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Ensino em Re-Vista

versão On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.30  Uberlândia  2023  Epub 10-Ago-2023

https://doi.org/10.14393/er-v30a2023-12 

Artigos

Práticas de educadores de língua portuguesa para refugiados

Prácticas de los educadores de la lengua portuguesa para los refugiados

Evelyn Viriato1 
http://orcid.org/0009-0008-4705-4264

Maria de Fátima Ramos de Andrade2 
http://orcid.org/0000-0003-4945-8752

1Mestre em Educação, Arte e Histórica da Cultura. Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: eviriato@gmail.com.

2Doutora em Comunicação e Semiótica. Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: mfrda@uol.com.br.


RESUMO

O objetivo do presente texto foi investigar a base de conhecimentos do educador voluntário no ensino de língua portuguesa no processo de acolhimento dos refugiados/imigrantes. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de cunho descritivo-analítico. O processo de análise culminou na criação de três eixos de análise: a) a escolha profissional, o papel do educador voluntário e as concepções de acolhimento; b) a base de conhecimento, aprendizagem da docência e a desconstrução das crenças e c) a proposta institucional de formação de educadores de língua portuguesa para refugiados/imigrantes. Concluímos que, apesar da carência de formação adequada, há grande motivação por parte dos educadores em oferecer aulas de qualidade. Há um alinhamento entre os voluntários e a missão e visão da organização. A instituição demonstra preocupação na formação de seus colaboradores, e suas ações diante da equipe são realizadas por uma necessidade prática que surge a partir das demandas rotineiras das aulas.

PALAVRAS-CHAVE: Refugiados; Imigrantes; Língua de acolhimento; Formação de Professores

RESUMEN

El objetivo de este texto fue investigar la base de conocimientos del educador voluntario en la enseñanza de la lengua portuguesa en el proceso de acogida de refugiados/inmigrantes. Se trata de una investigación cualitativa descriptiva-analítica. El proceso de análisis culminó en la creación de tres ejes de análisis: a) la elección profesional, el papel del educador voluntario y las concepciones de acogida; b) la base de conocimientos, la enseñanza, el aprendizaje y la deconstrucción de las creencias y c) la propuesta institucional para la formación de educadores de habla portuguesa para refugiados/inmigrantes. Concluimos que, a pesar de la falta de formación adecuada, existe una gran motivación por parte de los educadores para ofrecer clases de calidad. Existe una alineación entre los voluntarios y la misión y visión de la organización. La institución muestra preocupación en la formación de sus empleados, y sus acciones ante el equipo se llevan a cabo por una necesidad práctica que surge de las demandas rutinarias de las clases.

PALABRAS CLAVE: Refugiados; Inmigrantes; Idioma anfitrión; Formación del profesorado

ABSTRACT

The aim of this text was to investigate the knowledge base of volunteer educators in teaching Portuguese language within the context of welcoming refugees/immigrants. It involved a qualitative research with a descriptive-analytical approach. The analysis process led to the creation of three analytical dimensions: a) professional choice, the role of the volunteer educator, and conceptions of welcoming; b) knowledge base, teaching learning, and the deconstruction of beliefs; and c) institutional proposal for the training of Portuguese language educators for refugees/immigrants. We concluded that despite the lack of adequate training, there is a strong motivation among educators to provide quality classes. There is alignment between the volunteers and the organization's mission and vision. The institution demonstrates concern for the professional development of its staff, and its actions with the team are driven by practical needs arising from the daily demands of the classes.

KEYWORDS: Refugee; Immigrants; Host language; Teacher Training

Introdução

O tema “refugiados” é contemporâneo e marca a nossa sociedade. De acordo com a agência ACNUR, refugiados são pessoas que, por temor, são obrigadas a ficar fora de seus países de origem. Esse temor pode ser relacionado com questões de opinião política, pertencimento a um certo grupo social, nacionalidade, religião, raça ou violação dos direitos humanos (ACNUR, 2011). É importante conceituar as diferenças entre migrantes (emigrantes e imigrantes), exilados e asilados em comparação com os refugiados. Migrantes são aqueles que mudam de local. Uma pessoa que deixa sua terra natal é chamada emigrante; já quando ela chega a seu destino, passa a ser um imigrante no novo lugar. Dentro desse conceito, o refugiado pode ser considerado um migrante, porém ele se desloca involuntariamente, ou seja, por estar em perigo e não por um simples desejo. O exilado se diferencia do refugiado mais por questões legais, assim como o asilado. A condição de asilo pode ser cedida pelo Presidente da República, ou por um responsável pelo mais alto cargo de liderança de um país, não precisando necessariamente passar por um órgão específico.

Quando um imigrante chega a um novo país, a aprendizagem da nova língua é vital para que ele se estabeleça e se adapte à nova realidade e que compreenda a nova cultura a que se expõe. Logo, a formação linguística deve ocorrer de forma rápida e de modo a contemplar também o contexto social e pragmático existentes. Em geral, uma das dificuldades enfrentadas por imigrantes é o não domínio da nova língua.

No contexto brasileiro, em especial no estado de São Paulo, há ONGs (Organizações não governamentais) que se propõem a acolher esses imigrantes que chegam fragilizados ao país. Em 2018, num levantamento feito via busca na internet das organizações na cidade de São Paulo que ministravam aulas de língua portuguesa para imigrantes e refugiados, encontramos a ocorrência de sete organizações não governamentais que ofereciam esse serviço. Das sete ONGs, uma abriu as portas para a realização do presente estudo. A ONG “X” tem diferentes frentes de trabalho e uma delas lida diretamente com a questão dos refugiados.

Os educadores voluntários que atuam na ONG “X” não precisam ter formação na área da educação, mas passam por uma entrevista inicial, na qual se avaliam suas habilidades de comunicação, de conhecimento da língua portuguesa e de facilidade de relacionamento, uma vez que a ONG preza pelas relações interpessoais como uma ferramenta de transformação positiva na vida das pessoas.

O presente estudo se propôs a investigar qual a base de conhecimentos do educador voluntário que atua na ONG “X” no ensino de língua portuguesa no acolhimento aos refugiados/imigrantes. Para a realização do estudo optamos por uma abordagem qualitativa de cunho descritivo-analítico. O artigo está organizado em três partes. Na primeira, discorremos sobre o conceito do ensino da Língua Portuguesa como Língua de Acolhimento (PLAc), procurando fazer relações com a formação docente. Na segunda, apresentamos a análise dos dados gerados e, por último, tecemos algumas considerações e apresentamos as referências.

1 Língua de acolhimento, o contexto da ONG “X” e os educadores voluntários

Quando o assunto é aquisição de língua, há algumas expressões que carecem de identificação para que não ocorra confusão conceitual. Quando lemos a expressão língua materna (LM), somos direcionados à primeira língua social do indivíduo, geralmente a aprendida em família no período do desenvolvimento infantil. Já a língua estrangeira (LE) se refere à língua do outro. Ao observarmos o termo segunda língua (L2), verificamos a conexão com a língua aprendida na escola ou língua oficial (GROSSO, 2010).

Considerando os estudos de Barbosa e Freire (2017), não há cursos oferecidos por universidades particulares ou do governo para a formação de professores que possam lecionar Português como língua estrangeira, embora haja demanda para isso, especialmente nas regiões fronteiriças do país, que recebem estrangeiros. Nessa linha, também se pode dizer que falta formação de professores com a compreensão do Português como língua de acolhimento. Esse conceito vai além do domínio da estrutura da língua em si por parte do professor, mas engloba o fazer (GROSSO, 2010). No contexto do imigrante, a língua de acolhimento possibilita que ele exerça de fato a cidadania no novo país. De acordo com o autor,

O conhecimento sociocultural e a competência sociolinguística são importantes no desenvolvimento da competência comunicativa e servem como base de debate e de diálogo para uma cidadania plena e consciente, aspecto fundamental na língua de acolhimento (GROSSO, 2010, p. 71).

A língua de acolhimento visa à ação, então se distancia da artificialidade e se aproxima da vida real. Esse movimento acontece entre quem ensina e quem aprende numa relação de aprendizagem mútua (GROSSO, 2010). Outro aspecto importante a ser considerado, segundo Mendes (2004), é a junção da língua com a cultura, pois a linguagem é um fator de comunicação entre as pessoas e essa comunicação leva ao desenvolvimento da cultura.

Quando pensamos no ensino de língua portuguesa como língua de acolhimento para adultos imigrantes, precisamos considerar que se trata de um público com uma experiência de linguagem anterior. Logo, esse processo de aprendizagem não se assemelha ao processo de alfabetização de uma criança, uma vez que esse público já possui uma língua consolidada, o que leva à escolha de um método de ensino voltado para o diálogo, a interculturalidade e praticidade (BARROS; ASSIS, 2018).

Nesse sentido, o processo de acolhimento deve levar em conta o aspecto global da língua de acolhimento, no caso do presente estudo, a língua portuguesa como língua oficial do Brasil. Mas, para além disso, deve-se observar com atenção o aspecto local dessa língua, já que se trata de um público específico, de maioria árabe, concentrado na região central da cidade de São Paulo, em contato com uma população bastante heterogênea, que sofre influência de culturas de outros países e de outros estados da nação.

1.1 Contexto da ONG “X”

A ONG “X”, localizada na cidade de São Paulo, tem como mote a “Compaixão que Transforma”. A ONG auxilia crianças, adolescentes, mulheres e refugiados em situação de fragilidade na capital do estado de São Paulo. Localizada intencionalmente na região central da cidade para a facilidade de acesso, promove atividades diversas nas áreas de esporte, artes e cultura. A instituição começou suas atividades esportivas, culturais e artísticas em 1998, promovendo ações para crianças moradoras de rua, pessoas viciadas em drogas, travestis e famílias com dificuldades na área central da capital, nos bairros do Glicério, Luz, República, Vale do Anhangabaú, região da “Cracolândia” e Praça da Sé.

Vale ressaltar que os educadores que atuam na ONG “X” são voluntários e que não precisam ter formação na área de educação para ministrarem aulas para os refugiados. Há uma entrevista inicial por meio da qual se verifica o perfil do candidato a educador. Uma vez aceito, o educador passa por um treinamento e um estágio, no qual assiste a três aulas de educadores já em atuação. No treinamento inicial, o voluntário tem acesso a um panorama do Islã, visto que a maioria dos refugiados atendidos na ONG X” é muçulmana. Os voluntários também são orientados a não chamar os estudantes de “refugiados”, mas, sim, de alunos, e evitar temas relacionados à guerra e violência etc.

De acordo com Lopez (2020), esse termo “voluntário” pode, muitas vezes, remeter a um contexto assistencialista, enxergado pelo senso comum como uma ação vinda de pessoas caridosas e que carregam uma missão, e não de profissionais com uma área de atuação específica para tal. Dentro desse entendimento, verificamos a abertura para a ocorrência da seguinte reflexão:

De certo modo, isso acaba autorizando um lugar de prática do voluntariado que, por consequência, retira do Estado brasileiro a sua responsabilidade de promover políticas, dentre elas, políticas linguísticas de ensino da língua portuguesa para os migrantes de crise (LOPEZ, 2020, p. 171).

Quando temos essa perspectiva do educador voluntário, mesmo de forma inconsciente, acabamos por considerar a posição de extrema inferioridade do imigrante, que precisa dessa atitude caridosa para se integrar à nova sociedade para a qual se mudou (LOPEZ, 2016; 2018). Passamos a enxergá-lo como um necessitado e desconsideramos que, na verdade, esse cidadão tem direitos que devem ser respeitados. É importante que, no processo de acolhimento do imigrante, em especial no tocante ao ensino de língua portuguesa, a cultura do país receptor seja apresentada, e que, em paralelo, sua própria cultura e história de vida sejam valorizadas.

Parece haver uma falta de formação para professores de língua portuguesa como língua de acolhimento no contexto brasileiro, e segundo Amado (2013) muitos professores, apesar da disponibilidade, têm apenas a habilidade de falar a língua adicional a que se propõem ensinar. Sua prática está pautada em “métodos intuitivos e muito autodidatismo”.

Tecendo relações com a formação docente, de acordo com Shulman (2014), a prática pela prática não é suficiente para que o professor aprenda o seu ofício. É necessário combinar pesquisa, conhecimento dos conteúdos, discussão, documentação e reflexão sobre sua prática. Para o autor,

Assim, chegamos ao novo começo, à expectativa de que, por meio de atos de ensino “pensados” e “lógicos”, o professor atinja uma nova compreensão, tanto dos propósitos e dos conteúdos a serem ensinados como dos alunos e dos próprios processos didáticos (SHULMAN, 2014, p. 222).

Há uma tendência, inclusive verificada nos próprios documentos oficiais que regem a educação, da valorização exclusiva da prática como meio de formar os professores em detrimento da teoria, que fica em segundo plano.

Outro assunto de grande importância é o conhecimento pedagógico do conteúdo, que é a área de conhecimento específica dos docentes (SHULMAN, 2014), que exige dos professores um processo contínuo de formação, que envolve tanto teoria quanto prática. Trata-se de um processo que abrange uma estrutura complexa de fatores, tais como: um trabalho coletivo que possibilite a percepção de sua prática, concepções sobre o ensino, aprendizagem e crianças, entendimento de como utilizar essas concepções, intencionalidade refletida em suas práticas e recursos que as viabilizem (DARLING-HAMMOND; BRANSFORD, 2019, p. 329).

Para que o professor desenvolva sua expertise, ele precisa aprimorar continuamente seu conhecimento de conteúdo pedagógico, que é mais do que o necessário conhecimento pedagógico e de conteúdo, é na verdade o conhecimento que conecta essas duas esferas (SHULMAN, 2014). Os estudos mostram que os professores eficientes têm características em comum, como por exemplo a clareza das suas expectativas em relação aos alunos, exibição dos trabalhos realizados pelos alunos, sua movimentação contínua em sala de aula, organização dinâmica do layout da sala, especialmente para trabalho em pequenos grupos, atmosfera de diálogo e questionamento durante as atividades, e planejamento primoroso de aulas (DARLING-HAMMOND; BRANSFORD, 2019).

2 Procedimentos metodológicos e a análise dos dados gerados

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa de cunho descritivo-analítico que contou como procedimento metodológico a realização de entrevistas. O instrumento entrevista estava dividido em duas partes: perguntas destinadas à tentativa de traçar um possível perfil dos participantes e perguntas voltadas para o tema de formação dos professores. Para preservar a identidade dos entrevistados, optamos por substituir os nomes reais dos participantes por nomes de países dos quais a ONG “X” recebe refugiados. Assim, foram designados: Afeganistão, Síria, Venezuela, Marrocos, Iraque, Arábia Saudita e Palestina.

O educador Afeganistão, de 49 anos, tem uma vasta formação no ensino superior: Teologia, Logística, Letras (incompleto) e Jornalismo. A educadora Síria, de 46 anos, é formada em Marketing e teve a oportunidade de cursar MBA em Inteligência do Mercado e pós-graduação em Administração de Negócios. A educadora Venezuela, de 68 anos, cursou Direito e cursou pós-graduação em Direito Empresarial. O educador Marrocos, de 32 anos, tem formação em Administração de Empresas com ênfase em Comércio Exterior. Cursou MBA em Concentração, Empreendedorismo e Inovação na FGV e pós-graduação em Fitoterapia Clínica. O educador Iraque, de 39 anos, é formado em Educação Física (licenciatura plena) e Teologia. A educadora Arábia Saudita, de 31 anos, é formada em Biomedicina. A última entrevistada foi a educadora Palestina, de 26 anos, é formada em Educomunicação

Como verificado na descrição dos educadores entrevistados, eles têm formações muito diversas e tempo de experiência distintos, formando uma equipe de trabalho com um perfil bastante heterogêneo, inclusive em termos de idade. A seguir, apresentamos os resultados das entrevistas que foram feitas com cada um dos participantes da pesquisa.

3 Base de conhecimento dos educadores voluntários

Após leituras recorrentes das respostas dadas pelos entrevistados, estabelecemos os seguintes eixos de análise: 1) a escolha profissional, o papel do educador voluntário e as concepções de acolhimento; 2) a base de conhecimento, aprendizagem da docência e a desconstrução das crenças e 3) a proposta institucional de formação de educadores de língua portuguesa para refugiados/imigrantes.

3.1 A escolha profissional, o papel do educador voluntário e as concepções de acolhimento

Inicialmente, solicitamos aos participantes que falassem sobre os motivos pelos quais escolheram atuar na ONG “X” como educadores. A maioria dos educadores demonstrou profundo interesse em ajudar. Outro ponto de apoio para este eixo é que há interesse pelo contato com culturas diferentes.

O educador Afeganistão citou que sua experiência pessoal fora do Brasil o fez perceber a importância de ajudar o imigrante no que diz respeito ao aprendizado da língua. A educadora Síria relatou seu interesse em ajudar o refugiado a aprender a língua portuguesa para que viva com mais qualidade no Brasil e que tenha maiores chances de encontrar trabalho. Marrocos verbalizou o desejo de compartilhar o conhecimento de língua portuguesa com as pessoas em situação de refúgio. Iraque informou que, primeiramente, deve obediência ao amor de Deus, que o faz querer ajudar as pessoas, e seu objetivo é tentar levar esse amor através da educação; em segundo lugar, ajudar os refugiados a terem melhores condições no Brasil. Arábia Saudita deseja ajudar, especialmente depois da chegada maciça de sírios no Brasil em 2014. Palestina expressou sua vontade de se aproximar de culturas, línguas e costumes muito diferentes.

A seguir, apresentamos alguns trechos das respostas dadas:

Eu acredito que pela minha própria experiência, tendo ido morar na Bolívia, sem dominar o idioma e ter aprendido ao longo do tempo, também há outra experiência na Nova Zelândia, porque mesmo eu já tendo uma base de inglês é completamente diferente quando você vai morar num país que fala inglês e no caso da Nova Zelândia, um inglês um pouco diferenciado daquele que a gente está acostumado na escola... Quando eu voltei para o Brasil em 2015, eu queria de alguma forma ajudar estrangeiros aqui. E foi aí que eu conheci a ONG “X” (Afeganistão).

Primeiro foi o contato com os refugiados. Porque a gente ajuda o refugiado não só com a aula. A gente ajuda o refugiado também com as necessidades básicas que possam acontecer. Nós acabamos sendo uma ponte do refugiado com a coordenação da ONG, porque a gente tem maior contato com eles. Então isso também me atraiu muito para dar a aula. Porque o meu o meu principal objetivo no início era até fazer uma missão transcultural em outro país. (Síria).

Na pergunta sobre o papel do professor para os educadores, visualizamos como eles concebem o acolhimento do refugiado. O educador Afeganistão respondeu que o papel do professor extrapola a sala de aula e se desenrola em uma tentativa de relacionamento com os refugiados, para a criação de vínculos de amizade. Nessa relação, o professor pode ajudar inclusive com questões médicas, ou inscrições em universidade, ou compra de passagem de ônibus para outro estado, por exemplo. A educadora Síria relatou que no contexto de aula de língua portuguesa para refugiados, a aula vai além da aprendizagem do novo idioma, o professor tem um papel social de ajuda, de inserção desse cidadão na sociedade de acolhimento. A nova língua, por exemplo, o ajuda a achar emprego para se manter. A educadora Venezuela expressou que “ensino de português é doação de amor”. Marrocos reforçou que o ensino da língua portuguesa deve ser feito de forma acolhedora, reduzindo o impacto que eles sofreram ao serem inseridos em uma nova cultura totalmente diferente da deles. O papel do professor é entender as outras pessoas e suas necessidades, e então passar o conteúdo da melhor forma. Iraque fala da importância de facilitar ao máximo o aprendizado da língua portuguesa sem que esse processo represente mais um trauma na vida dos refugiados. A educadora Arábia Saudita entende que o professor deve compartilhar saberes e formar opiniões e caráter. Palestina enxerga o professor como mediador entre o conhecimento, o aluno e o novo contexto em que ele está inserido. A seguir, apresentamos alguns trechos das respostas dadas:

Olha, no nosso caso, nós trabalhamos com refugiados. É primeiro ensinar a eles o que eles estão precisando, que é aprender português. Isso é primordial. E mais uma coisa que a gente dá para eles, tem que dar um pouco de amor. Porque eles estão sozinhos, saíram de um país em guerra. (Venezuela).

Então, ainda mais quando a gente está falando de refugiados, então vai muito além de uma gramática, de um idioma. Então, de forma básica, eu vejo um professor como aquele que é capaz de passar de forma eficiente um conhecimento. Para que a gente consiga passar uma mensagem, consiga se comunicar com as pessoas, você tem que quebrar algumas barreiras, você tem que entender as pessoas, OK? Quando você aprende uma língua você aprende uma cultura. OK? (Marrocos).

Em suas respostas, constatamos que os voluntários demonstraram uma preocupação com a dimensão humana da ação educativa. Já com relação às questões técnicas do trabalho educativo, não observamos apontamentos de preocupação formativa. Resumidamente, observamos que há uma preocupação latente em todos os discursos com a questão do acolhimento, da necessidade de relacionamento com os refugiados, que inclusive vai ao encontro da missão da ONG, do mote dela, que é “compaixão que transforma”. Como verificado em nossa base teórica, estes educadores se apropriam de um método de ensino voltado para o diálogo, a interculturalidade e praticidade (BARROS; ASSIS, 2018, p. 67), inclusive as questões práticas são muito priorizadas de acordo com a fala dos participantes.

3.2 A base de conhecimento, aprendizagem da docência e a desconstrução das crenças

Observou-se nas entrevistas a importância do ensino superior como suporte para a docência, o que começou a nos apontar um norte em relação ao aspecto da base de conhecimentos dos educadores. A maioria dos voluntários relatou que seus cursos de formação superior foram úteis para suas práticas docentes na ONG “X”, ainda que não tenham sido na área da educação. Somente a entrevistada Síria reportou pouca contribuição.

Afeganistão enfatizou que o curso de Letras o ajudou muito com as questões de língua portuguesa e a Teologia colaborou muito no sentido de ampliar o seu olhar por meio da disciplina de antropologia, ao estudar e conhecer diferentes culturas. Já o curso de jornalismo foi feito na Bolívia, então o domínio da língua espanhola foi útil nas aulas ministradas para refugiados venezuelanos. A educadora Síria foi a única que verbalizou pouca contribuição do seu curso superior em Marketing para as aulas, sendo que o que ela mais aproveitou foi o lado da criatividade no preparo e condução das aulas. A voluntária Venezuela disse que o Direito contribui muito, porque antes de tudo, na ONG “X”, os indivíduos praticam a justiça. Além disso, os alunos costumam consultá-la sobre suas dúvidas legais. Marrocos relatou que especialmente no aspecto do modelo a ser seguido dos professores no curso de graduação e nos cursos de pós-graduação a contribuição foi grande. Para ele, o exemplo dos bons professores que conseguem motivar seus alunos é importante para a ministração das aulas na ONG. Iraque respondeu que os cursos de Educação Física e Teologia foram vitais para a ministração das aulas, em especial na questão da didática. Arábia Saudita disse que houve contribuição, pois ela é uma pessoa tímida, e ter que apresentar trabalhos na faculdade a ajudou a se expressar em público e a se expor. A educadora Palestina informou que o curso de Educomunicação a ajudou muito no refinamento do olhar para a utilização de diferentes mídias nas aulas, como uso de jogos, vídeos, podcasts e áudios, por exemplo.

Parece-nos que o conhecimento do conteúdo foi o mais evidenciado pelos entrevistados. Essa postura aponta para o que Shulman (2014) discorre sobre uma das esferas inerentes do fazer docente, já que existe uma preocupação por parte dos educadores com o preparo do conteúdo propriamente dito das aulas a serem ministradas. Seguem alguns trechos das entrevistas:

Primeiramente a buscar o conhecimento e passar esse conhecimento de uma maneira prática, de uma maneira fácil, de uma compreensão fácil que seja leve, que seja prático, desde a maneira de trazer o conhecimento como da maneira de me portar dentro de uma sala de aula, de não falar de costas, de usar exemplos práticos da vida para trazer o conhecimento teórico. (Iraque).

Eu acho que a partir do momento que eu tive também que apresentar algum conteúdo durante as aulas ou alguma coisa do tipo, isso tudo ajuda a formar, né? Aprendemos a nos expressar melhor. Eu sou uma pessoa tímida, então o contato que eu tive com a faculdade, ter que também expor algumas coisas me ajudou sim. (Arábia Saudita).

Quando partimos para a pergunta sobre quais fontes/base teóricas direcionam as práticas dos educadores, emergiu a percepção da falta dessa relação nas ações dos educadores. Não houve referência, por exemplo, às teorias de aprendizagem. O olhar é mais direcionado para as questões práticas da docência. Somente a entrevistada Palestina conseguiu mencionar a questão das teorias da aprendizagem, contudo de forma mais genérica. Afeganistão direcionou a resposta para as práticas adotadas em aula que ajudam os alunos a se apropriarem do conteúdo; não houve uma conexão com o aspecto da teoria mencionado na pergunta, ou seja, ele não se referiu, por exemplo, às teorias de aprendizagem. Síria apontou a conexão do uso da teoria sobre culturas adquirida nos cursos proporcionados pela ONG como muito úteis nas aulas de língua portuguesa para os refugiados, mas não se referiu às teorias de aprendizagem. Venezuela entendeu o embasamento teórico para a condução das aulas como uma postura prática a ser adotada em sua atividade docente. Marrocos direcionou a resposta para as práticas adotadas em aula que ajudam os alunos a se apropriarem do conteúdo, privilegiando a organização da aula de forma que as quatro habilidades sejam trabalhadas (escuta, fala, escrita, leitura). Iraque se referiu às teorias relacionadas aos conteúdos que precisa ministrar em aula. Arábia Saudita direcionou a resposta para as práticas adotadas em aula que ajudam os alunos a se apropriarem do conteúdo, privilegiando a organização da aula de forma que as quatro habilidades sejam trabalhadas (escuta, fala, escrita, leitura). Palestina afirmou que existe relação entre teoria e prática no planejamento das aulas, como o conteúdo deve ser trabalhado e como a dúvida do aluno deve ser acolhida. Também citou questões de ordem prática das aulas, como o gerenciamento de situações não previstas e que demandam uma tomada de decisão rápida do professor.

Resumidamente, as entrevistas apontam para a importância no que tange ao conhecimento do conteúdo e ao conhecimento pedagógico em termos de teoria no olhar destes educadores no preparo e ministração de suas aulas (SHULMAN, 2014).

Seguem alguns trechos das entrevistas:

Então, eu acredito que aí algum tempo da minha experiência tem me ajudado muito, mas tem coisas que são muito novas, uma coisa é você dar aula de português para brasileiro, outra coisa é para estrangeiro. E eu vou usar como exemplo a aula passada. Eu tinha que falar com eles sobre apresentação em português, o uso do possessivo “dele e dela” e eu queria trazer aqui um grupo de personalidades. Só que nem todo mundo que é celebridade no Brasil é celebridade no Afeganistão, então como eu tenho um amigo afegão, eu liguei para ele e falei com ele, eu vou dar uma aula assim e eu preciso de algumas sugestões, nomes de famosos afegãos ou de famosos para os afegãos. E ele me passou isso, aí e eu utilizei e era interessante ver quando eles olhavam para alguém ali que era conhecido deles, totalmente anônimo para nós, mas conhecido deles, quando eles iam falar sobre aquela pessoa, então eu acho que a prática desse aprendizado vem dessa maneira... Nesse sentido aí de tornar as coisas práticas (Afeganistão).

Sim, sim, existe, existe bastante. Claro que ali é muito no dia a dia, na nossa atuação ali, mas ela é constante. Então acho que desde o modo de como acolher a dúvida, de como a gente vai trabalhar algum conteúdo específico do livro, como a gente acolhe essa dúvida que chega, até enfim, falando tudo fora de ordem, mas a preparação da aula também, é a mudança ali da preparação mesmo, na hora da aula. Às vezes você vê que o que você preparou não vai caber bem ali. Por mais que você tenha, poxa, uma super ideia. (Palestina).

Especialmente no trecho acima relativo à resposta de Afeganistão podemos fazer relação com o conceito de PLAc local, já que o educador considera em seu planejamento de aulas os alunos específicos para os quais ministra aulas, intencionalmente fazendo relações da cultura dos refugiados com o conteúdo a ser ensinado (SILVA; ZAMBRANO, 2021).

Quando pedimos exemplos de aulas exitosas no ponto de vista dos educadores, verificamos a preocupação de que as aulas sejam dinâmicas e inclusivas. As práticas docentes que parecem motivar mais tanto os educadores quanto os alunos são as que valorizam a cultura dos estudantes e o que eles têm como contribuição para enriquecimento da aula, bem como atividades que envolvam metodologias ativas, como jogos, trabalho em grupo, sala de aula invertida.

O educador Afeganistão citou uma aula na qual ensinou o uso do possessivo “dele/dela” por meio de uma apresentação surpresa de celebridades afegãs para a turma de afegãos, conforme já mencionado anteriormente. A educadora Síria utiliza estratégias lúdicas na aula para torná-la mais atrativa e menos cansativa para os alunos, pois alguns trabalham inclusive de madrugada e todos vêm de contextos de stress. A educadora Venezuela motiva os alunos a falarem de suas experiências e suas vidas pessoais, mas respeita os mais reservados que preferem se calar. O voluntário Marrocos procura transmitir a teoria para a prática ou para a vivência deles durante as aulas, para a realidade deles. Iraque busca fazer associações e contextualizações para ministrar suas aulas. Por exemplo, prioriza ensinar vocabulário do campo semântico religioso no período do Ramadã, pois isso faz mais sentido para os alunos, tanto emocionalmente quando de forma prática, uma vez que será um vocabulário muito mais explorado nesse período. A voluntária Arábia Saudita propõe aulas com jogos, cards, vídeos, trechos de filmes do gênero Sci-Fi e leitura de livros de literatura. Palestina ministra aulas que envolvem jogo da memória para enriquecimento de vocabulário, jogo de “cara a cara” para explorar vocabulário relacionado às características físicas das pessoas, jogos de perguntas e respostas, atividades com áudio, competição de soletrar palavras para verificação de nível de compreensão dos alunos e trabalhos em grupo. Seguem alguns trechos das entrevistas:

Eu tenho só três meses. Mas eu gosto muito de fazer brincadeiras lúdicas que é uma coisa que a gente até aprendeu nesse curso, até porque eles são refugiados. Eles vêm de um contexto de guerra, vem fragilizados emocionalmente. Então não dá para você ser muito pragmático e muito autoritário na hora de passar alguma coisa. Nós também temos limites, fiz assim para falar de contextos. Para não trazer gatilhos. Para o refugiado ou porque como a gente falou, como eu falei. A maioria vem nesse contexto de guerra ou até perseguição. Então eu gosto muito de usar algumas coisas lúdicas, algumas brincadeiras para descontrair a aula, apesar dessa turma ser uma turma avançada, mas juntando com esse contexto social. (Síria).

A gente sempre pede alguns exercícios igual a esse trabalho que a gente está fazendo para que eles falem alguma coisa deles sabe? É para não ficar só no português na gramática e tal. Então a gente sempre pede para que eles falem alguma coisa da vida deles. Então dependendo da turma, às vezes, você vê uns que são muito fechados, não querem falar, sabe? Então a gente respeita. Outros querem sim, outros falam da família, dos pais, dos irmãos, sabe? Falam com alegria, então a gente vê que é um povo assim, como nós. (Venezuela).

Ficou explícito nas respostas dadas pelos entrevistados que há uma preocupação com o conhecimento pedagógico. Praticamente, todos responderam que estão atentos para o preparo de aulas com diferentes recursos que as tornem dinâmicas e proveitosas.

Ao serem questionados sobre a questão das crenças, tivemos recorrente resposta no sentido de que o professor não deve ser visto como uma figura distante, que está disponível somente para transmitir um conteúdo que domina. Há o entendimento da necessidade do vínculo que deve existir entre professor/educador e aluno. A crença de que o professor é um ente distante na dinâmica do processo de ensino e aprendizagem caiu por terra para a maioria dos educadores voluntários (quatro), que o professor também deve saber ouvir, não só falar. O compartilhar saberes foi uma nova crença percebida, no lugar da meritocracia pura e simples. A crença do respeito à figura do professor foi reforçada. Uma educadora apontou para a direção de que as crenças culturais entre educadores e alunos são muito diferentes, e que essa consciência é importante para o processo de aprendizagem. Seguem alguns trechos das entrevistas:

Eu acho que no nosso sistema educacional tem muito do lance do você estuda, você faz a prova e você passa se você foi bem na prova. E eu acho que isso é um sistema que de fato não avalia as aprendizagens das pessoas. E eu já não acreditava nesse sistema educacional que a gente infelizmente tem, a maioria aqui no Brasil nas escolas públicas. Eu sou uma pessoa que veio de escola pública. Então sempre foi esse negócio meio meritocrático e a educação não tem nada a ver com isso. Eu tive bons professores na minha jornada educacional que sempre me fizeram gostar da área de educação... Não é sobre dividir quem sabe, quem passou, quem não passou, eu acho que isso é uma das maiores falhas que a gente tem aqui no Brasil (Arábia Saudita).

Acho que no meu processo, grande parte foi de desmistificar mesmo. Concordo que a gente vai desenvolvendo muito isso ao longo da vida, a partir das nossas experiências enquanto alunos. E aí quando acontece da gente ocupar um lugar de professor em algum momento, a gente consegue entender algumas coisas que aconteceram no nosso processo, porque foi assim e aí acho que às vezes até tem uma relação meio tardia de perdão e reconciliação com professores que você teve ao longo da vida. (Palestina).

Dentro deste eixo de análise, as cinco perguntas feitas foram importantes para refletirmos sobre aprendizagem da docência, as fontes teóricas para embasar a práticas educativas e a desconstrução das crenças. Considerando a base teórica do trabalho, entendemos, após a análise dos dados, que a aprendizagem dos educadores voluntários existe dentro da ONG “X” , mas ainda está distante de alguns pilares importantes dentro da formação de professores, como, por exemplo, a consciência de que a prática docente deve estar relacionada à teoria, como visto em Shulman (2014), já que a prática pela prática não é suficiente para que o professor aprenda o seu ofício. É necessário combinar pesquisa, conhecimento dos conteúdos, discussão, documentação e reflexão sobre sua prática.

O conhecimento das teorias de aprendizagem e como elas podem se desdobrar dentro das aulas ministradas não apareceu nas respostas concedidas pelos participantes da pesquisa. Além disso, constatamos que a reflexão sobre a prática ainda acontece de forma individual. É um repensar mais solitário.

3.3 A proposta institucional de formação de educadores de língua portuguesa para refugiados/imigrantes

Ao serem questionados sobre o que define um professor expert, se consolidou nas respostas dos educadores a atitude de troca com os alunos. O professor expert é aquele que está aberto para aprender com seus alunos, tem compaixão por eles, anseio por se relacionar, tem conhecimento do conteúdo que pretende ensinar, boa gestão de conflitos e pontualidade.

Para o educador Afeganistão, o professor expert é aquele que está disposto a aprender a ensinar, especialmente quando se trata de aulas para refugiados. Já para a voluntária Síria, nas aulas para refugiados, compaixão é uma característica imprescindível para os educadores. O olhar do educador deve estar voltado também para as necessidades do aluno, e não só para as questões gramaticais e teóricas do estudante. Venezuela apontou para o fato de que primeiro o professor tem de dominar o que está ensinando. É necessário também gostar das pessoas, ser compassivo e flexível, sempre tendo em mente que os alunos têm uma realidade difícil. Marrocos ressaltou a questão da pontualidade, postura, conhecimento, boa gestão de conflitos, conexão genuína com os alunos sem uso de autoritarismo na relação estabelecida com eles. Iraque relatou que o professor expert é aquele que consegue cumprir o seu objetivo, que é fazer com que o aluno aprenda sobre a matéria proposta. Arábia Saudita entende que o professor expert precisa de formação. Caso ele não tenha formação na área, precisa de alguma forma buscar o estudo. Ele também precisa ser aberto a escutar e a aprender. Palestina acredita que um professor expert está sempre disponível para aprender com a sua prática e com os seus alunos e compartilha o seu conhecimento de modo livre, sem ressalvas. Apresentamos alguns trechos para exemplo:

Primeiramente aquele professor disposto a aprender, vai chegar na sala de aula muitas vezes com o material preparado, com tudo pronto e talvez seja aquele dia que o seu aluno vai te ensinar muito... Então, eu acho que o expert é aquele que não para de aprender (Afeganistão).

Para dar aula para refugiado, compaixão, que é também o mote da ONG “X”. Principalmente, porque você não tem olhar só para gramática, só para teoria, o que você aprende, mas compaixão, principalmente como eu falei. Empatia, sentar-se no lugar deles mesmo. E entender, como que você falou de crenças. Tem que quebrar essas questões para conseguir colocar em prática (Síria).

Com exceção da educadora Palestina, poderíamos afirmar que a preocupação de pensar refletidamente a prática não foi apontada pelos entrevistados.

Quando a pergunta foi direcionada para as dificuldades encontradas referentes à formação de professores, foi interessante observar que os três educadores graduados na área educacional reportaram sentir dificuldades relacionadas à capacitação de professores, que para eles é uma necessidade contínua. O trabalho docente pressupõe olhar a profissão com a ideia da profissionalidade, e este olhar se faz mais presente nos educadores com formação. Dos outros quatro, dois apontam dificuldades.

Seguem trechos das entrevistas:

Para mim eu acho que está bem tranquilo, eu acho que a gente sempre pode melhorar, lógico, se tiver um curso eu vou fazer o proposto, acho que a gente sempre pode adquirir mais conhecimento e melhorar ainda mais, mas hoje eu me sinto capaz daquilo que eu estou fazendo. Eu creio que os dois cursos de graduação, toda a experiência prática que eu tive na vida de ensino, mesmo que não seja a área da língua portuguesa, mas me deram base, eu já errei bastante. Então acho que é mais fácil não cometer esses erros já tendo errado anteriormente. Então eu me sinto bem capacitado para dar aula de português ali para eles (Iraque).

Tempo, eu acho que é uma das principais coisas que a gente precisa muito para estudar e às vezes na correria do dia a dia você não encontra. Então acho que tempo. É tempo para investir mesmo em estudo, sabe? De ir atrás, de poder aprender coisas... É um pouco frustrante, você quer fazer a pessoa entender, você quer que ela entenda o que você está falando e você não consegue. Então acho que para isso eu precisaria de tempo para ver se eu consigo dar uma estudada e para conversar com as meninas da coordenação, ver se a gente arranja uma professora só para ela ou que outros tipos de método a gente pode aplicar com ela, sabe? (Arábia Saudita).

Parece-nos que há uma preocupação com a necessidade de espaços coletivos para a formação dentro do grupo, momentos estes em que discussões sobre os desafios são oportunizadas, e trocas de práticas exitosas são possíveis. A última pergunta da entrevista foi sobre a ocorrência de troca entre colegas ou mesmo um momento de estudo e formação. Cada um parece ter uma percepção distinta do tempo e formato dedicado à troca entre colegas, isto é, parece um aspecto subjetivo. Para uns, a troca de mensagens via WhatsApp sobre a aula ministrada parece suficiente; para outros, não.

Afeganistão sente falta de um tempo de troca entre os pares, para inclusive ajudar os alunos de forma mais holística. Para ele, as trocas via grupo de WhatsApp não são suficientes. Síria se sente satisfeita com as trocas por meio dos grupos de WhatsApp e nos cursos oferecidos pela ONG “X”. Venezuela entendeu como troca a possibilidade de trocar dias de aulas com outros colegas. Marrocos entende que há trocas por meio dos grupos de WhatsApp. Iraque reportou que não há muitos momentos de troca, exceto por meio dos grupos de WhatsApp. Arábia Saudita disse que sim, há troca. Palestina respondeu que sim, por meio dos grupos de WhatsApp. Seguem alguns trechos:

Sim, apesar de sermos todos voluntários na ONG “X”, é um trabalho que eu fico realmente impressionada pela qualidade. E do que tem sido feito com pouco recurso que se tem, então é realmente inspirador e algo claro. A gente gostaria de ter mais tempo, ter mais condição para poder estudar juntos e nos formar juntos, mas acho que de troca eu acho isso muito legal. (Palestina).

Não, é uma coisa que eu realmente sinto muita falta. Como nós trabalhamos, por exemplo, entre três professores a mesma turma, o que acontece é que no final da aula a gente manda um relatório daquilo que foi que foi feito, mas eu sinto falta sim da gente sentar junto, conversar, não apenas pelo desenvolvimento linguístico do aluno, mas o desenvolvimento holístico do aluno (Afeganistão).

A ONG “X”, dentro da sua limitação de recursos tanto financeiros quanto humanos, demonstra ter preocupação com a formação dos voluntários, preocupação essa surgida da demanda prática das aulas desde o início do programa. Há um esforço prático para preencher as lacunas geradas no processo de ministração de aulas, como o treinamento dos voluntários com as informações sobre a atuação e identidade da ONG, disponibilização de conhecimento sobre a cultura árabe, espécie de estágio docente, no qual os voluntários assistem a aulas de educadores voluntários já veteranos. Apesar de todo esse esforço, não há ainda o estabelecimento da relação com teorias como a de Shulman, por exemplo, que nos alerta para o fato de que o professor, para desenvolver sua expertise, precisa aprimorar continuamente seu conhecimento de conteúdo pedagógico, que é mais do que o necessário conhecimento pedagógico e de conteúdo, é na verdade o conhecimento que conecta essas duas esferas (SHULMAN, 2014).

Considerações

Por meio dos depoimentos dos voluntários, é possível perceber que o trabalho é direcionado para as questões práticas das aulas, e suas fontes de conhecimento são concentradas ao que é proposto pelo material padrão e por atividades que venham reforçar esse conteúdo. A teoria é mencionada por eles, e embora não tenham pleno conhecimento das fontes, elas estão presentes em seus discursos. Os educadores demonstraram alinhamento em várias respostas ao longo das entrevistas, e um dos assuntos em que se gerou sintonia foi o das crenças em relação ao ensino-aprendizagem na sua prática. Os voluntários acreditam que, diferentemente do que viveram quando eram alunos, deve-se haver vínculo entre aluno e educador, pois essa proximidade facilita a aprendizagem. Além disso, em um contexto de aula menos distante, há mais espaço para a valorização da cultura do imigrante e, consequentemente, de uma troca maior.

Com esse estudo de caso, pudemos observar alguns aspectos que valem ser ressaltados sobre o trabalho desses educadores, a saber: - Embora haja um nivelamento das turmas, é muito difícil o alcance de homogeneidade dentro delas, além da grande rotatividade de alunos, que entram e saem em função de mudança de casa, de trabalho e de condição de vida; - A graduação de todos os educadores, apesar de não ser voltada à formação do professor e apresentar uma gama de diferentes especialidades), colaborou significativamente para formar os educadores voluntários; - Conseguimos enxergar a ocorrência do conhecimento do conteúdo e do conhecimento pedagógico nas respostas analisadas, porém o conhecimento pedagógico do conteúdo não foi verificado, talvez em partes pela falta do espaço coletivo de reflexão. A falta de tempo citada inclusive por alguns voluntários em termos de formação também é um empecilho encontrado. Esse cenário nos faz crer que educadores voluntários tão motivados e engajados, se oportunizados com políticas públicas sérias voltadas para a formação de professores, seriam ainda mais eficazes em suas práticas.

Referências

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Financiamento:Fundo Mackenzie de pesquisa - MACKPESQUISA.

Recebido: 01 de Maio de 2023; Aceito: 01 de Junho de 2023

English version by Cintia Coelho da Silva E-mail: coelho_cintia@hotmail.com.

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