Introdução
O presente artigo é fruto de pesquisa bibliográfica que buscou analisar o pensamento filosófico-educacional de Johann Friedrich Herbart (1776-1841) e suas possíveis contribuições para a elaboração de um projeto moderno de masculinidade3. Consideramos que a obra de Herbart, por sua profundidade e pelas marcas que deixou no pensamento social e, especificamente, nas ideias pedagógicas, pode sinalizar importantes elementos para a compreensão da masculinidade moderna.
O estudo sobre as masculinidades foi objeto de diferentes autores/as, com destaque para Bourdieu (1999), Grossi (2005), Badinter (2013), Butler (1998, 1999, 2003), Puigvert (2001), Flecha, Puigvert e Ríos (2013), Connell (2003, 2012) e Connell e Messerschmidt (2015), Kimmel (1987) e Saffioti (1992). Embora eles/as não tenham Herbart como referência em suas reflexões, avaliamos que é razoável inferir que os conceitos do pensador alemão sinalizam subsídios dos contextos sociais historicamente atribuídos aos homens em suas diferentes dimensões e, por isso, podem ajudar nas análises sobre a masculinidade moderna.
Consideramos o estudo teórico e conceitual sobre os homens e as masculinidades inovador, uma vez que a formulação do conceito e suas análises sócio-históricas encontram-se dispersas nos estudos de gênero. O pesquisador francês Welzer-Lang (2008) aponta que a ausência e a dispersão dos estudos sobre os homens e as diferentes masculinidades se justificam por meio de duas constatações: a afirmação da autonomia das mulheres intelectuais no início dos movimentos feministas e “a vontade dos homens dominantes de não divulgar seus segredos”4 (WELZER-LANG, 2008, p. 8).
Destacamos como marco temporal deste trabalho a Modernidade e o Iluminismo por sua intensa influência na filosofia e na educação e, consequentemente, no ideal moderno de masculinidade. O Iluminismo pode ser definido como um movimento intelectual e cultural que se inicia na Europa Ocidental em resposta às grandes transformações econômicas e sociais e à negação da “Idade das Trevas”. Embora tenha seus preceitos iniciados nos séculos anteriores, sobretudo com René Descartes (1596-1650), que lança as bases do Racionalismo e passa a questionar tanto os valores religiosos e monarquia enquanto regime político, é somente no século XVIII que o Iluminismo mostra sua força por meio de princípios como a luta pela liberdade e pelo progresso científico e o antropocentrismo.
No que tange ao desenvolvimento das ideias pedagógicas, as mudanças políticas e culturais da passagem do século XVII para o XVIII deixaram profundas marcas. A Revolução Francesa coloca a educação, representante primeira da ilustração na centralidade das reflexões e das demandas sociais, sendo alçada como um elemento conciliador da sociedade, capaz de favorecer a superação de uma sociedade arcaica, garantindo formação intelectual e moral ao homem moderno.
As transformações sociais da passagem do século XVIII para o XIX contribuem para a formulação de novos modelos pedagógicos que têm como característica comum a evolução da ideia de instrução para o conceito de educação. Respondendo aos anseios antropocêntricos do Iluminismo, as propostas pedagógicas são direcionadas para o desenvolvimento humano, suas potencialidades e seu intelecto. Desse modo, o desejo inicial comeniano de “ensinar tudo a todos” se transforma em um paradigma de formação humana relacionado às condutas sociais, morais e éticas associadas aos conhecimentos instrumentais.
Inspirado na filosofia, Herbart se consagrou como o pioneiro da pedagogia enquanto ciência, ou seja, é com ele que a pedagogia é formulada pela primeira vez de maneira organizada, ampla e abrangente, com a definição de meios e fins. A estrutura teórica construída pelo filósofo tem como base o funcionamento da mente, com Herbart o pensamento educacional passa a se vincular às teorias de aprendizagem e às então recentes formulações da psicologia.
Do ponto de vista intelectual, o autor selecionado para este trabalho revela uma característica fundamental: apresenta ideias pedagógicas alinhadas com seu tempo e que catalisam e sintetizam as transformações da sociedade. Nesse ínterim, essas ideias pedagógicas, pela força de suas contribuições, permanecem inesgotáveis; classificar Herbart como clássico é, em certa medida, reconhecer e validar a riqueza de seus conteúdos, recontextualizando-os. Como afirma Calvino (2002), os clássicos, por sua universalidade, têm o privilégio de trafegar em um tempo paralelo, a capacidade de externalizar as contribuições mais elaboradas e anunciar caminhos humanizadores.
Para a melhor compreensão da temática proposta, este artigo se divide em três seções: (a) na primeira explicitamos nossos percursos metodológicos e os princípios que guiaram nossa pesquisa; em seguida (b) apresentamos brevemente o contexto histórico no qual Herbart desenvolve seu pensamento pedagógico bem como a análise de suas principais formulações teóricas; para, então, (c) buscarmos possíveis contribuições de Herbart para projeto de masculinidade que nasce com o advento do Iluminismo. Por fim, apresentamos as Considerações Finais com o intuito de sintetizar as inferências provocadas pelas obras de Herbart no que tange ao projeto de masculinidade que se tornou hegemônico.
Princípios e procedimentos metodológicos
O objetivo do manuscrito é discutir as possíveis contribuições de Johann Friedrich Herbart e suas ideias pedagógicas para a construção do projeto de masculinidade moderno. Os resultados que aqui apresentamos foram obtidos a partir de pesquisa bibliográfica realizada no âmbito do Doutorado. A metodologia adotada neste trabalho, antes de procedimentos rígidos de análise e interpretação, é um conjunto vivo de escolhas, percursos e desdobramentos teóricos que revela a forma como olhamos para a realidade e os anseios que temos ao nos depararmos com as coisas do mundo. Para nós, a pesquisa bibliográfica não é a reconstrução ou a mera reprodução das ideias lançadas pelo autor analisado, mas está no bojo da análise crítica.
É válido salientar que essa perspectiva analítica deve estar amparada no rigor científico que exige do/a pesquisador/a uma postura epistemológica diante de três elementos: o contexto sócio-histórico, a lógica interna do pensamento e a criticidade (MINAYO; SANCHES, 1993). Assim, a compreensão da sociedade, no que tange principalmente à pesquisa, exige a análise da complexidade dos significados e das estruturas do objeto estudado.
A definição de um estudo como sendo bibliográfico precisa ser acompanhada de critérios e procedimentos que, aliados à perspectiva crítica do estudo, permitam que o/a pesquisador/a apresente suas reflexões a partir de um caminho metodológico claro e conciso. Consideramos que o primeiro passo para a pesquisa bibliográfica é a localização conceitual das abordagens teóricas utilizadas; para tanto, este trabalho se iniciou com o levantamento do campo e a explicitação dos aportes teóricos que dão sustentação às análises. Para Gil (1994), a compreensão promovida pela pesquisa bibliográfica possibilita amplo alcance de informações, utilização de inúmeras publicações e construção de um quadro conceitual que envolve o objeto de estudo proposto.
De toda forma, a flexibilidade da pesquisa bibliográfica não pode ser confundida com a desorganização, exigindo uma vigilância constante dos caminhos percorridos e dos objetivos propostos, para que não se torne proselitismo discursivo. Para tanto, utilizamos o desenho metodológico circular e de aproximações sucessivas (MERCADO-MARTÍNEZ; BOSI, 2004), que se configura pelo reconhecimento do material, a exploração, a leitura seletiva, a leitura reflexiva ou crítica e a leitura interpretativa como movimentos de apropriação do material e consolidação das ideias centrais, valorando cada uma delas a partir de uma visão conceitual global. De acordo com esse modelo, a coleta de dados passa a ser definidora também do objeto de estudo, uma vez que as informações podem ser sempre revistas, reanalisadas e complementadas com novas informações, fruto de novas leituras e análises.
Como pressuposto deste trabalho, afirmamos a historicidade dos objetos de análise, ou seja, a carga histórica que acompanha inevitavelmente os conceitos pesquisados. Neste artigo optamos por discutir inicialmente o contexto de vida de Herbart e, articulado a ele, analisamos sinteticamente sua obra, suas principais contribuições para o campo da educação e os conceitos que nos auxiliam na elucidação de nossa hipótese, qual seja a percepção de que suas ideias pedagógicas contribuíram para o desenvolvimento de um projeto de masculinidade.
O contexto histórico e o pensamento pedagógico de Johann Friedrich Herbart
O historiador britânico Eric Hobsbawm (1996) classificou a passagem do século XVIII para o XIX como a “Era das revoluções”, por ter provocado mudanças em todos os âmbitos da sociedade, desde a transformação das relações produtivas até a do comportamento e dos costumes. A Revolução Francesa, por exemplo, alterou radicalmente o lugar ocupado pela educação, passando de acessório cultural das elites para o centro das reflexões sobre a formação humana e, sobretudo, instrumento social para a garantia da formação intelectual do “homem moderno”.
Cambi (1999), ao analisar o papel da educação nesse contexto, afirma que um novo modelo pedagógico se alia à Modernidade e passa a propagar seus propósitos filosóficos e morais na direção da liberdade e do desenvolvimento social. Para responder a esses anseios, paradigmas educativos foram desenvolvidos e a escola enquanto instituição passa a ser um importante elemento de mediação da vida social.
Por sua vez, o italiano Mario Alighiero Manacorda, em seu compêndio sobre a história da educação (MANACORDA, 2002), afirma que as novas premissas possuíam como objetivo político a formulação de teorias pedagógicas capazes de subsidiar a educação do homem ideal e adaptado à sociedade burguesa emergente.
Os novos modelos pedagógicos têm como ponto em comum a substituição do conceito de instrução pelo de educação. Superando Comênio e sua máxima de “ensinar tudo a todos”, as ideias pedagógicas passam a não apenas defender os conteúdos instrumentais, como também a relacionar os processos educativos à formação moral, social e ética. Nessa direção, as propostas pedagógicas se voltam ao desenvolvimento humano em suas potencialidades, explicitando o antropocentrismo típico do pensamento Iluminista.
É justamente na transposição desses modelos pedagógicos que se encontra o pensamento de Johann Friedrich Herbart. As formulações teóricas do alemão provocaram um importante avanço para a pedagogia, que pela primeira vez se estabelece enquanto ciência na articulação com a Filosofia da Moral e das explicações psicológicas sobre a atividade intelectual do ato de aprender (ARANHA, 2006).
Com relação aos processos educativos, Herbart centralizou seus esforços na ideia de instrução educativa ou educação pela instrução. Para ele, os dois elementos, instrução e educação, são distintos, porém indissociáveis e complementares; o primeiro está relacionado ao conhecimento prático, dos conteúdos acadêmicos e escolares, enquanto a educação está à formação do caráter e ao desenvolvimento da moralidade.
Em 1806, com a publicação da obra “Pedagogia Geral”, Herbart caracterizou o que considera as duas dimensões fundantes da educação: a reflexão sobre os princípios filosóficos (sintética) e o raciocínio sobre a experiência prática (analítica) (HERBART, 2003). Nessa direção, a pedagogia proposta por Herbart tem como fundamento a possibilidade de educação dos sujeitos, desenvolvendo em cada pessoa a capacidade moral. Essas ideias, sustentadas na filosofia moral e na psicologia, superam a perspectiva essencialista presente em propostas anteriores.
Herbart (2003), por meio da ideia da “educação pela instrução”, apresenta um pensamento pedagógico inovador. Ao afirmar que o desenvolvimento da capacidade moral é o objetivo principal de todo processo educativo, o intelectual associou diretamente o conhecimento escolar estruturado (literatura, história, matemática, gramática, dentre outros) à moralidade e, assim, concluiu que a moral é construída por meio da reflexão promovida pelo conhecimento acadêmico.
Nesse sentido, o ato de ensinar se torna, ele mesmo, o processo da educação e a força da disposição moral se apresenta enquanto fim último da educação. Nas palavras do autor: “Como é que isto se coaduna com a boa educação? Perfeitamente, desde que as horas de aprendizagem em que o professor se ocupa séria e metodicamente com os educandos representem um trabalho intelectual capaz de preencher interesses” (HERBART, 2010, p. 42).
Para a educação no sentido da competência moral, Herbart apresenta etapas de um caminho que parte da compreensão abstrata do mundo para a moralidade: “as ideias se transformam em emoções que, por sua vez, se transformam em princípios e modos de agir” (HERBART, 2003, p. 23). É importante ressaltar que o autor não associa a moral ao moralismo, seja ele qual for. A capacidade moral não é devaneio subjetivista, mas, em síntese, o desenvolvimento de habilidades por meio da educação que permitam aos sujeitos realizar as melhores escolhas autonomamente ou, ainda, desenvolvam o autogoverno. Dietrich Benner, ao ser entrevistado por Odair Neitzel, define desta forma a questão:
Não percebemos que formas de uma pedagogia subjetiva pura e uma autonomia pedagógica absoluta nunca existiram. Nunca! Então, em Herbart, se o conhecemos, não as encontramos. Herbart tornou central a liberdade de escolha, mas não reconhece uma liberdade transcendental. Também mantinha certa distância da liberdade interior em relação às motivações individuais
(NEITZEL, 2019, p. 4).
Herbart é um dos intelectuais da educação mais fortemente marcados pelos estudos da psicologia, até porque é no fim do século XVIII e no início do XIX que a área se estabelece enquanto campo teórico. É a partir da psicologia que o alemão compreende o conhecimento, a sensibilidade e a vontade como resultados da estruturação do sistema cognitivo. Essa perspectiva, revolucionária para o século XVIII, dá suporte para a sua teoria pedagógica, na qual a instrução (responsável pela organização do sistema cognitivo) se apresenta como o meio indispensável para a formação da capacidade moral.
Herbart (2010) promove uma defesa importante da necessidade da ciência e da competência intelectual para a educação por meio do ensino, portanto os educadores precisam compreender a complexidade da realidade por meio da reflexão filosófica para, então, serem capazes de ensinar. Segundo o pensador, não existe educação sem ensino e, complementarmente, ensino que não eduque (HERBART, 2010). Do mesmo modo, Herbart não acreditava que a educação poderia se dar de maneira livre e despretensiosa, ela é um trabalho contínuo no qual é necessário percorrer de um extremo ao outro (da instrução à moral).
A relação entre educação e moral em Herbart (2003, 2010, 2018) é diretamente dependente de um sistema filosófico completo. Para o autor, a moral se articula com o conhecimento enquanto resultado da formação filosófica, ou seja, a filosofia é o pressuposto e a condição primeira para o desenvolvimento da capacidade moral e está presente nesta de maneira transversal. Em suma, Herbart (2010) defende que a formação moral não é outra coisa senão a reflexão sobre valores como o bom, o belo e o justo, que são, por sua vez, a preocupação fundante do pensamento filosófico.
O educador, nessa perspectiva, representa o futuro do homem junto ao educando e por isso é um imperativo ético dominar os processos de instrução para alcançar a finalidade pedagógica (HERBART, 2010). Cabe ao educador esforçar-se para ensinar os limites e o autogoverno aos educandos para que possam dele fazer uso na vida adulta, preparando-os antecipadamente para que tomem as melhores decisões em suas inclinações morais.
A preocupação metodológica de Herbart o fez formular uma proposta educativa bastante clara e precisa na qual os processos narrativos, analíticos e sintéticos se combinam mutuamente no ensino. A narrativa refere-se à etapa na qual o professor deve explicitar claramente os conteúdos com vocabulário assimilável e foco na transmissão do conhecimento; a análise é a etapa seguinte, caracterizada pela representação do conhecimento por meio de decomposições simples, com discussão e pesquisa; por fim, a etapa sintética é representada pela capacidade de pensamento complexo por meio de associações e comparações entre os conteúdos mais simples e os mais elaborados.
Além das etapas metodológicas descritas acima, Herbart (2018) aponta três elementos para que a educação alcance sua finalidade: (a) governo – ação externa, realizada pela família ou pelo professor para controlar o comportamento inadequado das crianças, promovida por meio de premiação, castigo ou punição, sendo que, segundo o autor, a forma mais eficaz de governo é a associação entre ordem e amor; (b) instrução – ação resultante do esforço do professor em apresentar o conteúdo por intermédio de associações práticas, despertando o interesse dos estudantes; (c) disciplina – ação dos estudantes na direção do autogoverno.
Sobre a disciplinas, Herbart é assertivo ao afirmar que:
[...] se pode julgar o que a disciplina pode representar para a educação. Todas as mudanças dos sentimentos, que o educando tem de sofrer, são apenas fases necessárias para a determinação da ideologia do caráter. Deste modo é dupla a relação da disciplina para com a formação do caráter: direta e indireta
(HERBART, 2003, p. 182).
A obra herbartiana tem um objetivo claro revelado em sua metodologia de ensino: a formulação de um modelo educativo eficiente na formação de sujeitos capazes de uma leitura objetiva e científica do mundo, diminuindo a possibilidade do erro. Herbart acreditava que essa metodologia poderia promover o desenvolvimento da moral por meio da aquisição do conhecimento sistematizado e do domínio das próprias vontades.
Herbart estabelece uma relação orgânica entre filosofia moral, psicologia e pedagogia. Nessa elaborada construção teórica, desvenda uma concepção de sociedade, sujeito e educação que, em grande medida, altera paradigmas; surge uma proposta educativa amparada em valores do presente, comprometida com avanços tecnológicos e científicos. É nesse escopo que, a nosso ver, podemos relacionar sua obra com um projeto de masculinidade articulado aos anseios da Modernidade e do Iluminismo, objeto de nossa análise no próximo item deste artigo.
O pensamento pedagógico de Herbart e a masculinidade: possíveis conexões
Herbart inaugura um novo movimento pedagógico com suas ideias centradas em preceitos filosóficos clássicos. Com o pensador alemão, a pedagogia assume definitivamente seu caráter teórico-prático, não apenas como “experimentador pedagógico”, mas na direção de um intelectual capaz de teorizar a própria prática, formulando novos parâmetros de cientificidade diante da metodologia que desenvolveu.
A pedagogia herbartiana está ancorada nas profundas transformações sociais de seu tempo e, não por acaso, coloca na construção da moral um dos seus pilares. O século XVIII viu emergir novos valores e o pensamento intelectual acompanhou esse processo. Um novo modo de vida mudou radicalmente as sociedades, sobretudo na Europa, provocando o abandono da vida campesina, a sua substituição pelo trabalho nas fábricas, transformando as cidades em aglomerados populacionais, e, por consequência, a construção de novos modelos morais. Herbart (2003, 2010) reconheceu nessas transformações o seu elemento educativo e a moralidade passa a ser objetivo do ensino, ou seja, a moralidade seria o resultado esperado do processo intencional de instrução.
É justamente a formulação sobre os valores morais para a prática pedagógica e o desenvolvimento social que nos leva a relacionar o pensamento de Herbart com a masculinidade; seus princípios nos revelam os pressupostos da formação de um “novo homem” (HERBART, 2010, p. 65). Assim, o pensador alemão não se esquiva da necessidade de articular sua pedagogia com a formação de sujeitos capazes de viver no contexto social no qual estão inseridos.
Um homem novo, sensível ao estímulo das ideias e que tenha diante dos olhos a ideia de educação em toda a sua beleza e dimensão [...] este homem pode empreender a tarefa, no âmbito da própria realidade, de elevar um jovem a uma existência melhor, desde que tenha capacidade mental e conhecimentos para olhar e representar, em moldes humanos, essa realidade como fragmento da unidade global
(HERBART, 2003, p. 10).
Pelo desenvolvimento da capacidade moral desse novo homem, podemos perceber a clara relação que Herbert estabelece entre a formação individual e a sociedade como um todo. Nas palavras do autor,
Percebe-se deste modo que é múltipla a finalidade do governo das crianças, por um lado, para impedir prejuízos para terceiros e para a própria criança, tanto de momento como de futuro e, por outro, para impedir a disputa como desentendimento em si e, finalmente, para evitar toda a espécie de choque, pelo que a sociedade, sem que tenha para tal plena autoridade, se veria envolvida no conflito
(HERBART, 2003, p. 31).
Cambi (1999) nos lembra que o pensamento herbartiano é diretamente associado ao desenvolvimento do progresso industrial e científico que marca os séculos XVIII e XIX. Nessa direção, é a ciência que anima seu desejo de educação para a moral por meio da instrução escolar, “para a educação através do ensino, exigi ciência e capacidade intelectual – uma ciência e uma capacidade intelectual tais, que sejam capazes de considerar e de representar a realidade próxima como um fragmento do grande todo” (HERBART, 2003, p. 19).
A relação entre o pensamento de Herbart e o contexto social não nos deixa ignorar o fato de que é justamente nos anos Setecentos e Oitocentos que os Estados Nacionais passam a ter uma organização precursora da que conhecemos atualmente. Essa nova estrutura de organização dos países europeus exige dos homens e das mulheres que coabitam os mesmos territórios um novo sentimento de pertencimento, não mais relacionado ao parentesco ou à subordinação monárquica, mas uma identidade coletiva definida pelo território nacional. Nas palavras de Herbart, o sujeito
Deixará intacta à individualidade a única glória de que é capaz, ou seja, ser bem delineada e reconhecível. Ele busca para si a honra, no fato de se poder reconhecer de forma intacta no homem, que esteve sujeito ao seu mando, o cunho da pessoa, da família, do nascimento e da nação
(HERBART, 2010, p. 92).
Segundo Oliveira (2004), a necessidade do pertencimento do sujeito a um núcleo familiar e a uma nação surge no ideário burguês como mecanismo de garantia do desenvolvimento econômico e social. Engels (1984) associa a origem do ideal de família à prevalência da propriedade privada e ao Estado Burguês, assim a constituição dessas instituições se articula organicamente para garantir o avanço do capitalismo.
É preciso ressaltar que a nova organização social passou a definir, também, um novo projeto de formação e de divisão social do trabalho, atribuindo atributos diferentes aos homens e às mulheres no interior da família. Na pedagogia herbartiana percebemos uma diferenciação entre a função masculina e a feminina: “os homens não são capazes de imitar o estilo feminino” (HERBART, 2010, p. 20). Herbart associa à mulher características vinculadas ao universo privado, à sensibilidade e à pouca habilidade pública. Essa divisão entre o masculino e o feminino está associada à construção herbartiana em torno da moral, uma vez que ela é representada, justamente, por valores públicos e, portanto, parece-nos associada aos homens e à masculinidade.
Mulheres de bom senso compreendem melhor como analisar as relações interpessoais, para introduzir uma consideração mais solidária entre as crianças, e aumentar assim seus pontos de contato, e aumentar a intensidade das relações afetivas. Pode-se ver facilmente se uma pessoa nos primeiros anos de vida esteve sob tal influência feminina
(HERBART, 1908, p. 156).5
O ideal de moral herbartiano, fim último da instrução educativa, é representado pela capacidade de controlar os desejos, decidir com autonomia pelo bom, belo e justo, dominar racionalmente os “devaneios naturais” e, por meio do intelecto, construir o caráter. Essa conceitualização de moral nos remete às formulações reunidas no que, mais tarde, Welzer-Lang (2008) e Grossi (2005) definiram como masculinidade tradicional, ou ainda, como nos estudos de Connell (2003, 2012) e Connell e Messerschmidt (2015), essas características se associam à masculinidade hegemônica.
Ainda no campo da conceitualização da masculinidade, Flecha, Puigvert e Ríos (2013) definem três tipologias masculinas: a masculinidade tradicional dominante (MTD), a masculinidade tradicional oprimida (MTO) e as novas masculinidades alternativas (NMA). Para esses autores e essa autora, o mecanismo que provoca e mantém a violência contra as mulheres está associado ao ideal de homem representado, justamente, pela reclusão dos sentimentos, o uso do poder e o apreço pela força como linguagem capaz de solucionar os problemas enfrentados em sua vida.
Podemos considerar, então, que o desenvolvimento da moral proposto por Herbart está associado aos dois primeiros modelos (MTD e MTO), por definir a masculinidade em termos de diferenciação do homem diante das mulheres. Para exemplificar essa afirmação, destacamos algumas passagens que nos parecem apontar para as relações de Herbart com a masculinidade tradicional.
A primeira delas revela a construção de um arquétipo masculino baseado na força e na beleza juvenil, em que a valorização da juventude se explicita na sua capacidade de aprender o controle dos desejos mais profundos. Para Herbart (2010), a juventude promove características desejadas e superiores à inocência infantil e à fraqueza da fase adulta:
Não quero diminuir o papel do endurecimento físico, mas estou convencido de que não se encontrará o princípio verdadeiramente fortalecedor para os homens – que não são só corpo – enquanto se não aprender a organizar um modo de vida para a juventude, em que ela possa exercer, de acordo com o seu próprio sentido exato, uma ação aos seus olhos séria
(HERBART, 2010, p. 126).
O controle moral dos sentimentos, declarado na obra de Herbart como a tentativa de dominar os sentimentos, é outro aspecto da masculinidade que podemos destacar. A pedagogia proposta pelo pensador alemão impõe, como forma de alcançar a sabedoria, que os sujeitos controlem suas emoções e que o educador auxilie os jovens nessa direção:
O que se tem de manter em todas as emoções é a constância, por mais que variem as orientações das emoções. O educando terá muitas conclusões a tirar no convívio que tem com o educador, antes que se manifeste a sutil orientação que há de surgir do simples conhecimento e da moderação dos seus sentimentos. Porém, à medida que ela se manifesta, o comportamento do educador tem de tornar-se mais constante e uniforme.
(HERBART, 2010, p. 59-60).
De nossa perspectiva, enfatizamos os apontamentos sobre a masculinidade tradicional expostos por Grossi (2005), para quem a reclusão dos sentimentos é um elemento central para a dominação masculina que foi estabelecida historicamente a partir do século XIX. É nesse momento histórico que, como afirma Oliveira (2004), prevalece na Inglaterra e na Alemanha, por ocasião do puritanismo, o ideal de masculinidade que toma para si o controle das paixões e a valorização da moderação. Diante desse contexto, parece-nos que o pensamento de Herbart está no bojo dessas formulações, contribuindo filosoficamente para o projeto de masculinidade que de tornará hegemônico.
Destacamos, ainda, outros dois elementos da pedagogia herbartiana confluentes com a masculinidade dominante: a honra e a posse material. Nesse ponto, mais uma vez, as contribuições de Grossi (2005) nos ajudam a compreender os apontamentos sobre a masculinidade promovida por Herbart. Segundo a autora, a honra está associada a uma característica orgânica da masculinidade tradicional: a propriedade de bens representada pelo provimento material da família. No caso de Herbart, como veremos na citação destacada, a posse e a honra estão intimamente ligadas, necessitando o homem tanto de uma quanto de outra ou, ainda, é honrado o homem de posses:
Mas assim que se venha a desenvolver lenta e gradualmente o natural sentimento de honra com as forças crescentes do corpo e do espírito, tem de ser cuidadosamente preservado e guardado de doenças mortais porque o homem na vida necessita tanto de honra como da posse das coisas. Aquele que dissipar uma e outra esse é tido pela sociedade, e com razão, como um inútil. Aquilo que foi interdito ou que ficou retraído por artifícios pedagógicos na formação natural do cuidado por um e por outro originará posteriormente uma enorme fraqueza, ou então esse sentimento que irrompe repentinamente de assaltos entregando-se tanto mais facilmente aos mais vulgares preconceitos
(HERBART, 2010, p. 80).
Essa análise sobre o pensamento de Herbart e suas possíveis contribuições para a masculinidade não está descolada do contexto histórico singular no qual ele está inserido. Ao discutir a história das ideias pedagógicas dos séculos XVIII e XIX, Gadotti (2003) destaca que a emergente ideologia burguesa tinha duas ambições principais que nos parecem congruentes com o pensamento herbartiano: assegurar a liberdade e a propriedade. Elementos que, pouco a pouco, se tornam hegemônicos também na construção social da masculinidade tradicional dominante e da masculinidade tradicional oprimida definidas por Flecha, Puigvert e Ríos (2013).
O pensamento burguês que acompanha o surgimento da nova classe social e a reorganização societária tem como um de seus maiores trunfos a apropriação do conhecimento e das formulações filosóficas mais elaboradas. A obra de Herbart, ao proclamar com certa justiça seu apreço pela liberdade e pelas diferenças individuais, se transforma, no interior do capitalismo emergente, em subsídio para o pensamento vanguardista burguês revelado no liberalismo e no individualismo.
No que tange às ideias pedagógicas, Herbart representa as elaborações teóricas inspiradas e inspiradoras do Iluminismo, influenciando a tradição intelectual ocidental. O pensamento iluminista provocou uma fissura paradigmática nos intelectuais e na sociedade que se organizou na “Era das Revoluções”, como definiu Hobsbawn (1996). Não por acaso, as contribuições de Herbart se tornaram clássicas no campo da educação de maneira geral e da pedagogia e da didática especificamente, expondo elementos fundamentais para a compreensão dos processos educativos a partir de um constructo filosófico bastante consistente.
Considerações finais
Neste artigo, resultado de pesquisa bibliográfica, nos esforçamos para discutir a obra de Johann Friedrich Herbart (1776-1841), suas ideias pedagógicas e suas possíveis contribuições para a construção do projeto de masculinidade dominante que surge com o Iluminismo. Herbart é considerado o precursor da formulação de uma pedagogia científica organizada a partir da filosofia e da psicologia bem como articulada aos avanços e às transformações dos séculos XVII e XVIII. Ao longo deste trabalho apresentamos o contexto histórico, a teoria da educação de Herbart e as inferências sobre a forma como esse proeminente pensador alemão compreendeu a masculinidade.
Parece-nos que o pensamento filosófico-educacional de Johann Friedrich Herbart, revelado em suas ideias pedagógicas, corrobora a construção de um projeto de masculinidade que a história comprovou dominante. Essa masculinidade, tradicional ou hegemônica, como afirmam os diversos pesquisadores apresentados neste artigo, explicita a dominação masculina em suas diversas esferas. Consideramos que o estudo sobre a masculinidade se apresenta de forma bastante complexa, uma vez que o conceito e as análises sócio-históricas sobre ele estão dissolvidos nos estudos das relações de gênero, tornando sua sistematização e síntese um desafio.
No recorte que escolhemos, damos destaque ao Iluminismo por sua grande influência na filosofia, na educação e, consequentemente, no ideal moderno de masculinidade. Para compreender esse processo, a obra de Johann Friedrich Herbart se apresentou como fundamental por representar, no campo da pedagogia, um dos precursores do Iluminismo. Historicamente, podemos considerar que os séculos XVIII e XIX representam uma curvatura não apenas nas forças produtivas, mas também no âmbito do comportamento, dos costumes, da ética e da moralidade, fato que se revela na centralidade que passa a ocupar a educação na sociedade burguesa ocidental.
A Modernidade inaugura um modelo educativo condizente com os pressupostos burgueses e, ao substituir o conceito de instrução pelo de educação, realiza uma importante mudança. As práticas pedagógicas passam a considerar não apenas os aspectos do conteúdo acadêmico, mas também a possibilidade da formação moral, social e ética adequada ao novo contexto. Assim, as propostas educativas modernas voltam sua atenção ao desenvolvimento dos sujeitos enquanto sujeitos políticos, revelando o antropocentrismo iluminista. O pensamento de Johann Friedrich Herbart se encontra justamente nesse momento histórico de transição, concebendo um avanço no modelo pedagógico.
Herbart formulou um movimento educacional amparado nos preceitos da filosofia clássica e as ideias pedagógicas assumem seu caráter teórico-prático, constituindo arcabouços de cientificidade por meio da teorização da própria prática. De toda sorte, as contribuições de Herbart levam para a pedagogia a metodologia científica de ensino.
Johann Friedrich Herbart reflete em sua pedagogia as transformações sociais de seu tempo; não por acaso sua principal preocupação se torna o desenvolvimento da capacidade moral. O século XVII viu nascer novos ideais, novas possibilidades de vida e a reorganização do status quo. Para o alemão, testemunha desse processo, a educação das novas gerações passaria, necessariamente, pela apropriação desses valores morais.
As proposições modernas da masculinidade dominante, na qual podemos incluir as contribuições de Herbart, estão amparadas nas mudanças sociais oitocentistas. Para Badinter (2013), o Iluminismo revela uma perspectiva epistemológica que atinge diversas esferas do pensamento ocidental, explicitando, entre outras coisas, crises nas masculinidades que nesse momento precisam se reafirmar diante de um contexto de incertezas. Na mesma direção, a masculinidade dominante não se deu linearmente e a preconizada supremacia masculina só pode ser compreendida diante das profundas transformações sociais e econômicas e dos projetos societários em disputa nos séculos XVIII e XIX.
É importante salientar que elementos presentes na pedagogia de Herbart, como a preconização da juventude e da força, a associação entre a moral e a posse de bens materiais, revelam traços do que se convencionou chamar de masculinidade tradicional dominante ou hegemônica. Parece-nos exagerado denotar a Herbart a responsabilidade exclusiva da construção de uma proposta educativa da dominação masculina, no entanto, suas contribuições ao modelo de moral e a consequente formulação de uma pedagogia que respondesse aos interesses emergentes resultam em práticas pedagógicas que, ao nosso ver, favoreceram a consolidação da masculinidade tradicional dominante.
Por fim, podemos inferir que a proposta pedagógica de Herbart, baseada no desenvolvimento da capacidade moral e nos valores sociais emergentes no Oitocentos, favoreceu e promoveu a construção da masculinidade tradicional dominante. Isso significa dizer que os parâmetros de vida e a organização social provocada pelo avanço da sociedade não influenciaram apenas o sistema produtivo, mas foram responsáveis também pela afirmação de um novo tipo de masculinidade.