnicas sobre como ensinar. Com isso, assumimos a complexidade desses processos, tomando-o como processo ético-estético-político de constituição de sujeitos docentes. A formação seria, desse modo, um tempo-espaço para problematizar e transformar a docência, não mais como uma função profissional, mas como “compromisso ético-político com a vida, com as relações sociais, com a construção de relações menos pautadas em assujeitamentos e hierarquias das diferenças.” (CASTRO, 2014, p. 54).

Considerações Finais

Neste artigo, nos propusemos a pensar algumas relações possíveis entre a Educação em Ciências e Biologia e as diversidades sexuais e de gêneros. Nosso intuito não foi apontar qual a melhor, a mais correta ou a verdadeira relação entre esses campos, mas apresentar de que modos ela se organiza em alguns cotidianos escolares. As aulas de Ciências e Biologia educam para as relações de gênero, para as sexualidades, para a constituição de sujeitos que pensam seus corpos, seus comportamentos, suas experiências, seus desejos a partir de certos referenciais. Entre continuidade e ruptura, talvez seja oportuno colocar sob suspeita uma organização curricular que pode reiterar certas construções sociais, culturais e históricas da heteronormatividade. Sobretudo, questionar a pretensa neutralidade científica dessas disciplinas na abordagem de questões que envolveriam uma explicação unicamente biológica - e de certa biologia - ao associar sexualidades e gêneros a aspectos como reprodução, genética, ciclos hormonais, tratando-os de modo desvinculado de quaisquer contextualização. Isso se coloca como um desafio diante de cotidianos escolares e processos formativos docentes forjados em regimes heteronormativos, mas, como indicam as próprias professoras entrevistadas, parceiras deste artigo, um desafio que não é intransponível. Não haveria, portanto, formação que proporcionasse uma preparação segura e automática para questões tão pulsantes quanto aquelas que as crianças e jovens trazem para a escola. É na micropolítica da sala de aula, no tensionamento das relações de forças experienciadas ali, na conjugação com saberes que circulam por outras vias, é que pode estar a potência do debate.

Com isso, apostamos na escola e na formação docente como tempos-lugares de problematização do mundo, com a missão de nos provocar a duvidar de nossos saberes, do que somos, e ir produzindo transformações ético-estéticas e políticas. As professoras que aceitaram partilhar conosco experiências com as aulas de Ciências e Biologia assumem a generosidade de nos afetar com suas narrativas, fazendo-nos pensar nas situações vividas, deslocando modos de pensar as aulas, os currículos, os processos formativos, indicando a produtividade de tomá-las como objeto de problematização.

“A nossa existência resultaria, assim, apenas de uma leitura de um código de bases e nucleotídeos”? Interrogamo-nos com Mia Couto (2011). E, ainda: a existência de uma aula, de uma discussão, de um acontecimento poderia resultar de um manual de trabalho com as diversidades sexuais e de gêneros na Educação em Ciências e Biologia? Não nos propomos a ditar quaisquer técnicas e/ou soluções para as polêmicas, conflitos, surpresas e (des)encontros que possam ocorrer quando as temáticas atingem uma aula e causam as narradas desestabilizações (sejam em estudantes, sejam em professoras/es). Apostamos, ao contrário, na potencialidade que o atrito, que o encontro com novas narrativas (com os outros), que a diferença parece inventar.

Referências

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1Doutor em Educação pela UFJF. Docente na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. E-mail: roneypolato@gmail.com.

2Doutorando em Educação pela UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail: neilton.dreis@gmail.com.

3O número indica a ordem em que as entrevistas foram realizadas.

4Referência a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. A sinalização com um “+” indica que a sigla vem se ampliando, de modo que outros tantos sujeitos estão incluídos.

Recebido: Março de 2018; Aceito: Dezembro de 2018

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