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Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências

Print version ISSN 1415-2150On-line version ISSN 1983-2117

Ens. Pesqui. Educ. Ciênc. vol.25  Belo Horizonte  2023  Epub Sep 20, 2023

https://doi.org/10.1590/1983-21172022240149 

Artigos

SEXO/GÊNERO NA CONSTITUIÇÃO DE NORMAS SOCIAIS DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO EM AULAS DE BIOLOGIA

SEXO/GÉNERO EN LA CONSTITUCIÓN DE LAS NORMAS SOCIALES PARA LA CONSTRUCCIÓN DEL CONOCIMIENTO EN CLASES DE BIOLOGÍA

Carolina Moraes Martins de Barros1 
http://orcid.org/0000-0001-5565-486X

Eloisa Cristina Gerolin2 
http://orcid.org/0000-0001-9382-3812

Maíra Batistoni e Silva3 
http://orcid.org/0000-0002-5490-1862

1Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências, SP, Brasil.

2Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Educação, SP, Brasil.

3Universidade de São Paulo, Instituto de Biociências, Departamento de Fisiologia, SP, Brasil.


RESUMO:

Na educação em ciências, diferentes autores apontaram a importância de pensar como sexo/gênero pode ser incorporado às pesquisas e às práticas didáticas, visando a superação de desigualdades. Tendo como contexto aulas de biologia no ensino médio, analisamos as interações de um grupo de estudantes para compreender como sexo/gênero influenciam as normas sociais de construção do conhecimento. Encontramos evidências que indicam desequilíbrio na igualdade moderada dos integrantes do grupo, sendo mais valoradas as contribuições dos meninos cis. O uso dos padrões públicos de análise garantiu a visibilidade e aceitação dos argumentos das meninas cis. Discutimos como o reconhecimento de que as normas sociais de construção do conhecimento em sala de aula são influenciadas por sexo/gênero pode contribuir para pesquisas sobre aprendizagem epistêmica, assim como auxiliar docentes no estabelecimento de práticas que contribuam para a construção de um ambiente equitativo para a aprendizagem epistêmica.

Palavras-chave: Sexo/Gênero; Equidade; Aprendizagem epistêmica

RESUMEN:

En la enseñanza de ciencias, diferentes autores han señalado la importancia de reflexionar sobre cómo es posible incorporar el sexo/género a la investigación y las prácticas didácticas, para superar las desigualdades. Tomando como contexto clases de biología de la educación secundaria, analizamos las interacciones de un grupo de estudiantes para comprender cómo el sexo/género influye en las normas sociales de construcción del conocimiento. Encontramos evidencias del desequilibrio en la igualdad moderada de los miembros del grupo, siendo más valoradas las contribuciones de los niños cis. El uso de estándares públicos de análisis aseguró la visibilidad y aceptación de los argumentos de las niñas cis. Discutimos cómo la comprensión de que las normas sociales de construcción del conocimiento en la clase están influenciadas por el sexo/género puede contribuir a la investigación sobre el aprendizaje epistémico, así como ayudar a los docentes a establecer prácticas que contribuyan a la construcción de un ambiente equitativo para el aprendizaje epistémico.

Palabras clave: Sexo/género; Equidad; Aprendizaje epistémico

ABSTRACT:

In science education, several authors have pointed out the importance of thinking about how sex/gender can be incorporated into research and teaching in order to overcome inequalities. Taking high school biology classes as a context, we analyzed the interactions of a group of students to understand how sex/gender influences the social norms of knowledge construction. We found evidence that indicates an imbalance in the moderate equality of group members, with cis boys’ contributions being more valued. The use of public analysis standards ensured the visibility and acceptance of cis girls’ arguments. We discuss how the recognition that the social norms of construction of knowledge in the classroom are influenced by sex/gender and how it can contribute to research on epistemic learning, as well as assist teachers in establishing practices that contribute to constructing an equitable environment for epistemic learning.

Keywords: Sex/gender; Equity; Epistemic learning

INTRODUÇÃO

Na área de pesquisa em Educação em Ciências, diferentes trabalhos têm apontado a importância de pensar como as relações de gênero podem ser incorporadas às investigações acerca dos processos educativos e às práticas didáticas (ver Brotman & Moore, 2008; Heerdt et al., 2018). Essas discussões a respeito de corpos e gêneros vêm apontando para a constituição de um campo de pesquisa com múltiplas perspectivas teóricas, metodológicas e epistemológicas (Santos, Souza & Bastos, 2021).

Dois trabalhos de revisão sistemática da literatura evidenciam essa diversidade de perspectivas. No âmbito internacional, Brotman e Moore (2008) mapearam as abordagens temáticas assumidas pelas autoras e autores de trabalhos do campo da educação em ciências que tratavam sobre o engajamento de meninas nas ciências. As autoras identificaram quatro abordagens temáticas: i. Equidade e acesso; ii. Currículo e pedagogia; iii. Reconstrução da natureza e cultura da ciência; e iv. Identidade.

No contexto nacional, Heerdt e colaboradores (2018) se propuseram a identificar quais foram os focos temáticos das pesquisas relacionadas a questões de gênero e Ensino de Ciências no Brasil na década de 2008-2018. As autoras evidenciaram um aumento das publicações no campo no período analisado e, embora tenham identificado 10 focos temáticos, os trabalhos concentraram-se principalmente em apenas três deles: i. Gênero e participação das mulheres na ciência (analisam a participação das mulheres na história e na atualidade da Ciência); ii. Gênero, práticas e formação docente (analisam concepções e a formação docente acerca das questões de gênero); e iii. Gênero e materiais didáticos (analisam como ocorrem as representações de gênero nos livros didáticos). Apesar da escassez de produções até agora, as autoras listam também outros focos temáticos relevantes e justificam esforços de um olhar mais aprofundado em novos trabalhos. São eles: iv. Gênero e inferências de interpretação; v. Gênero e estudos teóricos; vi. Gênero e intervenções; vii. Gênero e ciência na mídia; viii. Gênero e aprendizagem de ciências; ix. Gênero e interações/percepções em aulas de ciências; e x. Gênero e produção científica (Heerdt et al., 2018).

Neste trabalho, entendemos que as relações de gênero influenciam as oportunidades para a aprendizagem de ciências e estamos interessadas em compreender como elas impactam nas normas sociais de construção do conhecimento estabelecidas em aulas de biologia. Consideramos que nosso trabalho se insere na abordagem temática “Equidade e acesso” de Brotman e Moore (2008), pois nos incluímos entre aquelas que “enfatizam que, para o engajamento de meninas na ciência, precisamos construir um ambiente com oportunidades equitativas” (Brotman & Moore, 2008, p. 974, tradução nossa). Além disso, na literatura brasileira, este trabalho contribui para um foco temático que tem sido pouco abordado, o ix. Gênero e interações/percepções em aulas de Ciências (Heerdt et al., 2018). Nos últimos anos, apenas dois trabalhos buscaram compreender as relações de gênero a partir da análise da linguagem em uso em aulas de ciências: Lima Júnior et al. (2010) investigaram a construção de lideranças na dinâmica discursiva em um debate entre graduandos de física, já Franco e Munford (2023) analisaram de que modo os processos de negociação da norma de gênero influenciam a aprendizagem de um conceito científico entre estudantes do 1° ano do ensino fundamental.

CONSIDERAÇÕES SOBRE SEXO, GÊNERO, DESIGUALDADES E ESTEREÓTIPOS

Socialmente, uma pessoa só é reconhecida como pessoa quando sua performance de gênero pode ser inteligível pela comunidade, pois gênero é a primeira característica reconhecida nas interações com o outro (Butler, 2003). Butler (2003)explica que no processo de compreender o outro enquanto pessoa, logo, de reconhecer e interpretar sua identidade de gênero, as pessoas utilizam significados que atribuem aos corpos e esses significados têm origem em concepções culturais que atribuem diferenças aos corpos sexuados a partir do que se espera de cada um deles (os estereótipos), por consequência, afetando a participação na comunidade de alguns indivíduos (mulheres cis e trans e outros corpos dissidentes) em detrimento daqueles que representam o universal (homens cis).

A noção difundida de gênero e sexo como dois conceitos opostos, um derivado da construção social e outro de condições biológicas, é questionada por pesquisadoras feministas como Fausto-Sterling (2019) e a própria Butler (2022). Para essas autoras, sexo não é um dado natural e fixo, mas uma categoria que, no indivíduo, se forma de maneira processual e também performática. Além disso, a construção elaborada socialmente sobre gênero só existe a partir do que se entende sobre sexo. Assim, adotamos, neste trabalho, uma abordagem biossocial de gênero, que entende os conceitos de sexo e gênero não como dicotômicos ou independentes, mas a partir de uma sobreposição (Fausto-Sterling, 2019), por isso adotaremos o termo sexo/gênero para nos referirmos a esse constructo deste ponto em diante do texto.

As construções socialmente concebidas sobre sexo/gênero, advindas de uma dicotomia entre sexo/gênero, se traduzem em uma dinâmica de poder que pode produzir desigualdades baseadas (ainda que equivocadamente) em termos biológicos. A partir dessas concepções, os espaços que os corpos podem ocupar nas diferentes esferas sociais são também delimitados. Estruturalmente, constroem-se estereótipos que impõem “desempenhos sociais sexo-gendrados” (Carvalho, 2021, p. 435). As relações são estabelecidas de forma desigual a partir das “diferenças percebidas” entre o sexo/gênero considerado normativo (cis-masculino) e as demais expressões de sexo/gênero e resultam em identidades construídas por práticas disciplinadoras que estigmatizam e desnaturalizam os corpos, evidenciando-se por meio das interações relacionais, servindo para justificar relações de poder díspares (Carvalho, 2021).

NORMAS SOCIAIS DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO EM SALAS DE AULA DE CIÊNCIAS

Para Longino (2002), a Ciência pode produzir formas de conhecimento legítimo, pois ela é uma prática social, construída e compartilhada por um grupo de pessoas que compartilham práticas, linguagem, normas e valores. Essa afirmação de que a ciência é uma atividade social muitas vezes é interpretada concebendo-a também como uma atividade arbitrária e não objetiva. De fato, para filósofas como Harding (1986) e Longino (1990), a Ciência é permeada por valores que influenciam seu desenvolvimento em diferentes momentos, havendo uma interação entre seus valores constitutivos, ou seja, aqueles que orientam as práticas científicas e epistêmicas (como acurácia, simplicidade e abrangência) e os valores contextuais, que são parte do contexto histórico e sociocultural do empreendimento científico, assim como interesses e ideologias de cada cientista. No entanto, essas autoras também defendem que a ciência não é arbitrária, sendo possível lhe atribuir objetividade devido a um processo de constante questionamento e avaliação, práticas estas de caráter genuinamente social.

Considerando as ideias acima, Longino (2002) destaca quatro normas sociais necessárias para a participação coletiva e, consequentemente, para o estabelecimento de objetividade:

  1. Fórum público: refere-se à existência de espaços publicamente reconhecidos para exposição e discussão dos processos e resultados científicos, como as reuniões científicas ou o processo de revisão por pares;

  2. Receptividade à crítica: relaciona-se à necessidade de receber críticas e dialogar com elas, incorporando-as quando pertinente, o que pode levar a mudanças nas ideias aceitas pela comunidade;

  3. Padrões públicos de análise: referem-se aos critérios normativos reconhecidos publicamente, de acordo com os quais os processos e resultados científicos serão discutidos, como a necessidade de embasar conclusões em evidências;

  4. Igualdade moderada de autoridade intelectual: relaciona-se à existência de igualdade de autoridade para que diversos membros da comunidade possam participar dos fóruns de discussão sem que haja exclusão de determinados grupos. Diz-se igualdade moderada, na medida em que se considera a diferença de expertise e conhecimento entre os membros.

Essa participação coletiva deve ser heterogênea, formada por agentes diversos, de forma a possibilitar a pluralidade de posicionamentos para que, assim, o conhecimento legitimado pela comunidade científica seja aquele que sobrevive às críticas de diferentes pontos de vista. Para Longino (2002) e Harding (1986), a força epistêmica da Ciência é fruto de sua diversidade.

A concepção da Ciência como prática social nos permite trazer um outro olhar sobre as salas de aula de ciências, ao entender também o ensino de ciências como prática. Apesar de serem contextos distintos e, portanto, compostos por normas e práticas distintas, as normas sociais explicitadas por Longino são elementos que podem ser promovidos de forma adaptada no ensino de ciências (Kelly, 2004). Com o intuito de promover uma ferramenta para a investigação dessas normas e de práticas sociais em sala de aula, Nascimento e Sasseron (2019) propuseram uma adaptação das normas sociais destacadas por Longino (2002), para as normas sociais que regem o processo de construção de explicações nas salas de ciências. Com isso, as autoras analisaram interações discursivas entre estudantes e entre estudantes e docente e propuseram indicativos da ocorrência das normas em sala de aula.

Munidos com a ferramenta proposta por Nascimento e Sasseron (2019), Ribeiro, Barcellos e Coelho (2021) analisaram interações entre estudantes e docente em uma aula de física e puderam identificar normas e práticas científicas estabelecidas na sala de aula. No que se refere às normas sociais, os autores destacaram a presença da receptividade crítica e da constituição de uma igualdade moderada e atribuíram isso ao caráter investigativo da atividade didática que contemplava maior envolvimento estudantil na construção das ideias na sala de aula.

Compreendendo a construção do conhecimento científico na escola como uma prática social, as normas sociais são evidenciadas nas interações vividas entre docentes e estudantes em sala de aula e são construídas a partir dos elementos de cada contexto educacional. Assim, retomando as considerações já apontadas sobre a influência da construção de gênero na aprendizagem, podemos pressupor que essas normas sociais são construídas também sob a influência da lógica sexo-gendrada.

Considerando isso, buscamos entender como sexo/gênero impacta nas normas sociais de construção do conhecimento estabelecidas durante o trabalho em grupo em aulas de biologia.

APRENDIZAGEM FEMININA NA ESCOLA

A compreensão da Ciência como uma prática social (Longino, 2002) depende do reconhecimento de que ela é produzida por um grupo de pessoas que compartilham objetivos e valores. Importa dizer então que, dentre esses valores, está que a produção do conhecimento científico é socialmente entendida como parte do domínio masculino, que não é neutra, mas permeada por vieses e exclusões baseados em sexo/gênero (Harding, 1986). Ao conceber a Ciência como prática social, há um impacto também nos propósitos e estratégias do ensino de ciências, porque entendemos que para a aprendizagem científica é necessário participação de estudantes em práticas, valores e normas da ciência (Duschl, 2008; Valois & Sasseron, 2021).

Na aprendizagem escolar, Gedoz, Pereira e Pavani (2020) afirmam que os estereótipos sobre sexo/gênero influenciam a aprendizagem, uma vez que cada indivíduo constrói suas percepções de mundo a partir de uma perspectiva pessoal. As “narrativas pessoais” que delineiam a visão de mundo de cada indivíduo são galgadas em formas de expressão criadas pelas diferentes culturas, ou seja, a própria expressão da identidade de um indivíduo não é única, mas sim baseada no que é socialmente construído e aceito (Louro, 2000) e, dentre as formas de se apresentar ao mundo e se reconhecer, a primeira é a identidade de gênero a partir do corpo (Butler, 2003; Louro, 2000). Essas construções afetam a relação cotidiana de cada pessoa e, claro, também se refletem no contexto escolar: por isso, a maneira como mulheres e meninas podem aprender é afetada, porque muitos espaços reforçam sua exclusão (Gedoz, Pereira & Pavani, 2020), pautada por essa leitura de qual é o comportamento esperado de cada corpo.

A escola é um espaço de socialização dos corpos, mas também um espaço disciplinador, onde comportamentos ou posições sociais são naturalizados, baseados também nas desigualdades de gênero consolidadas. Louro (2000) discute como a instituição escolar, apesar de não ser responsável por construir distinções entre os sexos/gêneros, usa das distinções que já circulam na sociedade para atribuir papéis, premiar comportamentos esperados, punir comportamentos divergentes e estabelecer hierarquias.

A escola não só é um espaço de construção de conhecimento, mas também um espaço que “fabrica sujeitos” (Louro, 2001), ou seja, imprime/reforça/premia visões de mundo baseadas por divisões sociais, que são parte do que influencia estudantes quando formam suas próprias identidades - de gênero, sexuais, étnicas (Louro, 2001) e, dessa forma, pensando especificamente em sexo/gênero, perpetua comportamentos associados ao que é esperado de cada um dos corpos, vistos sempre na binaridade do masculino e feminino. Assim, a partir de instrumentos sutis (linguagem, olhares, …) reiterados no dia a dia, se institui os estereótipos associados a sexo/gênero do que é certo ou errado na construção de cada um desses sujeitos: quais desejos, quais interesses, quais comportamentos (Carvalho, 2021; Louro, 2001).

Louro (2001) ressalta que a observação da diferença (que é o que gera estereótipos e comportamentos esperados) está sempre conectada a relações de poder, porque a diferença só pode ser explicitada ou “nomeada” a partir do que é posto como normativo, um lugar de referência (Louro, 2001) e, no caso das expressões de sexo/gênero dos corpos, a norma se materializa nos corpos cis-masculinos.

Ao analisarem as diversas maneiras pelas quais as mulheres cis aprendem, Belenky e colaboradores (1986) mostraram que a aprendizagem pelo “Silêncio” é um aspecto recorrente. O silêncio relatado pelas autoras não diz sobre a incapacidade dessas mulheres de reivindicarem um espaço de fala, mas sim sobre não conseguirem que seus discursos sirvam para construções de significados no grupo (Gedoz, Pereira & Pavani, 2020).

A partir desses referenciais, compreendemos que, de diferentes maneiras, a escola reforça padrões sociais de distribuição de poder associados a sexo/gênero e que essa desigualdade impacta na construção de conhecimento em aulas de ciências e biologia. Retomando a concepção de Ciência como prática social e a importância da diversidade de pontos de vista para a sua produção, ao defendermos a aproximação das pessoas estudantes às normas sociais de produção do conhecimento científico, precisamos nos atentar para promover um ambiente com oportunidades de aprendizagem equitativas para todos os grupos sociais, onde pessoas de diferentes sexos/gêneros possam falar, ser ouvidas e devidamente consideradas. Assim, procuramos neste trabalho entender como sexo/gênero influencia as normas sociais de construção do conhecimento durante o trabalho em grupo em aulas de biologia.

ASPECTOS METODOLÓGICOS

Contexto de pesquisa

A escola em que foi realizada a pesquisa está localizada nos limites do centro expandido da cidade de São Paulo e é frequentada, majoritariamente, por estudantes de famílias de classe média assalariada, além de se caracterizar pela diversidade cultural e étnico-racial de seus estudantes. A maior parte das pessoas estudantes frequentava a escola desde o início do Ensino Fundamental e, dado que os dados desta pesquisa são referentes a uma turma do 1º ano do Ensino Médio, as pessoas que compunham a turma compartilhavam uma história escolar de quase uma década.

Os dados utilizados para a pesquisa foram coletados durante a aplicação de uma Sequência Didática Investigativa (SDI) na disciplina de Biologia no segundo semestre de 2013.

A SDI foi elaborada pela terceira autora deste trabalho, professora da turma, como parte de sua pesquisa de doutorado (Silva, 2015). Outros trabalhos desenvolvidos a partir da aplicação dessa SDI já se ocuparam em investigar práticas de construção do conhecimento (Silva, 2015; Silva, Gerolin & Trivelato, 2018; Silva, Gerolin & Trivelato, 2017), mas este é o primeiro que propõe uma leitura das implicações de sexo/gênero instituídas no grupo para a aprendizagem em sala de aula.

Inicialmente, esses dados serviram para demonstrar que o contexto didático analisado promovia aprendizagem epistêmica. Decidimos revisitar os dados para considerar os efeitos das construções sociais sobre sexo/gênero nas interações em sala de aula. Ao trazer esse olhar analítico não questionamos se há ou não uma distribuição desigual de poder orientada por sexo/gênero em sala de aula, o que tem sido demonstrado em diversas pesquisas mais recentes (Carvalho, 2021; Lima et al., 2021; Santos & Gianella, 2021), mas queremos caracterizar como essa distribuição desigual de poder, fruto de interpretações sociais sobre sexo/gênero, influencia as normas sociais de construção do conhecimento científico em uma atividade investigativa.

O tema central da SDI era Dinâmica Populacional e constituía-se em seis atividades, conforme a Figura 1.

Figura 1 Organização da SDI aplicada e aulas selecionadas para análise 

A atividade de investigação (Atividade III) foi iniciada pela professora com a seguinte pergunta: “O que acontece com uma população biológica após a colonização por alguns indivíduos de um ambiente com as condições ideais para desenvolvimento da espécie?”. Entre as aulas 5 e 9, os grupos coletaram os dados para a investigação (fotos diárias da população) e, nas aulas 10 a 14, trabalharam na escrita do relatório científico a partir de uma comanda com orientações sobre a natureza do texto e o que deveria compor cada item.

As pessoas que participaram como sujeitos e seus responsáveis foram informados sobre a pesquisa e assinaram, respectivamente, os Termos de Assentimento e de Consentimento Livre e Esclarecido. Além disso, seguindo orientações da Comissão de Ética da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, todos os participantes tiveram seus nomes omitidos para garantir o anonimato.

Sobre a identificação de sexo/gênero, é importante ressaltar que, como os dados foram coletados para responder a outras perguntas de pesquisa, não havia informações sobre autodeterminação das pessoas estudantes. Para realização do presente trabalho, as pessoas estudantes foram contatadas em 2022, informados sobre os objetivos desta nova pesquisa e questionados quanto a sua identidade de gênero, se cis-feminina, cis-masculina, outra ou se preferiam não se identificar. Das pessoas participantes desta análise (critérios de seleção abaixo), duas alunas se identificaram com o gênero cis-feminino e dois alunos com o gênero cis-masculino.

PRODUÇÃO DOS DADOS

Selecionamos como corpus para esta pesquisa as interações que ocorreram durante a Atividade 3 da SDI, que era uma investigação sobre dinâmica populacional de plantas Lemna sp. e definimos como enfoque cinco aulas referentes ao desenvolvimento da etapa de investigação da atividade (Figura 1). A investigação foi conduzida pelos estudantes após a etapa da coleta de dados, feita por meio de fotografias diárias da população de Lemna sp. sob responsabilidade do grupo.

Os registros em áudio e vídeo das interações desta atividade foram transcritos segundo as regras de Preti (1999) pela segunda autora, e estão disponíveis em sua dissertação de mestrado (Gerolin, 2017). As interações foram transcritas em turnos, sendo mantidos os registros referentes à realização da Atividade III; os demais turnos, que envolviam conversas paralelas ou realização de outras atividades, foram excluídos da transcrição. A transcrição foi dividida em episódios, determinados pelos momentos em que as pessoas estavam engajadas em discussões que possuíam limites claros de temas e na realização de tarefas específicas ou quando novas pessoas passavam a compor a interação (Gerolin, 2017).

Estamos orientadas pelos aspectos metodológicos da pesquisa qualitativa, realizando neste trabalho um estudo de caso, pois investigamos um fenômeno em seu contexto real (Kelly, 2023), contexto que é a sala de aula de ciências. Para isso, selecionamos para análise as transcrições de um grupo (Grupo C), constituído por duas meninas cis e dois meninos cis. Os critérios para escolha deste grupo foram: engajamento e desempenho satisfatório na realização da atividade, o que nos ofereceria uma ocorrência maior de interações para análise; e composição mista, com pessoas com identidades de gêneros masculinas e femininas, o que propiciava observar as relações de sexo/gênero e responder ao objetivo desta pesquisa. De acordo com a percepção da professora da turma, os quatro estudantes do Grupo C tinham boa participação oral, ou seja, expunham dúvidas e faziam contribuições pertinentes às discussões em sala de aula. No entanto, o desempenho nas avaliações formais (provas, trabalhos e relatórios) das duas alunas meninas cis era satisfatório, ao passo que o dos alunos meninos cis era insatisfatório e, por isso, estes frequentavam aulas de apoio no contraturno escolar.

Análise das normas sociais de construção do conhecimento

Nascimento e Sasseron (2019) propuseram uma ferramenta de análise em que apontam operações culturais por meio das quais podemos compreender a ocorrência das normas sociais de construção do conhecimento em sala de aula.

Para uso dessa ferramenta, tomamos o discurso em sala de aula como ação (Bloome et al., 2008) e, de forma situada, como as operações culturais mencionadas por Nascimento e Sasseron (2019). Desse modo, quando estudantes e/ou docente interagem usando a linguagem, eles atuam sobre e com os outros (Bloome et al., 2008) e, ao longo desse processo, significados são constantemente compartilhados, negociados e modificados. Significados esses que podem, no contexto da sala de aula, referir-se aos conceitos, às normas válidas para construção de conhecimento no grupo, assim como ao papel de diferentes grupos sociais, como os diferentes corpos em relação a sexo/gênero.

Constituição das unidades de análise

Para Longino (2002), quando afirmamos que a Ciência é uma prática social, o termo “social” significa interativo e, nesse sentido, considera que o “social” é constitutivo do conhecimento. Entendemos que a ocorrência de um espaço de apresentação e avaliação crítica de evidências, métodos, hipóteses, entre outras ideias, ou seja, a ocorrência de um fórum público, é condição primária para que as demais normas sociais propostas possam ser construídas no contexto da sala de aula. Assim, o critério para a seleção dos episódios de interações foi a existência de evidências de que as pessoas estudantes estavam engajadas na construção de consensos sobre as diferentes etapas da investigação. Esses momentos constituem-se em interações mais longas e contam com a participação de diferentes interlocutores que fazem proposições ou avaliam a ideia de uma pessoa do grupo, o que nos permite ter evidências da constituição das demais normas sociais (se há receptividade às críticas, se as avaliações das proposições das pessoas que constituem o grupo pautam-se nos critérios públicos de análise e se há igualdade moderada entre essas pessoas). Considerando a existência de um fórum público, selecionamos quatro conjuntos de episódios para constituir os momentos de construção de consenso (Figura 2).

Figura 2 Linha temporal da atividade investigativa e localização das unidades de análise 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Compartilhamento dos padrões públicos de análise

Identificamos como um momento de compartilhamento de padrões públicos de análise as orientações para elaboração do relatório de investigação do grupo que explicitam uma norma para validar a produção: as ideias devem ser avaliadas à luz dos dados empíricos produzidos na investigação ou por conceitos e processos já estudados em aula. Conhecemos também a história da turma e sabemos que as pessoas estudantes dessa escola possuíam como cultura escolar o hábito de realizar investigações e a escrita de relatórios que seguiam orientações semelhantes, consolidando essas orientações como uma maneira de compartilhar padrões públicos para análise de ideias no grupo.

Durante a Construção de Consenso II (CCII - Quadro 1), ao perceberem um comportamento anômalo nos dados do grupo (o número de indivíduos da população havia diminuído de um dia para outro), a Aluna L demonstrou dúvidas sobre a confiabilidade dos dados e perguntou se a quantidade de indivíduos estava correta. Seu questionamento foi reconhecido pelo grupo e a Aluna G defendeu que era possível haver queda na população, validando o observado pela colega. Para isso, ela resgatou o gráfico analisado na turma na Atividade 1 da sequência didática. Nesta interação, quando apresentou uma evidência para defesa da ideia de que o tamanho da população pode diminuir, a Aluna G resgatou um processo similar aquele encontrado em seus dados (utilizando o gráfico estudado em aulas anteriores) para embasar a possibilidade de redução do tamanho populacional. Como fica evidente nos demais trechos de interação, o grupo aceitou o argumento e passou a buscar explicações para o declínio populacional.

Quadro 1 Interações durante a Construção de Consenso II (Aula 12 - Episódio 9C) 

A ação da aluna G e o fato de o grupo ter usado conhecimentos previamente estudados em sala de aula para validar os dados obtidos exemplificam a existência de um padrão público de análise. Em sala de aula, frequentemente, os padrões públicos de análise são estabelecidos no processo de instrução e no estabelecimento de normas e condutas que orientam as discussões (Ribeiro, Barcellos & Coelho, 2021), processos esses introduzidos por meio da atuação da professora, responsável por apresentar para as pessoas estudantes os valores e normas da cultura científica. A ação de adotar um critério estabelecido pela professora e aceito pelo grupo para validar os dados, nos indica a existência de um padrão público de análise (Nascimento & Sasseron, 2019), padrões esses que serão utilizados em diferentes episódios e que serão fundamentais na distribuição de poder no grupo, como discutido a seguir.

CONSTITUIÇÃO DA IGUALDADE MODERADA E RECEPTIVIDADE À CRÍTICA

De modo geral, a dinâmica do grupo era de trabalho colaborativo, em que as decisões sobre as diferentes atividades na investigação envolviam a participação, ainda que de modos distintos, de todas as pessoas estudantes. A explícita divisão das tarefas a serem realizadas e a leitura em voz alta para ciência das pessoas que integravam o grupo são exemplos de dinâmicas adotadas para a tomada de decisão coletiva.

Ainda que todos do grupo participassem, notamos diferença de papéis sociais entre os dois alunos meninos cis e as duas alunas meninas cis durante realização do trabalho. Em alguns episódios, as meninas assumiram a tarefa de execução do relatório científico (produção do gráfico e da escrita do texto), ao passo que os meninos atuaram exclusivamente na proposição e avaliação de ideias (Quadro 2).

Quadro 2 Interações na Aula 12 - Episódio 12C 

No Quadro 2, temos uma interação na qual podemos perceber como os meninos comandaram a situação, ditando o que deveria constar no gráfico elaborado pelo grupo e o que deveria ser redigido, enquanto a Aluna G executava a tarefa. Situações como essa de diferenças de papéis e posições sociais entre meninos e meninas em sala de aula evidenciam como a escola reforça performances sexo-gendradas normatizadas na sociedade no processo de aprendizagem de alunas e alunos (Carvalho, 2021).

As interações do Episódio 12C (Quadro 2) nos indicam como estereótipos sexo-gendrados podem ser reforçados na organização escolar (Santos & Gianella, 2021). A Aluna G solicitou ajuda ao grupo, obtendo como resposta a negação do Aluno V, que reforçou o papel dela como executora da tarefa. Vemos nessa distribuição desigual de papéis um exemplo concreto de como a escola pode reforçar estereótipos de gênero ao atribuir o que cabe a cada um dos corpos (Louro, 2000): ao corpo cis masculino, a atividade intelectual, ao corpo cis feminino, seguir o que dita o colega masculino.

Nos turnos seguintes do mesmo episódio (Episódio 12C, Turnos 5 e 6), percebemos também que a Aluna L buscou participar da atividade, mas teve dificuldades, visto que a Aluna G já estava produzindo o gráfico e os colegas cis masculino estavam no comando intelectual. Ao longo da interação, o silenciamento da Aluna L se torna mais evidente quando ela requisitou que sua contribuição fosse considerada (Episódio 12C, Turno 10), mas o Aluno V respondeu com uma fala explícita que diminuiu possibilidade de a Aluna L contribuir para a aprendizagem do grupo: “Ela é do grupo… O nosso grupo é três e meio, e o meio é ela…”, assim, o Aluno V exerceu sua posição de poder enquanto corpo cis-masculino (Louro, 2001) e reafirmou qual o lugar ocupado pela colega nesse espaço. Percebemos que o silenciamento das alunas meninas cis não aparece na dificuldade em se expressarem ou em conseguirem um espaço de fala no grupo, mas no fato de suas contribuições não serem valoradas pelos demais integrantes (Belenky et al., 1986).

Entendemos que esses papéis sexo-gendrados podem inviabilizar o estabelecimento da norma de igualdade moderada, visto que a autoridade intelectual é considerada atributo dos meninos cis. O estabelecimento da norma de igualdade moderada, em sala de aula, se dá quando todos são considerados igualmente capazes de contribuir, consideração essa que pode ser relativizada por níveis de expertise ou conhecimento, mas não por uma relação vertical de poder (Nascimento & Sasseron, 2019) e, neste caso, vemos que há uma divisão de tarefas e de possibilidades de participação que atribui diferentes valores para a capacidade de contribuição dos diferentes sexo/gêneros. Operações culturais que indicam a constituição de uma igualdade moderada incluem turnos da professora ou das pessoas estudantes solicitando contribuições dos pares e turnos das pessoas estudantes apresentando contribuições para o processo de aprendizagem (Nascimento & Sasseron, 2019). Embora todos tenham participado em diferentes turnos da interação, as meninas cis são posicionadas como menos capazes de contribuir para aprendizagem do grupo.

Na Construção de Consenso III (CCIII), observamos uma dinâmica diferente de participação de estudantes na interação. No episódio, o monitor foi chamado para explicar o que deveria ser colocado no item “Interpretação” do relatório (Quadro 3).

Quadro 3 Interações durante a Construção de Consenso III (Aula 14 - Episódio 1C) 

Quando o monitor ingressou na interação, as Alunas L e G interagiram comunicando os padrões observados nos dados (Turnos 3 e 5) e mostraram-se preocupadas em discutir o dado empírico com o monitor. No entanto, após a sua explicação, o Aluno V pautou o conceito de hipótese (Turno 7) e direcionou as próximas falas no grupo. Aqui, ainda que de maneira sutil, ocorreu um silenciamento das alunas meninas cis, não pela divisão de tarefas, mas pelo modo como suas preocupações ou interesses não foram considerados relevantes no grupo.

Na continuidade da interação, voltando-se aos próprios dados, o aluno B sugeriu citar a influência do clima para explicar o declínio da população (algo genérico que obviamente influenciaria a dinâmica populacional). A Aluna L discordou da sugestão do Aluno B. Para isso, ela questionou se ele se lembrava como estava o clima no momento da coleta dos dados (Episódio 1C, Turno 13, Turno 20), ou seja, demandou que ele recuperasse os dados. Aqui, a Aluna L se valeu dos padrões públicos de análise (necessidade de as explicações serem baseadas em dados empíricos ou conhecimento compartilhado) para conseguir que sua crítica fosse considerada pelo grupo. Como o Aluno B não conseguiu sustentar sua explicação em critérios estabelecidos pelo grupo (estudantes, professora e monitor), utilizando-se de evidências teóricas ou empíricas para embasar que o clima poderia explicar o crescimento populacional, sua ideia não foi validada no grupo. Nesse episódio, os padrões públicos de análise são importantes para a redistribuição de poder entre meninas cis e meninos cis e para a constituição da igualdade moderada na proposição de explicações para o crescimento populacional.

Posteriormente, na Construção de Consenso IV (CCIV), podemos perceber que a ideia de utilizar o clima foi abandonada pelo grupo e a luz passou a ser o fator explicativo para o crescimento populacional (Quadro 4).

Quadro 4 Interações durante a Construção de Consenso IV (Aula 14 - Episódio 4C) 

No episódio anterior (CCIII - Episódio 1C), a Aluna L criticou a ausência de evidência (um padrão público de análise) e seu questionamento contribuiu para uma nova proposição de explicação pelo aluno V, operação cultural que indica a constituição da norma de receptividade à crítica (Nascimento & Sasseron, 2019), que se apresenta bastante associada à igualdade moderada.

PAPEL DAS NORMAS SOCIAIS DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO PARA MANUTENÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DO PODER EM SALA DE AULA

Diferentes pesquisas no campo da educação em ciências vêm defendendo a importância da constituição de um ambiente de aprendizagem no qual a autoridade epistêmica docente possa ser redistribuída e as pessoas estudantes possam contribuir para a construção do conhecimento no grupo (Ko & Krist, 2019; Stroupe, 2014). Tal proposição se relaciona à constituição do fórum público, um espaço de apresentação e avaliação crítica de ideias, uma das normas de construção do conhecimento científico proposta por Longino (2020). No entanto, a constituição de tal ambiente público de crítica depende do estabelecimento pleno das demais normas sociais para que haja uma distribuição equitativa de poder entre as pessoas do grupo.

A igualdade moderada é estabelecida quando todas as pessoas são consideradas igualmente capazes de contribuir para a construção de conhecimento do grupo (Nascimento & Sasseron, 2019). Na análise realizada, evidenciamos que, em alguns episódios, a contribuição das pessoas estudantes é relativizada por uma relação de poder pautada em estereótipos de sexo/gênero: meninos cis assumem o lugar de decisão e as meninas cis de execução das tarefas ditadas pelos corpos cis masculinos. A reiteração de estereótipos sexo-gendrados (Carvalho, 2021; Louro, 2001), evidenciada pelos diferentes papéis ocupados no grupo pelas meninas cis e pelos meninos cis impacta na aprendizagem e participação em práticas da sala de aula, já que um grupo social específico (neste trabalho, evidenciado nas meninas cis, mas que se constitui por todos os corpos que desviam do normativo cis-masculino) não detém poder para compartilhar ideias e contribuir para a construção coletiva de conhecimento.

No entanto, em alguns episódios, também evidenciamos outro padrão de distribuição de poder e a constituição das normas de igualdade moderada e receptividade à crítica quando as alunas meninas cis valiam-se dos padrões públicos de análise para compartilhar ou criticar ideias. O uso de evidências teóricas ou empíricas (um padrão público de análise) pelas alunas revelou-se como um modo de assumir uma posição de poder e fazer com que suas proposições fossem consideradas no grupo, contestando, assim, os estereótipos de sexo/gênero. Considerando que em sala de aula os padrões públicos de análise são estabelecidos no processo de instrução da atividade (Ribeiro, Barcellos & Coelho, 2021), ressalta-se a importância da ação docente para compartilhá-los e transformá-los em uma ferramenta para construção de ambientes equitativos de aprendizagem.

Esses dados dialogam com o trabalho de Franco e Munford (2023), no qual os autores evidenciaram que os conhecimentos conceituais de ciências estavam articulados a processos de reiteração/contestação da norma de sexo/gênero, que exerceram um papel central na aprendizagem do conceito de dimorfismo sexual. Neste trabalho, a norma de sexo/gênero é reiterada e ou questionada a depender como o poder é distribuído entre as pessoas no grupo.

No estudo de caso deste trabalho, analisamos como sexo/gênero influencia a constituição das normas sociais de construção do conhecimento, mas sabemos que outros dispositivos de normatividade e desigualdade, como raça, classe e sexualidade podem influenciar essa distribuição social de poder em sala de aula.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho dialoga com as pesquisas que propõem o compartilhamento de normas sociais de construção do conhecimento como um importante aspecto para a aprendizagem de ciências e com pesquisas que discutem como os estereótipos e desigualdades de sexo/gênero podem afetar a aprendizagem e, nesse contexto, visa contribuir para a construção de um ambiente equitativo em sala de aula para possibilitar a aprendizagem das pessoas com diferentes performatividades de sexo/gênero.

As normas sociais de construção do conhecimento científico podem orientar ações para a construção desse ambiente equitativo, no entanto, nossas análises apontam para a importância de observar as relações de poder orientadas por sexo/gênero nas interações em sala de aula, visto que somente promover a existência das normas não garantirá que diferentes corpos se engajem nelas e, sozinhas, não garantem que a exclusão socialmente vigente não se perpetue também nos contextos de aprendizagem. Além de promover as normas de construção do conhecimento científico em salas de aula, é preciso, tanto na pesquisa quanto na prática docente, buscar maneiras de mitigar as desigualdades existentes, o que só pode ser feito quando nos preocupamos com a distribuição de poder associada a sexo/gênero, mesmo nas situações em que este conceito não é um conteúdo explícito.

Neste trabalho, apontamos uma maneira de olhar para as normas sociais de construção do conhecimento científico a partir das interações de sexo/gênero, o que esperamos que possa estimular novas pesquisas da área a considerarem sexo/gênero como uma variável em suas análises, bem como outros dispositivos de controle social, seja raça, classe ou sexualidade. Somente a partir do mapeamento dessas desigualdades e como as interações as reforçam no contexto de aulas de ciências será possível pensarmos em ações que possam diminuí-las na prática docente. Por acreditarmos que a aprendizagem de ciências depende da aprendizagem de práticas é relevante trazermos este olhar sobre a distribuição de poder em sala de aula, especialmente pensando em sexo/gênero, para que as normas, práticas e valores da ciência aprendidos não sejam aqueles que reforçam estereótipos e desigualdades, exatamente o que buscamos combater numa educação voltada para a transformação social.

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Declaração sobre disponibilidade de dados

“Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo e em trabalhos preliminares citados neste trabalho. De acordo com a aprovação do projeto em comitê de ética, terão acesso aos dados coletados unicamente a pesquisadora e seu orientador que poderão publicá-los em trabalhos”.

O CECIMIG agradece ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico) e à FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais) pela verba para a editoração deste artigo.

Recebido: 08 de Março de 2022; Aceito: 06 de Julho de 2023

Contato: Maíra Batistoni e Silva - Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências. Universidade de São Paulo - USP. Rua do Matão, travessa 14, nº. 101, Cidade Universitária, São Paulo - SP | Brasil. CEP 05508-090

Contato: Centro de Ensino de Ciências e Matemática de Minas Gerais - CECIMIG. Faculdade de Educação - Universidade Federal de Minas Gerais. revistaepec@gmail.com

Carolina Moraes Martins de Barros - Mestranda em Ensino de Ciências; Bacharel em Ciências Biológicas, Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências da Universidade de São Paulo - São Paulo - SP - Brasil. E-mail: carolina.moraes.barros@usp.br

Eloisa Cristina Gerolin - Doutoranda em Educação Científica, Matemática e Tecnológica; Mestra em Ensino de Ciências, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - SP - Brasil; Professora do Ensino Fundamental e Médio da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo - SP - Brasil. E-mail: eloisa.gerolin@usp.br

Maíra Batistoni e Silva - Doutora em Educação, Professora Doutora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo - SP - Brasil; Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências da Universidade de São Paulo - SP - Brasil. E-mail: mbatistoni@usp.br

Editor responsável: Rena de Paula Orofino

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