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Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências

versão impressa ISSN 1415-2150versão On-line ISSN 1983-2117

Ens. Pesqui. Educ. Ciênc. vol.22  Belo Horizonte  2020  Epub 12-Dez-2020

https://doi.org/10.1590/1983-21172020210146 

Artigos

INDÍCIOS DA MOBILIZAÇÃO DE CONHECIMENTOS PROFISSIONAIS DE PROFESSORES EM FORMAÇÃO INICIAL A PARTIR DA LEITURA DO LIVRO A TABELA PERIÓDICA

INDICIOS DE LA MOVILIZACIÓN DE CONOCIMIENTOS PROFESIONALES DE PROFESORES EN FORMACIÓN INICIAL A PARTIR DE LA LECTURA DEL LIBRO EL SISTEMA PERIÓDICO

EVIDENCE OF THE MOBILIZATION OF PROFESSIONAL KNOWLEDGE OF TEACHERS IN INITIAL TRAINING FROM READING THE BOOK THE PERIODIC TABLE

I Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Química, Área de Ensino de Química, Florianópolis, SC- Brasil.


RESUMO:

O presente estudo tem por objetivo buscar indícios da mobilização de conhecimentos profissionais de professores em formação inicial a partir da leitura e reflexão de capítulos do livro A Tabela Periódica, de Primo Levi, no contexto de uma disciplina de caráter teórico-metodológico. Como referenciais teóricos recorremos a estudos que discutem as necessidades formativas do professor de ciências e os conhecimentos profissionais que orientam a prática docente. Os resultados apontam, dentre outros aspectos, que o espaço dedicado à leitura e à reflexão crítica contribuiu para a mobilização de conhecimentos profissionais importantes para a formação inicial de professores de química, além de incentivar a prática da leitura dos participantes.

Palavras-chave: Leitura; Ensino de química; Formação de professores

RESUMEN:

Este estudio tiene el objetivo de buscar indicios de la movilización de conocimientos profesionales de profesores en formación inicial a partir de la lectura y la reflexión de capítulos del libro El Sistema Periódico, de Primo Levi, en el contexto de una asignatura de carácter teórico-metodológico. Como referenciales teóricos recurrimos a estudios que discuten las necesidades formativas del profesor de ciencias y los conocimientos profesionales que orientan la práctica docente. Los resultados indican, además de otros aspectos, que el espacio dedicado a la lectura y la reflexión crítica contribuyó a la movilización de conocimientos profesionales importantes para la formación inicial de profesores de química, además de incentivar la práctica de lectura de los participantes.

Palabras clave: lectura; enseñanza de química; formación de profesores

ABSTRACT:

The present study aims to search for evidence of the mobilization of professional knowledge of teachers in initial training from the reading and reflection of chapters of the book The Periodic Table, by Primo Levi, in the context of a theoretical-methodological discipline. As theoretical references we use studies that discuss the training needs of science teachers and the professional knowledge that guide the teaching practice. The results show, among other aspects, that the space dedicated to reading and critical reflection contributed to the mobilization of professional knowledge important for the initial training of chemistry teachers, in addition to encouraging the practice of reading of the participants.

Keywords: Reading; Chemistry teaching; Teacher training

INTRODUÇÃO

Aproximações entre a literatura e o ensino de ciências têm sido evidenciadas em pesquisas realizadas nos últimos anos (FERNEDA, 2017; SILVEIRA, 2013), dentre outras razões, pelas potencialidades que essa articulação pode promover na compreensão de conteúdos científicos e sua epistemologia (ZANETIC, 2006). Na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), divulgada recentemente, é ainda enfatizada a relevância do campo artístico literário para o exercício da empatia e do diálogo. O documento se refere às potencialidades da literatura

“como expedientes que permitem o contato com diversificados valores, comportamentos, crenças, desejos e conflitos, o que contribui para reconhecer e compreender modos distintos de ser e estar no mundo e, pelo reconhecimento do que é diverso, compreender a si mesmo e desenvolver uma atitude de respeito e valorização do que é diferente (BRASIL, 2018, p. 139).

Segundo Pereira e Lima (2018, p. 34) “a leitura é uma prática que ocorre entre o leitor e o texto, na qual o sujeito leitor persegue alguns objetivos para aquela leitura, sendo um processo ativo, interativo e construtivo”. Segundo os autores, nessa prática leitora, o autor do texto e o leitor realizam trocas de aspectos culturais, sociais e linguísticos, presentes no objeto lido. Dessa forma, consideram a leitura um processo interativo constante e, diante disso, sinalizam que as instituições de ensino devam assumir como compromisso a formação de leitores ativos e críticos, propiciando o desenvolvimento da interpretação profunda e da criticidade. Neste trabalho entendemos que o incentivo à leitura não deve ocorrer apenas em aulas de língua portuguesa, mas em todas as disciplinas, de modo a fomentar nos estudantes/leitores o pensamento crítico e a argumentação.

No contexto da formação inicial de professores a prática da leitura também tem sido incentivada. Flôr e Cassiani (2011, p. 75) sinalizam para a necessidade de se trabalhar a leitura, tanto na formação inicial como na continuada, “para que os professores possam ampliar seu olhar para além da leitura enquanto ferramenta de ensino e busca de informações em um texto” e que lacunas nessa área, pode se refletir na atuação profissional destes licenciandos. Nesse sentido, Almeida, Cassiani e Oliveira (2008) destacam que na leitura rotineiramente trabalhada em aulas de ciências, sem um estudo apropriado na formação inicial ou continuada do professor, muitas vezes predomina um modelo de leitura baseado naquilo que ele vivenciou enquanto estudante. Segundo as autoras:

Isso pode significar um espaço restrito para outras interpretações, priorizando apenas um sentido sobre o conteúdo científico e silenciando-se, por exemplo, as interpretações equivocadas que encontramos na história da ciência, na busca de explicações sobre os fenômenos. Ou seja, os conteúdos são “limpos” dessas interpretações diferenciadas, errôneas, do ponto de vista atual e que, na época, faziam sentido como corretas (ALMEIDA, CASSIANI e OLIVEIRA, 2008, p. 72).

De acordo com Burlamaque (2006) faz-se necessária uma formação que oportunize o contato do professor com textos de qualidade estética que auxiliem na sua emancipação profissional. Para a autora, esses mesmos professores, com experiências significativas de leitura na sua formação, poderão vir a propor práticas pedagógicas emancipadoras a seus alunos, estabelecendo uma visão mais crítica do mundo.

Nessa perspectiva, neste estudo tivemos como objetivo buscar indícios da mobilização de conhecimentos profissionais de professores, em formação inicial, a partir da leitura e reflexão de capítulos do livro A Tabela Periódica, de Primo Levi. Uma breve descrição do autor e de sua obra é apresentada no tópico a seguir.

A TABELA PERIÓDICA DOS ELEMENTOS E A OBRA DE PRIMO LEVI

Além da importância de se incentivar a leitura no ensino superior de química alguns marcos importantes justificam a escrita deste artigo, pautado na análise e discussão de capítulos do livro A Tabela Periódica, de Primo Levi (1994). O primeiro deles diz respeito ao aniversário de 150 anos da tabela periódica. Em 1869 o Sistema Periódico era apresentado por Dmitri Mendeleev e a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2017, proclamou o ano de 2019 como o Ano Internacional da Tabela Periódica dos Elementos Químicos (International Year of the Periodic Table of Chemical Elements - IYPT 2019) . 1

Outro marco importante que merece destaque neste estudo é o centenário de nascimento do escritor italiano Primo Levi, também em 2019. Levi foi químico e escritor judeu, autor de importantes obras literárias que retratam o holocausto, dentre as quais se destacam: É isto um homem?, A trégua, Os afogados e os sobreviventes e A Tabela Periódica, sendo este último foco de interesse deste estudo, por sua relação com a química. Segundo Maia (2017):

Assim como Mendeleev procurou dar ordem ao caos de átomos que formam o Universo, também Levi, grande conhecedor da química e admirador do cientista russo, em seu O sistema periódico, trabalhou por organizar suas lembranças e torná-las, quem sabe, compreensíveis. Se no primeiro, contudo, a lacuna representou a antevisão de descobertas futuras, no segundo, confirma a condição essencial da memória e da escrita: o esquecimento (MAIA, 2017, p. 2, grifo do autor).

Levi foi um dos sobreviventes do campo de concentração de Auschwitz, no sul da Polônia, que em 27 de janeiro de 2020 completou 75 anos da sua libertação, outro marco que merece destaque neste artigo. As experiências vivenciadas no campo, e fora dele, estão contidas nas suas obras, que retratam aspectos da sua formação como homem, químico e escritor judeu. No livro A Tabela Periódica o autor dedica cada uma das suas experiências autobiográficas a um elemento químico, cujas propriedades fazem parte da narrativa. Vale ressaltar que o referido livro foi aclamado pela comunidade científica internacional como uma das principais obras de divulgação científica da história, recebendo, em 2006, o prêmio de melhor livro popular de conteúdo científico de todos os tempos, pela Royal Institution of Great Britain (MACIERA, 2014), cuja essência é, da seguinte maneira, apresentada no livro:

“Nitrogênio, Carbono, Hidrogênio, Ouro, Arsênio… São 21 os elementos químicos que dão título aos relatos desse livro, e 21 os títulos de uma autobiografia que por afinidade e aproximação percorre o fio de uma história pessoal e coletiva, aprofundando as raízes na obscura qualidade da matéria, contando as histórias de um ofício. É este gigantesco e minúsculo jogo que reúne observação, memória e escrita, reconstituindo a vivência de uma formação amadurecida entre os anos de fascismo, num dramático episódio de guerra: de quem, partindo da concretude do trabalho, aprende a entender as coisas e os homens, a tomar posição, a medir-se com ironia e autoironia” (LEVI, 1994, orelha do livro).

Trata-se de uma obra que reúne história, química, física, sociologia, dentre outras áreas do conhecimento. Várias das experiências retratadas por Levi nesta obra têm como cenário a universidade e retratam aspectos da sua formação inicial e da rotina do laboratório de química. O Quadro 1 apresenta, de forma sucinta, alguns dos principais aspectos retratados em cada capítulo, especialmente no que se refere à química.

Fonte: a autora.

Quadro 1 Teor dos capítulos do livro A Tabela Periódica 

Considerando a diversidade e a riqueza de conhecimentos presentes no livro, conforme se evidencia no Quadro 1, a sua utilização foi entendida neste estudo como importante para a formação inicial de professores de química, por trazer, além de conteúdos químicos, reflexões importantes acerca de questões sociais, éticas e políticas, assim como de momentos que marcaram a história da humanidade, fatos que jamais poderão ser esquecidos ou banalizados.

A referida obra foi também objeto de estudo em outros trabalhos voltados à formação inicial de químicos. No âmbito nacional, destaca-se o estudo desenvolvido por Gonçalves (2014) que teve como objetivo sinalizar o potencial do livro na abordagem da experimentação em um curso de formação docente na área de química. Na literatura internacional é digno de nota o estudo de Osório, Tiedemann e Porto (2007), que discute o emprego do livro em dois cursos oferecidos a estudantes de graduação em química, que teve dentre seus objetivos a integração entre a química geral e a inorgânica, a partir de atividades baseadas na resolução de problemas.

APORTE TEÓRICO

Estudos que discutem os conhecimentos profissionais que permeiam a prática docente nortearam a análise apresentada neste trabalho, mais especificamente o de Carvalho e Gil-Perez (2011) que aborda, dentre outros aspectos, as necessidades formativas do professor de ciências e o que esses profissionais devem “saber” e “saber fazer” no desempenho da prática docente e na abordagem satisfatória dos problemas que esta propõe. Nesse sentido, os autores apresentam um conjunto de conhecimentos e destrezas necessárias à complexa atividade docente, em detrimento de uma imagem espontânea do ensino, entendido como algo essencialmente simples, para o qual basta um bom conhecimento da matéria e uma preparação psicopedagógica geral (FURIÓ e GIL-PÉREZ, 1989). Nessa perspectiva, Carvalho e Gil-Perez (2011) apresentam um conjunto de oito conhecimentos inerentes à atividade docente e à complexidade envolvida no ato de ensinar. São eles: 1) conhecer a matéria a ser ensinada 2) conhecer e questionar o pensamento docente espontâneo, 3) adquirir conhecimentos teóricos sobre a aprendizagem de ciências, 4) crítica fundamentada no ensino habitual, 5) saber preparar atividades, 6) saber dirigir a atividade dos alunos, 7) saber avaliar e 8) utilizar a pesquisa e inovação.

Sobre “conhecer a matéria a ser ensinada” os autores chamam a atenção para o fato de que “conhecer o conteúdo da disciplina” implica conhecimentos profissionais que vão além do domínio dos conteúdos científicos e, com base nesse entendimento, apresentam diversos aspectos sobre o que consideram ser o conhecimento do conteúdo, necessário a um professor (CARVALHO e GIL-PEREZ, p. 23, 2011), a saber:

  1. Conhecer os problemas que originaram a construção dos conhecimentos científicos, em especial, as dificuldades e obstáculos epistemológicos;

  2. Conhecer as orientações metodológicas empregadas na construção dos conhecimentos;

  3. Conhecer as interações Ciência/Tecnologia/Sociedade associadas à construção do conhecimento;

  4. Ter conhecimento do desenvolvimento científico recente e suas perspectivas. Adquirir conhecimentos de outras matérias relacionadas para, com isso, abordar problemas afins e as interações entre os diferentes campos;

  5. Saber selecionar conteúdos adequados a uma visão correta da ciência, que sejam acessíveis e de interesse dos estudantes;

  6. Estar preparado para aprofundar os conhecimentos e adquirir outros novos.

Considerando o papel da formação inicial no desenvolvimento profissional docente e sendo essa o primeiro passo de um longo e permanente processo formativo no percurso da carreira, que prepara o indivíduo para a entrada na profissão, faz-se necessário oportunizar espaços para a explicitação das crenças e representações que os pretendentes a professores trazem consigo para os cursos de formação inicial (FLORES, 2003). Neste estudo este espaço foi oportunizado, conforme descrevemos a seguir.

METODOLOGIA

A presente pesquisa é classificada como qualitativa. Em investigações dessa natureza “o investigador comporta-se mais de acordo com o viajante que não planeja do que com aquele que o faz meticulosamente” (BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 83), a análise dos dados tende a seguir um processo indutivo e a preocupação com o processo é muito maior que com o produto (LÜDKE; ANDRÉ, 1986).

A pesquisa foi desenvolvida com treze alunos de um curso de Licenciatura em Química de uma universidade pública de Santa Catarina, matriculados em uma disciplina voltada para o estudo de estratégias e instrumentos para o ensino de química na educação básica. Nesse sentido, a leitura foi uma das estratégias discutidas no âmbito da disciplina e, nesse ponto, especial atenção foi dada à reflexão dos licenciandos sobre a leitura de capítulos do livro A Tabela Periódica, de Primo Levi.

Inicialmente foram selecionados pela professora da disciplina 12 dos 21 capítulos que compõem o livro, seguindo a seguinte ordem: Hidrogênio, Zinco, Ferro, Potássio, Níquel, Ouro, Cério, Cromo, Prata, Arsênio, Nitrogênio e Carbono. Assim, os estudantes foram orientados a realizar a leitura de um capítulo por semana e registrar seus comentários em um fórum de discussão criado na plataforma Moodle (Modular Object Oriented Distance Learning), no período extraclasse. A atividade teve como objetivos iniciais: discutir sobre a importância da leitura no ensino de química; levantar possibilidades e limitações do uso da referida obra no ensino médio e para a formação dos professores; favorecer a interação entre os estudantes e o compartilhamento de ideias acerca dos textos lidos. Cabe ressaltar que a disciplina foi ofertada de forma totalmente presencial, sendo esses registros na plataforma Moodle uma das atividades solicitadas pela professora, em período extraclasse.

Neste trabalho foram analisados os comentários dos licenciandos postados no fórum de discussão. Para a escrita dos comentários, os estudantes foram orientados a refletirem sobre possibilidades de utilização do livro no ensino de química, na educação básica. Com isso, buscou-se evidenciar quais conhecimentos docentes eram mobilizados nesse processo de reflexão do licenciando, sobre viabilidade e possibilidades de utilização dos capítulos lidos no ensino de química.

Para a realização da pesquisa, um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado por cada um dos estudantes. Como procedimento de análise recorremos à Análise de Conteúdo proposta por Laurence Bardin (2011), um dispositivo analítico bastante empregado no tratamento de dados em pesquisas qualitativas.

De acordo com Bardin (2011) na Análise de Conteúdo estão previstas três fases fundamentais: 1) pré-análise, 2) exploração do material e 3) tratamento dos resultados - a inferência e a interpretação. Na fase de pré-análise são sistematizadas as ideias iniciais, a formulação de hipóteses e objetivos e a elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final. Nessa fase ocorre a leitura flutuante, que consiste no primeiro contato com o material a ser analisado e na definição do corpus de análise, que neste estudo compreende os comentários dos licenciandos acerca dos capítulos lidos, e que foram postados no fórum de discussão da plataforma Moodle. A partir dessa leitura flutuante observou-se indícios da mobilização de conhecimentos profissionais inerentes à prática docente nas reflexões dos licenciandos, hipótese que buscamos verificar a partir dos procedimentos adotados na análise dos dados. Assim sendo, traçamos como objetivo analisar que conhecimentos docentes foram manifestados a partir da leitura e reflexão de capítulos extraídos do livro.

Concluídas as operações de pré-análise, iniciou-se a exploração do material, por meio de operações de codificação, “processo pelo qual os dados brutos são transformados sistematicamente e agregados em unidades, as quais permitem uma descrição exata das características pertinentes do conteúdo” (BARDIN, 2011, p.133).

A etapa de tratamento dos resultados organizou-se em torno de um processo de categorização. Segundo Bardin (2011, p.147) “as categorias são rubricas ou classes, as quais reúnem um grupo de elementos […] sob um título genérico, agrupamento esse efetuado em razão das características comuns destes elementos”. A seguir são apresentadas um conjunto de categorias que emergiram dos dados analisados. Cada categoria corresponde a uma possível contribuição da atividade para a formação dos licenciandos em química, que se relaciona a conhecimentos e destrezas inerentes à atividade docente, de acordo com Carvalho e Gil-Pérez (2001). As categorias emergiram das reflexões de cada licenciando sobre as contribuições da leitura da obra para o ensino de química e para sua formação. Na discussão dos resultados cada licenciando será referenciado pela letra L seguida de um número (ex.; L1, L2, L3…). Cabe ainda destacar que, embora o material extraído do Moodle tenha sido analisado na íntegra, na discussão dos resultados foram selecionados fragmentos que representassem cada uma das categorias, tendo em vista o elevado número de comentários sobre cada um dos capítulos lidos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A seguir discutimos cada uma das categorias que correspondem às contribuições da atividade proposta para o ensino de química e para a formação docente, de acordo com as reflexões dos licenciandos, analisadas sob a ótica de estudos que tratam do desenvolvimento profissional de professores de ciências.

Favorecer a compreensão sobre o papel da experimentação, o ambiente do laboratório e questões relacionadas à segurança neste ambiente

Dentre os aspectos mais enfatizados pelos licenciandos nas suas reflexões acerca da leitura dos capítulos, se destaca a experimentação e aspectos a ela inerentes. Essa potencialidade do livro é também destacada no trabalho de Gonçalves (2014), que sinaliza para o potencial da obra na abordagem da experimentação em componentes curriculares na formação de professores. No Quadro 2 os estudantes apresentam algumas impressões sobre o livro, relacionadas à experimentação.

Quadro 2 Fragmentos de comentários relacionados à experimentação 

Os comentários apresentados no Quadro 2 apontam para as impressões dos licenciandos acerca da riqueza de conceitos passíveis de serem abordados em aulas experimentais, a partir da leitura do texto. Na reflexão de L3, concernente ao capítulo Potássio, é mencionada ainda a busca, pelo licenciando, de informações adicionais acerca de equipamentos mencionados pelo o autor, como a Balança de Westphal e a Coluna de Vigreux, não solicitadas pela professora da disciplina. A iniciativa do licenciando de ir além do que era solicitado sugere que a leitura foi eficiente em despertar o interesse pelo conhecimento químico trazido na obra e a autonomia na busca pela compreensão do texto.

De acordo com Carvalho e Gil-Pérez (2011) conhecer as orientações metodológicas empregadas na construção dos conhecimentos, dentre elas a forma como os problemas são abordados pelos cientistas, as características mais notáveis da sua atividade, critérios de validade e aceitação das teorias científicas, é essencial para o trabalho docente, influenciando na adequada orientação das práticas de laboratório, na resolução de problemas e na construção de conhecimentos pelos estudantes. Esses aspectos estão fortemente presentes nos relatos de Levi, em diversas situações que evidenciam o papel do químico na resolução de problemas e atividades que fazem parte do cotidiano do laboratório. Os comentários de L2 e L4, mostrados no Quadro 3, estão relacionados ao capítulo Hidrogênio e apontam para o papel do laboratório na articulação entre teoria e prática, a partir das experiências vivenciadas por Levi e seu amigo Enrico no laboratório de química.

Quadro 3 Fragmentos de comentários relacionados à importância da articulação entre teoria e prática 

A necessidade da articulação entre teoria e prática no ensino de química tem sido fortemente incentivada na literatura (PUGGIAN et al., 2012; LIMA, 2012). A forma como essa articulação é apresentada nos relatos de Levi, no capítulo Hidrogênio, chama a atenção de L2 e L4, principalmente pela forma como o autor descreve a realização do experimento e os questionamentos levantados por ambos, Levi e Enrico, acerca do experimento da eletrólise da água.

Carvalho e Gil-Perez (2011) ao discutir sobre o preparo de atividades capazes de gerar uma aprendizagem efetiva, pelo professor, destaca a necessidade de se orientar o tratamento científico dos problemas propostos na sala de aula com a inclusão de estratégias que fomentem o levantamento de hipóteses por parte dos estudantes, contrapondo-as com o corpo de conhecimentos que se dispõe. Nesse sentido, os comentários de L2 e L4 sobre a situação vivenciada no laboratório, retratada no livro, sugerem o reconhecimento dos licenciandos acerca da importância da relação entre teoria e prática e do papel das hipóteses na elaboração do conhecimento.

Ainda no que diz respeito à experimentação, em diversos momentos Levi narra fatos que trazem em seu bojo questões concernentes à natureza, toxicidade e descarte de resíduos, assim como apresenta uma série de situações relacionadas à segurança no laboratório. Tais questões foram evidenciadas pelos licenciandos e são destacadas em seus comentários (Quadro 4).

Quadro 4 Fragmentos de comentários relacionados à segurança no laboratório, à toxicidade e ao descarte de resíduos 

De acordo com Nóvoa (2009) cinco facetas definem o bom professor: conhecimento, cultura profissional, tato pedagógico, trabalho em equipe e compromisso social. Para o autor, o trabalho do professor exige conhecimentos específicos, necessários à construção de práticas docentes que conduzirão à aprendizagem dos estudantes. No que diz respeito ao tato pedagógico, o autor ressalta ainda que o professor precisa ser hábil para conquistar o aluno, conduzir o conhecimento e compreender que este pode não estar ao alcance de todos, articulando, dessa maneira, a dimensão profissional com a dimensão pessoal. Nesse sentido, merece destaque os comentários dos licenciandos que se relacionam ao papel do erro nas práticas experimentais e no processo de ensino aprendizagem, conforme evidenciamos nos comentários a seguir (Quadro 5).

Quadro 5 Fragmentos de comentários relacionados ao papel do erro na ciência e do questionamento no ensino de química 

A importância do erro e do questionamento na rotina do laboratório e nas aulas experimentais é bastante enfatizada pelos licenciandos, a partir de situações narradas por Levi. A desconfiança que o químico deve ter no “quase igual” (comum no laboratório), mencionada por L5, e o papel fundamental do erro no processo de ensino aprendizagem, enfatizado por L7 e L10, por exemplo, são reflexões que sinalizam para a compreensão dos licenciandos acerca do papel do professor de química frente ao planejamento e execução de aulas experimentais. Também merece destaque o comentário de L8 sobre a necessidade de uma comunicação sem medo, na qual o erro seja encarado de forma natural e integrante do processo de aprendizagem.

Segundo Nogaro e Granella (2004), quando o professor apresenta uma concepção problematizadora em relação ao erro, tratando-o não como uma questão que diz respeito estritamente ao resultado da operação, mas a partir de uma perspectiva construtivista, assumindo-o como parte da descoberta e da construção do conhecimento, ele admite uma postura de coletividade. Dessa maneira, o processo de ensino-aprendizagem baseado no erro passa a ser alicerçado na interatividade entre professores e estudantes.

Favorecer a reflexão acerca da seleção de conteúdos

Um bom conhecimento da matéria, pelo professor, significa também saber selecionar conteúdos adequados, que estejam de acordo com uma visão atualizada da ciência, que sejam acessíveis ao estudante e capazes de despertar o seu interesse (CARVALHO e GIL-PÉREZ, 2011). Nessa direção, além de aspectos relacionados à experimentação, conteúdos químicos mencionados nas experiências narradas por Levi são vistos pelos licenciandos como adequados para o ensino médio, por trazerem em seu bojo problemáticas do cotidiano que podem ser discutidas na sala de aula, contribuindo para a compreensão dos alunos acerca de diversos conceitos (Quadro 6).

Quadro 6 Fragmentos de comentários relacionados aos conceitos passíveis de serem abordados a partir do livro 

Como o próprio título do livro sugere, a química está presente em todos os capítulos apresentados pelo autor, não se restringindo, porém, às propriedades dos elementos presentes na tabela periódica. De acordo com a leitura e compreensão dos licenciandos, vários conceitos podem ser abordados a partir da obra de Levi, além da tabela periódica, que intitula o livro. Dentre tais conceitos se destacam: ácidos e bases, soluções, destilação, extração, tópicos de química orgânica etc. Temas transversais, como responsabilidade social e controle de qualidade de materiais, são ainda vistos por L3 como possíveis de serem abordados a partir do livro.

A literatura de divulgação científica, como é classificada a obra de Levi (MACIERA, 2014), vem sendo empregada, dentre outras razões, como forma de contribuir com o ensino e aprendizagem de conceitos científicos. No entanto, Nacimento (2008) aponta que o potencial didático dos textos de divulgação científica e das atividades de leitura não têm sido devidamente explorados no âmbito da formação inicial de professores de ciências.

Nesse sentido, a postura reflexiva dos licenciandos acerca dos conteúdos passíveis de serem discutidos a partir de uma obra de divulgação científica, demonstra que promover espaços para a leitura e análise desses materiais na formação inicial pode contribuir com mudanças na prática docente destes futuros profissionais, especialmente no que diz respeito à seleção de conteúdos e metodologias.

Promover reflexões acerca de possibilidades de ações interdisciplinares

Um aspecto bastante enfatizado pelos licenciandos diz respeito às possibilidades de promover ações interdisciplinares a partir do conteúdo dos capítulos lidos. Essa ação de refletir, a partir do material analisado, sobre formas de relacionar diferentes áreas do conhecimento, sugere a adoção de uma postura mais crítica e reflexiva, por parte dos licenciandos, sobre a necessidade de desfragmentação dos conteúdos, que considere as complexas conexões existentes entre as diversas áreas.

A aquisição de conhecimentos de outras áreas, relacionadas ao campo de atuação do professor, é apontada por Carvalho e Gil-Pérez (2011) como necessária à abordagem dos “problemas-fronteira”, das interações entre os diversos campos do conhecimento e dos processos de unificação, evitando-se, dessa maneira, a imagem das diversas matérias como compartimentos estanques. Sobre a interdisciplinaridade na formação de professores, Pierson e Neves (2001) apontam ainda que

os cursos de formação inicial (licenciaturas) são pontos estratégicos a serem focalizados se quisermos possibilitar mudanças na direção desejada. Repensar esta formação numa perspectiva interdisciplinar nos convida a promover o confronto do futuro professor com pontos de vista de especialidades diferentes da sua para possibilitar uma mudança na sua relação com os conhecimentos científicos, de modo a favorecer as trocas de conhecimentos com especialistas de outras áreas para a construção de uma percepção mais integrada das ciências e de uma disponibilidade para elaborar e implementar projetos interdisciplinares no seu campo de atuação. Os cursos de formação inicial nos parecem, então, um bom cenário para que estas trocas de conhecimentos sejam estimuladas, visto que neles vão se delineando os perfis dos futuros professores (PIERSON e NEVES, 2001, p. 122).

Pela própria natureza do livro A Tabela Periódica, que aborda a química a partir de memórias de Levi sobre sua infância, adolescência e experiências da vida adulta, enquanto químico, judeu e sobrevivente do holocausto, não é surpreendente que ações interdisciplinares envolvendo, especialmente, química e história, sejam apontadas como passíveis de serem realizadas na sala de aula. No entanto, além da história, outras áreas do conhecimento como português, biologia, sociologia e geografia são também mencionadas pelos licenciandos, conforme comentários apresentados no Quadro 7.

Quadro 7 Fragmentos de comentários relacionados às possibilidades de ações interdisciplinares 

No seu comentário, L1 expõe a sua percepção acerca da abordagem histórica do livro, que apresenta os acontecimentos da época de tal maneira que nenhum livro didático, do qual se recorde, tenha sido capaz de fazer. Isso talvez se deva à ênfase dada, em muitos livros, a uma “abordagem acontecimental e essencialmente informativa sobre o conteúdo histórico” (MIRANDA e LUCA, 2004, p. 135), sem que esses acontecimentos sejam discutidos numa perspectiva construtiva e humanizadora, características presentes na obra de Levi, e que justificam a colocação de L1.

As potencialidades interdisciplinares da obra, mencionadas pelos licenciandos, são também discutidas por Russo (2018), que utiliza dois capítulos do livro (Níquel e Cério) numa proposta direcionada a alunos do terceiro ano do Ensino Médio. A intervenção teve como objetivo compreender possibilidades da utilização da leitura na formação destes estudantes, visando a interdisciplinaridade e o despertar do interesse pela leitura. Dentre outros aspectos, a autora observou o desconhecimento básico dos estudantes sobre acontecimentos recentes da história da humanidade e dificuldades na interpretação de texto. Russo destaca ainda que o livro, “como leitura contextualizada do período, mescla elementos históricos e científicos que permearam a construção do conhecimento daquele período. Nele, a Química deixa de ser apenas ciência e se torna vivência” (RUSSO, 2018, p. 144).

Favorecer a reflexão sobre a natureza ciência, o papel do químico e possíveis relações do contexto histórico do livro com a atualidade

De acordo com Carvalho e Gil-Pérez (2011) um professor necessita conhecer a história das ciências, principalmente, como forma de associar os conhecimentos científicos com os problemas que deram origem à sua construção. Para os autores, conhecer as dificuldades e obstáculos epistemológicos que necessitaram ser superados, pode contribuir significativamente para a compreensão, pelo professor, das dificuldades dos seus alunos. Nesse sentido, os licenciandos apresentam reflexões que vão ao encontro dos aspectos mencionados pelos autores, em especial sobre o papel do químico e sobre o caráter de construção humana da ciência, conforme mostram os comentários de L3 e L9, no Quadro 8.

Quadro 8 Fragmentos de comentários relacionados à natureza da ciência e ao papel do químico 

O papel das hipóteses, do erro, da observação e das teorias científicas é bastante enfatizado pelos licenciandos em seus comentários. Reflexões acerca do método e do pensamento científico, das descobertas científicas e da evolução de técnicas empregadas na ciência são também mencionadas e vistas como oportunas de serem conduzidas a partir dos relatos de Levi. Essa contribuição da obra é também corroborada no trabalho de Russo (2014), que partindo de memórias do autor, busca traçar possibilidades de interface entre o livro A Tabela Periódica, o ensino de química e a história da ciência. De acordo com a autora a interface História e Filosofia da Ciência - Ensino de Química tem um lócus privilegiado na formação dos professores de ciências, mas que, embora presente em muitas licenciaturas, ainda carece de debate. Nesse sentido, entendemos que a atividade de leitura proposta aos licenciandos propiciou importantes reflexões acerca da necessidade de se discutir aspectos da natureza da ciência na sala de aula e do potencial do livro em fornecer elementos que fomentam essa discussão, especialmente na formação de professores. Contribuindo, dessa maneira, para a superação de uma imagem ainda difundida na escola “e com a qual nosso ensino lamentavelmente contribui, reduzindo a Ciência à transmissão de conteúdos conceituais e, se muito, alguma destreza, deixando de lado os aspectos históricos, sociais etc. que marcam o conhecimento científico” (CARVALHO e GIL-PÉREZ, 2011, p. 25)

Outro ponto que merece destaque são as relações estabelecidas, pelos licenciandos, entre o contexto histórico abordado no livro e a atualidade (Quadro 9).

Quadro 9 Fragmentos de comentários sobre relações entre o contexto histórico do livro e a atualidade 

Segundo Maciera (2014, p. 68) “a literatura do autor, na sua totalidade, e na diversidade de seus gêneros, propõe-se a analisar, sobretudo, o comportamento do homem, nas mais diversas situações […]”. Ainda, segundo Maciera (2014, p. 68), as obras de Levi “têm como qualidade principal a capacidade acutíssima de observar os comportamentos humanos e de colher nos eventos apresentados uma multiplicidade de significados, que conduz o leitor à análise reflexiva e global”. Essa qualidade é evidenciada nos comentários dos licenciandos, a partir de suas reflexões sobre questões contemporâneas, como os desastres ambientais que envolveram duas barragens mineiras, a necessidade de se mostrar à sociedade a importância da ciência e dos seus pesquisadores e crises na área da educação.

Promover reflexões sobre a linguagem empregada na obra e possíveis implicações na sala de aula

Sobre a natureza da linguagem empregada por Levi no livro A Tabela Periódica, Mesnard (2005) apudMacêdo (2012) afirma que

[…] é a química quem conduz Levi à poesia. A conjunção entre química e poesia se dá por caminhos incomuns, que passam pelo realismo, pelo ciframento e materialidade da escrita, como também, pela via da metáfora, que transpostos por Levi para o poema e para a prosa, conferem à sua escrita a singularidade de seu estilo como escritor. A química como método de escrita se constitui, portanto, ao mesmo tempo como letra e metáfora, como quadro e moldura, não através de uma confusão de registros, mas de uma multiplicidade de planos, em cujo movimento, se realiza a qualidade literária de seu texto, como também sua literalidade (MESNARD apudMACÊDO, 2012, p. 101).

O uso de metáforas e o estilo poético empregado por Levi marcam as narrativas que compõem a sua obra, sendo comum o uso de terminologias pouco usuais no cotidiano, fazendo com que o leitor necessite, algumas vezes, recorrer ao dicionário. Carvalho e Gil-Pérez (2011) apontam que a acessibilidade do conteúdo ao estudante e a capacidade de fomentar o interesse deste pelo conhecimento são aspectos essenciais na ação de selecionar os conteúdos a serem abordados pelo professor. Nesse sentido, algumas reflexões acerca da acessibilidade da linguagem empregada no livro a estudantes do ensino médio são apresentadas por L1, L8 e L9, conforme Quadro 10.

Quadro 10 Fragmentos de comentários relacionados à linguagem usada no livro 

Na postura crítica dos licenciandos acerca da complexidade dos textos lidos é levada em consideração sua aplicabilidade no ensino médio, tendo em vista o estilo rebuscado empregado pelo autor nos seus relatos. Ainda sobre a linguagem empregada, L3 e L6 chamam a atenção para a ocorrência de possíveis obstáculos epistemológicos que dificultariam a compreensão dos estudantes sobre os conteúdos, decorrentes dos animismos e metáforas usadas por Levi em suas narrativas, sendo esse um critério a ser considerado na escolha dos textos a serem usados na sala de aula (Quadro 11).

Quadro 11 Fragmentos de comentários sobre possíveis obstáculos epistemológicos 

A terceira necessidade formativa apresentada por Carvalho e Gil-Pérez (2011), aponta para a importância de o professor adquirir conhecimentos teóricos sobre a aprendizagem de ciências. Segundo Costa, Camargo e Silva, (2018, p.98) “essas teorias de aprendizagem auxiliam os professores a reconhecer que a seleção dos materiais didáticos depende de um olhar para os alunos que irão utilizar tal material”. Nesse sentido, entendemos que as reflexões dos licenciandos acerca do emprego de animismos e de possíveis obstáculos epistemológicos decorrentes da linguagem empregada nos textos lidos pressupõem conhecimentos teóricos, adquiridos no seu percurso formativo, e mobilizados mediante a necessidade de pensar sobre a aplicabilidade e adequação de um material a estudantes da educação básica.

PROMOVER REFLEXÕES RELACIONADAS A GÊNERO E CIÊNCIA

De acordo com Carvalho e Gil-Perez (2011) o trabalho de homens e mulheres na ciência, como qualquer outra atividade humana, não acontece à margem da sociedade e é diretamente afetado pelos problemas e circunstâncias do momento histórico em que ocorre, tendo sua ação influência sobre o meio físico e social em que se insere. Por essa razão, conhecer as interações Ciência/Tecnologia/Sociedade associadas à construção do conhecimento é entendida pelos autores como um dos conhecimentos necessários ao professor. Nesse sentido, questões voltadas à relação entre gênero e ciência foram levantadas pelos licenciandos nos seus comentários, especialmente sobre os capítulos Nitrogênio e Prata, que apresentam situações que evidenciam a invisibilidade da mulher na ciência e a cultura machista predominante naquele contexto. Situações que, segundo os leitores, ainda são recorrentes atualmente, décadas após os acontecimentos narrados por Levi. Alguns destes comentários são apresentados no Quadro 12.

Quadro 12 Fragmentos de comentários relacionados à gênero e ciência 

Considerando a complexidade do trabalho docente e a necessidade de uma formação que contemple, além dos conhecimentos científicos inerentes à sua área de atuação, conhecimentos profissionais diversos (CARVALHO e GIL-PÉREZ, 2011), a reflexão dos licenciandos acerca das relações entre gênero e ciência se faz relevante. De acordo com Heerdt e Batista (2006), questões envolvendo gênero e ciência são essenciais para o desenvolvimento do senso crítico de estudantes e professores e deve fazer parte do conhecimento profissional do professor atuante no ensino de ciências.

Para Torejani e Batista (2010), o professor, enquanto educador, deve abordar questões concernentes a gênero numa linha de transversalidade, sendo o espaço escolar um ambiente rico para trabalhar as diversas áreas do conhecimento, inclusive a sexualidade. Assim, a inquietação provocada pelas narrativas de Levi sobre o tema em questão se mostra pertinente nesta etapa formativa, podendo vir a ser um diferencial na postura destes professores diante da abordagem do tema na educação básica. Segundo Imbernón (2005) é na etapa de formação inicial que são gerados determinados hábitos e comportamentos que incidirão no exercício da profissão.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRÁTICA DA LEITURA NA FORMAÇÃO INICIAL

Neste tópico são apresentadas algumas considerações acerca das reflexões dos licenciandos sobre a experiência vivenciada com a leitura do livro A Tabela Periódica, especialmente aquelas relacionadas ao capítulo Carbono, o último do livro. Por se tratar do desfecho da atividade proposta, com a última postagem e discussão em torno do livro, os comentários dos licenciandos foram carregados de emoções e sentimentos em relação ao capítulo e ao livro como um todo, razão pela qual foi possível identificar elementos que sinalizam para a contribuição do livro e da atividade proposta em incentivar a prática e o prazer pela leitura dos participantes. No Quadro 13 são mostrados comentários que apontam para essa contribuição do livro.

Quadro 13 Fragmentos de comentários relacionados ao incentivo da leitura 

Os comentários apresentados no Quadro 13 evidenciam o envolvimento dos licenciandos com a leitura deste livro, que consegue reunir, de forma ímpar, ciência, história e poesia. O emprego do capítulo Carbono em sala de aula é bastante recomendado por estes leitores, que de diferentes maneiras destacam o potencial educativo, humanizador e transformador desta obra.

De acordo com Flôr (2009) quando estudantes das licenciaturas vivenciam atividades pautadas na leitura em sua formação inicial, maiores são as chances de que as implementem quando atuantes na educação básica. Nesse sentido, Carvalho e Gil-Perez (2011) apontam para a necessidade de o professor estar preparado para adquirir novos conhecimentos, em função das mudanças curriculares, avanços científicos e demandas dos próprios alunos. Isso pode incluir uma melhor compreensão, por parte do professor de ciências, sobre o papel da leitura na formação do estudante e sobre as potencialidades desta prática para o processo de ensino aprendizagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo partiu do entendimento de que a leitura tem um importante papel na formação do professor e de que a reflexão sobre o papel da leitura, no processo de ensino e aprendizagem de ciências, precisa ser oportunizada no ensino de química. A literatura também vem apontando para dificuldades relacionadas à escrita (QUEIROZ, 2001) e ao pouco hábito de leitura entre estudantes de cursos de química (FLÔR, 2009), resultados que também sinalizam para a necessidade de promover ações que tenham como foco a leitura no ensino superior.

Neste trabalho tivemos como objetivo buscar indícios da mobilização de conhecimentos profissionais de professores em formação inicial a partir da leitura e reflexão de capítulos do livro A Tabela Periódica, de Primo Levi. Desse modo, à luz de referenciais que discutem as necessidades formativas do professor de ciências e os conhecimentos profissionais que orientam a sua prática, evidenciamos indícios da mobilização de conhecimentos inerentes à atividade docente, a partir do incentivo à leitura e à reflexão sobre possibilidades de utilização do conteúdo do livro no ensino de química, na educação básica. Dentre tais conhecimentos destacam-se: conhecimento acerca da natureza da ciência; conhecimento sobre orientações metodológicas; conhecimento sobre as interações Ciência/Tecnologia/Sociedade associadas à construção do conhecimento; conhecimento relacionado à seleção de conteúdos; conhecimentos teóricos sobre o ensino aprendizagem de ciências, dentre outros.

Buscou-se com este estudo ampliar o rol de pesquisas que defendem a prática da leitura na formação inicial de professores e apresentar uma proposta de utilização do livro A Tabela Periódica com futuros professores de química, no sentido de mobilizar conhecimentos docentes, compreendidos aqui como decorrentes tanto da formação inicial, como de experiências pessoais e/ou profissionais do indivíduo. De acordo com Gauthier (1998), ao ensinar o docente mobiliza distintos saberes - disciplinares, curriculares, das ciências da educação, experienciais e da ação pedagógica - formando uma espécie de reservatório do qual se abastece para responder às exigências específicas de sua situação concreta de ensino. Nesse estudo, entende-se que determinados conhecimentos docentes foram mobilizados a partir da necessidade de o licenciando refletir sobre possibilidades de utilização dos textos lidos na sua prática docente.

Diante disso, destaco duas possíveis contribuições deste estudo para a formação de professores e para a área de ensino de ciências: provocar a reflexão sobre a importância da prática da leitura na formação inicial de professores e do impacto disso na atuação deste profissional quando atuante na educação básica; e promover reflexões sobre as potencialidades do livro A Tabela Periódica para o ensino de química, assim como de outras obras, de natureza similar. Discussões dessa natureza com professores em formação pode contribuir para que o ensino praticado na educação básica possa ser pautado no desenvolvimento de ações que visem, além da aprendizagem de conceitos, o desenvolvimento da empatia, da tolerância e o respeito à diversidade

AGRADECIMENTOS

Aos estudantes do Curso de Licenciatura em Química que participaram da pesquisa.

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Recebido: 02 de Agosto de 2020; Aceito: 08 de Dezembro de 2020

Contato: Universidade Federal de Santa Catarina. Departamento de Química. Rua Eng. Agronômico Andrei Cristian Ferreira, s/n - Trindade CEP 88.040-900 - Florianópolis, SC - Brasil

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Doutora em Ciências pela Universidade Federal de São Carlos. Professora Adjunta do Departamento de Química, Área de Ensino de Química, da Universidade Federal de Santa Catarina. Grupo de Pesquisa: Núcleo de Educação em Química (NEQ) E-mail: luciana.sa@ufsc.br

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