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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psic. da Ed.  no.55 São Paulo jul./dez 2022  Epub 31-Ago-2023

https://doi.org/10.23925/2175-3520.2022i55p80-87 

Artigos

BEM-ESTAR NA ESCOLA E PERCEPÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO POR MENINAS

School Well-Being and Perception of Gender Discrimination by Girls

Bienestar en la Escuela y Percepción de la Discriminación de Género por las Niñas

Benedito Rodrigues dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0001-7860-1998

Lêda Gonçalves de Freitas2 
http://orcid.org/0000-0002-1288-7134

Nair Cristina da Silva Tuboiti3 
http://orcid.org/0000-0002-5641-8057

1 International Institute for Child Rights and Development - IICRD - Universidade de Victoria - Canadá; benedito.santos.br@gmail.com

2 Universidade Católica de Brasília - Brasília - DF - Brasil; ledagfr@gmail.com

3 Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação - Geempa - Porto Alegre - RS - Brasil; ncstuboiti@gmail.com


Resumo

Este artigo analisa, a partir da pesquisa “Ser Menina no Brasil”, o bem-estar na escola e a (pouca) percepção da discriminação de gênero por meninas de 6 a 14 anos. Foram utilizados os dados quantitativos da Amostra-Escola, que envolve 1.609 meninas, de 21 municípios brasileiros, referente à dimensão “Escola e Escolarização” e que aponta a percepção das meninas sobre a frequência às aulas, os motivos de faltar à escola, os níveis de aprovação e reprovação, a interrupção dos estudos, os motivos de expulsão, as tarefas escolares, as relações de gênero no contexto escolar e a satisfação e bem-estar na escola. A análise indicou uma percepção favorável ao bem-estar na escola e relações de gênero benéficas para as meninas. Estudos assim devem focar o contexto educativo, o qual possibilita a inserção e a construção de um lugar de pertencimento e a ruptura com uma cultura de desigualdade social que ainda mascara a exclusão.

Palavras-chave: Escolas; Gênero; Meninas; Educação

Abstract

This article analyzes, from the research "Being Girl in Brazil", the welfare in the school and the (low) perception of the gender discrimination by girls of 6 to 14 years. We used the quantitative data of the School-Sample, involving 1,609 girls from 21 Brazilian municipalities, referring to the "School and Schooling" dimension and which points out the girls perception about the attendance at school, reasons for missing school, levels of approval and disapproval, interruption of studies, reasons for expulsion, school tasks, gender relations in the school context, and school satisfaction and well-being. The analysis indicated a favorable perception of well-being in school and gender relations beneficial to girls. Such studies should focus on the educational context, which enables the insertion and construction of a place of belonging and the rupture with a culture of social inequality that still masks exclusion.

Keywords: Welfare; School; Genre; Girls; Education

Resumen

Este artículo analiza, a partir de la investigación "Ser niña en Brasil", el bienestar en la escuela y la (poca) percepción de la discriminación de género por niñas de 6 a 14 años. Hemos utilizado los datos cuantitativos de la Muestra-Escuela, que involucra a 1.609 niñas, de 21 municipios brasileños, referente a la dimensión "Escuela y Escolarización" y que apunta la percepción de las niñas sobre la frecuencia a las clases, los motivos de faltar a la escuela, los niveles de aprobación y reprobación, la interrupción de los estudios, los motivos de expulsión, las tareas escolares, las relaciones de género en el contexto escolar y la satisfacción y bienestar en la escuela. El análisis indicó una percepción favorable al bienestar en la escuela y relaciones de géneros beneficiosos para las niñas. Los estudios así deben enfocar el contexto educativo, lo cual posibilita la inserción y la construcción de un lugar de pertenencia y la ruptura con una cultura de desigualdad social que aún enmascara la exclusión.

Palabras clave: Bienestar; Escuela; Género; Niñas; Educación

Introdução

O presente artigo tem como objetivo analisar o bem-estar na escola e a (pouca) percepção da discriminação de gênero pelas meninas a partir da base de dados da pesquisa “Por Ser Menina”, que identificou as percepções de meninas de 6 a 14 anos sobre aspectos que facilitam e/ou impedem o desenvolvimento de suas habilidades e a garantia de seus direitos, a partir do ambiente familiar, escolar, comunitário e social em que elas vivem. A pesquisa foi composta por duas amostras: uma de 1.609 meninas de escolas localizadas em 21 municípios, de cinco estados do Brasil (Pará, Maranhão, São Paulo, Rio Grande do Sul e Mato Grosso), incluindo as respectivas capitais, e outra de 149 meninas quilombolas desses mesmos estados, à exceção do Rio Grande do Sul. Ambas as amostras incluíram meninas na faixa etária entre 6 e 14 anos.

Para este artigo, serão utilizados os dados quantitativos da Amostra-Escola que foram coletados por meio de questionários e da realização de entrevistas individuais e coletivas. Essa amostra envolveu 1.609 meninas/adolescentes, de 21 municípios brasileiros, referente à dimensão “Escola e Escolarização”, que traz a percepção das meninas sobre a frequência às aulas, os motivos de faltar à escola, os níveis de aprovação e reprovação, a interrupção dos estudos, os motivos de expulsão, as tarefas escolares, as relações de gênero no contexto escolar, a satisfação e o bem-estar na escola.

O direito à educação é expresso na Constituição Federal de 1988, no Art. 205, que prescreve: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Brasil, 2009a). Desde a promulgação da “Constituição Cidadã”, o País, em suas diversas esferas de poder federal, estadual e municipal, com a atuação de inúmeros movimentos sociais da área de educação, empenha-se para ampliar a escolarização.

A Constituição Federal de 1988 é a grande referência histórica para a garantia dos direitos sociais no Brasil. Quanto à garantia do direito à educação, nos últimos treze anos inúmeras legislaturas foram criadas com vistas à promoção desse direito. Em 2007, foi criado o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), institucionalizado pela Lei n.11.494, de 20.06.2007 (Brasil, 2007). Com o Fundeb, amplitudes o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), instituído pela Lei n. 9.424, de 24.12.1996 (Brasil, 1996a), que vigorou até 2006. O Fundeb estabeleceu recursos para a educação básica, tanto na modalidade regular quanto na integrada à educação profissional e à educação de jovens e adultos.

Acentua-se, também, a Emenda Constitucional n. 59, de 11.11.2009 (Brasil, 2009b), que estendeu a obrigatoriedade da educação básica para a faixa de 4 a 17 anos. A Lei n. 12.796, de 2013, regularizou essa mudança, ao alterar o texto original da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) (Brasil, 1996b). A todos esses avanços nas políticas educacionais soma-se a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), Lei n. 13.005, de 2014, que, com suas vinte metas, tem-se a base para a elaboração da política de educação nos níveis federal, estadual e municipal para os próximos dez anos (Brasil, 2014a).

Esse conjunto de leis e as inúmeras políticas educacionais dos últimos treze anos evidenciam uma melhora no acesso, permanência e qualidade da educação básica no Brasil. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2014 indica que a realidade brasileira em vários aspectos sociais continua em processo de mudança.

Na educação, observa-se o aumento do número médio de anos de estudo, que chegou em 2014 em 10,5 anos a média nacional, sendo que a Região Nordeste conseguiu aumentar 2,2 anos na década, passando a ter uma média de 9,2 anos (Brasil, 2015). Em relação à taxa de alfabetização da população brasileira de 15 anos ou mais, houve um pequeno aumento, passando de 88,6% em 2004 para 91,7% em 2014. Portanto, a taxa de analfabetos no país está em torno de 8,3%. Destaca-se, ainda, o analfabetismo funcional, em relação ao qual, segundo o “Relatório Educação para Todos no Brasil, 2000-2015”, houve um decréscimo de 27,3% (2001) para 18,3% (2012), o que representa uma queda de 33% no período (Brasil, 2014c). Apesar do decréscimo, o índice é bastante considerável e requer atenção total de gestores e legisladores do país.

O Censo Escolar da Educação Básica (Brasil, 2014b) mostra que o país, na última década, tem ampliado o acesso à educação básica e buscado a melhoria da qualidade das aprendizagens. Destaca-se o aumento da oferta da educação infantil de 0 a 3 anos de idade, apresentando um crescimento de 7,5%. Outro dado que merece ser salientado é a expansão da educação profissional, que apresentou 780.162 matrículas em 2007, e em 2013, alcançou 1.441.051, totalizando uma ampliação de 84,1% no período.

Apesar de ampla melhora nos dados de acesso e permanência na escola no Brasil, neste momento, o foco central de educadores, pesquisadores e governos com total compromisso com a garantia do direito à educação pública é a democratização das aprendizagens. Sabe-se que a evasão escolar, a reprovação e a não alfabetização na idade certa são desafios que ainda precisam ser enfrentados por todos os atores sociais.

O bem-estar, segundo Siqueira e Padovam (2008), tem sido pesquisado a partir de dois campos teóricos, a saber: o Bem-Estar Subjetivo (BES), e o Bem-Estar Psicológico (BEP). Na direção do BES, as autoras informam que há um foco nas avaliações que as pessoas fazem de suas vidas, portanto na apreciação dos sujeitos sobre os afetos positivos e negativos, ou seja, o estado subjetivo de felicidade em relação à vida. A segunda visão, o BEP, direciona suas pesquisas a partir de formulações psicológicas em torno do desenvolvimento humano e das capacidades dos sujeitos para responder às provocações da vida.

Para analisar o bem-estar das meninas na escola considerar-se-á bem-estar numa dimensão de satisfação, contentamento, entusiasmo, alegria e gosto pelo ambiente escolar. Por conseguinte, há uma aproximação à visão de Bem-Estar Psicológico, a qual converge para abordagens humanista-existenciais do desenvolvimento humano e da saúde mental (Machado & Bandeira, 2012).

Neste artigo, gênero é concebido como uma construção social e demarcado num tempo histórico, conforme assinala Felipe (2001). Desta forma, à medida que gênero é uma construção social, seus significados se transformam nas relações sociais. De acordo com Scott (1990), gênero constitui as relações sociais assentadas nas diferenças constatadas entre os sexos e, ainda, gênero é uma forma de significar relações de poder.

Enquanto um fator que constitui as relações sociais estabelecidas nas diferenças entre os sexos, a autora (Scott, 1990) considera que quatro elementos, articulados entre si, estão envolvidos na categoria gênero. Os símbolos culturalmente construídos que produzem as inúmeras representações do ser mulher, como um primeiro elemento. Em seguida, apresenta os conceitos normativos presentes nas doutrinas dos diferentes dispositivos da cultura que proclamam o sentido de ser homem e ser mulher. O terceiro enfoque é quanto ao sistema de parentesco, no qual há um olhar sobre gênero para o universo familiar e que precisa ser pensado de forma mais vasta e incluir as dimensões do mercado de trabalho, a educação, a política, sistemas que compõem a dinâmica de segregação de gênero. Portanto, gênero é construído pelo parentesco, mas o é, também, pela política, pela economia e por todas as esferas sociais. O quarto elemento diz respeito à distribuição do poder, a qual se utiliza das diferenças entre os corpos para legitimar controles e acesso diferenciado aos bens materiais e simbólicos. Assim sendo, importa neste artigo a compreensão de gênero como um saber que, historicamente, tem estabelecido uma organização social das desigualdades sexuais estabelecidas (Scott, 1990). Para Louro (2008), a construção do gênero e da sexualidade tem-se configurado por toda a história de maneira contínua e inacabável. Por conseguinte, ensina a autora, a aprendizagem em torno do gênero e da sexualidade é realizada nas diversas instituições e situações do cotidiano de maneira muito clara e disfarçada que sutilmente empreende modos fixos de conceber e vivenciar o gênero na sociedade.

Izoton (2015) realizou experiência docente com alunos do 1º ano do ensino fundamental e do ensino infantil sobre o tema das relações de gênero, como parte das atividades de Práticas de Filosofia e Ciências Sociais, em escola pública do município de Cariacica, no Espírito Santo. Ele partiu da distinção entre sexo como dado biológico e gênero como construção social que determina papéis para homens e mulheres. De acordo com o autor, nem todas as crianças internalizaram a distinção entre os papéis sociais de gênero. Porém, a maioria trouxe consigo referenciais do que é ser menino e menina, homem e mulher, sobretudo nas faixas etárias mais velhas, cujo referencial era ainda mais internalizado. Com o desenrolar das atividades desenvolvidas percebeu mudanças nas representações e atitudes de alguns alunos, que começaram a se desvencilhar de concepções atribuídas ao sexismo.

Souza (2007), partindo do entendimento das diferenciações de gênero como algo socialmente produzido e marcado por relações de poder, realizou pesquisa sobre concepções de gênero na família e na escola. A partir de um estudo de caso incluindo séries iniciais do ensino fundamental de um município no estado de São Paulo, a autora apontou que as dimensões tradicionais de gênero perpassavam a trajetória escolar e o processo de aprendizagem. A alternativa seria desnaturalizar essas percepções tradicionais, considerando-se os modos variados de ser menino e menina.

O uso de outra abordagem, como afirma Souza, parece ser o que Izoton se propôs a fazer na pesquisa acima relatada e cujos resultados apontaram para o fato de que quando o tema gênero e sexualidade é desvelado, novas possibilidades interpretativas, para ele, podem ser experimentadas pelos sujeitos. Nesse sentido, a escola pode ser uma instituição importante para a construção de outra narrativa e aprendizado sobre gênero, desde que o tema não seja interditado e de que o olhar esteja “treinado pela perspectiva de gênero” (Madeira, 1997, p. 75).

Destarte, este artigo traz evidências sobre a visão de gênero a partir de meninas em seu contexto escolar, com a finalidade de contribuir com a reflexão em torno da categoria gênero como uma série de análises que estão em permanente construção e que, no caso dessa faixa etária, carecem de mais pesquisas.

Meninas na escola

Neste item, ressalta-se o percentual de reprovação (12,6%), que é relativamente baixo, todavia a infrequência (30%) é uma realidade no contexto das meninas pesquisadas. Chama a atenção os motivos pelos quais as meninas faltam: que vão desde doença delas (77,9%) ou de alguém da família (23,6%), à necessidade de ficar em casa para cuidar de alguém (12,3%) ou a falta de transporte (10,9%); outros motivos apresentados ficam abaixo de 10%. Observa-se nestes resultados o peso cultural do papel de cuidar que a mulher historicamente vem assumindo. Faltar aulas para cuidar de alguém da família, com doença ou não, chega a um percentual de 35,9%. Nessa prática social familiar, as meninas aprendem o lugar dos gêneros e, de forma sutil, vão reproduzindo as diferenças alicerçadas entre os sexos (Louro, 2008).

A infrequência, elemento que dificulta o avanço nas aprendizagens, fragiliza a busca pela qualidade na educação empreendida por diversos atores sociais, com vistas à democratização do aprender em todos os grupos sociais. O aumento da oferta básica de ensino precisa estar harmonizada com a permanência e consequente aprendizagem e desenvolvimento. Sem isso, o Brasil não realizará o desafio da meta sete do Plano Nacional de Educação: “Fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhora do fluxo escolar e da aprendizagem (...)” (Brasil, 2014a).

A pesquisa demonstrou que 12,6% das meninas/adolescentes pesquisadas foram reprovadas. Outras 83% nunca repetiram o ano na escola. Os índices de reprovação alcançaram o menor patamar no estado do Mato Grosso (5,7%) e o maior no Pará (17,8%). A reprovação é mais comum entre as meninas com idade mais elevada (11 a 14 anos). Neste grupo etário, 18,7% delas declararam já ter reprovado, enquanto na faixa dos 6 aos 10 anos esse percentual foi da ordem de 6%.

Os dados de reprovação das meninas pesquisadas, associados com o alto índice de analfabetismo (8,3%) e de analfabetismo funcional (18,3%), ainda presentes no país, solicitam ações concretas e efetivas que alterem a estrutura deste problema histórico de exclusão educacional que atinge sobremaneira as populações mais pobres no Brasil, e, de modo muito acentuado, as mulheres. A garantia constitucional do direito à educação precisa ser efetivada, também, pelo direito à aprendizagem. Meninas em idade de 11 a 14 anos, com um índice de reprovação em torno de 18,7%, preocupam e fazem pensar que, se não houver intervenções pedagógicas de garantia da aprendizagem e desenvolvimento dessas cidadãs, é possível que, mais adiante, façam parte das estatísticas de analfabetismo funcional.

Numa acepção de Bourdieu (1998) sobre capital cultural, a escola pode tanto perpetuar as desigualdades de gênero quanto contribuir para processos de emancipação. Embora a escola seja, claramente, um espaço de reprodução social, ela constitui-se, também, de possibilidades de libertação. É importante considerar que a escola reconheça seus limites, posto que não resolve os problemas sociais, mas age sobre o ser humano e esse, por sua vez, ao aprender, é inserido no universo letrado e tem elementos para agir sobre a sociedade. Assim sendo, cabe à escola promover as aprendizagens, o que implica possibilitar relacionar-se com o saber numa dimensão epistêmica. Relação que promova mudanças de tal maneira que o aprendiz se aproprie do conhecimento na lógica da emancipação, o que comporta também a referência à constituição identitária. Especificamente nesse caso cujo foco é a menina, o aprender é a oportunidade de inserção e construção do seu espaço na sociedade numa perspectiva de mais igualdade de gêneros.

Relações de gênero na escola

A análise sobre as relações de gênero na escola demonstra que, na percepção das meninas entrevistadas, os meninos não possuem privilégios no tratamento dispensado pelos professores. Pouco mais de 80% delas discordaram da afirmativa segundo a qual “meninos são mais bem tratados pelos professores na escola”, sendo que 46% discordaram totalmente. Embora as meninas não identifiquem um tratamento diferenciado, 42,5% delas concordaram com a assertiva de que os professores se surpreendem com a sua capacidade por elas serem meninas, número próximo ao daquelas que discordaram (49,9%).

É preciso considerar nesses resultados, acima de tudo, a surpresa dos professores frente à capacidade das meninas. O percentual é expressivo e aponta, inclusive, uma presença incessante das desigualdades sexuais estabelecidas historicamente, e também a força que o espaço escolar tem para reproduzir valores que, no contexto em análise, sinaliza para acentuar as diferenças entre os sexos e marcar, sobremaneira, as relações de poder entre os gêneros (Scott, 1990).

As afirmações das meninas podem indicar a presença de estereótipos de gênero que vão moldar sua relação com a escola, como o fato de ler e de escrever serem consideradas ações passivas, consequentemente femininas, e que fornecem tanto subsídio para o desempenho das meninas nas séries iniciais quanto reconhecimento com a atividade de estudo (Swann, 1992). O background diferencial de gênero com o qual a criança já chega na escola, de acordo com Swann (1992), orienta e influencia as escolhas, o comportamento e o modo de pensar.

Sobre as respostas das meninas em relação aos itens que se referem à equidade de gênero no ambiente escolar, observou-se que são mais positivas nas instituições urbanas particulares e menos nas rurais públicas. Nestas, 72,8% delas discordam que meninos são mais bem tratados que meninas. Nas escolas urbanas e públicas o percentual foi de 82,1%, enquanto nas instituições urbanas particulares o índice chegou a 93,1%. Embora haja uma significativa percepção sobre igualdade de gênero, um dado que não pode ser desconsiderado é que 45,5% das meninas consideram que os professores se surpreendem com a sua capacidade por elas serem meninas.

É importante que a equidade de gênero seja o foco no processo de eliminação das desigualdades sexuais e de gênero. Equidade, como salienta Farranha (2014), está relacionada às condições que as cidadãs precisam para o exercício dos seus direitos. Assim, buscar a equidade de gênero é reparar as práticas de discriminação presentes, ainda, no contexto escolar que, inevitavelmente, produzem isolamentos. Para tanto, há que se promover ações para que a igualdade seja tangível e para que a perpetuação da desigualdade se encerre definitivamente. Espera-se que a escola, espaço de inclusão escolar, seja propulsora e executora de equidades. Em uma escola que afirma os direitos humanos, de forma alguma, meninas podem ter dúvidas sobre esta instituição como um ambiente de vivenciar os seus direitos.

A construção social de gênero ainda reinante nas práticas sociais do Brasil tem delimitado o espaço doméstico para as mulheres. Certamente, isso perpassa pelo ambiente da escola como não sendo o espaço das meninas. Nesse sentido, há um peso velado que, por não ser percebido, não se questiona. Até porque o ser menina se constrói na lógica do não questionamento, e na sua maioria por meio de uma postura passiva e receptiva. Tal postura, mais dócil, pode ser uma forma de se encaixar no espaço da escola, acobertando submissão e subordinação (Garcia, Cal, & Moraes, 2016). Portanto, grande é o desafio de romper com tais práticas tradicionais na busca por superar e transformar o espaço escolar num espaço aberto a todos, de tal forma que democratize as aprendizagens e efetive o direito de aprender com qualidade, rompendo assim com a cultura do fracasso e instaurando um espaço escolar vivo, prazeroso, de pensamento e ação inclusivos.

Satisfação e bem-estar na escola

Em geral, as meninas/adolescentes afirmaram que gostam da escola em que estudam e dos profissionais que nela atuam, principalmente dos professores, com quem podem contar. Quando apresentadas à frase “normalmente gosto de ir à escola”, 81,6% responderam que sim e apenas 10,5% disseram que não. Da mesma forma, 81,8% afirmaram que gostam da escola em que estudam e 81,9% se sentem bem quando estão na escola.

As meninas de 11 a 14 anos são relativamente menos positivas em relação ao que sentem pela escola: aproximadamente 15% delas não gostam de ir para a escola e/ou não gostam da escola em que estudam. Esse percentual fica acima da média geral, principalmente no grupo com menor idade (6 a 10 anos), que ficou em torno de 5%.

Embora os resultados indiquem que um pouco mais de 10% das meninas não se sentem bem na escola, sendo que as meninas na faixa de 11 a 14 anos são as que apresentam maior insatisfação com a escola, é inegável que as meninas pesquisadas encontram um gosto pelo ambiente escolar. Dessa forma, há uma potência desse ambiente para oportunizar equidades, tanto de gênero, quanto das aprendizagens, uma vez que o bem-estar na escola percebido pelas meninas é um aliado para construir e aprender relações de gênero mais equânimes e parceiras com vistas a desordenar as insistentes representações do ser mulher que as coloca em situações de inferioridade múltiplas.

A percepção de bem-estar na escola na dimensão de gosto pelo ambiente, conforme asseverado pelas meninas, conflui, logo, para qualificar o sentido desta instituição como locus de garantia do direito à aprendizagem e da equidade de gênero.

Enquanto uma categoria histórica, o gênero é construído nas diversas esferas sociais, como afirma Scott (1990), sendo a escola, neste estudo, lugar que produz bem-estar e que, mesmo com indicadores de desigualdades de gênero, torna-se um dispositivo que pode produzir outro saber sobre a mulher nesta sociedade ainda com tantas disparidades entre homem e mulher.

No que se refere à relação com os profissionais e colegas da escola, a maioria das meninas/adolescentes (78,8%) disse que gosta de seus professores e pode contar com eles (77,2%). O número de meninas que concordaram com a afirmativa de que podem contar com outros profissionais da escola (orientador, coordenador) foi um pouco menor, 69,6%.

Já os colegas da escola parecem bem menos confiáveis aos olhos das meninas pesquisadas; 29,4% delas discordam da assertiva de que confiam nos seus pares. Para outras 59,8%, eles são confiáveis. Embora menor, quando comparado à confiança dispensada ao corpo técnico da escola, esse percentual ainda reflete a percepção da maioria.

É expressiva a percepção das meninas sobre gostar e contar com os seus professores. Tal contentamento é produtor de bem-estar psicológico na escola e facilitador na construção de outras relações sociais que proporcionem práticas que garantam a aprendizagem de todas e, ao mesmo tempo, um olhar equânime sobre ser mulher no mundo atual. De todo modo, há um alerta para educadores e pesquisadores quanto à faixa etária de 11 a 14 anos, a qual apresentou uma avaliação menos satisfatória sobre a escola e sobre a relação que as meninas têm com as pessoas

nesse ambiente, sejam profissionais ou colegas de classe, uma vez que se sentem menos à vontade (27,8%) que as de 6 a 10 anos (14,1%).

De acordo com as entrevistadas, a maioria delas sente-se à vontade para expressar suas ideias dentro de sala de aula (72,3%). De todo modo, é significativo o número de meninas que não se sentem à vontade para tanto (21,2%). Não se sabe, no entanto, se esse desconforto é decorrente de características pessoais, ou se diz respeito à dinâmica de ensino desenvolvida nos contextos escolares, ou se há acontecimentos velados no contexto educativo. De toda maneira, exige-se dos profissionais desse universo um olhar e uma escuta sensível a essas demandas e ao que elas significam e repercutem no processo de ensino e aprendizagem e, consequentemente, na qualidade da educação.

Apesar de, no contexto geral da pesquisa, as meninas terem indicado bem-estar com a escola e, em particular, com os professores, há de se ter um olhar cirúrgico e investigativo, acima de tudo, com a faixa etária de 11 a 14 anos, que apresentou maior descontentamento com a escola e com os profissionais que nela atuam. Nesta faixa etária, período da adolescência, marcado pela puberdade, ocorrem intensas mudanças biológicas, como alterações significativas em todo o corpo, concomitantemente a novos interesses sociais e novas relações, que passam a habitar o imaginário dessas meninas e que necessitam ser abrigadas no cotidiano escolar, para que a aprendizagem não seja diminuída, tampouco o gosto e o interesse pelo ambiente escolar.

Intervenções de professores, como promovidas por Izoton (2015), podem favorecer o diálogo e a reflexão sobre diversas questões que permeiam o universo da infância e da adolescência, em especial sobre gênero e sexualidade, colaborando para a construção de novas percepções acerca do ser menino e menina, com interpretações mais amplas, capazes de abarcar os diversos sujeitos.

Considerações finais

A análise interpretativa dos dados desta pesquisa permitiu aprofundar e avançar em uma reflexão no sentido de trazer mais elementos para a sociedade, na perspectiva da promoção dos direitos das meninas, a partir de uma escuta sensível que oportunize políticas públicas que deem a elas a possibilidade de construir, desde a infância, um espaço efetivo na sociedade. O foco foi o contexto educativo, voltado à percepção ou não de uma situação de discriminação de gênero, o que deve manter vivos questionamentos que direcionem a ações efetivas, tais como: É importante pensar sobre como são as relações dos atores da cena áulica? O que isso representa no imaginário da criança e como repercute em suas ações? E a questão de reprovação e aprovação, o que elas dizem e o que realmente se passa? Como fica a frequência nesse contexto? Como essas variáveis são vistas, se articulam ou não? Uma vez que a escola é um espaço de aprendizagens, por que a tolerância com o fracasso escolar? A inclusão tem sido pensada no sentido amplo e abrangente do universo escolar?

Precisa-se realmente efetivar esses estudos e manter viva essa discussão no contexto educativo. Afinal, mesmo tendo um alto índice de frequência das meninas nas escolas, ao longo dos anos a cultura do fracasso tem atingido mais as meninas que os meninos. Nesse sentido, vale a pena manter e ressaltar a questão de gênero nas discussões e construções acadêmicas, uma vez que são relações que estruturam e contribuem na definição das escolhas e na construção de um espaço. Evitar esse tema pode sim se constituir em negação, que representa uma fuga ilegítima. Ao mesmo tempo essa atitude, ou discriminação velada, camufla a realidade no sentido de manter a aparência necessária, e assim, impede que a mulher nesse lugar seja empoderada e, consequentemente, emancipada.

Portanto, a educação, em sentido amplo e irrestrito, a saber, a da vida e a da escola, precisa encarar com lucidez esta faceta das relações de gênero que extrapola os muros escolares, mas que se presentifica no interior da escola com força e com efeitos perversos sobre as aprendizagens de meninos e meninas, o que tem sido visto claramente na educação brasileira, mas não tem sido levado com uma causa real por meio de políticas públicas eficazes e contínuas. É preciso romper com ações que velam a realidade, mascaram e negam a inclusão no sentido amplo da palavra.

Dessa forma, além de abrir um espaço para a fala das meninas, o grande desafio é sensibilizar-se com essas escutas, de forma a oferecer ações efetivas e condições reais que permitam às meninas, desde a infância, construírem uma postura que lhes dê condições para assumirem com coragem, lucidez e paixão um lugar de responsabilidade para construir, em harmonia ou não com os outros, uma sociedade mais justa e democrática. Ou seja, uma postura que garanta as mesmas condições para todos, em qualquer área da sociedade, caracterizada primeiramente pela democratização das aprendizagens, uma vez que se entende o ser humano como marcado pela capacidade de aprender que lhe permite agir sobre o mundo com mais eficácia.

Referências

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Recebido: 18 de Dezembro de 2018; Aceito: 28 de Maio de 2022

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