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Ensino em Re-Vista

versão On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.26 no.3 Uberlândia set./dez 2019  Epub 15-Ago-2023

https://doi.org/10.14393/er-v26n3a2019-10 

Artigos

A centralidade das infâncias e do brincar na transição da educação infantil para o ensino fundamental

The centrality of childhood and play in the transition from early childhood education to elementary school

Arlete Aparecida Bertoldo Miranda1 
http://orcid.org/0000-0003-0259-8117

Daniella Salviana Faria2 
http://orcid.org/0000-0003-4042-9867

1 Doutora em Educação. Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Minas Gerais, Brasil. arlete@ufu.br.

2 Mestre em Educação. Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Minas Gerais, Brasil. daniella_gtl@hotmail.com.


Resumo

A infância tem sido objeto de estudo no Brasil, especialmente nas últimas décadas, o que levou a um avanço no âmbito do conhecimento científico e ainda na garantia de direitos das crianças. Em meio a esses estudos, o brincar e a educação nas instituições escolares têm despertado debates e reflexões sobre as políticas que regulamentam a escolarização das crianças. Este artigo que é fruto de uma pesquisa de mestrado preocupa-se em sinalizar as manifestações do lúdico e do brincar no cotidiano escolar do 2º período da Educação Infantil e do 1º ano do Ensino Fundamental, com centralidade na infância e nas crianças. Busca-se compreender de que forma o lúdico, o brincar e a infância são concebidos pelos professores e pelas crianças em um Colégio de Aplicação. Elencamos elementos teóricos que se articulam com o protagonismo das crianças, em diálogo com as políticas públicas para infância e práticas pedagógicas.

Palavras-chave: Lúdico; Infância; Cotidiano Escolar

Abstract

Childhood has been the subject of study in Brazil, especially in the last decades, which has led to advances in scientific knowledge and the guarantee of children's rights. In the midst of these studies, play and education in school institutions have aroused debates and reflections on the policies that regulate the schooling of children. This article, which is the result of a master's research, is concerned with signaling the manifestations of play and play in the school routine of the 2nd period of Early Childhood Education and the 1st year of Primary Education, with a central role in childhood and children. It seeks to understand how play, play and childhood are conceived by teachers and children in an Application College. We list theoretical elements that are articulated with the protagonism of children, in dialogue with public policies for childhood and pedagogical practices.

Keywords: Entertainment and joyful activities; Childhood; School everyday routine

Introdução

As características da infância no contexto da globalização tem despertado o interesse de pesquisadores como Postman (1999), Sarmento (2001, 2003), Kramer (1999 e 2007), Kuhlmann (1998), que buscam compreender os impactos do cenário atual no desenvolvimento das crianças. Percebe-se que existe uma grande pressão para que cada vez mais cedo as crianças cresçam e assumam responsabilidades. As mudanças são reflexos da organização da sociedade capitalista global. Santos (2001) aponta que nos últimos trinta anos, o capitalismo conseguiu consolidar o domínio cultural e construir um novo modelo de civilização baseado na lógica do mercado, expandindo esse fundamento para todos os aspectos da vida social, transformando a educação em mercadoria.

O impacto da globalização neoliberal é determinante e limitador da qualidade de vida de todos os grupos sociais, principalmente dos grupos socialmente excluídos ao longo da história, onde incluímos o grupo da infância. Para tentar compreender a infância no contexto da sociedade, reflete-se sobre a situação de vulnerabilidade das crianças diante dos indicadores de pobreza, marginalização, exploração do trabalho infantil, e para além dessas questões, percebemos uma forma de exclusão através da invisibilidade e ausência das “vozes” das crianças nos centros de decisões.

No contexto escolar não tem sido diferente. A lógica do mercado tem perpassado o cotidiano das escolas, das famílias e até mesmo das políticas públicas educacionais. Cada vez mais, busca-se por uma aceleração das aprendizagens, principalmente das crianças pequenas. Diante desse contexto, são vários os desafios que as escolas têm enfrentado. A pressão incisiva das famílias, de políticas públicas em busca de uma aceleração do tempo de aprender, especialmente, ao longo do processo de alfabetização. O predomínio da linguagem oral e escrita tem nos provocado questionamentos sobre a hierarquia desta linguagem sobre as demais. Concorda-se que ambas são de suma importância para a formação da criança, entretanto, entende-se que o desenvolvimento infantil engloba muitas outras linguagens e formas de aprender e que estas devem ser consideradas em todo o processo de formação.

Reflete-se neste trabalho sobre o tempo da infância no âmbito educacional, especialmente no último ano da Educação Infantil e no 1º ano do Ensino Fundamental. Nesse sentido, preocupa-se com a estrutura das políticas públicas que regulamentam a escolarização das crianças, sobretudo nestes dois anos de ensino.

Em busca de respostas para tais indagações, investiga-se através da pesquisa de campo o cotidiano escolar de uma turma do 2º período da Educação Infantil e de uma turma do 1º ano do Ensino Fundamental de um Colégio de Aplicação vinculado a uma Universidade Federal de uma cidade do interior de Minas Gerais, a fim de compreender possíveis impasses e possibilidades de organização do cotidiano escolar de forma a contemplar e respeitar as especificidades da criança e ainda o tempo da infância.

Para a realização do estudo, optamos pela abordagem qualitativa. A escolha por esse tipo de abordagem se justifica pela necessidade de apreender o cotidiano das instituições de ensino, por meio de uma aproximação com os sujeitos que lá estão. “A pesquisa qualitativa supõe o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo investigada” (LÜDKE e ANDRÉ, 1986, p. 11). Nesta forma de estudo, há uma tentativa de captar a perspectiva dos participantes, ou seja, como eles percebem as questões que estão sendo postas.

Desta forma, para além do estudo do cotidiano escolar, foi realizada uma revisão bibliográfica sobre a temática, recorrendo à pesquisa documental para subsidiar as discussões sobre as políticas e normas que regulamentam o Ensino Fundamental de nove anos. Nesse contexto, atenta-se às possibilidades do que as crianças estão a nos dizer e ainda às concepções que fundamentam a prática pedagógica das professoras.

Na construção deste estudo, depara-se com alguns embates teóricos que foram utilizados para referenciar nosso percurso. Diante disso, torna-se necessário explicitar que a teoria que fundamenta nossa pesquisa é a histórico-cultural. Entretanto, em um contexto em que busca-se compreender a criança e a infância em uma perspectiva histórica, cultural e social, não pode-se desconsiderar as contribuições dos estudos da área da Sociologia da Infância. As pesquisas científicas nesta área têm colaborado expressivamente nos estudos sobre as crianças e a infância, apresentando uma perspectiva em que a infância é uma categoria socialmente construída e nela a criança é um ator social que produz cultura e nela é produzida.

Prestes (2013, p. 303) afirma que, “sem dúvida alguma, há claras divergências entre a sociologia da infância e a teoria histórico-cultural”. Esta autora se propôs a analisar alguns desses pontos divergentes a partir das críticas realizadas por Corsaro (2011) sobre as ideias de Vigotski. O primeiro ponto é de cunho epistemológico. Prestes (2013) discorre que:

Como se sabe, em seus estudos, Vigotski sempre deixou claro que pretendia fazer uma análise psicológica do desenvolvimento humano, consequentemente, uma análise psicológica do desenvolvimento da criança. Não fazia parte de seus planos estudar a criança numa perspectiva sociológica e, se Corsaro (2011) argumenta que a sociologia foi influenciada pelas teorias dominantes da psicologia do desenvolvimento, não é a Piaget e a Vigotski que devem ser voltadas as críticas. Outra questão que fica bastante evidente, ao compararmos os fundamentos da sociologia da infância e da teoria histórico-cultural, é o papel da criança. Se para a Sociologia da infância a criança é produtora de cultura, na teoria histórico-cultural os instrumentos culturais são meios para o desenvolvimento humano, mas não fins (PRESTES, 2013, p.303-304).

Nesse sentido, entendemos que apesar dos pontos de divergência nas bases teóricas que fundamentam tais teorias, existem muitos pontos que nos auxiliam a pensar num possível diálogo construtivo na ampliação de um olhar que considere a criança em suas múltiplas expressões no contexto social e cultural. Assim, propõe-se a elaborar ass discussões abordando as contribuições da Sociologia da Infância, tendo a clareza de que esta tarefa não é tão simples, mas essencial para compreendermos a construção do conceito de infância na contemporaneidade.

A construção social do ser criança e do brincar na contemporaneidade

O caminho em busca da definição dos termos infância e lúdico perpassam por vários olhares construídos a partir dos tempos e espaços vividos e que, neste trabalho, constituem o nosso. “O indivíduo não tem apenas meio e ambiente, tem também horizonte próprio [...] aqui eu existo para o outro com o auxílio do outro” (BAKHTIN, 2003, p. 394). Desse modo, a constituição dos vários olhares sobre o objeto de pesquisa não pode ser tratada como verdade absoluta, imutável, mas oferece uma oportunidade de dialogar sobre os conhecimentos construídos a fim de provocar reflexões das questões relacionadas à infância, ao lúdico e ao ser criança na sociedade contemporânea.

O conceito de infância na contemporaneidade é reflexo de uma configuração histórica, social e cultural construída ao longo dos tempos, e que deve ser considerado diante de diferentes contextos. A imagem da infância que se defende nesse trabalho é a de um grupo social com direitos, entendendo as crianças como sujeitos sociais e históricos, produtores de cultura, e que devem ser respeitados e considerados em todas as suas especificidades.

Dessa forma, para se compreender a criança e a infância que se discute no âmbito deste estudo é necessário considerar que estas não são categorias únicas e universais, e sim, existem diante de uma multiplicidade de contextos em todo mundo. Assim, em um mesmo país podemos perceber uma pluralidade de infâncias que coexistem em um mesmo espaço e tempo.

Diante da diversidade de infâncias e crianças que compõem o cenário deste estudo, atenta-se para o que é específico da infância: o brincar. Atualmente, a imagem da infância é enriquecida, com o auxílio de estudos que desenvolveram concepções psicológicas e pedagógicas, que reconhecem as especificidades da criança, e ainda o papel de brinquedos e brincadeiras no desenvolvimento e na construção do conhecimento infantil. “As crianças brincam, isso é o que as caracteriza. [...] As crianças viram as coisas pelo avesso e, assim, revelam a possibilidade de criar” (KRAMER, 2007, p. 15).

Na história social e cultural da infância, podemos destacar o brincar como característica peculiar do “ser criança”. As crianças brincam, criam, constroem conhecimentos que lhes permite apropriar do mundo nas suas relações de interações com o meio, com as pessoas e com as atividades lúdicas. Através do lúdico, vem à possibilidade de recriar, transformar, reelaborar e compreender os dados da realidade. Assim, as crianças constroem uma relação aberta e positiva com a cultura.

A partir de tais reflexões, consideramos importante o papel da Educação no processo de desenvolvimento da criança, uma vez que o desenvolvimento infantil depende das condições históricas, sociais e culturais. A escola precisa buscar a compreensão das especificidades que compõem o universo infantil. Ao pensar-se no brincar e suas relações no espaço escolar, depara-se com pesquisas que denunciam a sua ausência no cotidiano escolar, principalmente à medida que as crianças avançam para os anos do Ensino Fundamental. Parte-se do pressuposto de que a escola é um espaço social onde a cultura infantil é reproduzida, criada e vivenciada pelas crianças. No entanto, para que isso aconteça as propostas curriculares precisam garantir espaços e tempos para a criação, para o brincar, para propiciar às crianças vivências que lhes permitam compartilhar os elementos que fazem parte da cultura.

Em meio às inúmeras contradições que demarcam o contexto escolar, o brincar entendido como experiência de cultura, vem sendo discutido há muito tempo. Os paradoxos que demarcam a principal atividade infantil desvalorizam seu processo em si e começa a ter uma conotação vinculada aos interesses da sociedade.

Os pressupostos tradicionais sobre a singularidade das crianças estão desaparecendo rapidamente. O que temos aqui é o surgimento da ideia de que não se deve brincar só por brincar, mas brincar com algum propósito externo. (POSTMANN, 1999, p. 145).

À medida que a infância desaparece, desaparece também a concepção infantil de brincar. Nesse sentido, preocupa-se com as concepções que perpassam no interior das instituições educativas, e ainda com as políticas públicas educacionais que regulamentam direta e/ou indiretamente o trabalho pedagógico. Defende-se que os direitos sociais sejam assegurados e que as escolas levem em consideração as singularidades das ações infantis, o direito ao brincar e a produção cultural em todos os níveis de ensino (KRAMER, 2007).

A institucionalização da infância e a configuração de Políticas Públicas Educacionais para crianças.

Os aspectos históricos e sociais da infância provocam reflexões acerca da institucionalização deste grupo social. As concepções sobre a infância vão sendo construídas e constituídas em uma relação dialética. Diante disso, buscou-se apresentar um resgate histórico, político e social que permita construir uma reflexão sobre a garantia dos direitos das crianças, as políticas públicas para a infância, e ainda, aspectos da trajetória das políticas públicas educacionais que configuraram o ensino fundamental de nove anos.

Prout (2010) aponta que, nas últimas duas décadas, em diversas sociedades, houve uma onda crescente de ideias defendendo a participação e a voz das crianças. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de novembro de 1959 foi um dos marcos em relação aos avanços dos direitos infantis, abordando artigos que enalteceram aspectos referentes à sua participação como atores sociais.

A Declaração Universal dos Direitos das Crianças que foi ratificada no Brasil, pelo artigo 84, inciso XXI da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7º, reconhece o lúdico como expressão cultural e educativa, inalienável ao direito das crianças: “a criança terá ampla oportunidade para brincar e divertir-se, visando os propósitos mesmos da sua educação; a sociedade e as autoridades públicas, empenhar-se-ão em promover o gozo desse direito” (BRASIL, 1988). Nesse sentido, a legislação busca o reconhecimento da criança, e ainda garantir a vivência de uma infância com direitos, inclusive o direito de brincar.

Os avanços advindos da era pós-industrial contribuíram significativamente para a visibilidade da infância na sociedade, no entanto, vêm provocando inúmeras transformações nos âmbitos histórico e social. No Brasil, os movimentos sociais e as mobilizações de vários setores nos anos de 1970 e 1980 possibilitaram a abertura política em busca da redemocratização no país. Com isso, as lutas em prol da infância, recebeu amplo apoio das Organizações não Governamentais (ONGs) e de muitos segmentos sociais, garantindo a aprovação da Lei nº 8069/1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que objetiva garantir o direito das crianças e dos adolescentes de se desenvolver integralmente em condições de liberdade e dignidade. No entanto, mesmo com as significativas mudanças nas políticas públicas brasileiras, muitos dos direitos das crianças e dos adolescentes garantidos por Lei não foram efetivados.

No Brasil, ainda é muito recente a democratização da escola. A Lei de Diretrizes e Bases de 1996 (LDB nº 9.394/1996) propiciou uma ampliação dos direitos das crianças pequenas, e ainda contribuiu para o reconhecimento da criança como sujeito, que deve ser respeitada, que faz parte da sociedade, que produz cultura e nela é produzida. No entanto, ressaltamos novamente que apesar das inúmeras lutas em prol da infância e do acesso a uma educação de qualidade, ainda são muitos os caminhos que temos que trilhar para que isso se efetive na prática, especialmente no campo da Educação Infantil.

O processo de transformação da sociedade brasileira, que sofreu grandes modificações principalmente a partir da segunda metade do século XX, influenciou diretamente nas relações entre os sujeitos, como a intensificação da urbanização, a participação da mulher no mercado de trabalho e as mudanças na organização e estrutura das famílias. A partir de tais modificações, a demanda por instituições que recebem crianças pequenas aumentou e continua a crescer. Com isso, foi intensificado o debate e práticas que buscam construir propostas curriculares para esta etapa da educação em busca do reconhecimento como etapa fundamental na formação dos sujeitos.

Recentemente, a Educação Infantil foi legalmente integrada ao sistema educacional brasileiro, sendo considerada como primeiro nível da Educação Básica. A formulação da LDB nº 9.394/1996 trouxe várias mudanças significativas na organização da oferta de atendimento em creches e pré-escolas. A Educação Infantil embora ainda não tivesse caráter de obrigatoriedade para as famílias, passou a incluir as crianças de 0 a 6 anos de idade no setor educacional. As creches, definidas de acordo com a faixa etária atendida (crianças entre 0 e 3 anos de idade), também foram incluídas neste setor, transferidas de áreas como a assistência social e a saúde. Sem dúvidas o reconhecimento da Educação Infantil como primeiro nível da Educação Básica trouxe inúmeras contribuições para a valorização da infância.

A organização das políticas públicas para Educação no Brasil é reflexo das contradições entre os projetos educacionais marcados pela atuação de setores mais progressistas da sociedade durante o período da transição democrática e os projetos que foram gestados em outros setores sociais por novos protagonistas na área das políticas públicas, como organizações empresariais, profissionais de áreas mais identificadas com os interesses econômicos e diversas organizações da sociedade civil (CAMPOS, 2010). Nesse sentido, muitas leis e emendas aprovadas são fruto desses conflitos e embates no campo político.

O campo da Educação Infantil no Brasil tem delineado seu percurso a partir de intensas lutas, debates e movimentos sociais em busca de reconhecimento e valorização desta etapa fundamental no desenvolvimento das crianças. No entanto, as recentes mudanças na educação básica têm resultado em processos conflitantes, que por um lado apresenta propostas aliadas a discursos de progressão e valorização da infância, mas que ao mesmo tempo, implicitamente, parece estar negando as especificidades das crianças e afetando principalmente a Educação Infantil.

A alteração na LDB nº 9.394/1996 por meio da Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013, oficializa a mudança feita na Constituição por meio da Emenda Constitucional nº 59 em 2009. Esta Emenda Constitucional altera o inciso I do artigo 208, que se refere ao dever do Estado perante a educação: “Educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria”. Assim, a educação básica passou a contemplar os dois últimos anos da educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio. A previsão era de que a medida fosse implementada progressivamente, até 2016.

As mudanças no campo político educacional parecem refletir uma série de acordos implícitos relacionados ao setor financeiro e não somente a uma busca pela melhoria da educação no país. Assim, apesar de sua importância, a Emenda Constitucional nº 59 anuncia um desmonte da Educação Infantil ao falar da obrigatoriedade da educação básica apenas a partir dos quatro anos. Com isso, a creche volta para a penumbra e todas as lutas e discussões sobre política pública, financiamento, movimento da base de 0 a 3 anos volta para a questão assistencialista. Ao tirar as creches do campo da educação básica, o Governo constrói um imaginário de educação básica, em que a educação de 0 a 3 anos não é valorizada. Um dos efeitos que o conjunto dessas medidas parece causar é

A tendência de crianças cada vez mais jovens serem empurradas para as etapas seguintes da educação, sem que as escolas e as práticas educativas sejam antes adaptadas para as especificidades de sua faixa etária. (CAMPOS, 2010, p. 11).

Defende-se a busca por uma Educação Infantil sólida, em que a infância seja compreendida em sua totalidade. Apesar das mudanças trazidas pela lei, as crianças continuam sendo crianças. Assim, ao olharmos para a Lei nº 12.796/2013 nos parece em um primeiro momento, que está valorizando o campo da Educação Infantil, mas isto não se faz sem custo, uma vez que, outra parte fica desassistida.

O Ensino Fundamental de nove anos: o que é fundamental?

Atualmente, a Educação Infantil é responsável pelo atendimento das crianças de 0 a 5 anos de idade. A faixa etária determinada para compor este nível de ensino é resultado de recentes alterações nas políticas públicas educacionais. A obrigatoriedade ocorreu em decorrências do cumprimento de uma das metas da educação nacional, estabelecida no Plano Nacional de Educação (PNE) e aprovada pela Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001.

A Lei Federal nº 11.114/2005 alterou os artigos 6º, 32 e 87 da Lei nº 9.394/96 tornando obrigatório o início do ensino fundamental aos 6 anos. Com isso, o Conselho Nacional de Educação, no parecer CNE/CEB nº 6/2005 (BRASIL, 2005) alertou que seria necessário ampliar o ensino fundamental para nove anos, aconselhando que as mudanças fossem discutidas com as comunidades. No entanto, os prazos estabelecidos não propiciaram espaço e tempo para que ocorressem essas discussões. Assim, no ano seguinte, a Lei nº 11.274/2006 alterou a LDB nº 9.394/1996 ampliando a duração do ensino fundamental obrigatório para nove anos, o prazo para implementação em todos os municípios brasileiros era até o ano de 2010.

Essa mudança teve como principal consequência a inclusão das crianças de 6 anos na faixa da educação considerada obrigatória, diminuindo as matrículas no último ano da pré-escola e aumentando aquelas nas classes iniciais. Barbosa e Craidy (2012) criticam como a Lei foi implementada, afirmando que outras opções poderiam ter sido discutidas para garantir o direito a uma ampla escolarização obrigatória. O discurso da ampliação do ensino fundamental mostra-se centrado na ideia de uma política afirmativa de direitos, buscando a ampliação do direito subjetivo à educação. Assim, o ingresso mais cedo no sistema de ensino oferecia maiores oportunidades de aprendizagem, para que as crianças possam prosseguir os estudos até os mais altos níveis de escolaridade.

O discurso da universalização da educação oculta outros motivos que mobilizaram a determinação da política de ampliação do ensino fundamental de nove anos. A vertente econômica através da criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (FUNDEF) em 1996 foi configurando um novo tipo de ingresso. Diante do baixo financiamento da educação infantil, muitos municípios passaram a incluir as crianças de 6 anos de idade no ensino fundamental, com a intenção de arrecadar uma cota maior do fundo, uma vez que, os valores de repasse eram relacionados com a quantidade de alunos. Com isso, muitas crianças ingressaram no ensino fundamental sem uma proposta adequada, desconsiderando todas as especificidades das crianças dessa idade, e ainda desvalorizando mais a educação infantil. Assim, entende-se que a política de ampliação do ensino fundamental para nove anos apresenta implicitamente um cunho político e econômico, mascarando os reais interesses da proposta.

Diante desse quadro, preocupa-se com a criança de seis anos de idade que vivencia em seu cotidiano mudanças educacionais que desconsideram suas singularidades, diante de propostas pedagógicas convencionais do ensino fundamental. A ampliação do ensino fundamental interfere em toda estrutura organizacional da escola, no processo pedagógico, no currículo, nas concepções de professores e familiares a respeito do ensino, da aprendizagem, dos tempos e espaços tanto da educação infantil como do ensino fundamental.

Ser criança nas experiências escolares: possibilidades no interior das instituições educativas.

Compreende-se que a rotina da escola se configura em um amplo e dinâmico movimento que compõe o cotidiano. O universo plural que é o cotidiano escolar revela-se como um mundo de possibilidades, permeado por uma dinamicidade, por transformações, contradições, e para além de tudo isso, como um espaço de construção de conhecimentos não só pelas crianças, mas para todos que estão nele inseridos. Diante dessa dinamicidade, o professor, assim como as crianças, assume um papel de protagonista neste cenário.

A tarefa de organizar um currículo que contemple as exigências das políticas públicas e ao mesmo tempo dialogue com as especificidades das crianças, sem desconsiderar seus espaços e tempos para o brincar não é algo tão simples. Uma vez que, as políticas públicas para a educação são marcadas por contradições que muitas vezes expressam através de textos normativos propostas que valorizem a infância, o brincar, mas que o discurso implícito e sua implementação na realidade das escolas brasileiras vão à contramão dos caminhos apontados.

Nesse sentido, depara-se com inúmeros desafios que permeiam o cotidiano escolar, mas ao mesmo tempo, reconhece-se que podem ser levantadas algumas possibilidades de organização dos espaços e tempos da sala de aula que considerem as múltiplas linguagens das crianças, e que busquem caminhar na direção da garantia de direitos das crianças, bem como a valorização da infância.

Os desafios para que a brincadeira esteja presente no cotidiano da sala de aula permeiam tanto o cotidiano da Educação Infantil, quanto o do Ensino Fundamental. Por um lado, o campo da Educação Infantil tem enfrentado cada vez mais pressões para que as crianças sejam alfabetizadas o quanto antes e, por outro lado, o Ensino Fundamental precisa lidar com o desafio de alfabetizar sem perder de vista o tempo da infância. Assim, conforme afirmam Martins, Abrantes e Facci (2016) as situações lúdicas podem assumir várias dimensões. É possível que o professor reconheça o brincar como atividade cultural de constituição humana que tem como finalidade o próprio processo da brincadeira, e ao mesmo tempo, conseguir conciliar atividades lúdicas com objetivos pedagógicos.

Nos contextos em que se realizou a pesquisa, as professoras traziam diferentes propostas de jogos para as turmas do 2º período da Educação Infantil e do 1º ano do Ensino Fundamental. Dessa forma, as crianças vivenciavam a experiência do brincar de inúmeras maneiras que permitiam que cada uma elaborasse suas vivências de acordo com suas possibilidades. A organização de espaços e tempos para o desenvolvimento do brincar na sala de aula propiciou a manifestação lúdica de diferentes formas.

O brincar muda com o tempo, dependendo dos interesses infantis que também vão se modificando. Nesta perspectiva, entende-se que a postura do professor que se propõe a escutar o que as crianças estão dizendo não significa que ele deva ficar invisível, nem tampouco realizar todos os desejos que as crianças trazem, mas sim de compreender o que as crianças estão vivendo em seus entornos, o que elas têm a nos ensinar e, a partir disso, pensar em como podemos agregar isso ao que pensamos com elas. O grande desafio do professor é estar presente, sempre aberto, acolher, discutir e viabilizar o que as crianças trazem. Diante disso, percebe-se o quanto o olhar atento do professor para os interesses das crianças pode contribuir no sentido de oferecer espaços e tempos que favoreçam o desenvolvimento do brincar de diferentes formas no cotidiano escolar.

As crianças participantes do estudo mencionaram ao longo de todo desenvolvimento da pesquisa a importância do brincar, do lúdico, o que nos leva a considerar a importância da garantia de espaços e tempos para isso. Nesse sentido, as crianças apontam para a construção de um currículo a partir do lúdico, em seu sentido mais amplo, da criação, da arte, do brincar, das culturas, do simbolismo. Um currículo em que as culturas da infância sejam construídas e reconstruídas por cada criança. Corsino (2007) aponta que:

É importante que o (a) professor (a) pense nas crianças como sujeitos ativos que participam e intervêm no que acontece ao seu redor porque suas ações são também forma de reelaboração e de recriação do mundo. Nos seus processos interativos, a criança não apenas recebe, mas também cria e transforma - é constituída na cultura e também é produtora de cultura. As ações da criança são simultaneamente individuais e únicas porque são suas formas de ser e de estar no mundo, constituindo sua subjetividade e visão do coletivo, na medida em que são contextualizadas e situadas histórica e socialmente. [...] Nessa perspectiva, conhecer a criança implica observar suas ações-simbolizações, o que abre espaço para a valorização de falas, produções, conquistas e interesses infantis e faz da sala de aula um espaço de socialização de saberes e confronto de diferentes pontos de vista - das crianças, do professor, dos livros e de outras fontes - fazendo o trabalho se abrir ao novo, inédito, imprevisível e surpreendente. (CORSINO, 2007, p. 62).

A partir da análise dos dados construídos com os participantes do estudo, consideramos que os professores possuem clareza de que as situações lúdicas são determinantes para o processo de desenvolvimento das crianças, independentemente de se encontrarem na Educação Infantil ou Ensino Fundamental. Entretanto, apesar de apresentarem tais percepções, ainda identificamos alguns cenários que apontam para uma cisão entre os segmentos do Ensino Básico e um antagonismo de concepções sobre o brincar que permeiam o imaginário das crianças, das famílias e da escola.

Oliveira (2010) afirma que os frutos que colhemos hoje de uma Educação Infantil fragilizada sob o ponto de vista pedagógico e político é resultado de uma Educação Infantil assistencialista que vivemos durante anos e também reflexo da ausência de políticas públicas voltadas especialmente para este nível de ensino. No mesmo sentido reforçamos que além de orientar teoricamente, as políticas públicas deveriam nortear ações efetivas para articular e assegurar a passagem das crianças entre as etapas de ensino sem perder de vista as características da infância. Kramer (2006) fundamenta nossa reflexão ao apontar que:

Educação Infantil e Ensino Fundamental são indissociáveis: ambos envolvem conhecimentos e afetos; saberes e valores; cuidados e atenção; seriedade e riso. O cuidado, a atenção, o acolhimento estão presentes na Educação Infantil; a alegria e a brincadeira também. E, nas práticas realizadas, as crianças aprendem. Elas gostam de aprender. Na Educação Infantil e no Ensino Fundamental, o objetivo é atuar com liberdade para assegurar a apropriação e a construção do conhecimento por todos. Na educação, o objetivo é garantir o acesso de todos, que assim o desejarem, a vagas em creches e pré-escolas, assegurando o direito de brincar, criar, aprender. Nos dois temos grandes desafios: o de pensar a creche, a pré-escola e a escola como instâncias de formação cultural; o de ver as crianças como sujeitos de cultura e história, sujeitos sociais. (KRAMER, 2006, p. 810).

No decorrer das investigações deste, depara-se com possibilidades de caminhos que sinalizam pequenas construções no âmbito da valorização da infância, do lúdico e do brincar nos contextos escolares. Dentre eles, destaca-se a construção de um espaço mediado pela psicóloga com o objetivo de escutar as crianças e dialogar sobre as mudanças vivenciadas; o diálogo com as famílias, no sentido de compartilhar as múltiplas possibilidades de desenvolvimento das crianças; a organização de espaços e tempos para o brincar na sala de aula; a flexibilidade do planejamento; a garantia de atividades que permitiam que as crianças se expressassem através de várias linguagens; a construção de um espaço de escuta e acolhida das falas das crianças; enfim, ações que apontam pequenas possibilidades de organização do cotidiano escolar em que o lúdico esteja presente tanto na Educação Infantil, quanto no Ensino Fundamental.

O diálogo com as famílias é uma ferramenta importante que pode auxiliar na compreensão do desenvolvimento integral da criança, de suas expressões através de múltiplas linguagens, e com isso ir aos poucos diminuindo a ansiedade das famílias e até mesmo das crianças, principalmente em relação ao processo de alfabetização. Na medida em que as crianças avançam para o 1º ano, os discursos que reforçam a substituição dos espaços e tempos para o brincar se tornam mais presentes, fortalecendo a ideia de que ao ingressar no Ensino Fundamental as crianças se tornam apenas alunos. Na busca pelo esclarecimento sobre essas questões, a professora regente do 1º ano do Ensino Fundamental, propôs no início do ano uma reunião para apresentar a configuração deste ano de ensino, no sentido de acolher as dúvidas das famílias e esclarecer que as crianças continuariam permeando suas interações por meio de circunstâncias lúdicas. Assim, reafirma-se que a infância se constitui em uma categoria social ampla que não está relacionada com os anos de escolarização, e que, portanto, não se finda aos seis anos de idade.

A brincadeira presente no contexto da sala de aula não é algo tão comum. Garantir espaços e tempos para o brincar exige planejamento e, ainda, sensibilidade e respeito ao tempo da infância. No 2º período da Educação Infantil e no 1º ano do Ensino Fundamental vivenciou-se diversas situações em que se organizaram espaços e tempos para que ocorresse a brincadeira espontânea. Em muitos desses momentos, as professoras participavam do movimento das crianças, oferecendo materiais variados para potencializar a atividade imaginativa. Nos dois contextos as propostas dirigidas de brincadeiras e jogos também fizeram parte da rotina das turmas. Entendemos que o papel do professor junto às crianças pequenas consiste em organizar ambientes propícios para que aconteçam situações lúdicas independentes e igualmente em elaborar propostas dirigidas. Ambas as situações podem propiciar diversas possibilidades de aprendizagens, não necessariamente relacionadas a conteúdos escolares. O brincar pode e deve não só fazer parte das atividades curriculares, sobretudo na Educação Infantil e no Ensino Fundamental, como também ter um tempo preestabelecido durante o planejamento em sala de aula (FRIEDMANN, 2006).

O cotidiano da sala de aula é permeado pela espontaneidade das crianças a todo o momento. Nesse sentido, a flexibilização, do planejamento e do tempo, favorece a possibilidade de explorar uma mesma atividade de diferentes formas a fim de contemplar os interesses e necessidades das crianças. No 2º período da Educação Infantil e no 1º ano do Ensino Fundamental vivenciou-se diversas situações em que as crianças ressignificaram as funções dos objetos, atribuindo-lhes novos sentidos, significados, apontando para outra forma de brincadeira. Diante disso, as professoras reestruturavam o planejamento de modo que pudesse contemplar as necessidades que as crianças estavam demandando naquele momento. De acordo com Lerner (2001), para romper com o ensino conteudista e fragmentado, é necessário planejar a utilização do tempo de modo a flexibilizar a duração das situações didáticas e oportunizar que um mesmo conteúdo seja contemplado em diferentes perspectivas.

Nesta perspectiva, a organização do currículo por projetos de trabalho, possibilitou, no 2º período da Educação Infantil e no 1º ano do Ensino Fundamental, um conjunto de ações articuladas e desafiadoras que se desenvolveram a partir dos interesses das crianças e contaram com a participação dos alunos, dos profissionais da escola, dos familiares e comunidade em geral. A construção dos projetos permitiu a exploração de diferentes tipos de jogos e brincadeiras, de trabalhos coletivos, a flexibilização do tempo, discussões em que as crianças expressavam suas ideias e hipóteses, por meio da arte, da dança, da música, da pintura, enfim, todos esses elementos presentes no cotidiano escolar favoreciam a construção de propostas lúdicas a partir de temáticas levantadas pelas crianças.

A valorização das múltiplas linguagens, das diferentes formas de expressão e a valorização da criatividade possibilita a organização de um currículo que contemple as especificidades das crianças, sem desconsiderar o processo de alfabetização. O universo da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental tem se configurado como cenários de discussões relacionadas às políticas públicas que buscam a consolidação da alfabetização. Todavia, neste estudo vimos que este universo está repleto de outras manifestações e interesses e não apenas de linguagem escrita. As crianças interagem, criam, experimentam, brincam, se constituem como sujeitos pensantes ativos no contexto social.

O cenário de aceleração da aquisição da leitura e escrita e de desvalorização do lúdico na Educação Infantil e no 1º ano do Ensino Fundamental aparece de forma implícita nas concepções que perpassam os documentos que orientam a organização do Ensino Fundamental de nove anos. Para além dos documentos, este cenário tem se constituído como algo positivo no âmbito social e tem sido muitas vezes tratado como um produto mercadológico, especialmente em instituições de ensino privadas. As Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (2010) orientam a organização de um currículo para a Educação Infantil que propicie experiências que favoreçam a imersão das crianças nas diferentes linguagens e o progressivo domínio por elas de vários gêneros e formas de expressão: gestual, verbal, plástica, dramática e musical. Nesta perspectiva, concordamos que a leitura e a escrita são linguagens determinantes em nossa cultura letrada. Entretanto, nosso questionamento se dá nas formas e mecanismos utilizados pelas políticas públicas que apontam para uma supervalorização da alfabetização que muitas vezes estão relacionadas apenas com objetivos políticos partidários e deixam de lado os educacionais.

Sendo assim, aponta-se neste trabalho para a construção de um currículo lúdico, cultural, dialógico, que constitua uma proposta de organização escolar em que o brincar seja acompanhado de liberdade de tempo, espaço e criação, que contemple um currículo pautado na formação da sensibilidade, no qual a conexão de vínculo que acontece entre a criança e o mundo durante a brincadeira seja valorizada como a essência da cultura humana. Deseja-se para nossas crianças uma escola brincante e uma sociedade lúdica.

Conclusões

O estudo qualitativo sobre o cotidiano escolar de uma escola com crianças é permeado por vivências, movimentos, diferentes concepções, práticas e saberes, conflitos, expectativas, relações e interações, enfim, por uma diversidade de questões que o tornam singular. Nesse sentido, entende-se que este estudo não tem um ponto final e muito menos a intenção de ditar regras a serem seguidas. Em todos os momentos pretende-se propiciar um diálogo com o leitor, com o intuito de discutir questões, levantar possibilidades sobre uma temática que no campo da educação é tão importante. Criar diálogos é uma das mais relevantes finalidades da educação. Eles são pontes que conectam pessoas e territórios, gerando deslocamentos, sentidos e aprendizados - previstos e imprevistos (CRAEMER, 2015). Ao dialogarmos temos a possibilidade de emergir no universo do outro, num movimento de alteridade, que permite redescobrirmos a nós mesmos. Desta forma, constituímos nosso lastro como humanidade e também nossa individualidade (CRAEMER, 2015). Sendo assim, tais reflexões apontadas ao longo deste texto são temporárias e refletem as leituras e vivências no 2º período da Educação Infantil e no 1º ano do Ensino Fundamental da escola investigada.

Diante do contexto da educação no Brasil sabe-se que a organização escolar é reflexo de políticas públicas educacionais elaboradas ao longo da história e amplamente relacionadas com questões políticas e financeiras. Nesse sentido, a literatura que fundamentou este trabalho apontou inicialmente para uma desvalorização da categoria da infância e uma fragilidade da Educação Infantil no contexto nacional, fruto de uma visão assistencialista que descaracteriza a relevância deste nível de ensino. O reconhecimento legal da Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica foi, sem dúvida, um avanço. No entanto, por outro lado, ainda depara-se com a ausência de propostas que valorizem a Educação das crianças, principalmente, de 0 a 3 anos. A fragmentação das etapas de ensino têm se configurado como um problema que perpassa a Educação Infantil e especialmente a passagem para o Ensino Fundamental. O que era para ser a continuidade de um processo integral de desenvolvimento das crianças acaba se tornando um momento de transformação das crianças em apenas alunos.

No âmbito político são inúmeras as contradições e propostas que caminham na contramão da luta para a garantia de uma vivência plena da infância nas escolas brasileiras. A partir da investigação no cotidiano escolar percebe-se que o lúdico perpassa a proposta política pedagógica curricular da instituição. Assim, identifica-se ações que indicam que os professores que participaram do estudo compreendem o lúdico e o brincar num sentido amplo e os valorizam como elementos fundamentais para a constituição das crianças. As concepções dos professores fundamentam a organização de suas práticas pedagógicas. Portanto, em muitos momentos, foram planejados espaços e tempos para o brincar. Apesar da compreensão dos professores da importância do lúdico e do brincar na infância, ainda existem inúmeros desafios e barreiras que precisam ser rompidas para a construção de uma escola brincante.

Em todos os contextos percebe-se o quanto as crianças foram além das propostas. Nos momentos de brincadeiras livres presenciou-se interações de uma riqueza imensa, em que as crianças dialogaram, resolveram conflitos, criaram, propuseram situações de leitura e escrita, enfim, se expressaram utilizando múltiplas linguagens.

As crianças estão sinalizando que independente de estarem cursando o 1º ano do Ensino Fundamental, elas ainda apresentam o desejo de brincar, de explorar as diversas linguagens. Dessa forma, conclui-se que todos os caminhos apontam para a construção de um currículo cultural, em que as crianças possam criar e recriar suas culturas com seus pares, criando um ambiente acolhedor em que os professores reconheçam as vozes das crianças e seus discursos e garantam espaços para suas expressões espontâneas. Nesse sentido, a escola se constituiria em um cenário onde crianças, professores e familiares dialogam, trocam opiniões e aprendem mutuamente, ou seja, um espaço em que as crianças possam ter tempo e liberdade para respirar, para criar e, essencialmente, para brincar. Apesar de se tratar de uma discussão complexa, alguns caminhos podem ser trilhados a partir de uma mudança de olhar na relação que a criança assume no cotidiano escolar, o que propõe-se inicialmente é ouvir, dialogar e considerar o que as crianças estão dizendo. Não se trata de algo inatingível ou inalcançável, mas sim de pequenas mudanças que podem iniciar no contexto da escola.

Por fim, as reflexões propiciadas por este estudo desafiam a todos a pensar em estratégias na defesa por uma escola construída com crianças, compreendendo que a educação das crianças pequenas requer uma política social e de vida que deve caminhar em direção à valorização da infância. Temos clareza de que este trabalho está apenas começando, mas conclui-se neste momento com a certeza de que os próximos caminhos a serem trilhados serão guiados por aquelas pessoas que tanto têm a nos ensinar - as crianças.

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Recebido: 1 de Setembro de 2018; Aceito: 1 de Maio de 2019

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