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Ensino em Re-Vista

versão On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.28  Uberlândia  2021  Epub 29-Jun-2023

https://doi.org/10.14393/er-v28a2021-27 

Dossiê 2 - História da educação matemática

Como se ensina aritmética? Elementos de uma aritmética para ensinar no manual de Faria de Vasconcelos

¿Cómo enseñar aritmética? Elementos de aritmética para enseñar en el manual de Faria de Vasconcelos

Wagner Rodrigues Valente1 
http://orcid.org/0000-0002-2477-6677

Jefferson dos Santos Ferreira2 
http://orcid.org/0000-0001-7684-7716

1Professor Associado II, Livre Docente do Departamento de Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo, Campus Guarulhos, Brasil. E-mail: wagner.valente@unifesp.br.

2Doutorando, Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da Universidade Federal de São Paulo, Campus Guarulhos, Brasil. Bolsista da FAPESP. E-mail: jefferson.mat@hotmail.com.


RESUMO

Neste artigo são apresentados resultados de uma pesquisa cujo foco tratou da graduação do ensino de aritmética proposta no manual Como se ensina aritmética, de Faria de Vasconcelos. O tema mostrou-se importante tendo em vista as transformações da aritmética a ser ensinada nos primeiros anos escolares em tempos da chamada pedagogia científica. Tal análise foi feita a partir da perspectiva de um referencial teórico-metodológico que leva em conta os saberes profissionais da docência. Como resultados, evidencia-se uma reorganização da aritmética do curso primário sob o impacto da psicologia experimental de base estatística. Tais transformações mostram-se de modo mais explícito na nova graduação do ensino escolar proposta por Faria de Vasconcelos.

PALAVRAS-CHAVE: Aritmética para ensinar; Pedagogia científica; Faria de Vasconcelos

RESUMEN

Este artículo presenta los resultados de una investigación que se centró en la graduación de la enseñanza de la aritmética propuesta en el manual "Cómo enseñar aritmética", de Faria de Vasconcelos. El tema demostró ser importante en vista de las transformaciones de la aritmética que se enseñará en la escuela primaria en tiempos de la llamada pedagogía científica. Tal análisis se realizó desde la perspectiva de un marco teórico-metodológico que tiene en cuenta el conocimiento profesional de la enseñanza. Como resultado, hay una reorganización de la aritmética del curso primario bajo el impacto de la psicología experimental con una base estadística. Dichas transformaciones se muestran más explícitamente en la nueva graduación de la educación escolar propuesta por Faria de Vasconcelos.

PALABRAS CLAVE: Aritmética para la enseñanza; Pedagogía científica; Faria de Vasconcelos

ABSTRACT

This article presents the results of a research that focused on the grading, i.e., organisation in levels of knowledge, of the arithmetic teaching proposed by Faria de Vasconcelos’s handbook “Como se ensina aritmética” (How to Teach Arithmetic). The theme proved to be important in view of the transformations of arithmetic to teach in primary school in times of so-called scientific pedagogy. Such an analysis was made from the perspective of a theoretical-methodological framework that takes into account the professional knowledge of teaching. As a result, there is a reorganisation of the arithmetic in primary education under the impact of experimental psychology with a statistical basis. Such transformations are shown more explicitly in the new grading of school education proposed by Faria de Vasconcelos.

KEYWORDS: Arithmetic for teaching; Scientific pedagogy; Faria de Vasconcelos

Introdução

Este artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa de doutorado em andamento3 que busca analisar processos e dinâmicas de elaboração do saber profissional do professor que ensinava aritmética em sua formação na Escola Normal de São Paulo, em tempos do que a História da Educação nomeia de pedagogia científica. Essa pesquisa integra um projeto temático amplo4 que, amparado em um referencial de formação de professores numa perspectiva sócio-histórica, busca investigar historicamente o saber profissional do professor que ensinava matemática, em largo período temporal, compreendendo um século (1890-1990). Para tal empreitada, o projeto divide-se em quatro eixos temáticos que são norteadores de pesquisas de mestrado, doutorado e pós-doutorado com temas relacionados a cada um dos eixos.

No primeiro eixo do projeto temático, abordam-se os experts e o processo de produção dos saberes profissionais do professor que ensinava matemática; no segundo, trata-se da produção da matemática a ensinar; no terceiro, a produção da matemática para ensinar; e, por fim, o quarto eixo do projeto atém-se à pesquisa sobre professores que ensinavam matemática e à matemática ensinada.

O presente artigo insere-se primordialmente no terceiro eixo, estabelecendo diálogo com os resultados de pesquisas dos outros eixos. Por isso, neste ponto, é preciso melhor explicitar conceitos que são fundamentais para este texto, mobilizados como ferramentas teórico-metodológicas. São eles, como mencionado anteriormente, matemática a ensinar e matemática para ensinar. Em realidade, tais conceitos derivam de apropriações das noções de saber a ensinar e saber para ensinar.

Os saberes a ensinar são resultado de “[...] processos complexos que transformam fundamentalmente os saberes a fim de orna-los ensináveis” (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2017ª, p. 133), esses saberes de cultura geral, são comuns a todas as profissões tendo sua origem nos campos disciplinares. Por outro lado, os saberes para ensinar são próprios da profissão docente, por isso caracterizam o trabalho do professor e abrangem uma ampla gama de saberes, tratando-se

[...] principalmente de saberes sobre ‘o objeto’ do trabalho de ensino e de formação (sobre os saberes a ensinar e sobre o aluno, o adulto, seus conhecimentos, seu desenvolvimento, as maneiras de aprender etc.), sobre as práticas de ensino (métodos, procedimentos, dispositivos, escolha dos saberes a ensinar, modalidades de organização e gestão) e sobre a instituição que define o seu campo profissional (planos de estudo, instruções, finalidades, estruturas, administrativas e políticas etc.). Como em toda profissão esses saberes são multiformes. (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2017ª, p. 134, grifos dos autores).

A partir desses conceitos de saber a ensinar e saber para ensinar, Bertini; Morais e Valente (2017), assumem como hipótese teórica de pesquisa a existência de matemáticas, no plural, pois consideram que há diferenças entre a matemática do ensino e a matemática da formação, ou seja, não se trata simplesmente da mesma matemática ensinada de modo elementar na escola e que é ministrada de modo avançado na formação. Tem-se duas matemáticas de natureza diversa. Assim, a matemática a ensinar, originária do campo disciplinar matemático sofre transformações complexas, que podem ser explicadas por meio dos significados a ela dados na cultura escolar (JULIA, 2001) de modo a que se constitua em objeto do ensino do professor. É ela elaborada

[...] por processos históricos, revelando-se esse saber devedor, em cada época, das finalidades atribuídas à escola, da pedagogia reinante num dado tempo escolar, das concepções vigentes sobre a matemática, dentre vários outros determinantes. (VALENTE, 2019, p. 53).

Já a matemática para ensinar não se refere a saberes comuns a diversas profissões, mas a saberes que são utilizados por professores, são específicos da docência em matemática, e, do mesmo modo que a matemática a ensinar, ela também é o resultado de processos históricos (VALENTE, 2019ª). Tal matemática representa um saber sobre o objeto de ensino de modo que seja possível, em acordo com concepções de uma dada época, que o ofício docente se realize. Nesse sentido, matemática a ensinar e matemática para ensinar articulam-se em cada tempo histórico.

A existência dessas duas matemáticas remete historicamente as relações estabelecidas entre o campo educacional e o campo disciplinar matemático. À vista da necessidade de escolarização dos saberes, os diálogos entre esses campos elaboram saberes a ensinar e para ensinar.

Na análise das articulações entre o campo disciplinar matemático e o campo da educação, tem-se o que é possível chamar de vagas pedagógicas. Elas representam momentos históricos que consolidam concepções de ensino, de aprendizagem, de finalidades da escola dentre tantos outros elementos integrantes das dinâmicas e processos de escolarização.

Desse modo, cada vaga pedagógica deixa marcas próprias no ensino da matemática. Uma dessas marcas diz respeito à graduação dos saberes. Por graduação dos saberes entendemos o processo de organização dos conteúdos, neste caso, conteúdos da matemática, percorrendo etapas indicativas da docência do professor. Por onde iniciar, como estabelecer etapas de trabalho, que ligações dados conteúdos deverão ter com outros, de modo a se considerar pré-requisitos etc. Como o ensino deverá progredir?

Desse modo, cabe enfatizar, por exemplo, que não:

[...] está a bel prazer do professor demorar-se num tema, num assunto; ou mesmo, ministrar tão somente determinado conteúdo que, de modo particular, individual, o professor considere importante. Desde a escola graduada, em finais do século XIX, os programas apontam quando, em que época do curso, tal ou qual conteúdo deverá ser ministrado, isto é, sedimentam uma graduação, um movimento indicativo do progresso que deve ser dado ao ensino. (VALENTE, 2019ª, p. 55, grifo do autor).

Graduar o ensino de matemática, é ingrediente do trabalho docente. Uma dada graduação do ensino de matemática constitui ferramenta de trabalho do professor. Por ela rege-se a sequência das aulas, dos temas de um conteúdo, dos exercícios, problemas etc. Nesses termos, o ofício da docência não prescinde de uma graduação. Além disso, caberia mencionar que uma dada graduação se liga diretamente ao modo como em determinada época está consolidada uma concepção de ensino e de aprendizagem dos alunos. Tal concepção é própria de uma dada vaga pedagógica, de uma dada pedagogia que se estabelece como hegemônica num determinado período da história da educação. Essas considerações levam-nos a ponderar que a graduação como ferramenta do ofício docente constitui elemento do saber para ensinar. Em específico, para o que se está estudando neste artigo, a graduação refere-se a elemento constitutivo de uma aritmética para ensinar.

Assim, neste trabalho, tomando especificamente a aritmética, buscou-se analisar como a graduação do ensino desse saber foi proposta no manual Como se ensina aritmética de Faria de Vasconcelos. Que elementos estão postos nesse manual que poderemos tomar como os de uma aritmética para ensinar?

A escolha do manual

Em linhas anteriores discutiu-se como a graduação do ensino de um saber se relaciona com a vaga pedagógica vigente. Tendo isso em conta, neste trabalho coloca-se o olhar sobre a graduação do ensino de aritmética no movimento que ficou conhecido no Brasil como Escola Nova5, na vertente conhecida como pedagogia científica.

Como se disse ao início, este estudo integra projeto amplo, dialogando com pesquisas de outros pesquisadores igualmente interessados em estudar a matemática presente no ensino e na formação de professores. Para este texto voltamos a atenção para a formação de professores buscando elementos de uma aritmética para ensinar. Assim, dialogamos com os resultados de pesquisa doutoral de Pinheiro (2017). Essa autora mostrou como a pedagogia científica transformou a aritmética escolar no Brasil.

Com base na psicologia experimental de aferição estatística, caracterizada principalmente pela aplicação de testes psicológicos e pedagógicos (SOARES, 2014; BASSINELO, 2014 e VALENTE, 2014), a pedagogia científica constituiu base de referência para a construção de uma aritmética sob medida dada a conhecer nos livros escolares (PINHEIRO, 2017). Uma aritmética a ensinar.

À vista desses resultados da pesquisa de Pinheiro (2017), na categorização de uma aritmética a ensinar, ficou colocada uma indagação a respeito de como os professores deveriam ser formados para ensinar esse saber. Mas especificamente que aritmética para ensinar deveria formar o professor de modo a capacitá-lo a ministrar uma aritmética sob medida?

A escolha feita para a pesquisa de modo a dar resposta à questão optou pela análise dos manuais pedagógicos.

Os manuais pedagógicos como fontes para a análise de elementos da aritmética para ensinar

Manuais pedagógicos são instrumentos importantes para abordar historicamente a formação de professores. Pesquisadores da História da Educação mostram que, por meio deles, os discursos pedagógicos podem ser interpretados (BOTO, 2018).

No contexto do desenvolvimento do projeto temático amplo que mencionamos, já há trabalhos que fizeram uso dos manuais pedagógicos como meios de análise para a compreensão dos saberes postos no ensino e na formação de professores em determinados tempos históricos. A título de exemplo, pode-se citar a tese doutoral elaborada por Maciel (2019) que, com um recorte temporal que abarcou o período de 1880 a 1920, buscou caracterizar elementos do saber profissional do professor que ensina matemática em manuais pedagógicos.

A análise feita por Maciel (2019) mostrou dentre outras coisas, as diretivas de objetivação do cálculo oral principalmente nas vagas pedagógicas conhecidas como escola tradicional e método intuitivo. Assim, com base também nesses resultados e tendo em vista uma vaga pedagógica posterior - a Escola Nova - neste artigo o foco de investigação se volta para uma vertente importante dessa vaga pedagógica conhecida como pedagogia científica, pois como destacado anteriormente a pesquisa de Pinheiro (2017) mostrou como essa pedagogia foi inserida no ensino brasileiro, resultando numa aritmética sob medida, uma aritmética a ensinar. Que aritmética para ensinar foi elaborada para que o ensino fosse possível? Buscar-se-á responder à questão de modo restrito, analisando um manual pedagógico.

A escolha de um manual para fazer esse exercício teórico passou principalmente por duas etapas: na primeira delas buscou-se trabalhos que versaram sobre manuais de formação de professores no período estudado, em que vigorava a vaga pedagógica da Escola Nova. A segunda etapa, por sua vez, contemplou documentos oficiais que ratificaram a recomendação de uso de manuais, ou em certa medida, se apropriaram deles no sentido proposto por Chartier (2003). Tal procedimento, nos parece, chancelou aqueles manuais que tiveram importância por sua circulação e uso na formação de professores do período que está sendo estudado no projeto doutoral, que aqui apresenta seus resultados parciais.

Nesse processo de escolha dos manuais, um nome que se destacou em relação à aritmética embasada na pedagogia científica é o de Faria de Vasconcelos como mostra Marques (2013; 2018). De outra parte, trata-se de obra referenciada nos programas de formação de professores do Instituto de Educação de São Paulo na década de 1930. A escolha do manual Como se ensina aritmética também se relaciona com o fato de ter sido ele utilizado para fundamentar a escrita de A construção científica dos programas (1934) do professor da Escola Normal de São Paulo José Ribeiro Escobar6 que, apenas um ano depois da publicação de Faria de Vasconcelos transcreveu cinco seções suas que davam ênfase à psicologia e à renovação do ensino de aritmética.

Faria de Vasconcelos: Como se ensina aritmética?

O manual de Faria de Vasconcelos conforme destacado anteriormente foi escolhido por ser um representante da pedagogia científica, abordagem que o autor deixou claro já no Prefácio da obra ao afirmar que:

A maneira de tratar os problemas, as conclusões a que se chegou, as recomendações que se fazem, assentam nos resultados das investigações mais recentes feitas no domínio da didática, renovada pela psicologia e pela experimentação científicas. (VASCONCELOS, 1933, p. 9).

Adentrando no manual, na seção intitulada a psicologia e a renovação do ensino de aritmética, uma das que foi reproduzida na íntegra por Escobar (1934), tem-se o reforço da filiação da obra à pedagogia científica, quando se lê que o ensino

[...] tem-se aperfeiçoado e renovado, até nalguns aspectos, graças principalmente à intervenção dos três fatores: utilização dos dados da psicologia, prática da investigação e aplicação das medidas mentais e pedagógicas. (VASCONCELOS, 1933, p. 17-18).

Coloca-se assim, mais uma vez um acento na psicologia e nos testes como um fator essencial para o desenvolvimento do ensino da aritmética, e segundo ele, para se progredir nesse ensino “[...] é necessário ainda, além do conhecimento psicológico do aluno, o conhecimento lógico da disciplina e dos processos de ensinar” (VASCONCELOS, 1933, p. 18). A partir desta citação, é possível constatar que, nas entrelinhas da fala do autor, explicita-se a relação entre campo disciplinar e ciências da educação, como discutido por Hofstetter e Schneuwly (2017b), na qual o professor deverá ter domínio do conteúdo disciplinar; mas, ao mesmo tempo, não poderá deixar de ter conhecimento de aspectos psicológicos dos alunos.

Desse modo, a leitura do manual pedagógico de Vasconcelos (1933) permite compreender como a pedagogia científica afetou o ensino de aritmética. Ou seja, como essa vaga pedagógica transformou o ensino e a formação de professores relativamente à matemática.

O manual nos dá a perceber como a psicologia, especialmente a psicologia experimental de aferição estatística, impõe uma lógica própria a essa organização que se relaciona com a graduação do ensino. Como se disse anteriormente, uma dada graduação liga-se, implicitamente, a uma concepção de ensino e aprendizagem dos alunos. O modo como graduar está intimamente associado a essa concepção. No período que estudamos, a pedagogia científica, em que se predomina a psicologia experimental de base estatística, ditará essa graduação, justificará o modo como deverá ocorrer a marcha do ensino, o passo a passo do trabalho docente com os conteúdos escolares, com a aritmética escolar.

Em estudos anteriores já foi possível evidenciar essa apropriação da psicologia e da estatística na aritmética destinada à formação de professores. Trata-se do que foi obtido como resultado dos estudos realizados por Ferreira e Valente (2020). Neste trabalho, os autores ao analisarem mudanças no saber profissional do professor que ensinava aritmética, a partir da pedagogia científica, por meio da publicação de Aguayo (1936), concluíram, dentre outras coisas, que nela havia uma seriação própria dos exercícios que eram resultados dos testes psicológicos. Nesse caso, evidencia-se uma pedagogia científica referenciando o trabalho docente para ensino de aritmética.

O caso do presente estudo, ao considerarmos o manual de Faria de Vasconcelos, aponta para a análise de um novo material empírico, por meio do qual prosseguem, em nível mais alargado, a sistematização do que futuramente poderemos caracterizar como um processo de graduação dos saberes matemáticos, no período do que estamos chamando de pedagogia científica, uma das vertentes do escolanovismo. Como isso ocorre no manual de Vasconcelos é tema deste presente estudo, como se mencionou anteriormente. Iniciemos, pois, a análise mais específica da graduação que está proposta nesse manual.

A retórica da obra de Vasconcelos assenta-se na necessidade de um trabalho científico na educação, algo próprio do discurso que sustenta a pedagogia científica. O trabalho pedagógico, assim, precisa ter em conta os resultados de investigações científicas. Por exemplo, a necessidade dessas investigações, como indica Faria de Vasconcelos, em relação ao ensino dos números e de sua aprendizagem estava no fato de que

[...] depende primacialmente da preparação da criança, do grau do seu desenvolvimento, do seu interesse pelo número e do conhecimento que dele tenha adquirido. Se a criança, como dizem os autores da investigação que vamos descrever, tem uma compreensão funcional dos pequenos números, e pode entrar em comunicação com as outras crianças e com adultos sobre a base dum conhecimento comum de pequenas quantidades, então possuímos a indicação de que a criança está preparada para o ensino do número e que diferir este é retardar o seu conhecimento. (VASCONCELOS, 1933, p. 41-42).

Tendo em conta essa necessidade de ter conhecimento de por onde começar o ensino dos números, pode-se tomar como exemplo da relação entre as investigações promovidas pela pedagogia científica e esse ensino. A partir da pesquisa realizada por Buckingham e Maclatchy, o autor ressalta que eles

[...] procederam uma ampla investigação, de caráter individual, que se efetuou em 1.356 crianças pertencentes a 17 cidades e aldeias e alguns distritos rurais. Na sua investigação serviram-se de seis ‘tests’. (VASCONCELOS, 1933, p. 42).

A partir desses testes, umas das conclusões a que os autores chegaram, conforme o relato de Faria de Vasconcelos, foi a de que as crianças de seis anos de idade já chegavam à escola com um conhecimento considerável dos números. Veja-se por exemplo, em relação ao cálculo mental, em que eles concluíram:

Contas de memória: 90 % das crianças contam pelo menos até 10 e 60 % até 20; a criança típica (mediana) conta até 27 ou 28; 1 em 8 conta até 100. Metade das crianças contam dezenas até 40, ao passo que só um quarto conta dessa maneira até. (VASCONCELOS, 1933, p. 42-43).

No excerto acima se tem um exemplo de como a pedagogia científica fazendo uso de testes apontava estatisticamente o nível de conhecimento dos alunos, nesse caso em relação a contagem mental. Os resultados obtidos pelos testes, ao mostrar até que ponto os alunos conseguem contam mentalmente, dão ao professor primário referências a respeito de por onde começar seu trabalho. Um saber, portanto, estará disponível ao professor para o exercício de seu ofício. Assim, a pedagogia científica altera elementos do saber profissional do professor.

A aplicação de testes também indica uma sequência de combinações de objetos que leva em conta a frequência de acertos dos alunos. Um outro exemplo de testes aplicados por Buckingham e Maclatchy e apresentado por Faria de Vasconcelos, refere-se à combinação em problemas verbais relativos a operação de soma:

[...] as crianças eram examinadas mediante dez problemas verbais para ver se elas conheciam algumas combinações de soma. As combinações empregadas neste ‘test’ foram as seguintes: 5 +1, 7+1, 1+9, 4+4, 1+6, 5+2, 8+2, 4+5, 5+3 e 3+5, a que corresponderam respectivamente as percentagens: 71.5, 63.9, 48.5, 36,9, 48,5 43.8, 43.6, 21.8, 31.8, 26.9. Somente 7% das crianças responderam a todas corretamente. (VASCONCELOS, 1933, p. 44).

Uma outra investigação que Faria de Vasconcelos destaca, foi realizada por Frank Leslie Clapp7, autor que como mostram Almeida e Leme da Silva (2014) foi apropriado no Brasil por Alfredina de Paiva e Souza8 no Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Os autores destacam que com base nos testes de Clapp, a respeito das combinações numéricas, a professora Alfredina aplicou uma série de testes em onze escolas do Rio de Janeiro em 1.673 alunos.

Os questionamentos referentes a por onde começar o ensino e como medir a aprendizagem, segundo Faria de Vasconcelos, foram levantados inicialmente pela Comissão dos Sete9 que na Conferência de Illinois buscou responder esses questionamentos “[...] através de uma série de investigações que se estenderam sobre um período de cinco anos e requereram a cooperação de 148 cidades e de muitos milhares de crianças” (VASCONCELOS, 1933, p. 47).

Apoiado em Washburne, Faria de Vasconcelos discorre sobre a importância de conhecer os momentos corretos para ensinar as operações, segundo ele os “[...] fracassos na aritmética, são devidos, em grande parte, ao fato de o ensino das operações e processos ser feito em tempo impróprio” (VASCONCELOS, 1933, p. 50). Esse argumento reforça sua defesa de que a pedagogia científica deveria nortear as ações do professor.

Em relação as operações o autor argumenta que Clapp ao testar 7.000 crianças, estudou as dificuldades relativas das combinações e elaborou uma sequência para cada uma delas de acordo com a ordem crescente de dificuldade. Tome-se aqui como exemplo o caso da divisão10 mostrado na Figura 1.

Fonte: (VASCONCELOS, 1933, p. 64).

FIGURA 1: Sequência de combinações de Clapp de divisão por ordem crescente 

De posse desses dados característicos da pedagogia científica, o professor teria condições ensinar a divisão seguindo uma graduação de dificuldades preestabelecida pelos testes psicológicos. Trata-se de um exemplo de como essa pedagogia afeta elementos do saber profissional do professor que ensina matemática; uma aritmética para ensinar, haja vista que se trata de um específico da profissão docente. Com tais referências tem-se que o trabalho pedagógico do professor não deve ser executado segundo as preferências pessoais de cada mestre. Não caberá ao professor elaborar um conjunto de exercícios ou problemas de aritmética para trabalhar com seus alunos. Ele deverá servir-se do que já foi objeto de testes mentais e pedagógicos. Assim fazendo, irá exercer a docência de modo científico.

Conclusão

Neste artigo buscou-se analisar aspectos de como a graduação do ensino de aritmética foi proposta no manual Como se ensina aritmética de Faria de Vasconcelos.

Pode-se destacar que amparado em testes feitos por outros pesquisadores o autor abordou alguns elementos dessa graduação, como por exemplo, onde começar o ensino de números a partir do nível de desenvolvimento mental das crianças que deveria ser determinado estatisticamente. Como organizar exercícios e problemas, baseados em investigações científicas - entenda-se: estudos da psicologia experimental de base estatística - de modo a seguir o curso do que se acreditava à altura, do desenvolvimento da aprendizagem das crianças.

No manual analisado os testes também foram responsáveis por determinar a sequência do ensino das operações e os momentos mais apropriados para tal. Produziram assim uma transformação em elementos do saber profissional do professor que ensinava matemática, pois afetaram a própria lógica de organização dos saberes, uma vez que a sequência de ensino que o professor deveria seguir, já não era mais aquela produzida pelo campo disciplinar da matemática, mas a que fora elaborada e testada cientificamente, uma lógica própria da pedagogia científica.

O manual de Farias de Vasconcelos se dirige ao professor no sentido de orientá-lo a realizar o trabalho pedagógico de modo considerado científico. Em específico, no que toca à aritmética, está em curso uma nova organização desse saber na escola, evidenciam-se elementos de uma nova ferramenta que o professor deverá utilizar, um saber sobre aritmética que o professor não dispunha, e que é fornecida pelos testes, pelos estudos estatísticos que indicam ao professor como ele poderá tornar o seu ofício mais eficiente e, com isso, promover a aprendizagem da aritmética sob medida, uma aritmética forjada pelos testes mentais e pedagógicos (PINHEIRO, 2017). Nesse movimento, a docência de tal aritmética necessita de uma aritmética para ensinar. Vasconcelos (1933) nos revela elementos desse novo saber.

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3O trabalho conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo FAPESP 2018/06521-6.

4O projeto temático conta com apoio da FAPESP. Para maiores informações sobre o projeto acessar: https://www.ghemat.com.br/projeto-de-pesquisa-fapesp.

5Um aprofundamento na temática da Escola Nova no Brasil bem como nas suas mais diversas vertentes, pode ser lido no livro Brasil arcaico, Escola Nova: ciência, técnica e utopia nos anos 1920-1930 de autoria do pesquisador Carlos Monarcha (2009).

6Formou-se na Escola Normal de São Paulo em 1903, onde atuou como professor de aritmética e álgebra entre os anos de 1921 e 1929 quando foi enviado em missão ao estado de Pernambuco para ajudar na reforma do ensino primário (CAMPOS, 2018). De volta a São Paulo no começo da década de 1930, tornou-se chefe da divisão de programas e livros escolares, da diretoria geral do ensino do estado de São Paulo onde escreveu A construção científica dos programas.

7Segundo Almeida e Leme da Silva (2014) foi “psicólogo e professor de Educação da Universidade Wisconsin, Madison” (ALMEIDA; LEME DA SILVA, 2014, p. 53).

8Atuou no Instituto de Educação do Rio de Janeiro onde “[...] foi a professora-chefe da seção de Prática de Ensino e lecionava cálculo. Além de atuar como professora e catedrática do Instituto, realizou pesquisa e trabalhos experimentais sobre o ensino de matemática, apoiados em estudos internacionais. Assim, produziu manuais de ensino, livros didáticos e publicou artigos divulgando os resultados de pesquisas desenvolvidas no âmbito do Instituto de Educação, lócus de circulação e produção de conhecimentos científicos” (ALMEIDA; LEME DA SILVA, 2014, p. 52).

9Trata-se de um grupo de especialistas reunidos por Washburne “[...] em condições bem definidas para elaborar cientificamente um programa mínimo para o ensino de aritmética na escola primária” (PINHEIRO, 2017, p. 56).

10Aguayo se apropria desses resultados da pesquisa de Clapp em seu manual sobre a pedagogia científica, assim, discussões sobre a sequência da operação de soma podem ser lidas em autores que em alguma medida analisaram o manual de Aguayo como é o caso de Almeida e Leme da Silva (2014) e Ferreira e Valente (2020).

Recebido: 01 de Julho de 2020; Aceito: 01 de Novembro de 2020

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