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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.23 no.3 Caxias do Sul  2018  Epub 29-Jul-2019

https://doi.org/10.18226/21784612.v23.n3.1 

Artigos

O homem como ser-no-mundo: repercussões pedagógicas da analítica existencial de Ser e tempo

The man as being-in-the-world: pedagogical repercuss ions of the existential analytic in being and time

Wanderley José Ferreira Júnior* 

*Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor de Filosofia na Universidade Federal de Goiás (UFG). : wanderleyf4@gmail.com


Resumo

O texto trata da exposição de alguns aspectos básicos da analítica existencial realizada por Martin Heidegger na obra Ser e tempo. O ponto de partida é o curso dado no semestre de verão de 1923: Hermenêutica da facticidade, no qual o filósofo antecipa muitas das descrições fenomenológicas presentes na analítica existencial de Ser e tempo. Em seguida, explicitam-se as estruturas ontológicas do homem como ser-aí (Dasein) cuja constituição fundamental é ser-no- mundo, analisando as possíveis repercussões no campo da educação.

Palavras-chave:  Filosofia; Fenomenologia; Hermenêutica; Educação

Abstract

Exposition of some basic aspects of existential analysis performed by Martin Heidegger in Being and time work. Our starting point is the summer semester of 1923: Hermeneutics of facticity in which the philosopher anticipates many of the phenomenological descriptions provided in the existential analytic of Being and time. Then explains to the ontological structure of man as being-there (Dasein) whose ontological constitution is being in the world, analyzing the possible repercussions in the field of education.

Keywords:  Philosophy; Phenomenology; Hermeneutics; Education

Introdução

Considerando os novos significados que noções tais como: homem, mundo e cuidado adquirem na analítica existencial realizada por Heidegger em Ser e tempo (1927), vamos apontar para algumas possibilidades de ressignificação do próprio ato de educar e dos objetivos e estratégias de aprendizagem a serem desenvolvidas em nossa práxis pedagógica.

Ao investigar algumas das implicações pedagógicas da analítica existencial de Ser e tempo, temos plena consciência de que abordaremos questões que, além de não terem sido explicitamente abordadas por Heidegger ao longo de seu itinerário filosófico, serão tratadas aqui, no horizonte teórico de uma obra muito citada e referenciada, mas muito malcompreendida em suas motivações, objetivos e consequências.

Certamente, não temos a pretensão de cumprir a exigência hermenêutica colocada pelo próprio Heidegger a todo intérprete, ou seja, a de tornar ainda maior o que já existe de grande nos grandes pensadores, compreendendo-os melhor do que eles mesmos, esperamos, pelo menos, não desvirtuar o pensamento heideggeriano. Entretanto, ao tematizar algumas implicações e consequências pedagógicas de conceitos-chaves de Ser e tempo como: homem, mundo e cuidado, estaremos contribuindo para jogar luz sobre uma questão fundamental que sempre acompanhou a filosofia desde sua origem grega, particularmente com Platão, ou seja, a pergunta por seu caráter pedagógico.

Nosso ponto de partida será a nova concepção de homem como Dasein (ser-aí),1 cuja constituição ontológica fundamental é ser-no-mundo. A analítica existencial de Ser e tempo desvela o homem como um ente, entre outros, aí jogado no mundo e que tem um modo de ser próprio, ele é um existente, um ser-aí (Dasein) que se faz no e para o mundo. Não se trata, aqui, segundo o próprio Heidegger, apenas de fixar esse ente, em particular, como ente privilegiado a ser primeiramente interrogado na questão do ser, mas de assegurar “uma apropriação e asseguramento explícitos do modo devido de se aproximar desse ente [...] como é que esse ente, o Dasein, haverá de se tornar acessível e deverá ser encarado numa compreensão interpretativa” (Heidegger, 1964, § 5, p. 42).

É importante ressaltar, desde já, que o homem como ser-aí não pode ser confundido com algo meramente presente [Vorhanden], um sujeito psicológico ou uma subjetividade debatendo-se dentro de um mundo objetivado. Ele é um ser-no-mundo. O modo de ser do homem no mundo é o íntimo permanecer junto a [...] o demorar-se junto de alguma coisa, o morar em..., o ocupar-se com as coisas, o preocupar-se com os outros e até mesmo correr o risco de perder-se numa existência inautêntica. (HEIDEGGER, 1964, § 12).

Certamente podemos tirar algumas consequências pedagógicas dessa nova concepção de homem como ser-aí, cuja constituição fundamental é ser-no-mundo e que coloca sob suspeição as noções de homem e de mundo subjacentes a várias teorias pedagógicas. Na perspectiva da analítica existencial, o mundo não é uma coisa, res, como postulava a ontologia cartesiana, que se oporia a um suposto sujeito neutro desercarnado – o res extensa. O mundo é um existencial, um constitutivo da estrutura ontológica do homem como ser-no-mundo, não é um lugar geográfico, mas um fenômeno constitutivo do ser do existente humano.

Heidegger assume, como ponto de partida da analítica existencial, a impossibilidade de explicitar a relação entre homem mundo através dos polos interioridade e exterioridade, sujeito e objeto, tal como a teoria do conhecimento e a filosofia da consciência faziam. Existiria, pois, um nexo necessário e existencial entre mundo e homem que impediria que um seja sem o outro. E visto que a educação constitui-se em elemento e mediação necessária da relação entre homem e mundo, podemos perguntar: Quais seriam as consequências pedagógicas dessa nova concepção de mundo como fenômeno e um complexo de significações constituído pelo próprio homem?

Outra condição/possibilidade do ser humano desvelada na analítica existencial de Ser e tempo que pode trazer algumas consequências pedagógicas é o fato de, originariamente, o homem encontrar-se afundado na ignorância de suas possibilidades mais próprias – entre elas a própria morte – vegetando sob a ditadura do impessoal (Das man).2 Na maioria das vezes e antes de tudo, o ser-aí que é o homem é absorvido por seu mundo. O mundo e os outros, ao absorverem o ser do homem, determinando como e quando sentir, como e quando compreender, como e quando comunicar, tornam- se sujeitos sem sujeito, um indeterminado se. O impessoal é aquele sujeito que responde pelo quem do homem na cotidianidade. Um sujeito que não é ninguém, mas que é todo mundo, dirige e determina o ser-aí em sua cotidianidade, estabelecendo, como e quando sentir, como e quando compreender, como e quando comunicar, retirando-lhe a responsabilidade por suas escolhas. Ora, uma das tarefas da educação seria, pois, libertar o ser humano dessa ditadura do impessoal, fazendo com ele se responsabilizasse por suas escolhas e tivesse consciência de suas possibilidades mais próprias, assumindo como ser de projeto, que não é nada de pronto e acabado, mas que tende, necessariamente, a ser.

Cabe perguntar: A educação pode contribuir para a passagem do anonimato de uma existência inautêntica sob a ditadura do impessoal a uma existência autêntica, na qual professor e aluno assumam suas possibilidades mais próprias?

A noção de cuidado é outro conceito ressignificado pela analítica existencial de Ser e tempo constituindo-se uma dimensão importante no âmbito da formação humana, na medida em que aponta para um processo de conquista da autonomia, da autenticidade e singularização do ser-aí que é o homem, meta de todo processo pedagógico autêntico. O fato é que a noção de cuidado – como conjunto de ocupações com as coisas e preocupações com os outros – se torna, cada vez mais, um conceito-chave em diversas áreas do conhecimento, da política, da ética, da saúde e da educação. Em sua cotidianidade, o homem vive formas deficientes de ocupação e preocupação – o ser, por um outro, contra outro, sem os outros; o passar ao lado de outro, o não se sentir tocado pelos outros. Até que ponto a educação pode ajudar o homem a superar essas formas deficientes de cuidado?

Mas será que essa pré-compreensão ontológica, como senso comum, no qual nos movemos desde sempre e que nos dispensa de pensar, sentir e agir por nós mesmos pode ser superado apenas por uma decisão pessoal ou individual? Ou seria necessária uma espécie de Paideia para ser operada a passagem da existência inautêntica para a existência autêntica?

Não podemos negligenciar o fato de que, em Ser e tempo, se percebe certo decisionismo que inviabilizaria qualquer tentativa de estabelecer uma ética, ou uma política ou uma pedagogia capaz de operar essa passagem da banalidade da existência cotidiana para uma forma de ser e estar-no-mundo que coloca em questão o ser das coisas e nosso próprio ser. Contudo, não é fruto de nossa vontade/decisão o fato de nos encontrarmos, desde sempre, sob a impessoalidade de uma existência frívola e vazia de sentido, que segue o que todo mundo pensa e faz, mas depende de nós aceitar ou não uma existência inautêntica.

Cabe perguntar: O que mudaria em nossa práxis docente e na compreensão de nós mesmos e do próprio ato de educar, se considerarmos que o homem como ser-no-mundo mantém, primeiramente, uma relação afetiva com o mundo, não cognitiva? Ou seja, primeiro sentimos e nos descobrimos em um mundo já dado e aprovado; depois estabelecemos uma relação cognitivo-conceitual com ele. Logicamente isso exige que repensemos alguns modelos teóricos que pretendem estabelecer os objetivos, as competências e as habilidades a serem desenvolvidos no processo de formação humana.

Tomando tais questões como fios condutores, em um primeiro momento, vamos retomar e explicitar as noções de homem, mundo e cuidado na analítica existencial realizada por Heidegger em Ser e tempo. Em um segundo momento, vamos tentar apontar para algumas alternativas que a analítica existencial de Ser e tempo poderia abrir à educação.

Homem e mundo no horizonte da analítica existencial

Em Hermenêutica da facticidade, curso dado no semestre de verão de 1923, Heidegger já antecipa muitas das descrições presentes na analítica existencial de Ser e tempo (1927). Daí a importância desse curso para se compreender como Ser e tempo é, na verdade, a consumação de um processo perpassado de adesões e recusas e que teria começado muitos anos antes. (HEIDEGGER, 2012, p. 22). Na perspectiva da ontologia fundamental de Ser e tempo, a questão-guia da filosofia, a questão sobre o sentido e a verdade do ser, nos limites do tempo, impõe a realização de duas tarefas: uma analítico- existencial (descrição fenomenológica) dos modos de ser originários do Dasein (ser-aí)3 como ser-no-mundo; e uma destruição da história da ontologia tradicional alicerçada no paradigma da subjetividade e na dicotomia sujeito/ objeto, consciência/mundo. A realização dessas tarefas seria a condição de possibilidade para a re-colocação da questão do ser (seinsfrage) nos limites da compreensão finita do ser-aí que é o homem, que não pode ser confundido com algo meramente presente [Vorhanden], um sujeito psicológico ou uma subjetividade debatendo-se dentro de um mundo objetivado. O ser-aí (Dasein) é uma existência4 que se efetiva em comunhão e em relação ao mundo dos entes. (HEIDEGGER, 1964).

O mundo não é simplesmente um conjunto de coisas físicas e espaciais; ele é um produto, um correlato da intencionalidade da consciência e das relações que o ser-aí mantém com os outros e com as coisas. Os juízos verdadeiros ou falsos acerca do mundo exterior, ou de qualquer nível de objetificação da realidade externa, só são possíveis porque o próprio ser-aí já se encontra originariamente na verdade e na não verdade de uma existência autêntica ou inautêntica. Mas, afinal, o que ou quem é o homem como ser- aí cuja constituição ontológica fundamental é ser-no-mundo?

O homem: um ser-aí jogado no mundo

Para a analítica existencial não se trata apenas de fixar esse homem, em particular, como ente privilegiado a ser primeiramente interrogado na questão do ser, mas de assegurar “uma apropriação e asseguramento explícitos do modo devido de se aproximar desse ente. Já se discutiu que ente deve assumir o papel principal na questão do Ser. Mas como é que esse ente, o ser-aí (Dasein), haverá de se tornar acessível e deverá ser encarado numa compreensão interpretativa”. (HEIDEGGER, 1964, p. 42) .

O homem, sendo ser-aí, é esse ente; portanto, suas estruturas ontológicas devem ser explicitadas fenomenologicamente, para que a verdade do ser possa desvelar-se na compreensão finita e cotidiana que temos do ser. A tarefa consiste, pois, em garantir um acesso ao ser do homem que compreende pre-ontologicamente o ser em seu sendo. É certo que o homem possui uma compreensão de si mesmo, contudo, essa compreensão pré- ontológica não é um fio condutor adequado ao seu ser e ao sentido do ser em geral. Devido ao modo de ser que lhe é constitutivo (ser-no-mundo), o homem tende a compreender seu próprio ser a partir daquele ente com o qual ele se relaciona de modo essencial. Primeira e continuamente, esse ente é o mundo.

A fenomenologia, vista como um deixar e fazer ver o que se mostra tal como se mostra a partir de si mesmo, torna-se o único acesso viável ao ser do homem em sua medianidade cotidiana, desvelando a relação ambígua que ele mantém com o ser.

As modalidades de acesso e interpretação devem ser escolhidas de modo que esse ente possa mostrar-se em si mesmo e por si mesmo (naquilo que é e como é). Elas têm de mostrar o Dasein em sua cotidianidade mediana, tal como ele é antes de tudo e na maioria das vezes. Da cotidianidade não se devem extrair estruturas ocasionais e acidentais, mas sim estruturas essenciais. Essenciais são estruturas que se mantêm ontologicamente determinadas em todo modo de ser de fato do Dasein. (HEIDEGGER, § 5, 1964, p. 44).

Os parágrafos do 9 ao 11 de Ser e tempo expõem a tarefa de uma análise preparatória do homem como ser-aí. O primeiro ponto a ser estabelecido é que o ente a ser analisado somos nós mesmos. No existir do homem como ser-aí, o ser está sempre em jogo, encontrando-se velado/ oculto na medianidade cotidiana e esquecido na história da filosofia. Se há uma quididade (essentia) do homem, ela deve ser concebida a partir de sua existência, que enquanto é modo de ser específico do homem, não pode ser confundida com a existentia que, se opõe à essentia. No âmbito da ontologia tradicional, a existência é a essência posta fora de suas causas, designa o fato de ser, a mera efetividade, o ser simplesmente dado. Ora, ser simplesmente dado não é o modo de ser do ente que tem o caráter do ser-aí que é o homem. É dizer que o homem não é um ser simplesmente dado, mas um existente, implica em dizer que ele não pode ser apreendido pela via da representação e nem possui propriedades dadas. Suas características constitutivas são sempre modos possíveis de ser. O ser do homem impõe que o sentido do ser, em geral, e seu próprio ser, só pode ser atingido ou desvelado a partir da compreensão cotidiana do ser, na qual o homem já se move desde sempre e que, na maioria das vezes, vela o sentido do ser sob a ditadura do impessoal.

O fato é que a relação do homem com o ser significa ser existência. Ser um constante arrancamento para aquilo que ele ainda não é. Um sair para fora de si mesmo que abre a possibilidade de perda e do velamento do ser na articulação com os entes, mas que também abre a possibilidade de iluminação do ser dos entes a partir de tal velamento. Contra a concepção metafísica do homem como animal racional, sujeito do conhecimento que concebe o ser dos entes a partir dos princípios da razão, Heidegger, já em 1923, opõe uma hermenêutica da facticidade da existência finita. Essa hermenêutica coloca-nos não diante de um sujeito puro desencarnado que observa e objetifica o ser das coisas pela via da representação e do cálculo, mas diante da existência humana que se pergunta por seu caráter de ser com o objetivo de despertar de si para si mesma.

Essa interpretação da existência fática toma, como ponto de partida, não a autoevidencia de um sujeito puro para si mesmo mediante uma intuição intelectual, mas a facticidade da existência finita em sua medianidade cotidiana. Para Heidegger esse âmbito da compreensibilidade fática é algo que nunca se poderá medir ou calcular de antemão. A forma que esse âmbito de compreensão tem de operar e se tornar efetivo não se pode normatizar pela compreensão e comunicação de enunciados matemáticos. Nesse sentido, dirá Heidegger (2012 , p. 19), a existência nunca será objeto, jamais poderá ser objetificada pelo olhar objetificante da ciência.

A existência não é uma coisa, um pedaço de madeira, tampouco é algo como uma planta, não consiste em vivências. A existência não pode ser identificada com o sujeito (eu) ante o objeto (não eu). Ela constitui o modo de ser específico de determinado ente, que, na medida em que é aí simplesmente jogado no mundo, não possui o modo de ser do objeto (Gegenstand), de algo presente/subsistente. A existência é, sendo a existência de cada um. Isso faz com que ela seja determinada pelo seu hoje, pela atualidade de suas relações hermenêuticas com o mundo, enfim, por suas condições de lançamento num determinado complexo de possibilidades e remissões que constitui seu mundo circundante (Umwelt). (HEIDEGGER, 2012, p. 47).

Originariamente a existência encontra-se imersa na publicidade (Öffentlichkeit) do hoje. Esse caráter público realiza-se de determinadas formas de falar sobre, em determinados modos de ter opinião sobre... O falar recai sobre toda classe de coisas e pode versar acerca daquilo que não está tão distante da própria existência, que é ela mesma. É, no âmbito desse falatório (Gerede), que se define, segundo Heidegger, o caráter público da existência inautêntica. É através desse falatório que a existência é convertida em objeto para si. (HEIDEGGER, 2012, p. 47).

Na medida em que o homem como ser-aí circunscreve, pela compreensão do ser, a relação do sujeito com os objetos do conhecimento, ele manteria uma relação pré-reflexiva com o mundo, anteposta ao Cogito. O homem é, antes de tudo, um ser-no-mundo, expressão que agora deve ser analisada, antes de explicitarmos seus momentos constitutivos: a mundanidade do mundo e o ser do ente intramundano. Segundo Heidegger, a constituição apriorística do homem, que já predomina a partir da análise do seu modo de ser cotidiano, é o ser-no-mundo. No §12 de Ser e tempo, o filósofo expõe uma caracterização prévia do ser-no-mundo a partir do ser-em como tal. “A expressão composta Ser-no-mundo mostra que pretende referir-se a um fenômeno de unidade [...]. A impossibilidade de dissolvê-la em elementos não exclui a multiplicidade dos momentos estruturais que compõem esta constituição”. (HEIDEGGER, 1964, p. 90-91).

Esse achado fenomenal que é o ser-no-mundo exige que sejam explicitados: a mundanidade do mundo como tal; o quem do ser-aí que é o homem no modo de sua cotidianidade mediana, imerso na ditadura do impessoal, e os modos de ser originários que constituem a abertura do ser- no-mundo, e que são: a disposição, a compreensão e o discurso. (HEIDEGGER, 1964, p. 72).

Como objeto primeiro de sua análise, Heidegger toma o ser-em como tal. O ser-em um mundo não significa o estar presente de uma coisa dentro da outra. Ser-no-mundo não quer dizer que o homem como ser-aí seja um ente simplesmente dado (Vorhanden) dentro do mundo. É nesse sentido que o homem sendo ser-aí só existe no, para e com o mundo. De alguma forma, somos o mundo no qual sempre já nos encontramos. As coisas não existem, elas simplesmente são, não se comportam em relação às outras coisas, elas não possuem uma relação de familiaridade entre si. Devemos, pois, distinguir a proximidade espacial do estar próximo das coisas da proximidade do homem com o mundo e as coisas, que é uma familiaridade.

O ser-em significa uma constituição ontológica do Dasein e é um existencial. Com ele não se pode pensar em algo simplesmente dado de uma coisa corporal dentro de um ente simplesmente dado (o mundo). O em não significa uma relação espacial dessa espécie. O em indica morar, habitar, deter-se. (HEIDEGGER, 1964, p. 92).

A partir desse horizonte do mundo instaurado pela existência do ser-aí (que é o homem), os entes simplesmente dados poderão vir ao seu encontro. Assim, o homem, em todos os seus modos de ser, como educador ou educando, já está no mundo lá fora. E, para que ele realize certas possibilidades de ser, é necessário que antes ele já esteja no mundo. O que nos é dado não são coisas presentes, mas os, utensílios. As coisas se oferecem para mim como instrumentos, como sendo para meu uso e, somente na medida em que eu me sirvo delas, é que o mundo adquire sentido para mim. As diferentes modalidades do ser-no-mundo não se reduzem às percepções ou aos conhecimentos que pressupõem uma dicotomia entre sujeito e objeto.

O mundo dá-se para mim, e minha consciência dá-se ao mundo, como um ter-que-fazer-algo, um recolocar algo, um empregar algo, um empeender algo. Para essas modalidades de relacionamento, Heidegger introduz o termo cuidado (Cura).5 O homem como ser-junto ao mundo e um ser-com os outros, não é um dar-se em um conjunto de coisas que ocorrem. O ser- junto ao mundo pressupõe um encontro, no qual o mundo é descoberto na presença que eclode.

Na Carta sobre o humanismo (1979), Heidegger retoma a expressão ser-no-mundo para explicar seu verdadeiro sentido no contexto da analítica existencial. O filósofo ressalta que afirmar o ser-no-mundo como constituição ontológico-fundamental da humanitas do homo humanus não significa afirmar que o homem é apenas um ser mundano, no sentido cristão, ou seja, um ser sem transcendência, afundado na imediatez e na finitude do dado. Para o filósofo, o que sempre foi pensado com a palavra transcendente foi o ente suprassensível, que vale como ente supremo, causa primeira de todos os outros entes.

“Mundo”, todavia, na expressão “ser-no-mundo”, não significa, de maneira alguma, o ente terreno, à diferença do celeste, nem mesmo o “mundano”, à diferença do “espiritual”. “Mundo”, naquela expressão, não significa, de modo algum, um ente e nenhum âmbito do ente, mas a abertura do ser. O homem é e é homem enquanto é o ec-sistente [...]. “Mundo” é a clareira do ser na qual o homem penetrou a partir da condição de ser-jogado de sua essência. O “ser-no-mundo nomeia a essência da ec-sistência, com vistas à dimensão iluminada, desde a qual desdobra seu ser o “ec” da ec-sistência. (HEIDEGGER, 1979, p. 167-168).

Contudo, o homem pode ser apreendido como algo simplesmente dado, desde que se despreze a constituição existencial de seu ser-em. Esse ser- simplesmente-dado do homem exprime um termo técnico na filosofia de Heidegger: a facticidade. Através da facticidade, o ser-no-mundo do homem já se fragmentou em diversos modos de ser-em. Heidegger exemplifica a multiplicidade desses modos de ser-em através da seguinte enumeração:

Ter que fazer algo com alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar e cuidar de alguma coisa, aliciar alguma cisa, fazer desaparecer ou deixar perder-se em alguma coisa, empreender, impor, pesquisar, interrogar, considerar, discutir, determinar... Esses modos de ser-em possuem o modo de ser da ocupação... (HEIDEGGER, 1964, p. 95).

O fato de o homem ser um ente primeiramente ocupado e preocupado com o mundo e com os outros significa que o ser do homem deve se tornar visível em si mesmo como cura (cuidado).

Esta expressão Cura nada tem a ver com as penas, tristezas ou preocupações da vida, que do ponto de vista ôntico, podem ser encontradas em qualquer Dasein. Tudo isso, assim como a jovialidade e a despreocupação só são onticamente possíveis, porque ontologicamente o Dasein é cura (Cuidado). (HEIDEGGER, 1964, p. 95).

Através da estrutura unificante do cuidado (Sorge), os entes naturais e os instrumentos dão-se ao homem como utensílios que são manipulados, e, nessa manipulação do homem com os entes, esses são velados ou desvelados em seu ser, e o mundo emerge como algo prenhe de significação para o homem. O mundo resplandece, assim, na conexão da totalidade dos utensílios, que se apoiam num último.

São as possibilidades do ser do homem que conferem sentido às coisas, que, na totalidade de suas significações, constituem o fenômeno do mundo. Mas o ser-no-mundo não se resume no ser-em; ele é também um ser-com (Mitsein)6 os outros existentes. Os outros não são para mim meros objetos de ocupação, mas de solicitude, preocupação. Ao homem pertence o ser- com e, somente sendo com os outros, numa verdadeira comunidade do povo, o homem pode ascender, mediante um salto, à verdadeira existência autêntica.

O mundo do Dasein libera entes que não apenas se distinguem dos instrumentos e das coisas, mas que, de acordo com seu modo de ser de Dasein, são e estão no mundo em que vêm ao encontro segundo o modo de Ser-no-mundo. Não são algo simplesmente dado e nem algo à mão. São como o próprio Dasein liberador – são também co-presenças. (HEIDEGGER, 1964, p. 169).

Os outros não são os demais fora de meu eu isolado. Os outros são aqueles dos quais ninguém se diferencia, entre os quais também se está. Assim, o mundo do homem é sempre um mundo compartilhado com os outros, que, na maioria das vezes, assume o caráter de uma presença indeterminada sem sujeito. Um sujeito sem sujeito que nos tiraniza e nivela todas as possibilidades de nossa existência numa mediocridade que nos tira toda responsabilidade da escolha.

Somente o homem pode velar e desvelar o ser dos entes, trazendo a verdade ao mundo, servindo-se dos instrumentos disponíveis e sendo solícito com os outros. Assim, o mundo (como totalidade de significações que constituem o complexo das relações possíveis do homem) assume uma dimensão ontológico-básica – o mundo torna-se o lugar para o desvelamento do ente em sua verdade, na qual ele já se encontra desde sempre.

O mundo revela-se, pois, como fenômeno na relação primordial do homem com entes intramundanos e não mais através de uma representação abstrata elaborada pelo projeto matemático de natureza que constitui a essência da ciência moderna. Mundo, ser e verdade são projetos do homem enquanto é visto como existência finita que compreende o ser, habita o mundo e desvela a verdade dos entes. Contudo, na maioria das vezes e antes de tudo, o homem encontra-se imerso na ditadura do impessoal, dissimulando o sentido do ser em geral na manipulação com os entes intramundanos. Como pura possibilidade de abertura sobre o ser, como ente que se define em relação ao seu poder-ser, o homem pode escolher ou deixar que escolham por ele, pode torna-se uma clareira para o desvelamento do ser ou uma prisão, pode ser luz ou sombra, enfim, pode ser – ou não ser – sob a ditadura do impessoal.

O quem do existente humano na cotidianidade: o impessoal

A análise ontológica do fenômeno mundo não deixou suficientemente claro outro momento constitutivo do ser-no-mundo: o ser-com imerso em sua cotidianidade e sob o caráter do impessoal (Man). A interpretação ontológico-fenomenológica do mundo privilegiou o manual intramundano, a relação na qual o homem confere um para quê aos utensílios, descobrindo o mundo no que ele tem de disponível. O ser-com é outro momento constitutivo do ser-no-mundo e que, na maioria das vezes e antes de tudo, assume o caráter do impessoal. Heidegger toma como ponto de partida da análise do quem do homem na cotidianidade, as ocupações do homem com o mundo circundante (Umwelt). Nessas ocupações, explicita-se o que se faz com, contra ou a favor dos outros no cuidado de uma diferença com os outros. Procuramos sempre nivelar essas diferenças, ou estando aquem dos outros, ou se esforçando para chegar até eles, ou ainda, na precedência do homem sobre os outros para subjugá-los.

Todas essas formas de relação com os outros, esses modos de ser, são determinados por um quem que se move como sujeito indeterminado na cotidianidade do homem como ser-aí. Ora, com a descrição das estruturas ontológicas do homem, ficou explícito que o quem do homem sou eu mesmo. O ser-aí (que é o homem) é o ente que sempre eu mesmo sou, o ser é sempre meu. Essa determinação indica uma determinação ontológica. Contudo, pode ser que o quem não seja sempre eu mesmo, embora conserve o caráter de sujeito. Um eu que não é o meu nem o dos outros, mas o eu de todos nós. Heidegger pretende explicitar com o fenômeno do quem do homem, o eu que está por trás dos seus modos de ser cotidianos. Heidegger coloca-nos a inquietante questão: “E se a constituição de ser sempre eu mesmo [...] fosse uma razão para que ele, na maior parte das vezes e antes de tudo, não ser ele próprio?” (HEIDEGGER, 1964). Não existe um eu isolado dos outros eus e do mundo. O homem é uma copresença que se constitui no comércio com os entes disponíveis e que, na maioria das vezes e antes de tudo, perde-se nessa articulação com os entes intramundanos. Mesmo na relação com os instrumentos, utensílios disponíveis, o homem encontra- se com os outros sujeitos, na forma da finalidade, causa, etc.

Os outros que assim vêm ao encontro, no conjunto instrumental à mão no mundo circundante, não são algo acrescentado pelo pensamento a uma coisa simplesmente dada. Todas essas coisas vêm ao encontro a partir do mundo em que elas estão à mão para os outros. Esse mundo já é previamente o meu. O homem vem ao encontro de outro, não somente na forma dos entes que compõem o seu mundo, mas principal e diretamente, na forma de ser-com os outros, que não exclui, mas inclui o seu ser. (HEIDEGGER, 1964).

Os outros, diz Heidegger, não significa todo o restante dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria. Os outros são aqueles que, na maior parte das vezes, ninguém se diferencia propriamente, entre os quais também se está. Esse modo de ser-com os outros é uma determinação ontológica do Dasein. O mundo do ser-aí que é o homem, é um sendo compartilhado com os outros, que não são apreendidos previamente como objetos dados, ou como um outro posto por minha consciência, ou ainda, como estranho à minha subjetividade. Os outros me vêm ao encontro no fenômeno do mundo constituído no empenho do Dasein em suas ocupações cotidianas guiadas por uma circunvisão.

Nesse sentido, Heidegger afirma que “o ser-aí encontra a si mesmo naquilo que ele empreende, usa, espera, resguarda – no que está imediatamente à mão no mundo circundante, em sua ocupação.” (1964, p. 122). Contudo, o ente com o qual o homem como ser-aí comporta-se como um ser-com, não possui o modo de ser do instrumento à mão. Ele mesmo é um ser-aí em relação ao qual não se ocupa dele, preocupa-se.

O ocupar-se da alimentação e do vestuário, tratar do corpo doente... o ser, por outro ser, contra outro ser, sem os outros, o passar ao lado de outros, o não se sentir tocado pelos outros são modos possíveis de preocupação. Esses modos deficientes de ser-com, essa diferença, marcam a convivência cotidiana imediata com os outros. A evidência dessa convivência cotidiana desvia a interpretação ontológica para um entendimento imediato do ser dos outros, dessas copresenças que me vêm ao encontro como ser- simplesmente-dado de muitos sujeitos. Toda análise precedente deixa claro que primeiramente, a copresença dos outros vem ao encontro a priori do mundo compartilhado nas ocupações cotidianas do mundo circundante e nos modos da preocupação com os outros.

Nesse empenho do mundo das ocupações cotidianas, no ser-com os outros, o Dasein transforma-se naquilo que ele próprio não é. Assim, Heidegger coloca a seguinte questão: Quem assume o ser do Dasein como sujeito como convivência cotidiana? Esse quem é o impessoal, no qual o Dasein, antes de tudo e na maioria das vezes, encontra-se imerso. O homem tem o seu ser roubado pelos outros, enquanto um nós indeterminado dispõe sobre as possibilidades cotidianas de nosso modo de ser. (HEIDEGGER, 1964).

Mas os outros não são determinados. Qualquer outro pode representá- los. O decisivo é o domínio dos outros que, sem surpresas, é assumido sem que o homem se dê conta. O quem é neutro, o impessoal. Quando usamos os transportes coletivos, a imprensa, no convívio social, cada um de nós está submetido à ditadura do impessoal. Estamos diante de um mundo aprovado, no meio do qual lutamos para ser aceitos. O impessoal desenvolve sua própria ditadura nessa falta de surpresa e de possibilidade de contestação. Divertimo-nos, como impessoalmente se faz, lemos, vemos e julgamos a literatura e a arte como impessoalmente se faz, lê, vê e julga.

Nós nos retiramos das grandes multidões como impessoalmente se retira, achamos revoltante o que impessoalmente se acha revoltante. O impessoal que não é nada, mas que todos são, prescreve o modo de ser da cotidianidade. O ser-e-estar com os outros, na cotidianidade, promove a medianidade, que é o caráter existencial do impessoal. A medianidade determina o que é certo e o que é errado, o que se pode e o que se deve ousar, vigia e controla toda exceção que venha impor-se, até aniquilá-la no mundo do todos nós. (HEIDEGGER, 1964).

As repercussões pedagógicas da analítica existencial: a educação como processo de autoconstituição de si mesmo

As considerações precedentes nos autorizam a dizer que o ser-aí, que nós somos a cada momento, é anterior às dualidades sujeito-objeto, interior- exterior, Cogito-mundo. Homem e mundo não se opõem, não são exteriores um ao outro. O mundo é um constitutivo da estrutura ontológica do meu ser-aí; não há homem sem mundo nem mundo sem a presença humana. Originariamente, antes de pensar, sentir e dizer o mundo, o homem está aberto ao mundo através de vínculos originários que são de ordem afetiva e familiar.

Na medida em que o ser-no-mundo é um constitutivo do ser do homem, o mundo “ em tal expressão não significa um ente, tampouco um âmbito do ente, mas a abertura do ser. Mundo é a clareira do ser na qual o homem penetrou a partir da condição de ser-jogado simplesmente aí... Ora, tem consequências pedagógicas o fato de o homem não ser mais confundido com um sujeito puro desencarnado e de o mundo não ser concebido como uma coisa, uma res extensa, um espaço físico geográfico, mas como um existencial constitutivo da existência humana. Alguns parágrafos de Ser e tempo (HEIDEGGER, §19 a §21, 1964) mostram que essa nova abordagem do homem, como existência aí jogada no e para o mundo, tem como primeira consequência a desconstrução da ontologia cartesiana, particularmente de seu dualismo psicofísico (res cogitans versus res extensa), e da noção de mundo como res extensa, que ainda norteiam nossas práticas científico-pedagógicas.

Vimos que a analítica existencial do ser-aí que é o homem nos mostra que justamente por poder ser originariamente aberto no e para o mundo, o homem, na banalidade de sua existência cotidiana, está afundado na ditadura do impessoal – o quem do homem na banalidade de sua existência cotidiana. (HEIDEGGER, 1964, §25 a §27). Esse é o ponto de partida da analítica existencial e deveria ser o de qualquer processo de ensino e aprendizagem autêntico em nossas escolas: a existência cotidiana, na qual, antes de tudo e na maioria das vezes, nós, professores e alunos, conforme as demandas de um mundo aprovado, fazemos escolhas entre possibilidades e valores dados e aceitos sem questionamentos.

No impessoal, o Ser-aí age conforme atitudes prescritas para a gente. Assim, o indivíduo se vê abonado da tarefa de decidir por seus atos, pois, em cada comportamento, estaria encoberto por este modo existencial segundo o qual normalmente a gente procede, gregariamente a gente pensa, comumente a gente se educa. (KAHLMEYER-MERTENS, 2005, p. 142).

Esse sujeito, que é todo mundo, dirige e determina a existência humana em sua cotidianidade e estabelece como e quando sentir, compreender, comunicar, retirando-nos toda a responsabilidade por nossas escolhas. Ora, uma das tarefas da educação seria libertar o ser humano dessa ditadura do impessoal, fazendo-o se responsabilizar por suas escolhas e assumindo suas possibilidades mais próprias como ser de projeto lançado simplesmente aí, em meio a circunstâncias que não escolheu.

A passagem de uma existência inautêntica, governada pelo impessoal, para uma existência autêntica, na qual assumimos nossas possibilidades mais próprias – entre elas, a morte –, exigirá certa solidão que Heidegger situa na experiência originária da angústia. Essa solidão não é o isolar-se, fossilizando-se num eu diminuto. Mesmo porque, como foi dito, o homem sendo ser-no-mundo é e está originariamente comprometido com os entes e os outros, ou seja, o ser-com (Mitsein) é constitutivo de sua estrutura ontológica como ser-no-mundo e se dá na forma da solicitude, da preocupação para com o outro.

O mundo do Dasein libera entes que não apenas se distinguem dos instrumentos e das coisas, mas que, de acordo com seu modo de ser de Dasein, são e estão no mundo em que vêm ao encontro segundo o modo de Ser-no-mundo. Não são algo simplesmente dado e nem algo à mão. São como o próprio Dasein liberador – são também co-presenças. (HEIDEGGER, 1964, p. 169).

Somente sendo com os outros, numa verdadeira comunidade, é que a existência humana pode ascender, mediante um salto, à sua autenticidade ou propriedade. Esse é um momento de singularização, um ficar só a partir do qual todo homem se vê pela primeira vez na vizinhança do que há de essencial e digno de ser pensado em cada coisa. Somente assim ele poderá assumir-se como um ser de cuidado. O fato é que Ser e tempo, ao desvelar que o homem é um ser-no-mundo, ser de cuidado, exigiria, de certa forma, que a educação auxiliasse o indivíduo em seu processo de singularização, conduzindo-o à posse de suas possibilidades mais autênticas.

É importante observar que, ao desvelar o cuidado como um conjunto de ocupações com as coisas e preocupações com os outros, Heidegger coloca em pauta um conceito que, cada vez mais, assume importância em diversas áreas do conhecimento, da política, da ética, da saúde e da educação: a pedagogia do cuidado. Hoje se atribui muita importância à chamada pedagogia do cuidado, particularmente no campo das ciências da saúde e do meio ambiente. Ser por um outro, contra outro, sem os outros; o passar ao lado de outro, o não se sentir tocado pelos outros: todos esses são modos deficientes de preocupação, enfim, de cuidado consigo mesmo e com os outros. Esses modos deficientes de cuidado devem ser evitados num processo pedagógico que visa a libertar o existente humano desse estado de clausura e abafamento no qual tudo já parece decidido e explicado.

Nesse sentido, uma práxis docente – ou qualquer espécie de ação pedagógica que tome como referência a estrutura do cuidado – deve vivenciar uma genuína preocupação com o outro na relação pedagógica. O aluno não é mais concebido como uma coisa, uma entidade abstrata, um número com o qual se ocupa. Ele é um outro ser-aí com o qual ele deve se preocupar, ser solícito, na tentativa de arrancá-lo do anonimato de sua existência e, ao mesmo tempo, respeitá-lo em suas diferenças e singuralidade. Isso talvez exija, além de um professor, ou um mero repetidor e instrutor de técnicas e procedimentos em disciplinas específicas, um educador que passe, efetivamente, a se preocupar com seu aluno, ajudando-o a compreender e a assumir uma existência autêntica, singular, própria, mesmo sabendo que poderosas forças econômicas, valores sociais e morais impõem como norma a pura e simples adaptação.

Nesse processo de singularização, a distância entre professor e aluno diminui conforme ambos se reconhecem como seres de um projeto que se fazem a si mesmos mediante escolhas que são suas – e não impostas pela tradição ou por outros. A questão que se coloca aqui é: Qual seria o papel do professor/educador num processo pedagógico que visa a levar o aluno, através de uma escolha individual, a assumir-se como ser único e singular sem a tutela dos valores e comportamentos herdados de forma impessoal? Na realidade, o docente deve ajudar o aluno a tornar-se ciente de que deve assumir-se como ser de projeto, que se faz mediante escolhas livres de qualquer direcionamento ou coerção. Aqui, o professor deixa de ser um instrutor (ou repassador de conhecimentos e conteúdos prontos) e se torna um companheiro nesse processo de singularização do aluno e de si mesmo em direção às suas possibilidades mais autênticas.

Ainda que isso não esteja explícito em Ser e tempo, para Heidegger, a verdadeira Paideia (formação) não significa apenas a transmissão de conteúdos específicos com a utilização de procedimentos e recursos didáticos próprios; ela deve esclarecer o próprio significado do ensinar e do aprender. Isso exigirá um trabalho de reflexão filosófica para elucidar o próprio sentido do ato de educar, que no mais alto sentido da palavra, é convocar o homem para que ele abandone a letargia e a alienação de sua vida cotidiana e assuma, com o ser das coisas e com seu próprio ser, uma relação própria.

Para Heidegger, o professor que verdadeiramente ensina não faz outra coisa senão convidar o aprendiz a aprender. O grande mestre não ensina nada além do aprender, tornando dis-posto (aberto) o discípulo para novas experiências no âmbito do pensar.

É bem sabido que ensinar é ainda mais difícil que aprender. Mas raramente se pensa nisso. Por que ensinar é mais difícil que aprender? Não porque o mestre deva possuir um acervo de conhecimentos e os ter sempre à disposição. Ensinar é mais difícil que aprender, porque ensinar significa DEIXAR APRENDER. Aquele que verdadeiramente ensina não faz aprender nenhuma outra coisa que não seja o APRENDER... (HEIDEGGER apud FARIA, 1988 , p. 54).

Alguns leitores de Ser e tempo percebem certo decisionismo, que inviabilizaria qualquer tentativa de estabelecer uma ética, uma política ou uma pedagogia capaz de operar essa passagem da banalidade da existência cotidiana – na qual somos jogados e vivemos sob a ditadura do impessoal – para uma forma de ser e estar-no-mundo que coloca em questão o ser das coisas, o ser em geral e nosso próprio ser. Entretanto, o fato de nos encontrarmos, desde sempre, sob a impessoalidade de uma existência frívola e vazia de sentido, que segue o que todo mundo pensa e faz, não é fruto de nossa escolha. Permanecer nela, contudo, depende de nós.

Para não concluir…

Após essa retomada de alguns aspectos e conceitos básicos da analítica existencial de Ser e Tempo, percebemos que a hermenêutica da existência finita e da história da metafísica feita por Heidegger em tal obra abriu novas perspectivas à tradição fenomenológico-hermenêutica, além, é claro, de possuir implicações epistemológicas e mesmo pedagógicas fundamentais para se pensar a ciência e a educação hoje.

Certamente, a educação pode contribuir à passagem, ou melhor, com o salto desse abafamento e anonimato de uma existência inautêntica para uma existência autêntica, permitindo que professor e aluno assumam suas possibilidades mais próprias. Para tanto, como ressaltamos, o ato de educar deveria ser um ato de constituição do humano e não mera questão de profissionalização ou domínio de discursos, técnicas e desenvolvimento de competências. (FERNANDES, 2007).

Na perspectiva da analítica existência de Ser e tempo, a educação é um processo inerente ao ser humano na busca incessante de si mesmo a partir de suas condições de lançamento no mundo. O processo formativo dilui qualquer relação hierárquica entre mestre e aluno, pois educar é uma tarefa própria, individual, que depende de cada um decidir por si mesmo, realizando suas possibilidades mais próprias. Entretanto, como dito, esse processo de singularização do indivíduo só acontece quando ele exercita seu ser-com-o- outro (Mit-sein) na vida comunitária. Daí ser fundamental para o processo educativo esse sentimento de pertença a um mundo compartilhado e a certeza de que só poderei alcançar minha singularidade e identidade em comunhão com os outros seres-aí.

Assim, a educação de cada um deve ter como finalidade última não apenas o aprimoramento pessoal ou profissional, mas os interesses da comunidade/humanidade. Educar transforma-se em uma espécie de convite para termos a coragem de ser parte de uma totalidade, de compartilhar sem anular nossa singularidade numa uniformidade de comportamentos e hábitos estereotipados. E já que a educação é inerente ao processo de constituição da existência humana, não haveria sentido falar de um fim, um para quê da educação. Ela acontece como uma exigência natural do ser humano como existente, um ser de projeto, de ultrapassagens, que se faz sendo.

O desafio que Heidegger coloca é decidir se da noite desse tempo de penúria e indigência surgirá um novo começo para o pensar e uma nova forma de ser e estar-no-mundo. Enquanto isso, continuamos errantes no mundo inóspito do cálculo, alheios ao fato de que, além de não pensarmos, não nos ocupamos nem nos preocupamos com coisas e pessoas de forma autêntica. E se já não pensamos e exercemos formas deficientes de cuidado para com as coisas, os outros e com nós mesmos, como poderemos ensinar alguém a pensar e a exercer uma forma de ser e estar-no-mundo com os outros sob a mediação do cuidado?

Foi buscando respostas para questões dessa natureza que nos reportamos, aqui, à analítica existencial de Ser e tempo (1964). Reconhecidamente, Heidegger é um pensador que insistiu em tentar apontar algumas alternativas em um mundo desertificado pelo cálculo, onde o homem vagueia como um desterrado na condição de primeira e fundamental matéria-prima. Assim, o que estaria em jogo em nossa época seria a possibilidade de superação do caráter técnico-científico como única medida da habitação e da ação do homem no mundo.

Certamente, os novos significados que as noções de homem, mundo e cuidado adquirem em Ser e tempo podem servir de fios condutores à superação dessa situação de perda do homem em um mundo uniformizado pelo cálculo e no qual tudo parece já estar explicado e escolhido. Ainda que hoje a educação colabore nessa mobilização planetária que cria o mundo uniforme do cálculo, visto que se contenta, ainda que de forma deficiente, em preparar mão de obra bem-treinada e qualificada que satisfaça as exigências do deus todo-poderoso chamado mercado. Entretanto, é através da educação que podemos conduzir o homem a um processo autêntico de autoconstituição de si mesmo, no qual ele possa realizar suas possibilidades de ser-no-mundo, ocupando-se com coisas e se preocupando com pessoas de forma autêntica: tarefa difícil em uma época na qual todas as coisas parecem deslizar para um mesmo nível – uma superfície. (HEIDEGGER, 1969).

Mas, afinal, o que seria necessário fazer, dentro das limitações impostas por nossa condição de “funcionários da técnica”, para que a educação volte, efetivamente, a formar e não apenas a profissionalizar conforme as demandas do mercado? Como educar homens à altura das tarefas e dos desafios de nosso tempo – o tempo da bestialização/barbarização do homem? Decerto a educação tem muito a oferecer à superação do desarraigo e da fragmentação das ciências, de forma a permitir sua maior aproximação com o mundo da vida (Lebenswelt). Isso, por sua vez, exigiria, talvez, uma ressignificação do próprio ato de educar a partir de novas concepções de homem, mundo, conhecimento, verdade, relações de poder, etc.

Ora, acreditamos que a analítica existencial de Ser e tempo possa oferecer elementos e subsídios para pensar, com a educação, seus pressupostos, valores, finalidades, limites e possibilidades, propiciando novas práticas e novo espaço-tempo para essa árdua e infinita tarefa de tirar o homem da letargia de uma existência anônima, afundada no impessoal. O fato é que não se pode ensinar alguém a ser ele mesmo. Aquele que recebe já deve antes ter dado a si mesmo a disponibilidade-abertura em receber, o que depende apenas de sua liberdade originária e intransferível. Daí ninguém poder ajudar o outro a ser ele mesmo, a tornar-se capaz de sua mais própria possibilidade de ser. Assim, mais que ensinar ou libertar o educando, o educador dá testemunho da possibilidade de libertação do outro em si mesmo. Portanto, o verdadeiro mestre não ensina nada, apenas deixa e faz ver em si mesmo o doloroso e intransferível processo de singularização que todo homem deve perfazer em e por si mesmo.

Uma tal concepção de educação exige uma pedagogia que não apenas planifica/organiza conteúdos em busca de sua transposição didática mais eficiente. Procura-se, aqui, uma pedagogia que acompanha, solidariza e cuida do educando no processo de encontrar a si mesmo e os outros, o que exige coragem e decisão próprias para romper com esse clamor para e pela adaptação pura e simples ao mundo administrado e uniforme do cálculo. A relação educador-educando tem de permitir a ambos experimentar os desafios e as tarefas de toda existência em busca de sua realização. O educador, aqui, não é pensado como aquele que imporia conteúdos e estratégias que julgasse mais convenientes ao aluno, mas como aquele que dá testemunho ao outro de sua liberdade, de seu poder-ser mais próprio. Esse educador não é mais um vendedor de mapa, um repetidor e transmissor de lições ou o instrutor de disciplinas. O educador deve criar, propiciar uma atmosfera de confiança que permita ao discente a oportunidade de ir em direção às suas possibilidades mais próprias, educando-se a si mesmo na construção de uma existência singular, própria, através de um exercício de autoconstituição que ninguém, absolutamente ninguém, poderá fazer por você.

Ouçamos o que tem a dizer o Zaratustra de Nietzsche nessa caminhada em direção a nós mesmos. Certamente, é necessário ter mestres, mas sem se identificar com eles assumindo suas verdades, seus vícios, seus medos. Na verdade, devemos aprender a suspeitar dos mestres e saber o momento certo de abandoná-los e até mesmo de nos perder. Afinal, não é isso que nos ensina o profeta do além-homem e eterno retorno?

Sozinho vou agora, meus discípulos! Também vós ide embora, e sozinhos! Assim quero eu. [...] Afastai-vos de mim, defendei-vos de mim! E, melhor ainda, envergonhai-vos de mim! Talvez vos tenha enganado. O homem do conhecimento não precisa somente amar seus inimigos, precisa também odiar seus amigos. Paga-se mal a um mestre, quando se continua sempre a ser apenas o aluno. Vós me venerais, mas, e se um dia sua veneração desmoronar? Guardai-vos para que não vos esmague uma estátua [...]. Sois meus crentes, mas que importa toda crença! Ainda não vos havíeis procurado, então me encontrastes. Assim fazem todos os crentes. Agora vos mando me perderdes e vos encontrardes, e somente quando me tiverdes todos renegado, eu retornarei a vós [...]. Com outros olhos eu procurarei os meus perdidos [...]. Com um outro amor, eu vos amarei então [...]. Quem tem ouvidos, que ouça. (NIETZSCHE, 2005, p. 105).

1Dasein – O Dasein não se confunde nem com o homem nem com a humanidade. É no Dasein que o homem constrói sua história, seu modo de ser, sua existência. O Dasein não é o homem situado, individual, mas condição de possibilidade de toda humanidade fática e concreta. Daí a analítica existencial de Ser e tempo não ser uma antropologia, mas o ponto de partida para uma ontologia fundamental.

2Impessoal (Das Man) – O pronome Man, na língua alemã, exprime uma impessoalidade diferenciada, pois diz que ocorreu uma despersonificação de pessoas. Corresponde ao português a gente...: canta-se, fala-se, comenta-se... O impessoal é o quem do Dasein na sua medianidade cotidiana, aquilo que determina seu modo de ser antes de tudo e na maioria das vezes.

3Essa superação ou destruição fenomenológica da tradição metafísica é vista por Heidegger não como um aniquilamento ou uma supressão da metafísica, mas como uma desobstrução para chegar às fontes originárias da metafísica. Ela é uma recuperação originária do esquecimento do ser que, somente a partir de seu velamento na medianidade cotidiana e

4Existência – Ek-sistência (Exixtenz): Ek-sistere, movimento de dentro para fora. A ex- sistência circunscreve e delimita um estado e um lugar, uma dinâmica de contínua estruturação em que se trocam os estágios, as passagens e os lugares. Heidegger reserva a palavra existência para designar toda a riqueza de relações recíprocas entre o ser-aí (homem) e o ser, entre o ser-aí e todas as entificações através de uma entificação privilegiada, o homem. Assim, existência designa o modo de ser específico do homem. Somente o homem existe, as outras coisas são meramente subsistentes. A pedra é, mas não existe, mas o homem, como ente privilegiado com o dom da existência não está autorizado a exercer qualquer espécie de dominação sobre os demais entes.

5Cuidado (Besorgen, Sorge): O ser-aí (que é o homem) sempre se dá num exercício. Os dois planos que predominantemente o homem se faz um ser de cuidado, promovem relações com dois modos de ser da existência: relações com o modo de ser dos entes simplesmente dados e relações com os entes dotados do modo de ser do existente humano. O ser-aí ocupa-se com aquilo que simplesmente é e se preocupa com aquilo que existe, os outros seres-aí. A estrutura unificante desses modos de ser denomina-se o cuidado (Sorge). Assim, o homem como ser-no-mundo ocupa-se com os entes simplesmente dados e se preocupa com os outros seres-aí que (como ele) possuem o caráter da existência.

6Ser-com (Mitsein) – O ser é o seu sendo, ele é sua dinâmica em exercício. O Dasein é o lugar onde se encontram as possibilidades dos modos de ser. Daí, todas as suas concretizações na existência exercem uma ação expressa pela preposição mit. Assim, nunca se dá um ser ou modo de ser isolado. Todo ser é sempre ser-com mesmo na solidão e isolamento. O Dasein é sempre um copresença. O mundo é sempre um mundo compartilhado (Mitwelt), o viver é sempre con-vivência.

Referência

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KAHLMEYER-MERTENS, Roberto Saraiva. Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar. In: Aprender – Cadernos de filosofia e psicologia da educação. Vitória da Conquista: Ed. da UESB, v. 3, n. 4, p. 161-171, 2005. [ Links ]

FARIAS, Vitor. Heidegger e o nazismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. [ Links ]

FERNANDES, Marcos Aurélio. Educação como autoconstituição do ser humano: uma abordagem fenomenológico-existencial. Revista Inter-ação, Goiânia: Ed. da UFG, v. 32, p. 69-89, 2007. [ Links ]

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Trad. de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. [ Links ]

Recebido: 28 de Dezembro de 2017; Aceito: 23 de Julho de 2018

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