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Contrapontos

versão On-line ISSN 1984-7114

Contrapontos vol.20 no.1 Florianopolis  2020  Epub 01-Jan-2021

https://doi.org/10.14210/contrapontos.v20n1.p42-52 

Artigos

POR UMA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR NÃO EXCLUDENTE: DESCONTRUINDO PADRÕES CORPORAIS HEGEMÔNICOS NA ESCOLA

IN FAVOR OF AN INCLUSIVE PHYSICAL EDUCATION IN SCHOOLS: DECONSTRUCTING HEGEMONIC BODY STANDARDS IN SCHOOLS

POR UNA EDUCACIÓN FÍSICA ESCOLAR NO EXCLUSIVA: DESCONSTRUYENDO LOS ESTÁNDARES CORPORALES HEGEMÓNICOS EN LA ESCUELA

Monique Marques Longo1 

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


Resumo:

A escola como instituição responsável pela inserção das crianças na sociedade, desde sua constituição, mostrou-se excludente. Por meio de símbolos, hábitos e discursos, instaura modelos e hierarquiza sujeitos, muitas vezes, utilizando-se das práticas corporais. Este artigo objetivou refletir as possibilidades práticas dos estudos interculturais como referencial teórico para aulas de Educação Física que se pretendem afirmadoras das diferenças identitárias e de práticas corporais não excludentes. Canen (2000, 2002, 2007), Candau (2008), Louro (2008), Sctrazzacaappa (2001) e Csordas (2008) constituíram-se aportes teóricos. Ratificou-se que a abrangência semântica abarcada pelo conceito de corpo desafia pesquisadores mas, também, pode constituir-se em uma possível estratégia subversora de um estereótipo estético etnocentricamente determinado e que categorias como a crítica cultural, a hibridização e a ancoragem social dos conteúdos mostraram-se aportes teóricos potentes aos professores que se pretendem mediadores de aulas de Educação Física não excludentes.

Palavras-chave: interculturalidade; Educação Física; corpo

Abstract:

The school, as an institution responsible for enabling children to become productive members of society, has been non-inclusive from the very outset. Through symbols, habits and discourses, it has established models and hierarchized subjects, often using corporal practices. This article reflects on the practical possibilities of intercultural studies as a theoretical framework for physical education classes that are intended to affirm identity differences and non - exclusionary body practices. The theoretical contributions used in this work were from Canen (2000, 2002, 2007), Candau (2008), Louro (2008), Sctrazzacaappa (2001) and Csordas (2008). It is argued that the semantic comprehension encompassed by the concept of the body challenges researchers, but may also constitute a subversive strategy of an ethnocentrically determined aesthetic stereotype, and that categories such as cultural criticism, hybridization and social anchoring of contents have shown to be valuable theoretical tools for teachers seeking to mediate non-exclusionary physical education classes.

Keywords: interculturality; physical education; body

Resumen:

La escuela como institución responsable de la inserción de los niños en la sociedad, desde su constitución se ha demostrado ser excluyente. A través de símbolos, hábitos y discursos, establece modelos y jerarquiza sujetos, a menudo utilizando prácticas corporales. Este artículo tuvo como objetivo reflejar las posibilidades prácticas de los estudios interculturales como marco teórico para las clases de Educación Física que pretenden afirmar las diferencias en las prácticas identitarias y corporales no excluyentes. Canen (2000, 2002, 2007), Candau (2008), Louro (2008), Sctrazzacaappa (2001) y Csordas (2008) fueron aportes teóricos. Se constató que el alcance semántico que engloba el concepto de cuerpo desafía a los investigadores, pero también puede constituir una posible estrategia subversiva de un estereotipo estético determinado etnocéntricamente y que categorías como la crítica cultural, la hibridación y el anclaje social de los contenidos resultaron aportes poderosos teóricos a profesores que pretenden mediar en clases de educación física no exclusivas.

Palabras clave: interculturalidad; educación física; cuerpo

Introdução

Conceituar o corpo e postular uma possível relação com o psiquismo humano demonstrou ser um desafio ao homem desde seus primórdios. Ao analisarmos o caminho epistemológico percorrido pelo seu conceito desde os presságios mitológicos gregos - quando relacionavam divindades como seres superiores a partir da imagem de seus corpos -, ratificamos a contingência do seu significado. A abrangência semântica abarcada pelo conceito desafia os estudiosos do tema mas, sobretudo, aos profissionais cujo objeto prático de ensino e reflexão reside no corpo, como é o caso dos professores de Educação Física.

Determinados discursos que visam dar sentido aos corpos também excluem. Nas diversas arenas socioculturais, observamos formas corporais destituídas de aceitação por não sustentarem pressupostos estéticos discursivamente impostos segundo relações desiguais de posições de falas. Foi assim desde os percussores gregos quando relacionavam Apolo, Esculápio e Panacéia a divindades saudáveis a partir da imagem de seus corpos, passando pela adoração às formas volumosas renascentistas até a veneração do musculoso na contemporaneidade. A exclusão corporal tornou-se vetor da exclusão social nos diversos âmbitos sociais, inclusive, no escolar.

A escola como instituição responsável pela formação e inserção das crianças na sociedade sempre mostrou-se excludente, desde sua constituição. Por meio dos corpos, afirma Louro (2008)

... a escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui. Informa o “lugar” dos pequenos e dos grandes, das meninas e dos meninos. Através de seus quadros, crucifixos, santas ou esculturas aponta àqueles/as que poderão ser modelos e permitem também que os sujeitos se reconheçam (ou não) nesses modelos. (LOURO, 2008, p. 57).

A partir desta lógica homogeneizadora, hierarquizam-se corpos. Gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados pelos estudantes, tornando-se parte do seu acervo corporal. Sem desconsiderar a participação ativa destes sujeitos nas estruturas escolares, é na escola que, afirma Pinho (2011, p. 292), “o indivíduo aprenderá quais são os sinais e os símbolos a serem manejados de forma a ser aceito no contexto sociocultural no qual ele se insere”. Podemos dizer que as práticas corporais nas escolas, sendo vetores destes símbolos selecionados, ratificam a homogeneidade corporal e cultural.

Nesse sentido, este artigo tem o objetivo de pensar as múltiplas concepções de corpo que reverberam nas aulas de Educação Física escolar, tornando-as práticas excludentes ou inclusivas. Objetivamos, concomitante, compreender como a desconstrução do estereótipo corporal moderno, por meio do paradigma da corporeidade, pode tornar-se um promissor caminho para a promoção da afirmação de uma escola intercultural que considere as diferenças identitárias, culturais e, sobretudo, corporais. Refletimos, por último, as potencialidades das práticas pedagógicas interculturais para se garantir aulas de Educação Física escolar afirmadoras das diferenças e dos espaços inclusivos.

Trata-se de um estudo descritivo bibliográfico de natureza filosófica e antropológica aportada, sobretudo, nos liames epistemológicos dos estudos interculturais. Canen (2000,2002,2007), Candau (2008), Hall (1997) e Louro (2008) constituíram-se aporte teórico aos pressupostos interculturais utilizados. Csordas (2008), Calfa (2010) e Sctrazzacaappa (2001), principalmente, foram utilizados como fundamentos para as reflexões dos estudos da corporeidade selecionados. Por fim, buscamos apresentar um relevante diálogo interdisciplinar para aportar professores de Educação Física na promoção de estratégias pedagógicas ratificadoras de corpos múltiplos.

O discurso do corpo na escola: a corporeidade como desconstrução da exclusão

Sob o imaginário de que para se aprender o corpo deve parar, o movimento corporal humano na escola restringe-se às aulas de Educação Física e ao horário do recreio. Nas demais atividades em sala, a criança permanece sentada, em silêncio e olhando para a frente. Estabeleceu-se, postula Bruni (1998, p.58), “entre a arte e a ciência uma lastimável distinção: a primeira se aprende como uma atividade lúdica e a segunda, de uma maneira séria e constrangedora”.

Embora conscientes de que o corpo é, na escola, o veículo através do qual o indivíduo se expressa, postula Strazzacaappa (2001), “o movimento corporal sempre funcionou como uma moeda de troca”. A autora defende que as atitudes disciplinares utilizadas ainda hoje, nas instituições de ensino, não se diferenciam muito das de outrora. Professores e coordenadores impõem a imobilidade física como forma de punição, e a liberdade de se movimentar como prêmio. Reconhece-se o indisciplinado pelo excesso de movimento que produz. Desta forma, destitui da criança qualquer possibilidade de conhecer seu próprio corpo, com limites e potencialidades. A origem dessa concepção bipartida de Homem surge antes da formalização da escola como instituição social e data do século XVII. Descartes, na intenção de definir o sujeito e sua realidade, postula a existência das distintas categorias res extensa e a res cogitans. A primeira refere-se à substância tridimensional, material, explicável fisicamente; e a segunda categoria Descartes utiliza para determinar a substância pensante, independente da matéria, invisível e incomensurável fisicamente.

Explicitando que a “a alma, por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo” (Descartes, 2006, 4ª parte), o filósofo define então uma nova concepção de natureza humana caracterizando o sujeito como racional, consciente e situado no centro do conhecimento. Seu discurso reverbera em séculos posteriores e a dicotomia cartesiana aporta epistemologicamente concepções de homem e de práticas sociais, como é o caso daquelas produzidas pela escola ainda hoje.

A corporeidade, como desconstrução do binarismo cartesiano, apresenta-se no século XX, como paradigma propulsor da integração corpo e intelecto. Vai aproximar-se deste corpo e entendê-lo para além do que é visto, da aparência e dos limites da sua forma física. A corporeidade, segundo Calfa (2010, p. 100), tem como fundamento a investigação do que é próprio no homem, integrando o Ser histórico, social e biológico. Nunca um ser bipartido.

Os pressupostos desta visão de homem e corpo aporta-se na ideia do Ser na sua unidade e em seu atravessamento no tempo e no espaço. O corpo deixa de ser objeto, mas se torna sujeito de sua significação; um ente inserido numa cultura que, através desta, se expressa e é expressado. A corporeidade, ratifica Calfa (2010, p. 75), “se constitui como uma maneira de se pensar a essência do corpo, ou seja, aquilo que transcende ao anatômico e biológico”.

O corpo se constrói culturalmente, e a abordagem da corporeidade, segundo Csordas (2008, p. 102), “parte da premissa metodológica de que o corpo não é um objeto a ser estudado em relação à cultura, mas é o sujeito da cultura; em outras palavras, a base existencial da cultura”. Não é apenas a racionalidade linguística o único vetor de assimilação dos ritos e das redes de significações que caracterizam os espaços-tempos da cultura. Assimilamos a cultura por meio da linguagem, representando e apreendendo as experiências internamente e, segundo Csordas (2008), pela corporeidade, por meio da percepção pré-objetiva (quando compreendemos que o processo de significação termina no objeto) e pela repetição do habitus (princípio estruturador das práticas compartilhadas socialmente).

Podemos perceber que, metodologicamente, Csordas (2008) opõe-se à dualidade sujeito-objeto e à estrutura-prática. Postulando a possibilidade de o corpo ser tanto objeto a ser significado como sujeito de significação, o autor nega a vigência de um corpo contexto, subsumido a um suposto mundo a ele exterior, em que, por meio da consciência, apenas se projetaria. Ao contrário, o corpo constitui e é construído neste mundo onde se apresenta consciente e inconscientemente. A segunda dualidade deve ser combatida ao se conceber o corpo como meramente decodificador de práticas sociais a ele externas e objetivas. Tal prática acontece de forma simbólica, dialógica e inter-relacional, sendo possível somente por meio da informação e da educação.

O corpo, nesse sentido, se constitui na interpelação dos seus aspectos biológicos, psíquicos e segundo influências socioambientais: o que Mauss (1966) conceitua como tríplice consideração. O estado biopsicológico, afirma Pinho (2011):

... identifica as potencialidades do corpo em evidência. É a base a partir da qual o entorno sociocultural poderá exercer influência. A formação do ser humano depende do convívio com outros seres humanos. É por meio desse processo relacional, dialógico, corporal e prestigioso que o indivíduo apreende técnicas, significados e valores, muitas vezes de forma inconsciente. (...) As técnicas corporais são simbólicas e construídas, podendo ser relativizadas pelos contextos. (PINHO, 2011, p. 290).

O corpo na escola que se aporta nos paradigmas da corporeidade, portanto, não é considerado hierarquicamente inferior ou aporte para a cognição. Gesto e pensamento coadunam-se; tornam-se unitário na expressão do que se aprende, intra ou interpessoalmente. O movimento, em vez de negado, torna-se propulsor da aprendizagem de uma cultura a ser valorizada e reconstruída. A expressão corporal reafirma-se linguagem, não hierarquicamente inferior à verbal, mas complementares na busca por expressar-se ou expressar simbolicamente a gama de ritos e texturas culturais no qual este corpo-Ser está envolto. Os princípios da corporeidade, portanto, podem tornar-se aporte para práticas pedagógicas que identifiquem o corpo como possibilidade de escrita e leitura do mundo, que, por meio da sua expressão e movimento, potencializa sua desconstrução e reconstrução, isto é, a construção de um novo espaço-tempo. Esse novo olhar sobre o corpo pode constituir-se como afirmação identitária das diferenças de etnia, raça, gênero, orientação sexual e classe social a que pertence: particularidades vistas como marcas que se apresentam na pluralidade e de uma singularidade; não da exclusão.

Perspectivas de Multiculturalismo e Educação Intercultural

A escola é a instituição por meio da qual a criança apreende signos e significados, valoriza atitudes, estereótipos, introjeta hábitos e constrói comportamentos predeterminados socioculturalmente. É por meio dela que a criança se desvincula dos fortes laços familiares, na primeira infância, e insere-se numa nova organização social, caminho para constituir-se sujeito cultural. Por meios de reforços positivos, sua identidade, assim como sua imagem corporal, forma-se através de experiências padronizadas e discursadas hegemonicamente.

A identidade humana, entretanto, caracteriza-se pela diversidade de raça, gênero, etnia, orientação sexual, religião, classe social e demais marcadores identitários, os quais, justamente na sua diferença, nos singulariza. É, porém, essa diversidade que, segundo Candau, (2008,p. 17), torna-se mote aos conflitos e às relações desiguais que permeiam o contato do sujeito com o Outro/diferente. Em sociedades multiculturais, evidenciamos que o estranhamento da diferença desencadeia processos discriminatórios e hierarquizantes.

A nossa formação historica está marcada pela eliminação do outro ou por sua escravização, que tambem é uma forma violenta de negação da sua alteridade. Os processos de negação do outro também se dão no plano das representações e no imaginário social. Nesse sentido, o debate multicultural na América Latina nos coloca diante da nossa própria formação histórica, da pergunta sobre como nos construímos socioculturalmente, o que negamos e silenciamos, o que afirmamos, valorizamos e integramos à cultura hegemônica. (CANDAU, 2008, p. 17).

No ambiente escolar, assim como em qualquer contexto social, as múltiplas marcas identitárias interferem-se mutuamente, articulando-se por meio de embates. Destes conflitos emergem preconceitos, discrimações, situações de bullying e múltiplos episódios de violência escolar. As diferenças identitárias e culturais são, no entanto, produzidas e reproduzidas segundo discursos proferidos de formas desiguais, nas diversas arenas sociais, nas quais alguns detêm poder de fala, e outros, não. Destas relações discursivas hierárquicas, afirmam-se determinadas marcas identitárias, a despeito de outras que passam a ser negadas e estereotipadas como anormais, inclusive e, principalmente, por meio de práticas escolares.

Considerar a escola como instituição inserida numa cultura específica, cujos híbridos ritos e signos atravessam os discursos ali proferidos e introjetados, faz avançar o debate em torno da desconstrução dos estereótipos corporais. No entanto, ante a polissemia do termo multiculturalismo abarcado na atualidade, cabe inicialmente esclarecermos o que acreditamos ser uma escolar intercultural: aporte teórico às reflexões aqui propostas.

Em geral, o conceito de multiculturalismo representa uma ruptura epistemológica com o projeto da modernidade, afirma Canen e Oliveira (2002, p. 61), “no qual se acreditava na homogeneidade e evolução natural da humanidade rumo a um acúmulo de conhecimentos que levariam à construção universal do progresso”. O projeto multicultural baseia-se nos pressupostos pós-modernos de sociedade nos quais a descontinuidade e a diferença são concebidas como categorias centrais. Vai de encontro, ainda, aos fundamentos iluministas da identidade como uma essência, estável e fixa. A concepção multicultural vai considerá-la descentrada, múltipla e em constante processo de construção e reconstrução.

Uma primeira linha de conceituação concebia o termo multiculturalismo como a valorização da diversidade cultural, entendida de forma essencializada e folclórica. Podemos exemplificar tal concepção com a prática de comemorar datas especiais nas escolas, como as festas juninas. Nestas, o professor de Educação Física fica responsável em ensaiar a quadrilha, na maioria das vezes, sem uma discussão prévia sobre os sentidos da festa, sua manifestação cultural e temporal. Parece ser, tal prática “multicultural”, um mero adendo do currículo regular. Tal vertente é conceituada por Canen (2007) como multiculturalismo folclórico ou liberal.

Questiona-se que a vertente liberal tende a desconhecer mecanismos históricos, políticos e sociais por meio dos quais se reforça a negação de certas marcas identitárias e de grupos sociais, tornando-os marginalizados. Identificar tais mecanismos e promover a superação é justamente objetivo central de uma segunda vertente, conceituada por Canen (2007) como o multiculturalismo crítico ou perspectiva intercultural. Tal perspectiva baseia- se na articulação entre a visão folclórica e as discussões que giram em torno das relações de poder que atravessam as diversas culturas. Postula a relevância dos questionamentos sobre a construção histórica dos preconceitos, da hierarquização cultural e das múltiplas discriminações identitárias. Nessa ótica, aponta Canen (2007, p.62), “substitui-se a visão do professor como ‘conhecedor cultural’ por aquela de ‘trabalhador cultural’, ou seja: um agente cultural, que busca transformar relações desiguais e que cruza fronteiras culturais em seus discursos”.

Podemos observar a presença de tais pressupostos nas aulas de Educação Física, quando se busca pensar o esporte ou determinadas práticas desportivas oportunizadas a apenas determinado grupo social. Nessa perspectiva, o professor de Educação Física, por exemplo, pode fomentar o questionamento da construção do golf, do basebol e do nado sincronizado que, quando apresentados de forma seletiva à determinada classe social, fortalece saberes corporais hegemônicos e, indiretamente, hierarquiza sujeitos, culturas e estéticas corporais.

Tal linha de pensamento, segundo ainda Canen (2007), tem sido questionada por uma terceira postura, intitulada multiculturalismo pós-colonial ou pós-moderno. Aportada epistemologicamente numa concepção pós-estruturalista de linguagem, o multiculturalismo pós-colonial ressalta a imprescindibilidade de se identificar discursivamente os mecanismos de construção destas diferenças. Concomitante às estratégias propostas pelo viés crítico do multiculturalismo, a perspectiva pós-colonial propõe “descolonizar” os discursos a partir da identificação de metáforas e expressões preconceituosas, assim como marcas de linguagens que estejam impregnadas do olhar hegemônico - branco, europeu, heterossexual e masculino.

Independente da vertente, as abordagens multiculturais, afirma Canen (2007), direcionam- se, em última análise, às questões de como as identidades e as diferenças são concebidas, seu entrelaçamento com a dicotomia universalismo versus relativismo e a compreensão da cultura como espaço de construção híbrida.

Aportados teoricamente nos pressupostos do multiculturalismo crítico ou intercultural, vale ressaltar as potencialidades de três categorias adotadas por Canen (2000) para a prática de aulas de Educação Física interculturais e não excludentes: crítica cultural, hibridização e ancoragem social dos conteúdos.

A crítica cultural dos discursos se refere à prática de oportunizar aos alunos a reflexão de suas identidades étnicas e, segundo ainda Canen e Oliveira (2002, p.61), “criticar mitos sociais que os subjugam, gerar conhecimento baseado na pluralidade de verdades e construir solidariedade em torno dos princípios da liberdade, da prática social e da democracia ativista”. Para sua operacionalização, tornam-se necessárias quatro dimensões: (1) a construção do conhecimento por parte do aluno a partir da análise de informações sobre o pluralismo cultural e as desigualdades; (2) o desenvolvimento de atividades democráticas em sala de aula que envolvam a escolha dos alunos; (3) a discussão de valores culturais conflitantes, do status quo e das relações culturais de domínio e marginalização; e (4) o ativismo social por meio do incentivo da tomada de posição ante condições de desigualdade.

Uma segunda categoria de ações interculturais refere-se à hibridização discursiva. A partir de uma reinterpretação das culturas, reconhecendo-as como nunca puras, mas inter-relacionadas, a garantia de uma linguagem híbrida, isto é, daquela que cruze fronteiras culturais, se dá na incorporação de discursos múltiplos, reconhecendo sua pluralidade e provisoriedade. Um exemplo da superação dos congelamentos identitários e metafóricos preconceituosos residiria no discurso do professor de Educação Física ao apresentar a prática da dança como não feminina e o futebol como não masculino: práticas sexistas porque foram assim histórica e culturalmente construídas. A hibridização discursiva, neste caso, vai de encontro a qualquer linguagem machista ou misógina, e pode promover a desconstrução dos estereótipos de gênero nas aulas de Educação Física.

No processo de hibridização, segundo Canen e Oliveira (2002, p. 64), “os próprios marcos discursivos dominantes e colonialistas podem ser reapropriados, ‘traduzidos’ em novos referenciais culturais, com base no contato com as culturas plurais”. Partir do pressuposto que as identidades são fluidas, assim como seus marcos culturais são híbridos, favorecem a promoção de estratégias discursivas potencialmente ressignificadoras de sínteses culturais outras.

Uma terceira estratégia intercultural, conceituada como ancoragem social, propõe a interligação de discursos históricos, políticos, sociológicos e culturais que favoreça o alargamento dos quadros de referências por meio dos quais compreendemos as interpelações entre conhecimento, pluralidade e poder. Este olhar interdisciplinar pode fomentar percepções e ideias novas acerca do esporte, das práticas da cultura corporal do movimento, da educação, da formação e da profissionalização docente ante aspectos políticos, econômicos, sociais, psíquicos que atravessam nossa área. Práticas interculturais em Educação Física podem ser caracterizadas quando há a promoção de leituras econômicas sobre a desvalorização da carreira, aspectos históricos que fundamentem a construção da profissionalização docente no decorrer dos tempos e, ainda, a abordagem sociológica das correntes teóricas que fundamentaram, ou não, a visão sobre o corpo discursivamente selecionada nos cursos de Ensino Superior que formam os profissionais da área.

Fica claro que a crítica cultural, a hibridização e a ancoragem social discursiva mostram- se potentes mecanismos promotores de uma Educação Física de inspiração intercultural. Seus pressupostos valorizam, por um lado, a cultura do aluno, o que fomenta a equidade educacional e a superação do fracasso escolar. Por outro, tais preceitos desconstroem estereótipos, preconceitos e discriminações, sejam eles identitários, culturais e/ou corporais.

Algumas considerações possíveis: pressupostos interculturais para uma Educação Física Escolar não excludente

A relação da escola com o corpo daqueles que nela se inserem sempre se deu de forma dicotômica e parece, ainda hoje, assim se afirmar. A hierarquização corpo-cognição não apenas nega e silencia corpos. Ela impede também o autoconhecimento quando limita seu movimento apenas às aulas de Educação Física ou aos breves períodos de recreio. Consequentemente, o ensino de práticas corporais nas instituições educacionais resume-se às aulas de Biologia, limitada à cognição e à memorização de órgãos e funções orgânicas, enquanto os corpos estão imóveis nas cadeiras.

A cultura escolar, desde seus primórdios, parece considerar o “dono deste corpo” como bipartido e capaz de controlá-lo rigidamente em predeterminados momentos específicos. Mente produz, enquanto membros corporais se aquietam; corpo se movimenta, enquanto o cérebro descansa. Ignora-se que, para executar qualquer habilidade motora fundamental, são necessários estímulos neuronais específicos. Da mesma forma, se esquece que todo o processo de aprendizagem, em si mesmo, é movimento de conexões de sinapses neurais, portanto é expressão de um corpo não estável.

Observamos aqui que tal concepção de corpo, cujos pressupostos ainda hoje aportam projetos políticos pedagógicos, sedimentou-se nos pressupostos cartesianos. A ideia de que o êxito do aluno reside no inflacionamento da sua cognição - e principalmente na aprovação no ENEM - baliza a organização curricular, a escolha das disciplinas e o escalonamento dos tempos de aula. Tal fato é corroborado pela análise dos currículos escolares constituídos por cinco aulas de Matemática a cada aula de Educação Física proposta, independente das diferenças identitárias, capacidades, inteligências dominantes e, sobretudo, características corporais.

Uma escola que se pretende intercultural vai atuar, intervir e buscar transformar tais práticas por meio de uma postura político-cultural que, segundo Candau (2008), visa à radicalização da democracia. Tal prática política considera os atravessamentos existentes entre os diversos grupos culturais, concebendo as culturas como híbridos de signos e significados contingentes, históricos e dinamicamente constituídos e reconstruídos. Considera-se reverter as desiguais relações de poder por meio de políticas de diferença, convivendo com políticas de igualdade, garantidas pelo reconhecimento mútuo. A emergência de múltiplas formas de discriminação cultural evidenciou a necessidade das políticas da diferença e, complementa Santos (2001, p. 21), “a política da diferença não se resolve progressisticamente pela redistribuição: resolve por reconhecimento”.

Uma Educação Física aportada nos pressupostos interculturais, portanto, vai reconhecer a diversidade de formas de se conceber esse corpo como linguagem cultural. Não apenas se reconhece a multiplicidade de gestos, de expressões dos sentimentos, percepções sensoriais e atitudes corporais, mas se utiliza desta diversidade para compreender e afirmar a riqueza inerente a todas as culturas, não se limitando à reprodução da hegemonicamente imposta. Todos os jogos, ritmos, esportes e danças tornam-se relevantes expressões culturais, ricos em si, e que devem ser apresentados aos alunos de forma igualitária, sem hierarquizações ou classificações.

No que concerne ao corpo, a escola que se pretende intercultural vai questionar os padrões hegemônicos de corpo que aportam projeto político pedagógico, organização curricular, escolhas disciplinares, tempo e espaço para a expressão do movimento, garantindo-o constante. Abordar o caminhar epistemológico percorrido pelas múltiplas concepções estéticas corporais disponibiliza, aos alunos, uma multiplicidade de visões sobre forma corporal, saúde, parâmetros estéticos, discursos midiáticos veiculados e, consequentemnte, estratégias para o questionamento dos modelos etnocentricamente determinados.

Refletimos, por fim, que uma prática pedagógica que desconsidera a diversidade corporal, que inviabiliza a multiplicidade de expressões e linguagens a que esse corpo é potente, não apenas nega nossa riqueza cultural, mas, sobretudo, impede o autoconhecimento deste corpo, suas funções, desequilíbrios, limites, potências, e o ensino-aprendizagem do respeito às múltiplas marcas identitárias, prática esta imprescindível à garantia da não exclusão.

Referências

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Recebido: 03 de Setembro de 2020; Aceito: 15 de Novembro de 2020

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