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Ensino em Re-Vista

On-line version ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.27 no.spe Uberlândia Dec. 2020  Epub June 29, 2023

https://doi.org/10.14393/er-v27nea2020-17 

Artigos

A honestidade como valor moral: uma construção possível e necessária na escola

Honesty as moral value: a possible and necessary construction in school

Honestidad como valor moral: una construcción posible y necesaria en la escuela

Rita Melissa Lepre1 
http://orcid.org/0000-0002-0096-3136

Patrícia Elisabeth Ferreira2 
http://orcid.org/0000-0002-8761-2725

1Livre-Docente em Psicologia da Educação. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Bauru, SP, Brasil. melissa.lepre@unesp.br

2Mestre em Docência para a Educação Básica. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Bauru, SP, Brasil. pattyelisabethferreira@gmail.com


RESUMO

Impelidos pelos problemas de corrupção e desonestidade vivenciados em nosso país, a intenção deste trabalho é discutir as razões que levam o ser humano a tal comportamento e as possíveis formas de amenizar essa conduta. Elegemos o valor honestidade para ser objeto de pesquisa e descrevemos quais as contribuições deste valor moral na construção da autonomia e na formação do caráter Infantil. Realizamos uma análise pautada na perspectiva psicogenética abordando os principais aspectos do desenvolvimento moral, segundo Piaget (1932/1994), e outros teóricos que investigaram como a honestidade pode ser ensinada racionalmente e construída de maneira cooperativa e democrática. A pesquisa intervenção de abordagem qualitativa foi aplicada nos anos iniciais, contendo três fases: (1) Pré-teste, (2) Programa de Intervenção e (3) Pós-teste. Os resultados permitiram observar que, após o programa de intervenção, as crianças reprovaram a desonestidade e associaram suas concepções a vários aspectos imorais já conhecidos, como: roubo, trapaça e mentira.

PALAVRAS-CHAVE: Escola; Honestidade; Moralidade; Valor moral

ABSTRACT

Impelled by the problems of corruption and dishonesty experienced in our country, the intention of this paper is to discuss the reasons that lead the human being to such behavior and the possible ways to mitigate this conduct. We chose the honesty value to be the object of research and describe the contributions of this moral value in the construction of autonomy and in the formation of the Child character. We conducted an analysis based on the psychogenetic perspective, addressing the main aspects of moral development, according to Piaget (1932/1994), and other theorists who investigated how honesty can be rationally taught and built in a cooperative and democratic way. The intervention research with a qualitative approach was applied in the initial years, containing three phases: (1) Pre-test, (2) Intervention Program and (3) Post-test. The results showed that, after the intervention program, the children disapproved of dishonesty and associated their conceptions with several immoral aspects already known, such as: theft, cheating and lying.

KEYWORDS: School; Honesty; Morality; Moral value

RESUMEN

Impulsados por los problemas de corrupción y deshonestidad experimentados en nuestro país, la intención de este trabajo es discutir las razones que llevan al ser humano a tal comportamiento y las posibles formas de mitigar esta conducta. Elegimos el valor de la honestidad como objeto de investigación y describimos las contribuciones de este valor moral en la construcción de la autonomía y en la formación del carácter del Niño. Llevamos a cabo un análisis basado en la perspectiva psicogenética, abordando los principales aspectos del desarrollo moral, según Piaget (1932/1994), y otros teóricos que investigaron cómo la honestidad puede enseñarse y construirse racionalmente de manera cooperativa y democrática. La investigación de intervención con un enfoque cualitativo se aplicó en los años iniciales, que contiene tres fases: (1) Prueba previa, (2) Programa de intervención y (3) Prueba posterior. Los resultados mostraron que, después del programa de intervención, los niños desaprobaban la deshonestidad y asociaban sus concepciones con varios aspectos inmorales ya conocidos, tales como: robo, engaño y mentira.

PALABRAS CLAVE: Escuela; Honestidad; Moralidad; Valor moral

Introdução

A pertinência das escolas discutirem temas relacionados à educação moral ou em valores torna-se cada vez mais urgente, frente às conjecturas sociais, políticas e humanas de nossa sociedade atual. A temática da moralidade no ambiente escolar e da construção de valores pessoais socialmente justificados, resulta na reflexão sobre o papel da instituição escolar para a formação integral do indivíduo e sua função educativa, considerando todas as possibilidades humanas.

Segundo La Taille; Menin e colaboradores (2009), um ponto importante a se atentar neste período, de pós-modernismo, é estarmos vivendo um profundo processo de transformação social e mudanças históricas que trazem modificações de hábitos e comportamentos individuais e coletivos. Assim, a concepção de valores morais passa por transformações estruturais e por crises que geram a sensação de vazio existencial.

Na contemporaneidade, de caráter capitalista, os casos de desonestidade repercutem como um rastilho de pólvora, desde os mais simples aos mais graves casos de corrupção. Isso podemos atribuir, entre outras variáveis, sobretudo, aos referenciais de vida baseados nas virtudes, que se encontram cada vez mais escassos e instáveis.

Assim, frente às diversas situações de corrupção, que assolam nosso país, o objeto de pesquisa deste trabalho foi o desenvolvimento da moralidade infantil e a construção da honestidade, enquanto valor moral. Dessa forma, julgamos que o valor da honestidade deva ser ensinado e construído junto à criança, desde os primeiros anos escolares, a fim de que esse princípio contribua na formação do caráter e na convivência democrática.

Considerando que a escola pode colaborar na formação de uma sociedade mais justa e democrática, e que se constitui como lócus com grandes possibilidades de evolução da pessoa humana, esta pesquisa traz a proposta de um trabalho voltado para a educação moral, como impulso para o desenvolvimento do juízo moral na criança, buscando construir e ascender o valor moral da honestidade.

Referencial teórico

Partindo das considerações elencadas e da atual situação do país, a intenção em se pesquisar e discutir sobre o valor da honestidade pautou-se no pensamento de Tognetta e Vinha (2009), que descreve a importância em se trabalhar a moralidade na instituição escolar como objeto de estudo e que deve ser ensinado, uma vez que não é inato ao ser humano. Assim, segundo as autoras, é essencial que haja reflexão sobre os valores, considerando que a moral é um objeto do conhecimento, que se aprende racionalmente.

Desse modo, a Educação apresenta-se como um fator de esperança e transformação para a sociedade, em que o objetivo da ação educativa deve ser o desenvolvimento integral da criança em seus aspectos físico, afetivo, cognitivo e social; contribuindo inclusive na formação moral do estudante, no desenvolvimento da autonomia e no modo como ele se comporta e age frente às questões cotidianas. Nessa perspectiva, o conceito de caráter tem fundamental importância no desenvolvimento do indivíduo e deve ser olhado com atenção pelos profissionais da educação.

Para Aristóteles (1987), o traço de caráter moral é aquele que possibilita as virtudes, tendo como argumento básico que a conduta moral precisa ser aprendida, praticada e internalizada como um caráter ou como uma virtude. Dessa forma, entendemos que o caráter está estritamente ligado à razão, percepção e a experiência dos sentidos (ARISTÓTELES, 1987 apud LA TAILLE e MENIN et al., 2009, p. 75).

Para Sennett (1999), professor de Sociologia da Universidade de Nova York e da London School of Economics, a definição de caráter está pautada nos traços pessoais de cada indivíduo que são desenvolvidos ao longo da vida. Sendo assim, é correto afirmar, que o caráter vai se estruturando gradativamente no curso da existência, sob influência de fatores ambientais (família, educação, relações sociais e culturais), que atuam de maneira variada, podendo modificar tendências iniciais.

Em síntese, estando a instituição escolar comprometida com o desenvolvimento dos estudantes e inserida nesse processo de formação de valores é preciso repensar comportamentos e conceitos para tornar-se uma unidade promotora da formação do caráter e da cidadania.

Quando se fala em desenvolvimento moral da criança, Piaget (1932/1994), baseado na filosofia kantiana, propõe a existência de duas tendências morais denominadas: heteronomia (a regra vem do exterior, do outro) e autonomia (capacidade de governar a si mesmo).

No tocante, a tendência da heteronomia, que se inicia por volta dos 5 anos de idade e acompanha a criança até os 10/11 anos, aproximadamente, as regras morais são entendidas como impostas, imutáveis e vindas do exterior, caracterizando-se por um comportamento intermediário entre aqueles puramente individuais e os socializados. Piaget (1932/1994) assinala que, na heteronomia, a criança imita o comportamento do adulto porque acredita que as regras vêm de fora, de outro que é superior a ela. As regras são vistas como leis externas, sagradas, imutáveis impostas pelos adultos e modificá-las, seria considerada uma falta grave.

Já na tendência da autonomia, há uma compreensão das regras a partir do interior do sujeito, ou seja, uma consciência das regras, e que segundo Piaget (1932/1994), pode acontecer a partir dos 10/12 anos de idade, como possibilidade. Nesta fase, ocorre a legitimação das regras, que passa a ser vista como resultado de uma decisão livre, digna de respeito e aceita pelo grupo. Dessa forma, toma-se consciência da importância da lei, procurando entendê-la; não apenas seguindo-a como era feito anteriormente.

No momento em que se instaura, por meio de uma construção ativa, a passagem da heteronomia para a autonomia, a criança, afasta-se das regras morais impostas pelo adulto, a fim de refletir e avaliar seu valor.

Para Piaget (1932/1994, p. 64), “[...] é a partir do momento em que a regra de cooperação sucede à regra de coação que ela se torna uma lei moral efetiva".

Partindo desse princípio, Piaget (1932/1994) constatou que a formação das regras se configura a partir do desenvolvimento gradativo de dois fenômenos: a consciência que se tem das regras e a sua prática. O autor caracteriza consciência (conhecimento) das regras como sendo a maneira que as crianças pensam à obrigatoriedade ou não do seguimento delas, bem como sua prática, ou seja, o modo como as crianças de várias faixas etárias aplicam as normas.

Para Piaget (1932/1994), não há inteligência inata, tanto a consciência moral, como a afetividade e a razão têm seu progresso em estágios sucessivos, nos quais as crianças organizam o pensamento e o julgamento, a partir de suas interações sociais.

Nesse ponto, é importante compreender qual é o conceito de regra empregado na teoria de Piaget para o desenvolvimento do juízo moral. Segundo o autor, a regra é um fato social entre pelo menos dois indivíduos, repousando nessa relação o sentimento do respeito, quer dizer, há regra quando a vontade de um indivíduo é respeitada pelo outro ou quando a vontade comum é respeitada por todos (PIAGET, 1998).

Para o epistemólogo suiço, o desenvolvimento da moralidade se dá principalmente por meio da atividade de cooperação, do contato com iguais, da relação e troca com companheiros e do desenvolvimento da inteligência.

Piaget (1932/1994) afirma em seus estudos que o desenvolvimento da moralidade na criança parte do respeito. Assim, ele caracteriza que existem dois tipos de relações sociais: as de coação e as de cooperação, relacionadas a dois tipos de respeito: o unilateral e o mútuo. Nas relações de coação, prevalece a autoridade adulta que impõe regras às crianças, intensificando assim, a submissão infantil por meio da coação, que reforça a heteronomia. É marcado pelo sentimento desigual entre a criança e o adulto, em que a criança não participa da construção das regras, e muitas vezes, nem sabe sua função, cumprindo-as sem qualquer questionamento, pois, sente medo de ser punida ou de perder o afeto dos mais velhos. Já as relações de cooperação são regidas pelo respeito mútuo, na qual a criança respeita o adulto, e este também respeita a criança, posicionando-se ainda com autoridade, mas sem coagir, existindo trocas efetivas e equilibradas. Prima-se pelo respeito mútuo entre iguais, sendo essas relações imprescindíveis para a construção da autonomia.

Dessa forma, a criança, portanto, precisa ser educada para a convivência e cooperação, sendo exigido, para este processo, a mediação do meio, da cultura e de seus agentes.

Considerando que a essência deste trabalho é o desenvolvimento da moralidade, com ênfase no valor moral da honestidade, outros aspectos relevantes a serem destacados é a abordagem de Piaget sobre o roubo e a mentira. Entender como as crianças caracterizam e avaliam estes conceitos é fundamental para se estabelecer estratégias pedagógicas de ensino sobre esse valor.

Em se tratando do roubo, Piaget (1932/1994) descreve que as crianças menores, até os 7 anos de idade, tendem a considerar mais grave o roubo de objetos grandes, não considerando as intenções presentes no ato de roubar, ou seja, o resultado material e a consequência do roubo são julgados e devem acarretar em uma punição. Já as crianças a partir dos 8 anos de idade, consideram as intenções do roubo mais importante que seu resultado final.

No que diz respeito à mentira, o autor descreve que é uma falta moral cometida por meio da linguagem, característica da criança pequena, que resulta do pensamento egocêntrico e da coação moral do adulto, chamada de responsabilidade objetiva. É característica marcante da moral heterônoma e frequentemente, a criança de até 6-7 anos relaciona mentira a palavras feias e percebe que ambas são recriminadas pelo adulto, portanto, não devem ser ditas. Piaget (1932/1994) destaca que a criança pequena não mente por mentir; na verdade, ela altera a realidade em função dos seus desejos e fantasias, não sentindo a necessidade de dizer a verdade. Entre os 8-10 anos, devido ao desejo de participação social, a criança experimenta a necessidade da verdade nas relações de respeito mútuo. Assim, Piaget (1932/1994) afirma que aos 10 anos ela é capaz de definir mentira como toda afirmação que é intencionalmente falsa, julgando com base na intenção. A compreensão da regra de não mentir, somente será possível quando a criança estabelecer a relação de cooperação e a superação do egocentrismo, ou melhor, quando o respeito mútuo tiver primazia sobre o respeito unilateral e seus julgamentos não estiverem mais pautados nas consequências materiais do ato.

Com base em pesquisas sobre a forma como as crianças lidam com as regras em situações de jogos e dilemas morais, Piaget (1932/1994) constatou que a construção do senso de justo e injusto encontram-se ligadas à condição de equilíbrio regulador, que caracteriza a relação entre as pessoas e com o desenvolvimento cognitivo, passando por diferentes tipos de compreensão, em relação às regras.

Para o epistemólogo suíço, as regras de justiça promovem o equilíbrio das relações sociais. Biaggio (1972, p. 17), afirma que “[...] a essência da moralidade está no respeito que o indivíduo adquire pelas regras”. Dessa forma, é fundamental reconhecer como a criança adquire respeito pelas regras existentes na sociedade e como este processo pode ser estimulado.

O contato com as regras do que pode ou não fazer dispõe situações para o desenvolvimento da justiça na criança, que Piaget (1932/1994, p. 236) categorizou em: justiça retributiva e justiça distributiva.

Piaget destaca, ainda, que dentro da justiça retributiva encontramos uma noção primitiva de justiça, que foi denominada como justiça imanente. Ela se estende até os 6-7 anos, em média, e prevalece a crença de que a punição resulta espontaneamente da natureza e do universo, sendo toda má ação merecedora de um castigo. Piaget (1932/1994) afirma ser uma forma mais primitiva de justiça porque fundamenta-se na crença natural das punições, ou seja, a criança até os seis anos acredita em sanção automática que emana das próprias coisas ou objetos. Essa noção de justiça é vivenciada na heteronomia, com base no respeito unilateral, não havendo distinção entre dever e obediência, considerando toda sanção legítima e necessária.

A justiça retributiva, compreendida entre 8-11 anos aproximadamente, está subordinada à autoridade adulta, indicando que não existe a diferenciação do justo e do injusto com as noções de dever e de desobediência. Pode-se dizer que, uma sanção é injusta quando pune um inocente, recompensa um culpado ou não é dosada na proporção do mérito ou da falta. Neste período, a criança só percebe a injustiça quando o adulto não cumpre uma ordem que ele mesmo colocou (PIAGET, 1932/1994).

E, finalmente, a justiça distributiva, que se inicia, como possibilidade, por volta dos 11-12 anos, em que a criança consegue analisar as condições particulares de cada situação para aplicar a reciprocidade, ou seja, é injusto uma repartição que favorece uns à custa de outros, sendo esta temperada pelas preocupações de equidade (PIAGET, 1932/1994).

Na teoria piagetiana a sanção tem como propósito o reestabelecimento da ordem, do elo social e da autoridade da regra, e podem ser classificadas de dois tipos: expiatória ou por reciprocidade.

A sanção expiatória caracteriza-se pela coação e pelas regras de autoridade impostas de fora à consciência do indivíduo a qual transgride. É baseada na crença de que a única maneira de se reestabelecer a ordem é por meio de advertência, em outras palavras, punir é justo, necessário e apresenta caráter arbitrário. Está mais ligada à justiça retributiva, pois não há relação entre o conteúdo da sanção e a natureza do ato sancionado, mas é necessário a proporcionalidade entre o sofrimento imposto e a gravidade da falta (PIAGET, 1932/1994).

A sanção por reciprocidade é paralela à cooperação e às regras de igualdade que surgem do interior da criança. Está mais relacionada à justiça distributiva, pois são consideradas realmente como legítimas por decorrer da igualdade que prevalece sobre qualquer outra preocupação. Neste processo, existe a ruptura do elo social provocado pelo culpado, que sente seus efeitos. Há relação de conteúdo e de natureza entre a falta e a punição e tem o diálogo como a forma mais eficaz de reparação, não necessitando de castigo ou punição. O que impera neste raciocínio são os princípios da cooperação e das regras de igualdade, é importante que a sanção de um ato tenha relação com a falta cometida e que seja proporcional à gravidade da ação. Piaget assegura que “[...] basta pôr a funcionar a reciprocidade [...] Basta tirar as consequências da violação desta regra, para que o indivíduo se sinta isolado e deseje, ele próprio, o restabelecimento das relações normais” (PIAGET, 1932/1994, p. 162). Quando a adesão aos grupos e a cooperação se transformam em fatores de igualitarismo, a criança coloca a justiça acima da autoridade e a solidariedade acima da obediência; é a moral do bem ou da autonomia.

Ao se falar em honestidade, consequentemente, é preciso discutir sobre seu avesso, a expressão “corrupção”, e entender o que ela significa. Ao investigar seus desdobramentos, conclui-se que a corrupção está ligada a várias outras áreas de nossa vida, inclusive pessoal, e não só associada ao campo político e governamental. Compreender esse fenômeno, nos seus diversos aspectos, propor respostas e soluções para seu combate não é tarefa fácil, principalmente porque esse mau acomete a todos, indistintamente.

Santos e Amanajás (2012), em seu artigo “Democracia e corrupção no Brasil: a face tirana do poder político”, relatam que “O estado de descrença na política nacional chega a tal ponto que o povo cada vez mais perde a esperança em uma mudança” (p. 19). Nesta perspectiva, é possível observar que o princípio da honestidade exige uma postura particular do indivíduo de reflexão de suas ações para e com a coletividade no desejo de melhorias e igualdades sem querer tirar vantagens ilícitas ou em benefício próprio.

Apesar da complexidade da temática e dos dilemas que a permeiam, para melhor entender as explanações apresentadas, neste estudo, e pautado nas definições já existentes sobre o tema, conceituamos honestidade como um valor ou qualidade do ser humano que tem estreita relação com os princípios da verdade, da justiça, da igualdade de direitos, da reciprocidade e com a integridade moral entre os indivíduos. Consiste no respeito ao que é particular, público e coletivo; em um modo de vida coerente entre o que se pensa e o que se faz, em comportar-se e expressar-se com empatia colocando-se no lugar do outro para saber se devo ou não praticar determinado comportamento. Honestidade é respeitar a parte de cada um, primando pela harmonia do conjunto, da totalidade; é o princípio de toda democracia com a garantia de que todos podem e devem fazer a mesma coisa. Ser honesto resume-se em praticar o que é racionalmente correto, ainda que, ninguém esteja observando. É preservar-se dos conflitos de interesses para não se deixar contaminar pelas tentações individuais. É proceder com autonomia, consciente de que o ato a ser praticado é um dever, sem esperar recompensas em troca. É agir por racionalidade moral, pensando no bem-estar da coletividade, considerando-a vital e fundamental no convívio em sociedade, orientando práticas e estratégias de conduta nas intenções e ações.

Assim, ao refletirmos sobre o valor moral da honestidade, é inevitável ponderar os motivos que nos afastam deste, ou mesmo as forças que nos impedem de exercê-la, ou ainda, porque é mais fácil falar da desonestidade do que da virtude.

Segundo Ariely (2012), tanto a honestidade quanto a desonestidade são aspectos que estão diretamente ligados à nossa condição humana, ou seja, é difícil responder qual a capacidade humana tanto para a honestidade quanto para a desonestidade. Para o autor, qualquer pessoa pode comportar-se desonestamente no trabalho ou em casa e que seria de fundamental importância entender como a desonestidade funciona, para em seguida, imaginar alternativas de conter e controlar esse aspecto de nossa natureza (p. 5).

Segundo pesquisas e experimentos realizados por Ariely (2012), é muito comum ver pessoas, silenciosamente, absolvendo-se por pegar um pouco de dinheiro ou de mercadoria sucessivas vezes. Isso porque, segundo ele, várias forças psicológicas, sociais e ambientais aumentam ou diminuem a honestidade em nossa vida diária, incluindo conflitos de interesses, falsificações, promessas, troca de favores, criatividade, influência dos outros em nossa compreensão sobre o que é certo e errado, esgotamento mental, entre outros fatores. O agir honestamente exige do indivíduo um comportamento exemplar e honrado a ponto de olhar-se no espelho e sentir-se bem em relação a si mesmo. No entanto, inúmeras são as possibilidades de desonestidade que o indivíduo é submetido, principalmente quanto ao ato de beneficiar-se sem muito esforço ou aproveitando-se de oportunidades que agindo honestamente seria difícil conseguir. O autor é enfático em descrever que a complexidade da desonestidade humana é inerente a todo ser humano e afirma que isso fica evidente em nossa sociedade quando somos expostos a dispositivos de controle, vigilância e supervisão, para inibir o instinto de trapacear ou mentir. A compreensão desses mecanismos envolvidos na desonestidade não é tarefa fácil e isso significa reconhecer que a possibilidade de certos tipos de trapaças torna nossos padrões morais mais flexíveis.

Somente quando constatamos nossa vulnerabilidade frente as facilidades de trapacear e tirar proveito das situações é que teremos condições de nos tornarmos mais conscientes das consequências de nossas ações, podendo assim, aumentar nosso nível de honestidade.

Conforme os apontamentos de Ariely (2012), sobre a complexidade de nossa natureza humana, parece-nos que agir honestamente, por opção e princípio, não é uma tarefa fácil, posto que temos a tendência de aproveitar as possibilidades para trapacear e tirar vantagens. Isso nos faz refletir que o exercício da honestidade requer muito mais que regras ou leis; estamos falando de um valor moral que consiste em fazer o que é correto mesmo quando ninguém está vendo ou não se é supervisionado. A prática desse comportamento como dever da conduta humana exige uma internalização e valoração dessa virtude enquanto exercício racional, isto é, ser honesto é desenvolver a força do caráter para agir com consciência, justiça, igualdade e equidade. Ninguém está imune a fratura ética, temos dilemas aos quais precisamos fazer escolhas em nosso cotidiano.

É obvio que ao tratar do tema da honestidade no ambiente escolar não podemos desconsiderar que a criança está em processo de formação de sua personalidade e construção de sua moralidade. Segundo a teoria piagetiana, a criança pensa qualitativamente diferente do adulto e ao longo de sua vivência constrói novas estruturas mentais que vão mudando seu pensamento. Por essa razão, a criança, muitas vezes não consegue avaliar porque agiu daquela forma ou analisar antecipadamente as consequências de seus atos, ou seja, a qualidade do pensamento da criança difere do adulto. Ainda neste raciocínio, Ariely (2012), descreve que até mesmo os adultos podem se perder em ciladas pregadas pela mente e “[...] nem sempre podemos saber exatamente por que fazemos o que fazemos, escolhemos o que escolhemos ou sentimos o que sentimos. Porém, a obscuridade de nossas motivações reais não nos impede de criar razões que pareçam perfeitamente lógicas para nossas ações, decisões e sentimentos” (p. 144). Isso demonstra como nossa capacidade de justificar é extensa e expansiva e como a racionalização pode ser predominante em praticamente todas as atividades diárias. Somos capazes de nos distanciar e não perceber, ou não querer tomar conhecimento, de que estamos quebrando as regras. Isso revela a flexibilidade moral que temos mediante as situações que acontecem cotidianamente, dependendo de nossas intenções e das interpretações que damos sempre a nosso favor, muitas vezes atendendo a desejos e ambições internas.

É verdade que pequenos gestos de desonestidade podem nos seduzir a ponto de perdermos o controle em várias esferas de nossa vida, seja pessoal ou profissionalmente. Por isso, eles devem ser evitados para não comprometer nossa moralidade frente a situações conflituosas.

Outro estudo relevante de Ariely (2012) é compreender se a imoralidade é contagiosa, ou seja, se ela pode ser espalhada como infecção ou vírus, sendo transmitidos através da simples observação ou contato direto. Ariely constatou em seus experimentos que “[...] o equilíbrio natural da desonestidade pode ser perturbado se formos colocados em estreita proximidade com alguém que esteja trapaceando” (p. 169). Ele explica que à medida que nossa moralidade se desgasta testemunhando comportamentos antiéticos de colegas, amigos ou familiares, ficamos gradativamente comprometidos à exposição de “germes” imorais havendo um processo lento e sutil de contaminação, deixando-nos ligeiramente mais corruptos.

Para concluir essa análise, estamos cientes das dificuldades em sermos totalmente honestos em nossos comportamentos e nos blindarmos das influências externas do meio social a que estamos expostos, bem como, das forças internas atreladas a nosso egoísmo e jogo de interesses pessoais. Entretanto, acreditamos e nos apoiamos na tese de Ariely de que “[...] atos de honestidade são extremamente importantes para nosso senso de moralidade social” (p. 188). Desse modo, praticar esses atos publicamente são tão importantes quanto buscar aprimorar individualmente nossas ações, em pequena escala, mas sempre em ascensão e constância, melhorando nosso comportamento e disseminando um contágio social deste valor.

Isto posto, cientes dos desafios que a prática da honestidade nos remete e convictos da influência que a escola exerce na formação do indivíduo, consideramos o espaço escolar ideal para a efetivação de propostas pedagógicas de intervenção com o intuito de (re)construção de valores, essencialmente comportamentos honestos que oriente nossa atuação cidadã.

Abordagem metodológica

Considerando os estudos apreciados neste trabalho, verifica-se que mais importante que a descrição do resultado final da pesquisa, está a análise dos processos de desenvolvimento, interação e construção dos participantes no percurso da ascensão da moralidade.

Dessa forma, optamos pela pesquisa-intervenção, com abordagem qualitativa num caráter social, propondo inferências e ações para a problemática apresentada, num processo participativo e cooperativo entre pesquisador e participantes.

Estrutura da pesquisa - Procedimentos

A pesquisa obedeceu os procedimentos necessários quanto ao encaminhamento dos instrumentos de coleta de dados, sendo: (a) autorização da direção de uma escola pública municipal do interior paulista para realização da pesquisa; (b) autorização dos alunos e de seus responsáveis para participação na pesquisa (assinatura dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE), bem como o Termo de autorização do uso de imagem e voz e das produções dos alunos, todos encaminhados ao Comitê de Ética em Pesquisa na Plataforma Brasil, aprovado pelo parecer de número: 2.422.539. Vale ressaltar que foram observados todos os procedimentos para sigilo da identidade das crianças, assim como para o bem-estar durante o desenvolvimento da pesquisa; (c) sensibilização da turma sobre a temática e aplicação do pré-teste envolvendo um dilema moral sobre honestidade; (d) aplicação e acompanhamento do Programa de Intervenção; (e) aplicação do pós-teste; (f) elaboração gráfica de um produto educacional voltado aos estudantes e professores.

Contexto da pesquisa - Local e participantes

O estudo foi realizado em uma escola municipal do interior paulista, aplicada com aluno do 3º ano do Ensino Fundamental, com a participação de 24 crianças, sendo 10 meninas e 14 meninos entre 8 e 10 anos de idade, onde a pesquisadora era a professora titular da sala.

Procedimentos para coleta e análise dos dados

Para a coleta de dados foram utilizados os instrumentos do pré e pós-teste, observados os protocolos piagetianos utilizados no livro O juízo Moral na Criança (PIAGET, 1932/1994), com a intenção de acompanhar o pensamento da criança e avaliar a segurança e clareza das respostas diante das contra-argumentações elaboradas oralmente pela pesquisadora.

Atentos à faixa etária das crianças, propôs-se a adaptação do texto da coleção pequenas lições, denominado “A força do exemplo” (LEGRAND, 2007), uma história que mostrava um exemplo de honestidade do pai a seus filhos. Cada aluno recebeu o texto e um questionário com a intenção de que se posicionasse frente aos dilemas apresentados e decidisse o que fazer. Para não haver variáveis quanto à compreensão da história, o pré-teste foi realizado individualmente para que a pesquisadora pudesse tirar eventuais dúvidas ou mesmo auxiliá-los na leitura. Afinal, era imprescindível que as crianças entendessem a história e os conflitos morais apresentados para poderem decidir o que fazer em cada caso. Esse instrumento serviu de coleta de dados para a análise inicial e final.

A análise dos instrumentos de coletas de dados esteve pautada sob a ótica do referencial da teoria piagetiana e as demais fundamentações teóricas abordadas nesta pesquisa.

Como a pesquisa foi de caráter qualitativo, não colocamos ênfase no sim ou não mencionados nas respostas das crianças. O intuito principal estava em compreender a organização racional que o grupo pesquisado utilizava como mecanismo para elaborar as explicações aos dilemas apresentados, bem como, verificar se após o programa de intervenção haveria mudanças de comportamentos, ou raciocínio quanto ao tema trabalhado.

Foi analisado, o comportamento das crianças, nas relações interpessoais do cotidiano escolar e as expressões dialéticas provindas das discussões/debates, reflexões e acontecimentos em sala de aula.

Por último, o enfoque ficou na análise do pré e do pós-teste, comparando as respostas do antes e do depois após a aplicação do programa de intervenção.

Aplicação do programa de intervenção

Para a realização desta etapa da pesquisa, vários foram os procedimentos e os recursos adotados, como: jogos, dinâmicas de grupo, brincadeiras, rodas de conversa, contação de histórias, leitura de imagens, projeção de filmes, reportagens e vídeos, assim como, reflexões coletivas acerca de dilemas morais entre a pesquisadora e as crianças. No entanto, a literatura infantil foi mola mestra na criação das estratégias aplicadas, visto ser uma ferramenta de ensino com mecanismo facilitador para a apropriação da realidade sem romper com o estágio da fantasia e da magia por meio de contos, fábulas e lendas. Essa estratégia perpassou diversos valores morais como: a verdade, a justiça, a cidadania, a responsabilidade e, por fim, a honestidade, núcleo da pesquisa.

Outra estratégia utilizada, com frequência, no programa de intervenção foram os dilemas morais por apresentarem situações da vida real, com abordagem de distintas questões sociais e culturais, no qual se oferece a oportunidade de escolha, seguida de questionamentos que buscam levantar as razões das escolhas feitas. A intenção, ao aplicar os dilemas morais, não era de julgar se as respostas das crianças estavam certas ou erradas, mas conhecer a forma de estruturação do pensamento para aquela resposta, sabendo assim, como está organizado seu juízo moral.

O critério estabelecido como fator determinante para a consolidação da pesquisa foi a periodicidade regular na aplicação do programa de intervenção. As ações para o processo de aplicação das atividades foram dirigidas e planejadas com a estruturação de momentos específicos três vezes por semana, abarcando a temática do valor da honestidade, incorporando-a de forma agradável, lúdica e transversal, ou seja, trabalhado nas disciplinas já existentes no currículo, articulando o tema honestidade com as questões sociais vivenciadas na atualidade e também no convívio escolar. No total, foram utilizadas vinte atividades didáticas pedagógicas específicas para o desenvolvimento da moralidade, no que se refere à (re)construção do valor moral da honestidade.

Resultados do programa de intervenção

Ao final da pesquisa, os resultados quanto à análise qualitativa dos dados em relação ao programa de intervenção proposto revelaram que é possível ensinar a honestidade como valor moral ainda nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Essa afirmação ratifica a proposição de Piaget (1932/1994) de que a moralidade é algo que se constrói paulatinamente, a partir da vivência de situações morais. Como registramos, no início deste estudo, Aristóteles (1987) afirma que a conduta moral deve ser aprendida, praticada e internalizada.

A utilização de histórias infantis e atividades lúdicas para educar moralmente foi o diferencial facilitador no desenvolvimento da pesquisa e confirmou a hipótese de que é possível aprender valores, sobretudo a honestidade, por meio da ludicidade e de atividades pedagógicas que abordem metodologias adequadas para a faixa etária e com possibilidades de progresso do juízo moral (PIAGET, 1932/1994), sempre optando pela reflexão, diálogo, vivência e construção coletiva.

Outro ponto positivo a se destacar é que, conforme a intensificação de discussões vivenciadas periodicamente e de dilemas morais reais apresentados no relacionamento da sala de aula, as crianças expressaram crescente aumento da autonomia na tomada de decisão e julgamentos coerentes na resolução de conflitos, pensando, na maior parte das vezes, no bem-estar da coletividade e não em desejos individuais.

Resultados do pré e pós-teste

Observou-se no pré-teste, que quando questionadas se era correto omitir informações para se tirar vantagens, algumas crianças justificaram que não viam maldade nesse ato, visto que não haveria danos físicos de machucar alguém. Comentaram ainda que, o simples fato de contar uma mentira não seria tão grave, já que muitas pessoas fazem isso. Já no pós-teste, constatamos que houve um discurso crescente na análise das crianças em considerar que atitudes de mentira acabam comprometendo a credibilidade das pessoas e desenvolveram a compreensão de que falar a verdade é princípio necessário para se buscar a honestidade. No discurso das crianças, no pós-teste, é possível identificar a relação que estabeleceram do “agir corretamente” com o valor da verdade, caracterizando que o reconhecimento e a valorização desse comportamento são socialmente admirados, além de ocasionar orgulho individual no sujeito que o pratica pelo exemplo de honestidade.

La Taille (2009) chama de autorrespeito a valorização que o sujeito faz de si próprio, tendo como base os valores morais. E, esse autorrespeito também é uma construção gradual que necessita de intervenções possíveis de serem realizadas na escola e em outros locus sociais.

Em se tratando do valor da verdade, quando as crianças foram questionadas sobre a importância de sempre dizer a verdade, desde o pré-teste, a maioria já concebia este valor como preceito importante para a vida e para as relações de convivência. No pós-teste, esses argumentos se intensificaram atrelando este valor à consciência moral, no que se refere a orgulhar-se de si mesmo e demonstrar que aquele que diz a verdade é digno de confiança (LA TAILLE, 2009).

Quando as crianças assumiram os papeis dos personagens na história apresentada no instrumento, notamos que nem sempre o pensamento inicial condiz com as ações e com o julgamento. No pré-teste, mesmo sabendo ser errado mentir, algumas crianças responderam que, naquela situação posta especificamente, mentiriam para conseguir o que desejavam, pois não estavam prejudicando ninguém. Já no pós-teste, a maioria das crianças julgou que mesmo que não conseguisse o desejado, valeria dizer a verdade, relatando que ficariam felizes com sua atitude de serem honestas.

Algumas crianças no pré-teste apontaram que infringiriam as regras, caso julgassem ser necessário, para conseguir o almejado. Já no pós-teste, as crianças foram capazes de analisar quais seriam as consequências desse comportamento. Os resultados apontam que houve um aumento na compreensão da obediência às regras e valorizaram-na como uma norma que deve ser respeitada, demonstrando consciência e legitimação por elas. As justificativas nas respostas do pós-teste mostraram que quando as crianças compreendem o porquê da existência das regras, existe maior disposição em cumpri-las e a percebê-las como necessárias para o bom convívio em sociedade. Observamos que as crianças apresentaram maior equilíbrio no relacionamento consigo mesmas e com o meio, dando importância às regras, respeitando a opinião alheia e pensando de maneira mais ativa na coletividade. Esse processo acontece, pois segundo Piaget (1932/1994), a criança caminha de um egocentrismo integral e inconsciente para um desenvolvimento moral crescente. Ao mesmo tempo em que a criança constrói e coordena seus instrumentos intelectuais, descobre a si mesma, situando-se como um objeto ativo entre outros em um universo exterior a ela.

A confiança e a tranquilidade também foram fatores de destaque na aplicação do pós-teste, pois demonstraram maior facilidade em exercer a empatia colocando-se no lugar do outro para fazer julgamentos, e expressaram maior propriedade quanto às questões morais, ao dizer qual era a resposta mais acertada ao dilema proposto. Também, posicionaram-se de maneira mais reflexiva, considerando todos os fatores que envolviam as situações apresentadas.

Outro elemento importante que analisamos é a noção de justiça do grupo pesquisado. No pré-teste as crianças ainda não conseguiam fazer julgamentos racionais e reflexivos mediante aos dilemas apresentados, demonstrando dificuldades para tomadas de decisões justas e de intenção coletiva. Já no pós-teste, a maioria das crianças tinha condições de fazer julgamentos guiados por princípios de igualdade, ou seja, pela disposição de reconhecer igualmente o direito do outro e, a partir desse reconhecimento, aplicar a mais justa sanção em determinada situação, confirmando os estudos de PIAGET (1932/1994). Percebemos, neste contexto, o exercício da justiça distributiva, e essa é, sem dúvida, a noção mais evoluída de justiça que está diretamente ligada à autonomia.

Ao questionarmos se uma pessoa deveria ser punida se descumprisse uma regra, as respostas do pré-teste nos revelaram as sanções expiatórias com bastante rigidez. Esse tipo de sanção está ligada à coação e às regras de autoridade. Segundo Piaget (1932/1994), crianças mais heterônomas optam em maior quantidade por esse tipo de sanção, que tem como principal componente a severidade do castigo. Percebemos isso claramente no pré-teste, em que a maioria das crianças priorizava correções severas e castigos implacáveis, na qual é preciso a punição para que se restabeleça a ordem. Já no pós-teste, a maioria das crianças julgou que o erro ou o descumprimento de uma regra poderia ser corrigido sem punições, mas por meio de orientações e diálogo. Isso demonstra que a maioria das crianças compreendeu que a reciprocidade tem mais eficácia que o castigo doloroso. Observa-se, então, a sanção por reciprocidade em que o castigo é diretamente ligado à qualidade do delito. Esse tipo de sanção é conectado à cooperação e às regras de igualdade (PIAGET, 1932/1994). No pós-teste foi possível observar a preferência das crianças pelas sanções por reciprocidade, próprio de um desenvolvimento mais avançado do juízo moral.

Piaget (1932/1994) defende que quando a criança está na fase de transição da sanção por expiação para a sanção por cooperação, existe uma predominância em ações de solidariedade e cooperação em que a justiça baseia-se na compreensão do culpado pela regra violada. Assim, o indivíduo não necessita de castigo ou punição, apenas uma advertência verbal ou uma explicação por meio do diálogo pode trazer resultados mais eficazes. A noção de justiça apresentada pelas crianças, no pós-teste, revela um aumento gradativo de busca ao que é correto e o que é melhor para a coletividade, posicionando-se inclusive ao se deparar com injustiças. Perceberam também que assumir seus erros e buscar repará-los é uma virtude que deve ser almejada em nossas vidas.

No pré-teste, quando questionamos as crianças sobre “o que é honestidade” e oferecemos algumas alternativas para escolha, foi possível analisar que as respostas se dividiram em todas as opções apresentadas. Já no pós-teste percebemos que as opções ficaram entre “fazer o que é correto ainda que minha vontade seja contrariada” (71%) e “outra resposta” (29%), campo aberto em que elas poderiam sugerir a melhor opção. Na opção “outra resposta” analisamos a evolução das crianças no entendimento e juízo do que é ser honesto, visto que algumas crianças se arriscaram a conceituar a honestidade de maneira diferente à ofertada. Destaca-se que a maioria delas relacionou o valor da honestidade com o valor da verdade e justiça demonstrando relação com a coletividade e empatia em suas reflexões.

No tratamento dos dados qualitativos, averiguamos a crescente evolução para a autonomia e o desenvolvimento do juízo moral que tomavam formas nos discursos e comportamentos dos participantes, demonstrando maior empoderamento do valor da honestidade, primando pelo bem-estar da coletividade, pela ética, pela justiça e pela verdade.

De forma geral, os resultados obtidos com o pós-teste revelaram que as crianças são capazes de aprender o valor moral da honestidade e emitir respostas mais ponderadas, assertivas e sensatas em situações que apresentam dilemas morais. Podemos dizer que a construção do caráter, incluindo os valores morais, se estrutura a partir da influência e interação com fatores ambientais, conforme defende Sennett (1999).

Assim, como afirma Ariely (2012) constatamos que o valor da honestidade pode ser construído progressivamente se estimulado seu desenvolvimento e se o indivíduo for exposto a situações de reflexão e de consciência do que é preciso buscar para ser honesto.

Conclusão

A escola como espaço de composição e reflexão de experiências importantes para a vida social do indivíduo contribui de modo expressivo para sua formação, em todos os aspectos do desenvolvimento humano visando à preparação do mesmo na construção de sua cidadania.

Combater a corrupção e a desonestidade não são tarefas fáceis. É preciso que nossa bússola moral esteja calibrada com princípios éticos e morais para não desviarmos das virtudes que buscamos construir ao longo da existência.

Segundo Puig (1988, p. 11), é necessário que o indivíduo tenha “[...] consciências morais autônomas; a percepção e o controle dos sentimentos e emoções; e a competência dialógica”.

Nesta linha de pensamento, a escola se apresenta como um espaço para a formação moral com base em concepções de democracia, ética e justiça. O valor da honestidade em que se busca práticas como não mentir, não pegar pertences alheios, não tirar vantagens, são juízos norteadores que devem ser ensinados desde os primeiros anos escolares e que visam a formação do caráter do indivíduo.

Com relação ao grupo de crianças observadas, confirmou-se a possibilidade do desenvolvimento do juízo moral em cada fase da pesquisa. Suas ações, seus comportamentos e discursos mostraram maior tendência à autonomia e à apropriação dos conceitos do valor da honestidade, possibilitando posicionamentos mais reflexivos de julgamentos e condutas.

Observou-se que ao final da pesquisa as expressões de juízo moral, conforme explicitadas por Piaget (1932/1994), demonstraram raciocínio mais elevado de percepção, discernimento, equilíbrio e consciência frente aos dilemas morais apresentados e, até mesmo, àqueles que surgiram no dia-a-dia, sempre buscando exercitar a cooperação, a justiça, a empatia e a cidadania. As crianças desenvolveram e construíram gradativamente conceitos mais fortalecidos sobre este valor, principalmente no que se refere as ações coletivas, envolvendo a figura do outro.

A pesquisa comprovou que é possível trabalhar o conceito da honestidade como valor moral no 3º ano do Ensino Fundamental, considerando especialmente, a matriz curricular deste ano de ensino com todos os conteúdos programáticos das disciplinas abrangentes. A utilização da interdisciplinaridade, como forma de desenvolver um trabalho de integração dos conteúdos de uma disciplina com a educação moral, foi uma das propostas desta pesquisa e que contribuiu diretamente para o aprendizado e formação do sujeito.

A utilização de metodologias que estimula a cooperação e o respeito mútuo, demonstrou-se bastante eficaz e possibilitou o exercício da reflexão e da construção da verdadeira consciência moral autônoma. Entretanto, para que isso ocorra, é preciso o desenvolvimento de um trabalho intencional e específico, chamado neste trabalho por “Programa de intervenção”, rompendo com preconceitos e conceitos ultrapassados em nossa sociedade contemporânea, ressignificando e construindo valores necessários para uma convivência harmoniosa e pacífica.

A figura do professor como ser mais experiente e mediador deste processo, oportunizou reflexões e discussões direcionadas à pertinência da temática e promoveu o diálogo na construção de argumentos e resolução de conflitos.

Segundo Ariely (2012), a partir do momento que temos consciência das tentações e das ciladas que estamos sujeitos a todo momento, podemos ser capazes de tomar decisões que (re)oriente nossa bússola moral a buscar maneiras de controlar nossas ações impulsivas ou egoístas. O resultado desse processo no indivíduo refletirá no tipo de sociedade e de relações que almejamos para o futuro, ainda que estes efeitos sejam sentidos a longo prazo.

Referências

ARIELY, Dan. A mais pura verdade sobre a desonestidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. [ Links ]

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Recebido: 01 de Fevereiro de 2020; Aceito: 01 de Julho de 2020

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