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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.65 São Paulo abr/jun 2023  Epub 16-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n65.24611 

Dossiê 65 - Políticas Educacionais e Educação Digital: Propostas, Impactos, Oportunidades e Desafios

TECNOLOGIA NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL: ANÁLISE DE DOCUMENTOS LEGAIS

TECHNOLOGY IN THE CURRICULUM OF EARLY CHILDHOOD EDUCATION IN BRAZIL: ANALYSIS OF LEGAL DOCUMENTS

LA TECNOLOGÍA EN EL CURRÍCULO DE LA EDUCACIÓN DE LA PRIMERA INFANCIA EN BRASIL: ANÁLISIS DE DOCUMENTOS LEGALES

João Mattar, Doutor em Letras1 
http://orcid.org/0000-0001-6265-6150

Rodrigo Tavares da Silva, Mestrando em Ciências Humanas2 

Julciane Castro da Rocha, Doutoranda em Tecnologias da Inteligência e Design Digital3 
http://orcid.org/0000-0001-9358-310X

1Doutor em Letras, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Universidade Santo Amaro (Unisa) São Paulo, SP, Brasil

2Mestrando em Ciências Humanas Universidade Santo Amaro (Unisa) São Paulo, SP, Brasil

3Doutoranda em Tecnologias da Inteligência e Design Digital Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) São Paulo, SP, Brasil


Resumo

O objetivo desta pesquisa é identificar, em documentos legais brasileiros e pesquisas, propostas para a inserção das tecnologias na educação infantil. Além de uma revisão de literatura, este estudo codificou e categorizou documentos legais que incluem orientações curriculares para a educação infantil. Os resultados apontaram uma lacuna na literatura sobre o tema. Documentos elaborados pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo incluem mais orientações para a incorporação de tecnologias na educação infantil do que documentos federais. As crianças nascem e vivem, hoje, imersas em tecnologias digitais. Entretanto, essas tecnologias são ainda pouco utilizadas nos ambientes escolares. Há uma resistência em relação à utilização de tecnologias com crianças, faltam recursos para garantir infraestrutura adequada e falta formação continuada de educadores e formuladores de políticas. Diversos documentos analisados apresentam uma visão crítica sobre a incorporação dessas tecnologias à educação infantil, incluindo a preocupação com o tempo de exposição a telas, a submissão à lógica do mercado e ao capitalismo de vigilância, segurança e proteção de dados, propondo a elaboração de um conceito de cidadania digital. Há uma divergência nos documentos em relação ao potencial das tecnologias para reduzir ou ampliar o fosso digital. Trabalhos futuros podem incluir outros documentos para enriquecer a análise.

Palavras-chave criança; ensino; política educacional; tecnologia da informação e da comunicação; tecnologia educacional.

Abstract

The purpose of this research is to identify, in Brazilian legal documents and research, proposals for the use of technology in early childhood education. In addition to a literature review, this study codified and categorized legal documents that include curriculum guidelines for early childhood education. The results pointed to a gap in the literature on the subject. Documents prepared by the Municipal Secretary of Education of São Paulo include more guidelines for incorporating technologies in early childhood education than federal documents. Children are born and live today immersed in digital technologies. However, these technologies are still little used in school environments. There is resistance to using technologies with children, a lack of resources to ensure adequate infrastructure, and a lack of continuing education of educators and policymakers. Several documents analyzed present a critical view on the incorporation of these technologies into early childhood education, including the concern with the time of exposure to screens, the submission to the logic of the market and the capitalism of surveillance, security and data protection, through the elaboration of a concept of digital citizenship. There is a divergence in the documents regarding the potential of technologies to reduce or widen the digital divide. Future work may include other documents to enrich the analysis.

Keywords child; educational policy; educational technology; information and communication technology; teaching.

Resumen

El objetivo de esta investigación es identificar, en documentos legales brasileños y pesquisas, propuestas para la inserción de tecnologías en la educación de la primera infancia. Además de una revisión de la literatura, este estudio codificó y categorizó documentos legales que incluyen pautas curriculares para la educación de la primera infancia. Los resultados apuntaron a una brecha en la literatura sobre el tema. Los documentos preparados por la Secretaría Municipal de Educación de São Paulo incluyen más directrices para la incorporación de tecnologías en la educación de la primera infancia que documentos federales. Los niños nacen y viven hoy inmersos en las tecnologías digitales. Sin embargo, estas tecnologías todavía son poco utilizadas en entornos escolares. Hay resistencia al uso de tecnologías con los niños, falta de recursos para garantizar una infraestructura adecuada y falta de educación continua de educadores y formuladores de políticas. Diversos documentos analizados presentan una visión crítica sobre la incorporación de estas tecnologías en la educación infantil, incluyendo la preocupación por el tiempo de exposición a las pantallas, la sumisión a la lógica del mercado y el capitalismo de vigilancia, seguridad y protección de datos, a través de la elaboración de un concepto de ciudadanía digital. Existe una divergencia en los documentos con respecto al potencial de las tecnologías para reducir o ampliar la brecha digital. El trabajo futuro puede incluir otros documentos para enriquecer el análisis.

Palabras-clave enseñanza; niño; política educativa; tecnología de la información y las comunicaciones; tecnología educativa.

1 Introdução

As Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) incluem software e hardware como rádio, televisão, câmeras digitais, computadores e smartphones, dentre outros recursos (UNESCO, 2018). A expressão Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação (TDICs) passou a ser utilizada para ressaltar o caráter digital de boa parte dessas tecnologias.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) define a educação infantil como a primeira etapa da educação básica, cuja finalidade é “[...] o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.” (BRASIL, 1996).

O tema deste estudo é o uso de tecnologias no processo de ensino na educação infantil. O problema discutido neste artigo é o papel da escola na integração das tecnologias no processo de ensino de crianças na educação infantil, considerando que, em muitos casos, esses alunos têm um contato intenso com tecnologias em sua vida cotidiana.

Vários documentos analisados neste estudo apontam para uma lacuna na literatura sobre o tema. Para a Unesco, por exemplo, embora haja um reconhecimento mundial da importância de as crianças serem alfabetizadas digitalmente, há uma falta de dados globais sobre a alfabetização digital das crianças (NASCIMBENI; VOSLOO, 2019). Especificamente na região da Ásia e do Pacífico, a Unesco identifica a falta de pesquisas e, por consequência, de dados de referência para compreender as capacidades e os comportamentos cognitivos e socioemocionais das crianças nos ambientes digitais (SHIN et al., 2019). Para a Unicef, dentre as principais barreiras que limitam os níveis de literacia e habilidades digitais das crianças, encontram-se a falta de informações baseadas em evidências e regulação (NASCIMBENI; VOSLOO, 2019). O Currículo da Cidade, desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME-SP), por sua vez, afirma que:

[...] há ainda poucas pesquisas sobre a relação entre as crianças da Educação Infantil e aparelhos como tablets, telefones, computadores, etc. São os profissionais da saúde que têm se ocupado de pesquisar e sugerir intervenções frente a essa nova situação. (SÃO PAULO, 2019, p. 121).

Como justificativa para a discussão deste problema, além dessa lacuna na literatura, outro documento produzido pela SME-SP defende que: “É preciso abrir o debate sobre a relação entre as linguagens midiáticas e a Educação Infantil, além de como os recursos tecnológicos, digitais e as mídias estão presentes e sendo utilizados de diferentes formas nas UEs.” (SÃO PAULO, 2015a, p. 10).

O objetivo deste estudo é identificar, em documentos legais brasileiros e pesquisas, propostas para inserção das tecnologias na educação infantil.

Nesse sentido, este estudo pretende responder às seguintes questões:

  1. quais os resultados das pesquisas sobre o uso de tecnologias no processo de ensino na educação infantil, relacionadas aos documentos legais pesquisados?

  2. quais os benefícios e prejuízos das tecnologias de informação e comunicação para crianças?

  3. como combinar recursos analógicos e digitais nos ambientes de educação infantil?

Esta seção deste artigo introduziu o tema, o problema, a justificativa, o objetivo e as questões de pesquisa. A próxima seção anuncia o referencial teórico que ilumina este estudo. A seção seguinte apresenta os resultados de uma revisão de literatura sobre o tema. A seção de metodologia delineia o planejamento e os procedimentos para a coleta e a análise dos dados utilizados na pesquisa. Os resultados são então apresentados e analisados, seguidos de sua discussão. A conclusão resume o percurso do estudo, ressalta suas contribuições, destaca suas limitações e aponta para trabalhos futuros.

2 Referencial teórico

Prensky (2001) desenvolveu os conceitos de nativos e imigrantes digitais. Os nativos digitais seriam aqueles que nasceram e cresceram na era das tecnologias digitais, enquanto os imigrantes digitais teriam nascido na era analógica e migrado, posteriormente, para o mundo digital. Por consequência, nativos e imigrantes digitais pensariam e processariam informações de maneiras distintas, o que deveria ser levado em consideração no design de atividades de ensino.

Várias críticas foram feitas a essa distinção conceitual (cf. BENNETT; MATON; KERVIN, 2008; HELSPER; EYNON, 2013; WHITE; LE CORNU, 2011), tendo o próprio autor revisado esses conceitos (PRENSKY, 2012). Entretanto, essas críticas e revisões não desqualificam a avaliação dos efeitos das tecnologias digitais em diferentes pessoas e grupos.

Zevenbergen (2007), por exemplo, discutiu o uso de tecnologias digitais por crianças na fase da educação infantil. O autor apontava que esses aprendizes eram bombardeados com informações midiáticas diversas, incluindo o uso de computadores, brinquedos de alta tecnologia e jogos digitais. Por consequência, essa geração viria para os ambientes escolares com um habitus (constructo do sociólogo francês Pierre Bourdieu) moldado por sua imersão em ambientes digitais, ao contrário das gerações anteriores.

Todavia, a educação infantil não teria incorporado adequadamente essas tecnologias digitais nos ambientes escolares. Zevenbergen (2007) aponta algumas causas: resistência dos educadores e da sociedade, que consideram essas ferramentas prejudiciais às crianças; falta de recursos para a aquisição de computadores; e falta de conhecimento pedagógico sobre como utilizar adequadamente essas tecnologias no contexto escolar. Seria necessário, então, reconceitualizar a pedagogia e as oportunidades de aprendizagem para esses aprendizes, o que exigiria referenciais teóricos e pedagógicos sólidos e críticos, inclusive para fundamentar a formação continuada para orientar os professores a incorporarem tecnologias na sala de aula.

Zevenbergen (2007) ressalta ainda o fosso digital entre ricos e pobres em relação ao uso de tecnologias digitais em casa, podendo as escolas contribuir para sua diminuição. Nesse sentido, cabe lembrar que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) defendem que a difusão das TICs tem potencial de contribuir para superar o fosso digital. O objetivo 4 é: “Garantir uma educação inclusiva e equitativa de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos” (UNITED NATIONS, 2015, tradução nossa), em conjunto com competências técnicas.

Nesse sentido, o Conselho Europeu desenvolveu um guia para garantir o respeito, a proteção e o cumprimento dos direitos das crianças nos ambientes digitais (COUNCIL OF EUROPE, 2018). A Unicef, por sua vez, propôs uma definição (em desenvolvimento) para a literacia digital das crianças:

A literacia digital é o conjunto de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores que permitem que as crianças brinquem, aprendam, socializem-se, preparem-se para o trabalho e participem na ação cívica em ambientes digitais de forma confiante e autônoma. As crianças devem ser capazes de utilizar e compreender a tecnologia, buscar e gerenciar informações, comunicar-se, colaborar, criar e compartilhar conteúdo, construir conhecimentos e resolver problemas com segurança, crítica e ética, de uma maneira apropriada para sua idade, seu idioma e sua cultura local. (NASCIMBENI; VOSLOO, 2019, p. 32, tradução nossa).

Dentre as principais barreiras apontadas pela Unicef para o desenvolvimento da literacia digital das crianças, destacam-se a falta de capacidade dos professores e formadores, de compreensão dos tomadores de decisões, de competências digitais dos pais e de infraestrutura tecnológica, incluindo a baixa conectividade, especialmente em áreas remotas (NASCIMBENI; VOSLOO, 2019).

A Unesco produziu ainda um relatório procurando responder às crescentes necessidades dos Estados-Membros da região Ásia-Pacífico de compreender os conhecimentos, comportamentos e atitudes das crianças em um mundo digital hiperconectado. O objetivo é criar um ambiente educacional e de políticas orientado por dados que, ao mesmo tempo, maximize as oportunidades e minimize as ameaças potenciais das tecnologias da informação e comunicação. O estudo identifica diferentes forma de divisão e exclusão digitais e sugere recomendações para políticas, dentre as quais: desenvolver um conceito holístico de cidadania digital; apoiar os lados positivos do tempo de exposição à tela, mas com precaução; e fazer um esforço coordenado para fechar os fossos digitais (SHIN et al., 2019).

3 Revisão de literatura

Três documentos foram previamente identificados como essenciais para esta pesquisa: Currículo Integrador da Infância Paulistana (SÃO PAULO, 2015b) e Currículo da Cidade: Educação Infantil (SÃO PAULO, 2019), que são referências para a educação infantil na cidade de São Paulo, e BNCC - Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), que é uma referência para a educação básica no Brasil. Nesse sentido, foi realizada uma revisão de literatura para identificar pesquisas que estudassem as relações entre esses documentos.

No Google Acadêmico, em 1 de setembro de 2022, foi feita uma busca com a seguinte expressão:

“currículo da cidade” “educação infantil” tecnologia “currículo integrador da infância paulistana” BNCC

Cabe registrar que AND é pressuposto entre palavras e expressões em todas as buscas no Google Acadêmico. Sem incluir patentes nem citações, sem restrição de idiomas e sem limitação de datas, a busca gerou 27 resultados. Definimos como critério de exclusão: não abordar tecnologia nos documentos oficiais. Restaram então dois textos.

Schmeing (2019) realizou uma pesquisa com professoras de um Centro de Educação de São Paulo, analisando as especificidades da atuação docente com bebês e crianças de até três anos. Apesar de identificar a menção a tecnologias nos textos legais mencionados, a autora não desenvolve a abordagem em sua dissertação de mestrado. Ressaltamos, entretanto, a seguinte passagem, que se refere ao Currículo da Cidade:

Ainda no capítulo 2, há considerações importantes em torno do uso das mídias digitais com os bebês e crianças, visto que eles nasceram imersos em um universo permeado pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). O documento destaca que há poucas pesquisas sobre o impacto dessas tecnologias no desenvolvimento dos bebês e crianças. Porém, é importante que se evite que bebês e crianças fiquem muito tempo diante de telas, visto que elas estão em fase de desenvolvimento do corpo, das interações com as pessoas e com o mundo, o que demanda intensos e diversos movimentos e expressões corporais. (SCHMEING, 2019, p. 71, grifos nossos).

Na leitura do Currículo da Cidade pela autora, percebe-se a menção à existência de poucas pesquisas sobre o tema e o destaque dado à imersão das crianças no universo digital, mas a conjunção adversativa “porém” introduz a preocupação com a exposição excessiva das crianças às telas.

O artigo de Toquetão, Monteiro e Sanches (2021) interessou mais diretamente à pesquisa. Os autores também apontam para o excesso da exposição das crianças à tela e a qualidade desse tempo. Mas vão além da crítica à hiperdigitalização, apontando para a lógica das plataformas das empresas que representam o capitalismo de vigilância. Especificamente durante a pandemia, as parcerias dos municípios acabaram por inserir as crianças nessa lógica, com a criação de contas de e-mail e ambientação em espaços de empresas como Microsoft e Google. Os autores refletem ainda que essa inserção precoce dessas tecnologias exigiria uma discussão sobre a segurança e proteção dos dados desses bebês e crianças, assim como o grau com que essas plataformas possibilitam representações culturais adequadas.

Os autores refletem ainda que o uso das tecnologias na educação infantil pode ampliar o fosso digital e as diferenças sociais e econômicas no Brasil, pois o acesso às tecnologias não é igual para todos: “A naturalização das desigualdades entre o ensino privado e o ensino público fica evidente nesta grande ‘lupa’ chamada tecnologia. O discurso do uso democrático das mídias e da importância de acesso à ciência e tecnologia fica longe para as crianças de escola pública.” (TOQUETÃO; MONTEIRO; SANCHES, 2021, p. 139).

Busca similar foi realizada nas seguintes bases: Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) do IBICT, Catálogo de Teses e Dissertações da Capes e Portal de Periódicos da Capes, com as necessárias adaptações para cada base de dados. Essas buscas não apresentaram nenhum resultado. Portanto, os poucos resultados desta revisão de literatura reforçam ainda mais a justificativa para esta pesquisa.

4 Metodologia

Documentos legais públicos, como leis e orientações curriculares, foram a fonte desta pesquisa. Como já mencionado, partimos inicialmente de três documentos: Currículo Integrador da Infância Paulistana (SÃO PAULO, 2015b), BNCC - Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018) e Currículo da Cidade: Educação Infantil (SÃO PAULO, 2019), mas fomos acrescentando outros documentos oficiais, que eram mencionados ou mencionavam esses documentos, e/ou identificados como essenciais para a educação infantil ou básica e para este estudo.

Nos documentos incluídos nesta pesquisa, fizemos separadamente uma busca por cada um dos seguintes termos: “tecnol”, “digita”, “computad”, “informát” e “TIC”. Além da leitura geral desses documentos, cada passagem em que esses termos apareciam foram lidas e discutidas pelos autores, selecionando-se as adequadas ao objetivo e às questões da pesquisa. Paralelamente a essa seleção, aplicaram-se os critérios de codificação inicial e categorização propostos por Saldaña (2016). A seção seguinte apresenta, na ordem cronológica das versões mais recentes dos documentos, os resultados desse processo de leitura e codificação, cujas categorias são retomadas na seção da discussão.

5 Resultados

Nem a Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988), incluindo as Emendas Constitucionais, nem a LDB (BRASIL, 1996), fazem nenhuma menção ao uso de tecnologias na educação infantil. Já o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) faz a seguinte menção ao possível uso de tecnologias por parte do professor:

Materiais e instrumentos, como mimeógrafos, vídeos, projetores de slides, retroprojetores, mesas de luz, computadores, fotografias, xerox, filmadoras, CD-ROM etc., possibilitam o uso da tecnologia atual na produção artística, o que enriquece a quantidade de recursos de que o professor pode lançar mão. (BRASIL, 1998, v. 3, p. 112).

Mas há também uma crítica ao fato de as escolas não utilizarem recursos tecnológicos:

O trabalho com a escrita pode ser enriquecido por meio da utilização do computador. Ainda são poucas as instituições infantis que utilizam computadores na sua prática, mas esse recurso, quando possível, oferece oportunidades para que as crianças tenham acesso ao manuseio da máquina, ao uso do teclado, a programas simples de edição de texto, sempre com a ajuda do professor. (BRASIL, 1998, v. 3, p. 156).

Já as Orientações Curriculares para a Educação Infantil (SÃO PAULO, 2007), elaboradas pela SME-SP, apresentam diversas situações em que as tecnologias são mencionadas. Há, por exemplo, o reconhecimento de que as crianças vivem em um mundo repleto de produtos da tecnologia:

Ademais, tem-se que reconhecer que cada vez mais as crianças têm, desde pequenas, contato com recursos como gravadores, aparelhos de som, filmadoras, projetores, computadores, além de TVs, DVDs e outros produtos da tecnologia do nosso tempo. Tais recursos se utilizam de diferentes linguagens, as linguagens midiáticas, cujo uso pedagógico dá à criança que se apropria delas a possibilidade de inclusão no mundo digital e de exploração de outras formas de interagir, brincar, pesquisar, descobrir, ler, escrever, comunicar-se de modo criativo, participativo e divertido. As crianças podem aprender a lidar com tais linguagens através de diferentes experiências conforme as equipes de educadores as estimulam a gravar canções ou histórias, a fotografar situações interessantes, a usar o computador para experimentar letras, formas, cores e se apropriar de elementos básicos do processo de criar e transformar imagens digitais, ampliando suas possibilidades de expressão e comunicação. Com as crianças menores, é possível observar nas brincadeiras de faz de conta a presença de celulares e cartões bancários, dentre outros. Nessas experiências se entrecruzam diferentes formas de significar e aprender que os professores serão cada vez mais convidados a partilhar e conhecer, transformando-se eles próprios em mediadores da relação das crianças pequenas com o mundo tecnológico. (SÃO PAULO, 2007, p. 38).

Os Centros de Educação Infantil (CEIs), as creches e as Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEIs) deveriam, então, se constituir como ambientes em que as crianças pudessem transformar em conhecimento suas curiosidades sobre as tecnologias. Nesse sentido, em várias passagens do documento, há a menções à incorporação de recursos tecnológicos utilizados na época (como aparelhos de som, gravadores, microfones, máquinas fotográficas, projetores, filmadoras, TVs, DVDs e computadores) no planejamento e nas práticas mediadas pelos professores, como a organização dos ambientes de aprendizagem e a estruturação do roteiro diário de atividades.

Além disso, há a referência ao uso de tecnologias com crianças com necessidades especiais:

O professor cuida e educa uma criança com necessidades educacionais especiais quando ele: [...] dá-lhe oportunidade de ter condições instrucionais diversificadas: trabalho em grupo, aprendizado cooperativo, uso de tecnologias, diferentes metodologias e diferentes estilos de aprendizagem. (SÃO PAULO, 2007, p. 22, grifo nosso).

Já as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010, p. 26-27) fazem apenas uma menção a recursos tecnológicos:

As práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira e

Garantir experiências que:

[...]

Possibilitem a utilização de gravadores, projetores, computadores, máquinas fotográficas, e outros recursos tecnológicos e midiáticos.

O documento O uso da tecnologia e da linguagem midiática na Educação Infantil, produzido pela SME-SP (SÃO PAULO, 2015a), reconhece que as crianças nascem no contexto das tecnologias, estabelecendo relações com recursos digitais diversos, como computadores, câmeras digitais, retroprojetores, tablets e celulares, caracterizando experiências digitais que se tornam parte do seu processo de construção de conhecimento. No contexto pedagógico, esses recursos

[...] não devem ser reduzidos à condição de instrumentos técnicos descontextualizados e desvinculados da vivência de experiências significativas individuais e coletivas, e sim dar lugar ao encantamento, ao maravilhamento e ao estranhamento singulares (SÃO PAULO, 2015a, p. 36).

Dessa maneira, as crianças são concebidas como autoras e protagonistas de suas ações, o que envolve a estimulação de sua postura investigativa, seu senso de curiosidade e sua criatividade. Esses recursos digitais podem ser trabalhados nos laboratórios de informática, nas unidades educacionais que os possuem, ou em outros espaços híbridos. Da mesma maneira, os professores que utilizam as tecnologias como suporte ao processo de registro e documentação pedagógica, não devem ter sua formação reduzida ao treinamento para o uso de programas, softwares e aplicativos.

Outro documento publicado pela SME-SP no mesmo ano, Currículo Integrador da Infância Paulistana (SÃO PAULO, 2015b), sugere a leitura do documento anterior para quem quer saber mais sobre tecnologia e linguagem midiática, mas não faz nenhuma menção adicional ao uso de tecnologias.

Um documento publicado no ano seguinte pela SME-SP, Indicadores da Qualidade na Educação Infantil Paulistana, faz uma menção a recursos tecnológicos. Na Dimensão 6, “Ambientes educativos: espaços, tempos e materiais”, Indicador 6.1, “Ambientes, espaços, materiais e mobiliários”, há a questão: “6.1.13 - Diferentes recursos tecnológicos e midiáticos (computador, lanternas, câmera digital, gravador, projetor, caixas de luz, tablets, celulares...) fazem parte das experiências propostas às crianças, numa perspectiva de educação pela descoberta e não pela instrução?” (SÃO PAULO, 2016, p. 51).

Na Base Nacional Comum Curricular - BNCC (BRASIL, 2018), há uma referência à tecnologia como uma modalidade de saber, assim como as artes, a escrita e a ciência. Além disso, reconhece-se a interação das crianças com diversas tecnologias de informação e comunicação nas suas experiências nos contextos familiar, social e cultural, destacando-se a importância do estímulo ao uso de tecnologias de informação e comunicação na educação infantil e da expressão das crianças por meio de recursos tecnológicos.

Um documento importante, elaborado pela SME-SP, Currículo da Cidade: Educação Infantil (SÃO PAULO, 2019), aborda em diversos momentos o uso de tecnologias, dialogando com documentos já mencionados (BRASIL, 2010, 2018; SÃO PAULO, 2015b, 2016). O Currículo da Cidade adota uma visão crítica em relação ao uso das tecnologias por crianças. Há uma defesa de que a escola deveria ser um ambiente distinto do doméstico, com atividades recursos e conteúdos programados e selecionados. Em relação à televisão, por exemplo, há a seguinte reflexão:

A TV pode ser usada, preferencialmente, para apresentar as produções culturais do território (a que, muitas vezes, por serem pequenas, as crianças não têm acesso), as produções culturais de qualidade (isto é, as não comerciais) feitas para bebês e crianças e a produção cultural em geral que não aparece nos canais de TV populares, que não pensam em seu público como cidadãos de direitos. (SÃO PAULO, 2019, p. 83).

Além disso, dentre as múltiplas linguagens que podem ser utilizadas pelas crianças para comunicação e expressão, estão incluídas a linguagem tecnológica e digital. Nesse sentido, as tecnologias podem contribuir para que as crianças exercitem “[...] a criatividade e o senso de curiosidade e investigação, promovendo a sua autoria e o seu protagonismo” (SÃO PAULO, 2019, p. 83), potencializando descobertas, experiências e aprendizagens, de maneira que as crianças não se caracterizem apenas como consumidoras de produtos culturais.

A pesquisa por informações em celulares e computadores é uma competência digital explorada pelo documento em cenas que ilustram experiências vividas por professores e crianças. Essas buscas podem ocorrer em conjunto, planejadas pelo professor, mas também por iniciativa, curiosidade e autonomia das próprias crianças: “Prô, eu pesquisei no celular da minha avó que os planetas estão em fila” (SÃO PAULO, 2019, p. 150).

Mostra-se então essencial a formação continuada dos professores para a incorporação das tecnologias a suas práticas pedagógicas, incluindo seus registros e comunicações, considerando que as tecnologias “[...] não são meios de informação e comunicação apenas, mas são também discursos de formação da identidade.” (SÃO PAULO, 2019, p. 123).

Na perspectiva da Educação Integral e de uma cultura equitativa, considera-se tanto a conexão com a tecnologia quanto com a natureza. Elementos tecnológicos e naturais são considerados materialidades, assim como os culturais: “Materialidades significativas são os jogos e os brinquedos, os objetos do cotidiano, os materiais artísticos, científicos e tecnológicos, os materiais de largo alcance como pedaços de madeira, pedaços de cano, cordas, rolhas, entre outros.” (SÃO PAULO, 2019, p. 135).

Em 3 de outubro de 2022, o Ministério da Educação homologou o Parecer CNE/CEB 2/2022, “Normas sobre Computação na Educação Básica - Complemento à Base Nacional Comum Curricular (BNCC)” (BRASIL, 2022b). O documento define como trabalhar com computação na educação infantil:

Argumentos comuns para se iniciar a Computação na Educação Infantil frequentemente incluem o aproveitamento das habilidades de aprender em tenra idade e aos achados positivos da literatura sobre os ganhos auferidos pela exposição das crianças aos conceitos fundamentais e aos valores do século XXI. Com base na Competência Geral nº 5 da BNCC “Cultura Digital”, eis algumas possibilidades:

1) Interação entre dispositivos;

2) Observação comparativa e contextualização de fenômenos digitais e analógicos;

3) Uso de jogos, códigos, linguagens, objetos para reconhecimento de padrões e similaridades;

4) Computação desplugada;

5) Entendendo a internet;

6) Segurança online;

7) Sustentabilidade;

8) Inteligência Artificial; e

9) Arte, imaginação e artefatos digitais. (BRASIL, 2022a, p. 17).

Mais adiante, ao propor um contínuo de complexidade na educação básica no que se refere às competências específicas da computação, sugere-se que o enfoque da educação infantil seja o desenvolvimento e o reconhecimento de padrões básicos de objetos.

O Anexo do Parecer CNE/CEB 2/2022 define de maneira mais clara quais são as premissas do ensino com computação na educação infantil:

A Computação permite explorar e vivenciar experiências, sempre movidas pela ludicidade por meio da interação com seus pares. Estas experiências se relacionam com diversos dos campos de experiência da Educação Infantil e devem considerar as seguintes premissas.

1. Desenvolver o reconhecimento e a identificação de padrões, construindo conjuntos de objetos com base em diferentes critérios como: quantidade, forma, tamanho, cor e comportamento.

2. Vivenciar e identificar diferentes formas de interação mediadas por artefatos computacionais.

3. Criar e testar algoritmos brincando com objetos do ambiente e com movimentos do corpo de maneira individual ou em grupo.

4. Solucionar problemas decompondo-os em partes menores identificando passos, etapas ou ciclos que se repetem e que podem ser generalizadas ou reutilizadas para outros problemas. (BRASIL, 2022a, p. 1).

O Anexo propõe objetivos de aprendizagem para cada eixo, com exemplos de atividades que colocam em prática esses objetivos. Selecionamos um objetivo de aprendizagem e os exemplos a ele associados em cada eixo da computação, para ilustrar como o documento propõe o trabalho na educação infantil (Quadro 1).

Quadro 1 Computação na Educação Infantil 

EIXO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM EXEMPLOS
PENSAMENTO COMPUTACIONAL (EI03CO05)
Comparar soluções algorítmicas para resolver um mesmo problema.
Computação Desplugada:
1) Comparar diferentes rotas executadas pelas crianças a partir de um labirinto marcado no chão;
2) Comparar diferentes formas de se realizar tarefas diárias como:
(i) escovar os dentes,
(ii) tomar banho,
(iii) colocar roupa.
MUNDO DIGITAL (EI03CO09)
Identificar dispositivos computacionais e as diferentes formas de
interação.
Computação Plugada:
1) Brincar com dispositivos (e.g. tablets, mesas e telas interativas, computador, dispositivos robóticos, tecnologias assistivas) por meio de jogos educacionais ou situações de aprendizagem, a fim de que as crianças possam verificar as diferentes formas de utilização de cada uma delas, como:
(i) toque de tela em tablets,
(ii) uso do mouse no computador,
(iii) manipulação de um robô,
(iv) comando por voz,
(v) reconhecimento facial,
(vi) reconhecimento de gestos.
CULTURA DIGITAL (EI03CO10)
Utilizar tecnologia digital de maneira segura, consciente e respeitosa.
Computação plugada:
1) Propor um caça ao tesouro (e.g. escape room) com desafios que retratam situações reais de uso de tecnologia, segurança e ética. É possível criar ambientes como esse gratuitamente pelo Google Forms, Escape Factory ou Genial.ly;
2) Adaptar o caça ao tesouro para ser jogado de forma cooperativa ou competitiva, individual ou em grupo, podendo ser online, híbrido ou presencial.
3) Produzir um portfólio com dicas para manter-se seguro ao assistir vídeos, jogar online, registrar vídeos e fotos e compartilhar informações na internet. O portfólio deve ser produzido pelas crianças e pode incluir vídeos, imagens, desenhos e escrita espontânea. Como opções para produzir um portfólio online, tem-se: Book Creator, Flipgrid, Canva, entre outros.

Fonte: Seleção a partir de Brasil (2022a, p. 2-10).

Foram criadas siglas, seguindo a tipologia da BNCC, para definir as habilidades para cada um dos eixos. Todas as habilidades são propostas para crianças pequenas (4 a 5 anos e 11 meses, representadas aqui pelo número 03). No total, são definidas 11 habilidades para toda a educação infantil, cuja quantidade aumenta progressivamente ao longo das etapas de ensino.

6 Discussão

Praticamente todos os documentos analisados neste estudo reconhecem que as crianças, hoje, nascem e vivem imersas em um mundo permeado por tecnologias digitais, que servem de base para uma variedade de atividades de construção de conhecimento e de expressão, em diferentes contextos. Entretanto, reconhecem também a baixa utilização dessas tecnologias no ambiente escolar dessas crianças.

Dentre as razões elencadas para explicar a baixa incorporação das tecnologias digitais na educação infantil, que acaba influenciando negativamente o desenvolvimento da literacia digital das crianças, podem ser mencionadas:

  1. resistência dos educadores e da sociedade, que consideram que essas tecnologias podem ser prejudiciais às crianças;

  2. infraestrutura tecnológica inadequada nas escolas, incluindo baixa conectividade, causada, principalmente, pela falta de recursos financeiros para investimento em recursos tecnológicos;

  3. baixa competência digital de professores, gestores, pais e responsáveis por políticas públicas, assim como falta de conhecimento pedagógico dos educadores para a incorporação adequada das tecnologias ao processo de ensino e aprendizagem das crianças.

As recomendações para políticas públicas, considerando esses desafios, pressupõem a cuidadosa elaboração de um conceito holístico de cidadania digital (SHIN et al., 2019). A cultura digital está presente na BNCC (BRASIL, 2018), nas competências gerais, que devem ser desenvolvidas ao longo de toda a educação básica, incluindo, portanto, a educação infantil. Já o Parecer CNE/CEB nº 2/2022, que propõe normas sobre computação na educação básica como complemento à BNCC, sugere que a computação envolva três áreas fundamentais: pensamento computacional, mundo digital e cultura digital, que inclui a cidadania digital (BRASIL, 2022a).

A competência 5 da BNCC está diretamente relacionada à cultura digital:

Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva. (BRASIL, 2018, p. 9).

Mas outras competências também fazem referência às tecnologias digitais, o que demonstra o seu caráter transversal:

1- Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.

2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas.

4. Utilizar diferentes linguagens - verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital -, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo.

5- Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva. (BRASIL, 2018, p. 9, grifos nossos).

Entretanto, ressaltamos que, quando adentramos na parte específica da educação infantil na BNCC, não há menções às tecnologias digitais nos direitos de aprendizagem e campos de experiência. Portanto, há um desafio na educação infantil de considerar as competências gerais no desenvolvimento de suas práticas didáticas, mesmo que essas não estejam relacionadas de forma explícita com os objetivos de aprendizagem expressos nos campos de experiência.

Vários documentos analisados apontam para a necessidade de formação continuada de educadores e tomadores de decisões para o desenvolvimento de suas competências digitais e, por consequência, a incorporação das tecnologias digitais ao ambiente escolar da educação infantil. Boa parte desses documentos defende também uso crítico dessas tecnologias no processo de ensino e aprendizagem de crianças. A preocupação com o excesso de tempo de exposição às telas (SHIN et al., 2019; SCHMEING, 2019; TOQUETÃO; MONTEIRO; SANCHES, 2021), com a lógica do mercado e o capitalismo da vigilância, é comum nos documentos analisados, incluindo a demanda por mais discussões relacionadas à segurança e proteção de dados, em função da inserção precoce das tecnologias digitais no ambiente escolar desses bebês e crianças, especialmente no período da pandemia de covid-19. Isto responde a uma questão proposta por este estudo: quais os benefícios e prejuízos das tecnologias de informação e comunicação para crianças? As atividades infantis não devem envolver apenas tecnologias, mas também interações humanas (desplugadas), movimentos corporais e conexão com a natureza. É importante também que essas atividades, incluindo mais ou menos tecnologias, consigam construir contextos de aprendizagem que atendam a uma diversidade cultural, necessária ao desenvolvimento das crianças. Isto responde a outra questão proposta neste estudo: como combinar recursos analógicos e digitais nos ambientes de educação infantil? A partir das brincadeiras de faz de conta, jogo simbólico e imitação diferida, por exemplo, as crianças podem representar o uso de tecnologias; para tal, tanto brinquedos estruturados como materiais de largo alcance tornam-se objetos representativos de celulares, computadores, tablets e afins.

Uma das categorias identificada a partir do processo de codificação dos documentos foi o uso de tecnologias pelas crianças. Professores podem permitir que as crianças utilizem celulares, mais precisamente a câmera, para fotografarem a partir de seu ponto de vista ou realizarem selfies observando sua própria imagem na tela. Tablets também podem ser utilizados pelas crianças como recursos pedagógicos ou brincantes, com a mediação dos professores.

Outra categoria identificada no processo de codificação dos documentos foi o uso de tecnologias com as crianças. Um exemplo seria o uso do celular e do computador para ouvir escutar músicas, escutar histórias, acessar recursos audiovisuais e realizar pesquisas sobre temas solicitados pelas crianças, junto com elas. Recursos midiáticos, como rádio, TV/DVD e pen drive, podem ser utilizados para reproduções audiovisuais pré-selecionadas pelos professores. Sites como YouTube também podem ser utilizados.

Outra categoria identificada no processo de codificação dos documentos foi o uso de tecnologias pelos professores. Estes podem utilizar câmeras, celulares e computadores para pesquisas, registros e documentação pedagógica, como cartas de intenções, planejamentos e relatórios das crianças. Em alguns casos, os professores recebem notebooks para esses usos. Retroprojetores podem também ser utilizados em ocasiões de festas, palestras, encontros formativos, eventos ou reuniões de famílias, eventualmente para exibição de vídeos às crianças (cineminha). Na pandemia, o uso de recursos midiáticos se intensificou. Na prefeitura de São Paulo, por exemplo, a plataforma Google Sala de Aula foi utilizada para postagem de propostas pedagógicas e acesso das famílias, enquanto a plataforma Microsoft Teams foi utilizada para reuniões de equipes escolares. Paralelamente, como alternativa, foram utilizadas redes sociais mais acessíveis pelas famílias para a oferta de propostas pedagógicas e interações.

Uma das divergências identificadas nos documentos analisados diz respeito à avaliação se as tecnologias contribuem para ampliar a inclusão ou a exclusão social. Há, nos documentos analisados, um predomínio das leituras de que as tecnologias digitais acabam por ampliar o fosso digital, no exterior (SHIN et al., 2019) e particularmente no Brasil, em função das diferenças sociais e econômicas, considerando-se que o acesso às tecnologias não é igual, por exemplo, nas escolas públicas e privadas (TOQUETÃO; MONTEIRO; SANCHES, 2021). Nesse sentido, as tecnologias não cumpririam um papel adequado no processo de democratização. Mas cabe também lembrar que os ODS defendem que a difusão das tecnologias pode contribuir para superar o fosso digital (UNITED NATIONS, 2015), e Zevenbergen (2007) defende que as escolas poderiam contribuir para contrabalançar o fosso entre ricos e pobres, que viria das casas. Essa divergência pode ser explicada pelas diferentes concepções de escola em que as duas posições se baseiam: uma escola com infraestrutura e formação de educadores adequadas poderia contribuir para diminuir o fosso digital; já uma escola com infraestrutura e formação de educadores inadequadas, tenderia a contribuir para a ampliação do fosso.

7 Conclusão

O objetivo deste estudo foi identificar, em documentos legais brasileiros e pesquisas, propostas para inserção das tecnologias na educação infantil. A partir do levantamento de referenciais teóricos, da condução de uma revisão de literatura e da codificação e categorização de documentos legais, diversas propostas foram destacadas durante o texto.

Uma das questões propostas por este estudo foi: quais os resultados das pesquisas sobre o uso de tecnologias no processo de ensino na educação infantil, relacionadas aos documentos legais pesquisados? Vários resultados foram descritos no texto, mas, na verdade, esta pesquisa identificou uma lacuna na literatura sobre o tema (NASCIMBENI; VOSLOO, 2019; SÃO PAULO, 2015a, 2019; SCHMEING, 2019; SHIN et al., 2019). Além disso, a revisão de literatura conduzida não teve praticamente nenhum retorno. Com exceção do Parecer CNE/CEB 2/2022, este estudo mostrou que os documentos elaborados pela SME-SP (cf. SÃO PAULO, 2007, 2015a, 2019) abordaram com mais riqueza o uso de tecnologias na educação infantil do que os documentos federais, o que faz sentido, já que o currículo para a educação infantil é definido na esfera municipal.

Entretanto, não foi possível ampliar a leitura para todos os textos citados nos documentos analisados. No período de desenvolvimento do Parecer CNE/CEB nº 2/2022, por exemplo, tanto o Centro de Inovação para a Educação Brasileira (CIEB), quanto a Sociedade Brasileira de Computação (SBC), lançaram suas propostas de currículo em tecnologia (RAABE; BRACKMANN; CAMPOS, 2018) e computação (SOCIEDADE BRASILEIRA DE COMPUTAÇÃO, 2019) para a educação básica, incluindo a educação infantil. Na verdade, a SBC criou uma comissão que já estava debruçada sobre este tema desde 2016. O CIEB e SBC produziram seus documentos em paralelo (e em diálogo). Ambos foram base para o Parecer CNE/CEB nº 2/2022.

Uma análise minuciosa dos documentos produzidos pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), por exemplo, poderia trazer contribuições para trabalhos futuros (cf. SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2016). Da mesma forma, uma análise mais minuciosa dos referenciais teóricos utilizados pelos documentos analisados, e os demais documentos indicados no parágrafo anterior, também pode fundamentar trabalhos futuros.

Muitos documentos analisados têm mais de uma versão. Selecionamos para análise a versão mais atual, mas trabalhos futuros poderiam envolver uma leitura das versões anteriores. Por fim, este estudo privilegiou documentos federais e municipais de São Paulo, pela importância da cidade, por esses documentos serem conhecidos pelos autores e por um dos autores trabalhar na educação infantil em São Paulo. Certamente, avaliar documentos de outras secretarias municipais, ou mesmo estaduais, para identificar se há menções ao uso de tecnologias, ampliaria e enriqueceria o escopo desta pesquisa, permitindo comparações entre políticas públicas de diferentes cidades e estados brasileiros.

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Recebido: 31 de Maio de 2023; Aceito: 23 de Junho de 2023

Editora: Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista

Editora: Profa. Dra. Marcia Fusaro

Editores Convidados - Dossiê 65: Profa. Dra. Adriana Aparecida de Lima Terçariol, Prof. Dr. Carlos Bauer, Prof. Dr. Celso Carvalho, Profa. Dra. Rosemary Roggero

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