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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.45  Santa Maria  2020  Epub 31-Ago-2023

https://doi.org/10.5902/1984644438990 

Artigo Demanda Contínua

Um olhar para os vestígios da historiografia da filosofia nos documentos oficiais e na tradição formativa do professor de filosofia

A look at the vestiges of historiography of philosophy in official documents and in the tradition of philosophy teacher’s education

Augusto Rodrigues1  , Doutorando
http://orcid.org/0000-0003-2574-9897

Rodrigo Pelloso Gelamo2  , Professor doutor
http://orcid.org/0000-0003-1532-3243

1Doutorando na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília, São Paulo, Brasil. augustorodrigues094@gmail.com

2Professor doutor na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília, São Paulo, Brasil. gelamo@gmail.com


RESUMO

O objetivo deste texto é apontar para os vestígios de uma herança formativa que fornece diretrizes à disciplina de filosofia na educação básica e também modela a formação dos professores de filosofia. Essa reconstrução ampara-se, inicialmente, em dois documentos oficiais basilares à construção do Currículo do Estado de São Paulo - os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio - e nos textos de Leopoldo e Silva. A partir da leitura desses escritos, apresentar-se-ão elementos fundamentais que permitem associar as diretrizes teórico-filosóficas à tradição formativa em filosofia consolidada no curso de Filosofia, da Universidade de São Paulo. Para mostrar suas ressonâncias nas práticas de ensinar e aprender filosofia, resgatam-se os aparatos metodológicos responsáveis pela construção de um padrão técnico-acadêmico, que podem ser evidenciados, parcialmente, nos textos de Jean Maugüé (1955) e, fundamentalmente, nas práticas filosóficas de Martial Guéroult (1968(1956); 2007(1957), 2015(1970);) e Victor Goldschmidt (1970(1953); 2014 (1947)). Ao final, na medida em que se reconstrói a proveniência dessas práticas com a filosofia, tensionam-se suas próprias possibilidades para pensar o presente.

Palavras-chave: Ensino de filosofia na educação básica; Formação do professor de filosofia; Historiografia da filosofia

ABSTRACT

The aim of this article is to point to the vestiges of an educational heritage that provides guidelines for the subject of Philosophy in basic education and also models Philosophy teachers’ education. This reconstruction is initially grounded on two official documents that are basic to the construction of São Paulo State Curriculum - "Parâmetros Curriculares Nacionais" and "Orientações Curriculares para o Ensino Médio" - and on the texts by Leopoldo e Silva. From the reading of these writings, there will be fundamental elements that allow associating the theoretical-philosophical guidelines to the educational tradition in Philosophy consolidated in the undergraduate course of Philosophy of University of São Paulo. In order to show their resonances in the practices of teaching and learning Philosophy, the methodological apparatuses responsible for the construction of a technical-academic standard are rescued. These can be partially evidenced in Jean Maugüé's texts and, fundamentally, in the philosophical practices of Martial Guéroult and Victor Goldschmidt. Finally, as long as the origin of these practices is reconstructed with Philosophy, their own possibilities to think the present are strained.

Keywords: Philosophy teaching in basic education; Philosophy teacher’s education; historiography of Philosophy

Introdução

Escrito a quatro mãos, este texto adquire seus primeiros contornos há quase uma década. Esboça os percursos de pensamentos produzidos pelo encontro entre um professor universitário, responsável pela formação de futuros docentes, e um estudante recém-ingresso na licenciatura de filosofia, hoje professor de filosofia da educação básica. Porém tal descrição seria insuficiente para expressar os acontecimentos que possibilitam a tessitura deste texto. Para isso, precisamos reverenciar uma série de outros encontros, especificamente, temos que relembrar a convivência com o Grupo de Pesquisa Ensino de Filosofia (ENFILO). Assim, talvez não sejam apenas quatro mãos que interferem neste texto e que o tornam possível, mas inúmeras outras que, através de seus diversos projetos, dão-nos sustentação e permitem que novas configurações sejam dadas no presente. Nesse sentido, para lembrar Deleuze (2006), todos esses encontros são celebrados neste texto, aos quais pedimos licença, como se isso fosse possível fazer, para fagocitar esses vários pensamentos e apresentá-los aqui.

Em um desses projetos, que tensiona a nossa pesquisa, diagnosticava-se as dificuldades da disciplina de filosofia na educação básica quando restrita às diretrizes do Currículo do Estado de São Paulo e de seu material didático - Caderno do Professor e Caderno do Aluno. Neste contexto, deparamo-nos com uma disciplina, cujo primeiro objetivo é fornecer amparo à intervenção crítica dos estudantes na realidade da qual fazem parte. Para isso, a estratégia predominante é concentrar-se no conhecimento da história da filosofia , estabelecendo uma interlocução entre as questões da contemporaneidade e essa tradição de pensamento. Entretanto, as práticas que sustentavam a disciplina pareciam insuficientes para tanto. Embora o conhecimento da história da filosofia pudesse oferecer sustentação e localização histórica para os estudantes na discussão de temas contemporâneos, “o acesso aos conteúdos da filosofia proporcionava apenas o acúmulo de informações acerca da História da Filosofia”, distanciando-se das possibilidades críticas e reflexivas das questões enunciadas (GARCIA; GELAMO, 2012, p. 49). De fato, o que realmente se estimularia era uma reprodução informacional - uma série de referências aos grandes pensadores - e uma tentativa de filosofar frustrada, realizando não muito mais que “algumas formulações de pensamento sobre algum tema caro à filosofia” (ROSA; GELAMO, 2015, p. 93).

Se os exercícios construídos em sala de aula não ultrapassavam um conhecimento sobre os conceitos e as doutrinas produzidas pelos filósofos, o verdadeiro desafio não era só sair das imagens e diretrizes oficializadas à filosofia e seu ensino, mas se desfazer do modo que nos habituamos a ensiná-la e aprendê-la. Isso porque, ainda que fora do espaço escolar - como é o caso do diagnóstico criado de experiências desenvolvidas com o ensino de filosofia em espaços não-formais -, nossos exercícios permaneciam escolarizados: não conseguíamos criar outras relações que não fossem o próprio movimento compreensivo da história da filosofia como estratégia fundamental ao desenvolvimento do pensamento filosófico (PINTO et al, 2015, p. 664-665).

Afetados por essas experiências, temos a impressão de que participamos de uma herança formativa que, além de influenciar a constituição da disciplina de filosofia na educação básica, é também responsável pela modelação dos professores de filosofia que somos. Reconstituir os vestígios dessa herança tornou-se uma de nossas metas de pesquisa e constitui o objetivo do presente trabalho. Foi a forma que encontramos para resistir a esse conjunto de imagens de pensamento, para lembrar mais uma vez Deleuze (2006), que funciona como pressupostos para se ensinar e aprender filosofia . Para tanto, nossa estratégia inicial é analisar os Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio (2002) e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006), mostrando como essas diretrizes oferecidas podem conduzir-nos à herança formativa em questão. A escolha desses dois documentos parte da própria delimitação do Currículo do Estado de São Paulo, no momento em que ele ampara-se nessas diretrizes para enunciar a forma de trabalhar com os “conteúdos propriamente filosóficos” -, mais especificamente, na distinção por elas elaboradas entre história da filosofia centro e referencial como possibilidade de articulação da disciplina no ensino médio (SÃO PAULO, 2011, p. 117).

Quando nos debruçamos nesses documentos, observamos que a organização de diretrizes para a disciplina fundamenta-se na construção de um modelo curricular filosoficamente “neutro”, que procura não ter como referência alguma corrente da filosofia, como se observa a seguir: “a orientação geral em um currículo de Filosofia pode tão-somente ser filosófica e não especificamente kantiana, hegeliana, positivista ou marxista” (BRASIL, 2006, p. 18). Para tanto, apoiar-se-á em uma imagem da filosofia como uma atividade de natureza reflexiva e imanente à sua trajetória histórica, algo supostamente comum a qualquer corrente filosófica.

Por um lado, a condição reflexiva requerida tem uma dupla camada nos documentos. Na primeira, a reflexão associa-se com o significado de “voltar atrás”, um refletir sobre o que é imediatamente dado. Nesse sentido, o conceito de reflexão aproxima-se de um rigor de pensamento, de uma estratégia de crítica - algo exigido também às outras disciplinas do ensino médio. Numa segunda camada, ser uma atividade reflexiva aponta que o valor de suas práticas na escola seria justificado mais no exercício de reflexão, no movimento do pensamento, do que propriamente no conteúdo/objeto que é estudado e aprendido. Por outro lado, dizer que a filosofia é uma atividade histórica significa atribuir ao seu discurso uma imbricação necessária com a história da filosofia: é através desta que a reflexão filosófica estabelece seu sentido, sua atualidade e reconhece estilos de filosofar.

Para o ensino de filosofia, as consequências serão que, em razão da característica reflexiva, não existirá, a princípio, um corpo de conhecimentos desenvolvidos pelos sistemas filosóficos, nem mesmo objetos de estudo que precisariam necessariamente ser estudados. De fato, o aspecto formativo mais importante seria familiarizar-se com um modo de pensar, no caso, filosófico (BRASIL, 2002, p. 330-331) (BRASIL, 2006, p. 35). Porém, tampouco a filosofia na escola poderá dispensar uma sólida formação em história da filosofia: tão íntima é a relação singular que ela estabelece com sua história, sempre retornando aos clássicos, que seria impossível separar o estudo da filosofia do estudo da história da filosofia. Por essa razão, as práticas de ensinar e aprender precisam ocorrer a partir da familiarização com algumas referências filosóficas cruciais ao desenvolvimento das potencialidades reflexivas dos estudantes. Assim, o que à primeira vista poderia resultar na dispensa de um conteúdo específico, acaba por ser recolocado pela necessidade da existência de um tipo especial de conteúdos, ainda que de forma genérica, que são as obras dos filósofos - as quais devem aparecer de maneira central ou referencial no ensino de filosofia, conforme a indicação do professor Franklin Leopoldo e Silva (BRASIL, 2002, p. 334-335) (BRASIL, 2006, p. 30-31).

Embora as Orientações e os Parâmetros fundamentem-se em uma suposta “neutralidade” filosófica, a qual estaria amparada na “natureza” da filosofia, no “núcleo comum” a todas as disciplinas, será que a definição da “experiência filosófica comum” não provém de uma tradição específica que funciona nos documentos como imagem do pensamento?

Mesmo que os documentos defendam que não há um vínculo, ou pelo menos é isso que se pretende ocultar, acreditamos que, ao citar Leopoldo e Silva (1986, 1992), apresentam-se o perfil de formação e a tradição que os ampara. Não dizemos com isso que Leopoldo e Silva (1986, 1992) seja o responsável pela articulação teórica das diretrizes, mas quando seus textos aparecem para justificar a especificidade do ensino de filosofia, principalmente para indicar a presença da história da filosofia como “pedra de toque” do ensino, seja como centro ou referencial - para usar as palavras das próprias Orientações (2006) -, ele faz emergir todo um registro de práticas que não são diretamente enunciadas.

A fim de começarmos a reconstituí-las, analisamos os dois textos referenciados de Leopoldo e Silva, História da Filosofia: centro ou referencial (1986) e Por que filosofia no segundo grau? (1992), de modo a evidenciar os porquês o ensino de filosofia era organizado pelas diretrizes desse modo e não de outro e, consequentemente, qual era a nossa relação, professores e alunos, com o que ali era apontado.

Diretrizes filosóficas para ensinar filosofia: a história da filosofia como alicerce do ensino

Partindo da tese de que a história de cada campo disciplinar pode oferecer um corpo conceitual consolidado que permite, de alguma forma, a inserção do estudante no domínio do saber a ser aprendido, Leopoldo e Silva (1986) faz uma distinção entre a maneira que o ensino de filosofia recupera sua história e as outras disciplinas, especificamente as científicas. Enquanto que nestas a relação de ensino e aprendizagem poderia ser organizada progressivamente, acompanhando toda evolução histórica dos problemas e resoluções até a atualidade, extraindo verdades e descobertas fundamentais ao atual do campo de saber, com a filosofia isso não seria possível - haja vista a relação imanente que ela estabelece com sua história.

Por um lado, quando Leopoldo e Silva (1986, 1992) afirma que seria impossível determinar uma direção formadora de um corpo teórico, ele indica que a história da filosofia não pode ser estudada através de uma perspectiva do progresso do saber. Os textos cronologicamente mais atuais não representariam a evolução das verdades incontestáveis e descobertas fundamentais do campo, sucessivas de correções de método e de perspectiva, resultando numa melhor abordagem do objeto e/ou realidade. Em outras palavras, a atualidade filosófica não expressa um progresso. Dessa forma, os diferentes sistemas filosóficos mantêm-se igualmente válidos e perenes para a própria continuidade dessa tradição de pensamento na atualidade e, consequentemente, para a formação filosófica.

Por outro lado, no momento em que Leopoldo e Silva (1986, 1992) estabelece esse vínculo entre filosofia e história da filosofia, ele mostra que a filosofia tem, necessariamente, um aspecto histórico e, por consequência, precisa ser estudada como discurso histórico. Cada filosofia é um movimento original reflexivo de reposição e recolocação de questões ante a sua própria tradição de pensamento, alimentando-se da produção filosófica que lhe antecedeu para pensar suas próprias problemáticas. No entanto, como já foi dito, essa retomada não pode ser entendida como aquisições de um progresso científico, porque quando determinado filósofo retoma as questões já outrora colocadas, ele transfigura-as ante sua própria contemporaneidade e de acordo com sua própria originalidade, criando um novo sistema filosófico, singular em sua lógica interna (LEOPOLDO E SILVA, 1986, p. 153-154).

Embora não exista uma consolidação de um corpo de saber, o aprendizado filosófico não pode prescindir do conhecimento de sua história. Do mesmo modo, como os filósofos encontraram na história da filosofia o alimento de suas reflexões do presente, os estudantes encontram, nos sistemas filosóficos e nos vínculos estabelecidos com os outros sistemas, uma rica história dos mais variados estilos de se fazer filosofia. Ora, todo sistema filosófico oferta duas camadas: “uma em que o filósofo expressa o seu pensamento de acordo com as características básicas da visão do mundo de sua época” e outra que oferece “a manutenção das questões relativas ao fundamento da condição humana em seus vários aspectos” (LEOPOLDO E SILVA, 1986, p. 157). Ou seja, por de trás das variabilidades históricas das diversas filosofias, podemos aprender com a universalidade das reflexões que são retomadas e recolocadas para além do seu tempo.

Entretanto, esses vários modos de reflexão não poderão ser ensinados diretamente, como se fosse possível adquirir um conhecimento reflexivo da mesma maneira que se adquire uma fórmula matemática, e sim de modo indireto, criando familiaridade com a ordem filosófica de pensamento:

A filosofia ocupa na estrutura escolar uma posição análoga a qualquer outra disciplina: há o que aprender, há o que memorizar, há técnicas a serem dominadas, há sobretudo uma terminologia específica a ser desenvolvida. Não devemos nos iludir com o adágio "não se aprende filosofia", algo que pode levar a um comodismo ou a uma descaracterização da disciplina. O que a Filosofia tem de diferente das outras disciplinas é que o ato de ensiná-la se confunde com a transmissão do estilo reflexivo, e o ensino da Filosofia somente logrará algum êxito na medida em que tal estilo for efetivamente transmitido. No entanto, isto ocorre de forma concomitantemente à assimilação dos conteúdos específicos, da carga de informação que pode ser transmitida de variadas formas. O estilo reflexivo não pode ser ensinado formal e diretamente, mas pode ser suficientemente ilustradoquando o professor e os alunos refazem o percursoda interrogação filosófica e identificam a maneira peculiar pela qual a Filosofia constrói suas questões e suas respostas (LEOPOLDO E SILVA, 1992, p. 163-grifos nossos).

Assumindo essas condições da própria filosofia, duas são as formas de trabalhar com a história da filosofia: de modo central ou referencial. Se essa dupla possibilidade já havia sido enunciada pelas diretrizes oficiais na construção de um currículo eminentemente filosófico, é através dos textos de Leopoldo e Silva (1986, 1992) que essas estratégias são melhor elucidadas.

Segundo Leopoldo e Silva (1986), essas diferentes formas de estudar a história da filosofia possuem suas vantagens e desvantagens. Quando a história da filosofia ocupa a centralidade no ensino, o que se busca é privilegiar a compreensão dos sistemas filosóficos de acordo com a própria ordem histórica estabelecida entre os filósofos e a própria tradição, ou seja, estudam-se os sistemas enquanto reposição e reformulação que são feitas no contexto de uma tradição e de uma contemporaneidade. Nesse caso, o contato com as sucessivas reposições pode facilitar a compreensão das questões em si mesmas e, assim, auxiliar na interpretação das diferentes problemáticas que se estabelecem na relação entre cada um dos filósofos. Além do mais, ter-se-ia a possibilidade de acompanhar os desenvolvimentos das questões, de modo a propiciar uma visão histórica mais encadeada, isto é, o estudante poderia familiarizar-se com a discussão no próprio ritmo de seu desenvolvimento. No entanto, apesar disso, existem dificuldades. Por exemplo, como traçar cronologicamente uma linha, que conduza ao trato dos problemas, se em filosofia não há linearidade? Por outro lado, ao seguir um movimento cronológico corre-se o risco de afastar-se muito das questões atuais do contemporâneo, e, por consequência, da realidade estudantil (LEOPOLDO E SILVA, 1986, p. 155-156).

Quando a história da filosofia é utilizada como referência no ensino de filosofia, os sistemas filosóficos são estudados para sustentar teoricamente as discussões de determinados temas, independentemente dos encadeamentos cronológicos ou até mesmo das proximidades intelectuais entre os autores. Essa perspectiva traz a vantagem de atrair os estudantes, tendo em vista a aproximação das questões trabalhadas e a atualidade, e ainda confere maior liberdade ao professor e aluno no desenvolvimento das reflexões. Em compensação, a ausência de uma linha condutora histórica e a descentralização da história da filosofia exigem que o professor tenha um maior conhecimento da própria tradição, pois precisa resgatar historicamente os autores e os sistemas para corroborar com os temas tratados. Contudo, as aparentes vantagens da abordagem temática podem tornar-se um empecilho para o aprendizado filosófico, uma vez que a necessidade de pensar um tema pode atrapalhar as exigências da compreensão dos sistemas, sem as quais, de fato, não há familiaridade com o pensamento filosófico e suas nuances. Em outras palavras, sem a presença adequada do estudo da história da filosofia, corre-se o risco de cair no “livre-pensar”, nos debates sem o apoio dessa tradição (LEOPOLDO E SILVA, 1986, p. 158-159).

Assim, cada abordagem teria suas facilidades e complicações. O que não é colocado em questionamento é que o conhecimento da história da filosofia, isto é, “uma visão razoavelmente precisa do pensamento dos autores tratados e dos diferentes estilos de reflexão” (LEOPOLDO E SILVA, 1986, p. 161), deva ser o eixo das práticas de ensinar e aprender filosofia.

Após a leitura dos textos de Leopoldo e Silva (1986, 1992), observa-se que há uma correspondência entre a imagem criada nos documentos oficias e a forma como ele direciona a disciplina no ensino médio. A filosofia é entendida como um movimento reflexivo e histórico, condicionando seu ensino em busca dessa capacidade reflexiva. Muito mais do que conhecimentos específicos, procura-se associar o pensamento filosófico a uma forma de pensamento - trata-se de filosofia e não de ciência -, cujo desenvolvimento, apesar disso, se dará através do estudo da história da filosofia (centro/referencial).

Dentro desse registro de diretrizes, perguntamos: estariam essas concepções esvaziadas de uma tradição? Se os documentos oficiais e Leopoldo e Silva (1986, 1992) defendem uma “experiência comum” a todos os sistemas e discursos filosóficos, de maneira a não associar nenhuma corrente em filosofia com a organização da disciplina, nossa hipótese é que podemos encontrar muitas das razões dessas práticas na herança historiográfica francesa - que tem a sua maior ressonância no curso de filosofia da Universidade de São Paulo. Nesse sentido, acreditamos que disposições elencadas inicialmente pelos documentos oficiais e Leopoldo e Silva (1986, 1992) aproximam-nos, de um lado, das diretrizes traçadas parcialmente com Jean Maugüé (1955), nos anos 1940, e de outro, das práticas metodológicas com a filosofia, sua pesquisa e seu ensino consolidados, na década de 1960, nessa universidade - influenciadas por Martial Guéroult (1968 (1956) ; 2007(1957); 2015 (1970)) e Victor Goldschmidt (1970(1953), 2014 (1947)).

Diretrizes da historiografia francesa de filosofia: notas sobre uma herança de ensinar e aprender filosofia

Para Jean Maugüé(1955, p. 646), que foi o primeiro professor francês do curso de Filosofia da USP, “a base do ensino de filosofia no Brasil é a história da filosofia”. Com essa diretriz, fornece-se continuidade no território brasileiro à tendência filosófica francesa, segundo a qual o conhecimento dos clássicos seria os primeiros passos da filosofia futura (ARANTES, 1994, p. 74). Tal como as estrelas fixas no céu, responsáveis pela condução dos navegantes através dos horizontes desconhecidos, os filósofos clássicos são os pontos fixos da história, que coordenarão a produção filosófica nos caminhos do presente ainda em construção (MAUGÜÉ, 1955, p. 645-646).

Dentro dessa tradição, a história da filosofia não representará uma “recapitulação de doutrinas”: trata-se da própria retomada com os “grandes espíritos do passado”, que ainda permanecem “vivos em seus textos” (MAUGÜÉ, 1955, p. 645). Sendo assim, os manuais e tratados panorâmicos, compreensíveis em disciplinas que possuem um corpo de conhecimentos consolidados, como são os casos das disciplinas científicas, não são opções pertinentes ao estudo da história da filosofia. A filosofia não legou-nos verdades a serem adquiridas, prontas a serem transmitidas pelo ensino, mas um espírito reflexivo a familiarizar-se:

Se, sem trair de modo grosseiro o seu objeto de estudo, podemos falar em manuais de matemática ou de física, já o mesmo não podemos dizer da filosofia. (...)A filosofia é reflexiva. É o espírito ou a inteligência que se apreende a si mesma (MAUGÜÉ, 1955, p. 643).

Se esse programa de ensino encontrou, nos textos clássicos, a retomada do espírito reflexivo como estratégia primordial de desenvolvimento das potencialidades filosóficas, será preciso seguir, para tanto, “métodos rigorosos e perfeitamente modernos” (MAUGÜÉ, 1955, p. 649) - rigor implementado na USP, através da convivência universitária com Guéroult e Goldschmidt . Encontraríamos neles os dois momentos mais altos da “metodologia científica em história da filosofia” (PEREIRA, 1970, p. 6): o método de análise estrutural em filosofia. Nas palavras de Marques, as influências de Guéroult e Goldschmidt marcariam drasticamente a maneira como conheceríamos a história da filosofia:

o conhecimento da história da filosofia entre nós, realçada por uma convivência universitária com quem melhor representava o padrão adotado, deu-se, pois, por meio da obra de Guéroult e Goldschmit, cujo aprendizado resulta uma formação filosófica, acadêmica e intelectual (MARQUES, 2007, p. 29).

Guéroult e Goldschmidt seriam considerados como o ápice dos estudos da história da filosofia moderna, porque, diferentemente de outros trabalhos com a história da filosofia, o método estruturalista permitiria atingir a compreensão objetiva das doutrinas filosóficas, isto é, a retomada autêntica com o espírito reflexivo filosófico - “monumentos eternos do pensamento humano, fonte perene, geradora incessante de reflexão e de luz” (GUÉROULT, 2015 (1970) , p. 160). Para tanto, a estratégia adotada é interpretar os sistemas filosóficos, de acordo com sua própria natureza.

Segundo Goldschmidt (1970 (1953)), filosofia é explicitação e discurso. Dizer que ela é explicitação consiste em afirmar que, para interpretar o sistema filosófico, é preciso reconstituir as razões oferecidas pelo filósofo. Defende-se, nessa linha de raciocínio, que o filósofo escreve seu sistema para fazer-se compreender, a ponto de não existir nenhuma causa que a ele não possa ser atribuída: não há nada em sua doutrina que não seja intencional, que não seja calculado e de sua própria consciência. Enquanto a definição de Goldschmidt (1970(1953))aproxima-se mais de um receituário metodológico para ler corretamente os sistemas, Guéroult (2007, (1957)) aprofunda no sentido que há quando se afirma que uma filosofia é explicitação, ou, em suas palavras, demonstração.

Para este último, assim como ocorre nas ciências, a filosofia deve, ao instituir problemas, respondê-los através de teorias. Toda teoria só possui sua validade na medida em que é demonstrada, de maneira a impor à inteligência dos leitores e mesmo à do filósofoa sua própria validade. Cada filósofo a impõe através da construção sistêmica que, diferentemente da sistematização científica, permanecerá um sistema fechado. Devido à natureza dos problemas a serem resolvidos, universal e absoluto, os sistemas filosóficos são organizados sob um conjunto de princípios de totalidade que, por não estar contido em nenhum dado, permanece a priori. Em outras palavras, “a sistematização parte do princípio ou hipótese a priori em direção ao diverso das coisas, a principiis ad principiata, sendo, segundo o termo de Kant, cognitio ex principiis, não ex-datis” (GUÉROULT, 2007(1957), p. 236).

Nesse sentido, embora toda doutrina filosófica tenha tendências que antecedem sua elaboração sistemática, seja uma intuição inicial, seja determinado contexto histórico e questões específicas de uma época, o sistema filosófico desdobra-se em razões com a pretensão de apresentar seu pensamento em desenvolvimento (GOLDSCHMIDT, 1970 (1953), p. 140) e não simplesmente traduz algumas intuições primárias ou o pensamento de uma determinada época. De fato, uma filosofia “não começa no tempo. Apenas sua revelação nele se dá. Tão longo ela aí apareça, manifesta-se como intemporal por natureza. Assim, toda filosofia é Ideia eterna, e compreende-se que seja invulnerável à história” (GUÉROULT, 2007(1957), p. 238). Decorre disso a crítica ao método das pesquisas, em história da filosofia, genéticas, que falham ao tentar explicar o sistema para além da intenção de seu autor, aceitando os dogmas como efeitos, sintomas de fatos exteriores. Ela reduz o filosófico ao histórico, restringindo a compreensão à fase embrionária do filósofo. Limita a filosofia, que é intemporal, ao homem e às suas vivências, atentando-se às circunstâncias históricas. Por essa razão, seu sistema acaba por ser explicado de acordo com dados exteriores, por causas inteligíveis que estavam aparentemente ocultas ao filósofo, mas que são reconhecíveis aos intérpretes (GOLDSCHMIDT, 1970 (1953), p. 139-140).

Por outro lado, quando o método estruturalista considera a filosofia invulnerável à história não se exclui uma temporalidade própria ao sistema. Segundo Goldschmidt (1970 (1953)), todo sistema filosófico tem como segunda característica essencial ser discursivo, ou seja, constrói os dogmas progressivamente e em níveis diferentes, movimento próprio a cada filosofia. Ora, falar de “movimentos e de progressão é, a não ser que fique em metáforas, supor um tempo, e um tempo estritamente metodológico ou, guardando para o termo sua etimologia, um tempo lógico” (GOLDSCHMIDT, 1970 (1953), p. 143).

De acordo com Guéroult (2007 (1957)), a lógica de cada sistema nada mais é do que uma constante relacional idêntica, através da qual o filósofo forja toda a tessitura de seu sistema e trata dos mais heterogêneos problemas. Essas constantes relacionais são como um método homogêneo, por meio do qual o sistema filosófico progressivamente resolve seus problemas e cria seus dogmas. Por essa razão, pode-se dizer que “cada filosofia desenvolve implícita ou explicitamente seu Discurso do Método” (GUERÓULT, 2007 (1957), p. 242), sem o qual seria impossível analisar a construção dogmática.

Na recusa do tempo lógico,encontra-se o problema das práticas que só visam a reconstituir os sistemas filosóficos através da análise de seus dogmas. Embora, nesse caso, evitem-se os problemas das pesquisas genéticas e prenda-se àquilo que realmente é filosófico no sistema - a interioridade da obra e seus dogmas -, subtraem-se as teses ao tempo de seu próprio desenvolvimento sistemático e alocam-nasem uma superfície em que todos são, concomitantemente, verdadeiros. Isolam-se as teses do movimento filosófico, do processo constitutivo que as engendrou (método), avaliando-as estritamente do ponto de vista de seu conteúdo material (GOLDSCHMIDT, 1970 (1953), p. 139-140). Ora, como o sistema filosófico segue uma progressão temporal interna metodológica, os dogmas filosóficos precisariam ser analisados desde uma verdade intrínseca ao sistema, a partir do desenrolar dessa temporalidade lógica, ou seja, como verdade in re (GUÉROULT, 1968 (1956), p. 211).

Desse modo, a compreensão do sistema filosófico precisa concentrar-se somente naquilo que é enunciado pelo autor, suas condições de explicitação, de modo a acompanhar o movimento criador do próprio sistema, respeitando a temporalidade de constituição dos dogmas. Assim, ao invés de simplificar e obscurecer certas partes do sistema às causas históricas e contextuais, bem como ao conjunto de dogmas que são fornecidos de uma só vez, a exegese estruturalista acompanha a complexidade do próprio sistema, sempre de maneira a respeitar a própria inteligibilidade que o filósofo oferece-lhe. Em suma, compreende um sistema filosófico unificando cada asserção ao seu movimento produtor, ou seja, da doutrina ao método:

A análise estrutural, não mais que outra exegese, também não dispensa tateios e não se isenta dos erros. Ao menos ela escapa, em seu princípio e em sua própria intenção, a crítica de mutilação e de simplificação: ela se propõe a explicar a complexidade da obra pela complexidade dos movimentos metodológicos que a engendraram, e só exige do próprio autor a inteligibilidade que ela se dispõe a alcançar. (GOLDSCHMIDT, 2014 (1947), p. XVIII).

Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a explicação estruturalista dos sistemas filosóficos circunscreve seu exercício na estrutura da obra: na reconstrução das articulações do método em ato que, uma vez terminada, define a arquitetura da obra. Em oposição à ideia de gênese, as estruturas garantiriam perenidade aos sistemas filosóficos, permitindo a reconstituição dos dogmas à luz de seu movimento criador e à contracorrente da época/ meio, tornando-se o ponto seguro da tensão entre filosofia e história.

Se o “essencial da filosofia é uma certa estrutura” (ARANTES, 1994, p. 111), isso ocorre porque o que sustenta a história da filosofia estruturalista é a ideia de racionalidade desenvolvida na Crítica kantiana. Como diz Lebrun(2002 (1970), p. 12), “a Crítica, discurso filosófico inédito, é a condição de possibilidade da história da filosofia”. Com a Crítica, a filosofia deixa de ser teoria e passa a ser crítica. Não é mais o juízo material dos sistemas que importa, mas os próprios movimentos metodológicos que elaboram a verdade intrínseca. Agora, as doutrinas são analisadas como amostras do “discurso da própria razão sobre si mesma” (LEBRUN, 2002 (1970), p. 13), cujas criações não têm sua origem somente nas ideias do tempo, e sim nas tendências constitutivas e permanentes do próprio espírito humano - que se manifestam de diferentes formas nas estruturas filosóficas, nos sistemas da razão:

O discurso filosófico poderá mudar de estatuto, a partir de Kant, no momento em que o sistemático passar a definir o racional. E a metafísica de Wolff, criticada por Kant em sua “verdade de juízo”, ainda conservará um interesse enquanto conhecimento racional: signo de que a Razão, enquanto comentada pelo sistemático, não coabita mais o verdadeiro. (...)Se o historiador pode afirmar que o “dado filosófico” por excelência das doutrinas está em sua “organização” dos materiais, em seu “modo de digestão espiritual”, em sua “estrutura”; se ele pode falar em uma “verdade intrínseca” à filosofia distinta de sua verdade material, foi porque ele supôs, sob o horizonte kantiano que o sistemático define o racional em geral. E se as estruturas são particulares e, todavia o historiador afirma que elas encerram um ensinamento universal válido, é porque os sistemas são sistemas...da Razão - e será sempre esta atriz que estará representando os diversos personagens. (MOURA, 1988, p. 170).

A partir dessas indicações, passamos à verificação dessa herança em nossas práticas com a filosofia e seu ensino, de maneira a retomar os problemas iniciais que nos impulsionaram no presente trabalho.

As ressonâncias do método estruturalista nas práticas de ensinar e aprender filosofia

Constituída sobre essas imagens e pressupostos, sabemos que a história da filosofia constituirá o cerne sobre o qual se apoiarão as práticas de ensinar e aprender filosofia. O conhecimento dos clássicos representará a estratégia primeira, um autoconhecimento, quando o assunto é aprender filosofia. Nessa direção, cabe lembrar os apontamentos de Leopoldo e Silva (1986, 1992), para o qual “a discussão de temas filosóficos sem o recurso à história da filosofia não resulta em aprendizado e envolve o risco de se permanecer no ‘livre pensar’” (1986b, p. 160). Além disso, os apontamentos das Orientações: “o ponto de partida para a leitura da realidade é uma sólida formação em História da Filosofia, mesmo que não seja esse o ponto de chegada” (BRASIL, 2006, p. 32).

Na medida em que a história da filosofia representa o ponto de partida para a fundamentação do seu ensino, já sabemos, a partir de Maugüé (1955), que os filósofos ainda vivem em seus textos. Nesse caso, para ensinar e aprender filosofia é preciso que “nunca se desconsidere a sua história, em cujos textos reconhecemos boa parte de nossas competências e também elementos que despertam nossa vocação para o trabalho filosófico” (BRASIL, 2006, p. 27).

Por essa razão, a referida disciplina jamais poderá ancorar-se em um corpo de conhecimento consolidado. Ao contrário das outras disciplinas científicas, na filosofia não existiria um inventário de soluções e propostas que supostamente tenha triunfado no tempo. Por um lado, cada sistema filosófico deverá ser compreendido em sua própria sistematicidade, em seu movimento metodológico interno, em sua lógica particular, ou seja, em seu próprio texto. Por outro lado, se não há um acúmulo de verdades, não há nenhuma filosofia que represente o progresso atual desse campo: todos os sistemas permanecem ainda válidos para as práticas de ensinar e aprender - sejam os textos mais antigos, quanto os mais contemporâneos: “essas filosofias, qualquer que seja sua época, conservam uma certa validez para a reflexão filosófica de qualquer época” (GUÉROULT, 1968 (1956), p. 191).

No entanto, apesar da impossibilidade de encontrar na filosofia um análogo da positividade científica, Leopoldo e Silva (1986, 1992) e as diretrizes curriculares mostram que a “filosofia, como qualquer outra disciplina, no nível de seu ensino, tem que se haver com o que poderíamos chamar, grosso modo, de métodos e resultados” (LEOPOLDO E SILVA, 1986, p. 154). A única diferença é que o ato de ensiná-la não poderá confundir-se com o conhecimento desses métodos e resultados: o que se faz necessário é o desenvolvimento de uma forma de pensamento (BRASIL, 2002, p. 334) (BRASIL, 2006, p. 23-24), isto é, a transmissão do estilo reflexivo inerente aos diferentes sistemas e discursos filosóficos (LEOPOLDO E SILVA, 1992, p. 163).Em outras palavras, o fato de não existir um acúmulo progressivo de verdades consolidadas, ao longo da história da filosofia, não significa a inexistência de conceitos, atitudes e métodos a serem trabalhados em sala de aula, funcionando como ilustrações para o desenvolvimento do estilo reflexivo da filosofia.

Assim como é organizada a disciplina no ensino médio, percorremos a graduação em torno do conhecimento minucioso da história da filosofia. Desse modo, não será circunstancial a presença da história da filosofia como núcleo básico, “‘espinha dorsal’ da estrutura curricular” (UNESP, s/d, s/p), da formação do professor de filosofia. Modelados nos pressupostos dessa tradição, o futuro professor habitua-se,em seu processo de iniciação,ao “recurso exclusivo às fontes primárias e às suas traduções”, colaborando “para a contribuição desse patamar o caráter predominantemente monográfico das programações oferecidas” (UNESP, s/d, s/p).

Nesse sentido, não é por acaso que, em nossa formação, não houve espaços para os manuais que sintetizem a história da filosofia em ideias gerais, nem tampouco tivemos a oportunidade de estudar os tratados de história horizontal da filosofia. Se as ideias gerais separam os dogmas do seu movimento criador - separam as representações das suas próprias condições de formulação -, nos tratados horizontais, as representações são reduzidas ao contexto histórico e às diversas conjecturas da realidade, ofuscando a própria estrutura da doutrina filosófica. Agora, como a realidade fenomênica apreendida pelo sistema filosófico depende da determinação operada pelo sujeito-filósofo, como o objeto empírico é agora uma dada filosofia que já apresenta sua determinação e porque essa determinação é uma manifestação do espírito que ultrapassa as ideias do tempo, é somente no estudo monográfico, estruturalista e paciente das doutrinas filosóficas que o aprendiz conseguirá reconstruir as estruturas constitutivas das doutrinas. Como dirá Guéroult(2015 (1970), p. 169), “as monografias são indispensáveis para seu estudo (da filosofia) e devem ter como tarefa restituir de alguma forma o mundo lógico que lhe é seu”.

Desse modo, independentemente da disciplina e das preferências filosóficas dos professores - histórico (história da filosofia antiga, medieval, moderna e contemporânea) e temático (filosofia da arte, filosofia política, filosofia da linguagem, ética, estética, lógica, etc.) - basicamente cultiva-se uma mesma relação formativa com a filosofia, ou seja, exercita-se o desenvolvimento de um conhecimento sobreas doutrinas filosóficas, segundo as verdadeiras intenções do autor. Nessa conjuntura, formar-se professor é preparar-se para possuir uma técnica de “explicação de texto”, habilidade não só utilizada na elaboração de comentários originais, como também crucial para mediar o acesso aos monumentos filosóficos. Espera-se, finalmente, que, depois de quatro a cinco anos de licenciatura, os professores de filosofia saiam “familiarizado(s) com a técnica de explicação de texto”, a qual a transforma também em “privilegiado instrumento do ensino de filosofia do 2º grau” (UNESP, s/d, s/p).

De um lado, formados para explicar os sistemas filosóficos de modo a fornecer acesso às reflexões dos filósofos e, de outro, a disciplina no ensino médio organizada para que a compreensão das doutrinas filosóficas seja associada aos problemas do contemporâneo e à intervenção crítica na realidade, o conhecimento da história da filosofia - construído sob esses pressupostos específicos que remontam às imagens dessa tradição historiográfica francesa - permanece o cerne do ensino e da aprendizagem. Porém, podemos retomar as indagações iniciais e questionar: como que através dessas práticas, que estão presentes tanto nas diretrizes dos documentos oficiais e no Currículo do Estado de São Paulo, como em nossos hábitos docentes, poderíamos levar nossos estudantes a ter outra relação com a filosofia, a não ser uma relação que prevê estritamente um conhecimento sobre sua história? Há, realmente, essa relação indireta entre a compreensão da história da filosofia e o desenvolvimento das capacidades críticas e reflexivas peculiares aos filósofos, como se pressupõe nos documentos que organizam a disciplina e em Leopoldo e Silva (1986, 1992)?

Aparentemente, poderíamos concordar com Leopoldo e Silva, para o qual o desenvolvimento reflexivo seria “algo que demanda tempo e familiaridade com a filosofia” (LEOPOLDO E SILVA, 1986, p. 157) e, portanto, seria plausível que os estudantes, seja por estarem ainda no início, ou mesmo por falta de amparo cultural e dedicação, tivessem maiores dificuldades para estabelecer uma relação com o presente e com as questões fundamentais que requerem ser pensadas. Contudo e nós, professores, que, em condições ideais como ocorrem nas universidades, temos tempo para realizar a leitura dos textos filosóficos, de comparar as questões postas pelos filósofos e como elas foram retomadas, transfiguradas; que temos condições de ter aulas monográficas, em sua maioria, ou em disciplinas com poucos autores em torno de um tema; que temos acesso às melhores traduções, aos comentadores; por que não conseguimos refletir e recolocar as questões como fizeram os filósofos?

Comparados aos alunos da educação básica, compreendemos mais a história da filosofia, com um pouco mais de especificidade do que eles: temos um domínio maior sobre a produção bibliográfica dos filósofos. Mas, em nível de postura de reflexão e de crítica aos temas, de pensar as questões que nos afetavam, a relação não permaneceria a mesma? Será que realmente o hábito de compreender minuciosamente os sistemas filosóficos, de estabelecer unicamente essa relação compreensiva com a filosofia, formaria e desenvolveria a capacidade reflexiva, crítica e problemática? Encontraremos, de fato, no conhecimento da história da filosofia, permeado por essas práticas historiográficas, o alimento para nossas reflexões atuais?

Se nos cabe refletir até que ponto tais práticas são suficientes para a promoção dos objetivos na filosofia no ensino médio, acreditamos que um dos passos importantes para tanto demos no presente texto: reconstituir os vestígios que fundamentam as imagens e os pressupostos que, de alguma maneira, modelam a disciplina e o professor de filosofia que somos.

Considerações finais

Reconhecemos que as questões iniciais e finais do texto não inauguram uma discussão no ensino de filosofia. Por certo,também não será novidade a esse campo de pensamento apontar a influência da filosofia da USP em nossas práticas de ensinar e aprender. De fato, as nossas experiências em sala de aula e a restrição do ensino de filosofia a essas práticas historiográficas são também percebidas em outras produções bibliográficas. Contudo, apesar da existência de críticas, sentimos a falta de textos do campo do ensino de filosofia que mostrassem os traços dessa herança dentro das próprias práticas com a filosofia e seu ensino. Por essa razão, nesse artigo, consideramos mais importante reconstituir essa herança e mostrar como a mesma organiza a disciplina no ensino médio e também a nossa formação como professores de filosofia do que propriamente retomar as críticas daquilo que é por muitos considerados o ensino de filosofia como comentário de textos - percepção correta, mas ainda carente de maiores investigações sobre suas práticas.

Nesse sentido, esperamos ter mostrado que a presença da história da filosofia como espinha dorsal do currículo representa muito mais do que um artifício didático-pedagógico. Não é simplesmente ocasional a defesa de sua centralidade no ensino empreendida pelo Currículo do Estado de São Paulo (2011), pelos Parâmetros (2002) e pelas Orientações (2006). À luz de Leopoldo e Silva (1986, 1992) - que em nenhum momento colocou em questão a possibilidade de ensinar filosofia sem a história da filosofia (ou é centro ou é referencial) -, não só aprofundámo-nosnas diretrizes a serem seguidas bem como encontramos elementos que indiciam a proveniência do registro dessas práticas.

De fato, desde Maugüé (1955), passando pelas práticas de Guéroult (1968 (1956) , 2007 (1957), 2015 (1970)) e Goldschmidt (1970 (1953), 2014 (1947)), verificamos que a história da filosofia permanece o cerne do ensino: a história da filosofia é o ponto de partida, a estratégia propedêutica por excelência da formação, cujo vínculo imprescindível alimenta as potencialidades filosóficas a serem desenvolvidas. Dessa necessidade, revela-se que não é de qualquer maneira que a história da filosofia poderá ser ensinada. Afinal de contas, o ensino de filosofia não pode confundir-se com o ensino das ciências: na filosofia não há progresso.

Ora, se a filosofia não progride é porque já não interessa para aqueles que estudam as doutrinas filosóficas o seu valor de verdade material. Neutraliza-se a existência do mundo, como referência aos juízos materiais, e afirma-se a existência de um espírito reflexivo, eterno e interno às obras, penetrantes em todos os sistemas filosóficos: válidos, seja em qual for o tempo histórico, à reflexão. A partir disso, abolem-se os tratados panorâmicos, as pesquisas genéticas ou mesmo os manuais que desejam compilar os saberes filosóficos à qualidade dos saberes científicos. Agora, é, no próprio texto, que se encontram as estruturas constitutivas da razão: fontes eternas de reflexão e de luz. E será nessa mesma ideia de estrutura (da razão) que se fundamenta a justificativa para a própria atemporalidade da reflexão filosófica ao presente.

Nesse registro, consolida-se uma estratégia predominante de ensinar e aprender filosofia, que concentra seu exercício formativo na leitura, compreensão e explicação dos textos filosóficos, a fim de criar familiaridade com as potencialidades eternas da razão. Tais diretrizes permanecem organizando as imagens da disciplina no ensino médio e, do mesmo modo, modelando a nossa formação como professores. No entanto, ao contrário do que se prevê como objetivo para a filosofia na escola, não vemos as reais potencialidades dessa herança para intervenção crítica e filosófica no presente. No máximo, conforme apontam nossas experiências em sala de aula, desenvolve-se um conhecimento sobre as doutrinas filosóficas - conhecimento este que não ultrapassa o registro informacional histórico e a apresentação parcial de pensamentos sobre algum tema caro à filosofia.

Assim, esperamos que, com o desvelar desses pressupostos, possamos melhor pensar as relações com esse ensino de filosofia na atualidade, dando alguns passos para que, de fato, as aulas dessa disciplina sejam lugar de produção de pensamento das contingências da realidade - como é almejado pelos documentos oficiais e, inclusive, por nós, professores. Não bastará, contudo, apenas criticar as imagens institucionais que a organizam na educação básica, mas também problematizar o professor de filosofia que nos tornamos.

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Recebido: 10 de Julho de 2019; Aceito: 28 de Abril de 2020; Publicado: 25 de Setembro de 2020

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