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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.42  Maringá  2020  Epub 01-Set-2020

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v42i1.52897 

HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Cartografando multiterritorialidades docentes e discentes na cibercultura

Mapping multiterritorialities of teachers and students in cyberculture

Cartografiando multiterritorialidades docentes y discentes en la cibercultura

Karla Nascimento de Almeida1  * 
http://orcid.org/0000-0003-0324-9410

Maria Celeste Reis Fernandes de Souza1 
http://orcid.org/0000-0001-6955-5854

Cristiane Mendes Netto1 
http://orcid.org/0000-0002-5725-8323

1Universidade Vale do Rio Doce, Rua Israel Pinheiro, 2000, 35020-220, Governador Valadares, Minas Gerais, Brasil.


RESUMO.

O artigo tem como objetivo analisar as multiterritorialidades e os processos de conhecer de docentes e discentes do 9º ano do Ensino Fundamental, ao acessarem o território virtual. Os participantes do estudo pertencem a uma escola pública de uma cidade de médio porte de Minas Gerais, que funciona em tempo integral, e a fonte dos dados produzidos foi a entrevista narrativa. O aporte teórico são as contribuições de Rogério Haesbaert sobre território, de Gilles Deleuze e Félix Guattari sobre rizoma, em diálogo com autores(as) que se debruçam sobre as Tecnologias de Informação e Comunicação e suas relações com a educação. A análise mobiliza a cartografia como um dos princípios do rizoma e mapeia as apropriações do território virtual feitas por docentes e discentes, ao acessarem uma rede de interações rizomáticas na cibercultura. Os resultados indicam, na constituição das multiterritorialidades docentes e discentes, diferentes graus de vulnerabilidade informacional e diferentes processos de conhecer. Esses processos dizem respeito: aos conhecimentos sobre a tecnologia, à exploração de possibilidades de comunicação, à interação na produção e ao compartilhamento de conteúdos. As conclusões do estudo apontam para a importância do debate no campo da educação sobre os movimentos de ubiquidade que demarcam os processos de conhecer de docentes e discentes, para além das aprendizagens escolares, na proposição de reflexões sobre o acesso ao território virtual, marcado por um movimento identitário dos sujeitos, cujas experiências são tecidas em diferentes condições socioeconômicas e culturais.

Palavras-chave: tecnologia educacional; acesso à tecnologia; desigualdade econômica

ABSTRACT.

This paper aims to analyze the multiterritoriality and the knowledge building processes of teachers and students, when accessing the virtual territory. The study participants belong to a full-time public school in a medium-sized city in Minas Gerais State, Brazil. The source of the data produced was a narrative interview. The theoretical foundations are the contributions of Rogério Haesbaert about territory, Gilles Deleuze and Félix Guattari about rhizome, in dialogue with authors who focus on Information and Communication Technologies and their relations with education. The analysis mobilizes the cartography, as one of the principles of the rhizome, and maps the appropriations of the virtual territory of teachers and students, when accessing a network of rhizomatic interactions in cyberculture. The results indicate in the constitution of the multiterritoriality of teachers and students, there are different degrees of informational vulnerability, and different knowledge processes. These processes concern about knowledge in technology, the ability of communication and interaction possibilities due the content production and sharing. The study's conclusions point to the importance of the debate in the education field about the ubiquity movements that demarcate teachers and students knowledge building processes, beyond school learning, in proposing reflexions about the access to the virtual territory marked by subjects identity movement, whose experiences are built in different socioeconomic and cultural conditions.

Keywords: educational technology; technology access; economic inequality

RESUMEN.

El artículo tiene como objetivo analizar las multiterritorialidades y los procesos de conocer de docentes y discentes, del 9º año de la Enseñanza Fundamental al acceder el territorio virtual. Los participantes del estudio pertenecen a una escuela pública de una ciudad de medio porte de Minas Gerais, que funciona en tiempo integral, y la fuente de los datos producidos fue una entrevista narrativa. El aporte teórico son las contribuciones de Rogério Haesbaert sobre territorio, de Gilles Deleuze y Félix Guattari, sobre rizoma, en diálogo con autores/as especialistas en Tecnologías de la Información y Comunicación y sus relaciones con la educación. El análisis moviliza la cartografía, como un de los principios del rizoma, y mapea las apropiaciones del territorio virtual de docentes y discentes, al acceder una red de interacciones rizomática en la cibercultura. Los resultados indican en la constitución de las multiterritorialidades docentes y discentes, diferentes grados de vulnerabilidad informacional, y diferentes procesos de conocer. Esos procesos dicen respecto a conocimientos sobre la tecnología, la exploración de posibilidades de comunicación e interacción en la producción y del compartir contenidos. Las conclusiones del estudio apuntan para la importancia del debate en el campo de la educación sobre los movimientos de ubiquidad que demarcan los procesos de conocer de docentes y discentes, para más allá de las enseñanzas escolares, en la proposición de reflexiones sobre el acceso al territorio virtual marcado por un movimiento de identidad de los sujetos, cuyas experiencias son tejidas en diferentes condiciones socioeconómicas y culturales.

Palabras-clave: tecnología educacional; acceso a la información; desigualdad económica

Introdução

Em dezembro de 1996, em uma visão apologética das tecnologias com suas inúmeras possibilidades, Gilberto Gil lançou a música ‘Pela Internet’; primeira música brasileira a ser transmitida on-line. Dessa música recortamos os versos: “Criar meu web site / Fazer minha home-page/ Com quantos gigabytes / Se faz uma jangada / Um barco que veleje” (Gil, 1996). Em janeiro de 2018, uma segunda versão da música é lançada pelo canal de Youtube do cantor e compositor, chamada de ‘Pela Internet 2’ e que apresenta os versos:

Criei meu website / Lancei minha homepage [...] /Estou preso na rede /Que nem peixe pescado / É zapzap, é like / É instagram, é tudo muito bem bolado / O pensamento é nuvem [...] / Cada dia nova invenção / É tanto aplicativo que eu não sei mais não (Gil, 2018).

As duas décadas que separam as duas versões permitem-nos pensar na potencialidade do ciberespaço para tornar possível o que se enunciava de modo visionário, na primeira música, e que se efetiva, na segunda música, com sua amplitude e indagações.

As referências às duas versões da música são acionadas nesta introdução para nos ajudar a compor o mosaico da cibercultura, e o modo como ela encontra-se imbricada em nossos comportamentos, em nossos saberes e fazeres, em nossas formas de ver o mundo, de nos relacionar, de poetizar, de aprender etc., e que plasmam novas relações socioespaciais e temporais, que marcam nossos modos de ser e viver, em uma contemporaneidade na qual o ciberespaço encontra-se como um amálgama.

A contemporaneidade da cibercultura é destacada por Santos (2019, p. 20): “[...] a cibercultura é a cultura contemporânea que revoluciona a comunicação, a produção e circulação em rede de informações e conhecimentos na interface cidade-ciberespaço”. Outro destaque feito pela autora, e do qual nos valemos para enfatizar a proposta de discussão neste texto é a de que, como consequência da cibercultura, “[...] novos arranjos espaçotemporais emergem e com eles novas práticas educativas” (Santos, 2019, p. 20).

Rompendo as barreiras espaçotemporais, como destacado pela autora, a cibercultura chega à escola como um reflexo da sociedade em que as TIC se tornam cada vez mais presentes, impulsionadas, sobretudo, pelo sistema mercadológico, trazendo desafios ingentes para o campo da educação, sendo um desses desafios o próprio acesso a essas tecnologias. Este texto pretende contribuir com uma reflexão sobre os modos como docentes e discentes encontram-se implicados em movimentos de ubiquidade, que demarcam seus processos de conhecer, a partir dos diferentes modos de apropriação do território virtual por esses sujeitos.

Valendo-nos dos aportes teóricos do campo da Geografia Humana sobre território e seus corolários (territorialidade e multiterritorialidade), das contribuições de Deleuze e Guattari sobre rizoma, em diálogo com autores(as) que se debruçam sobre as tecnologias de informação e comunicação e suas relações com a educação, o objetivo deste artigo é analisar as multiterritorialidades e os processos de conhecer de docentes e discentes do 9º ano do Ensino Fundamental, ao acessarem o território virtual.

Ao mobilizarmos o aporte teórico de território, compreendemos que o movimento cidade-ciberespaço é um movimento entre territórios (material/virtual), e é, também, um movimento identitário dos sujeitos, com experiências diferenciadas, tecidas em diferentes condições socioeconômicas e culturais.

Multiterritorialidades e cibercultura

A perspectiva territorial assumida, neste artigo, toma como referência as contribuições do geógrafo brasileiro Rogério Haesbaert (2007, 2011a, 2011b), que considera o território como um continuum e a territorialidade como a apropriação material/simbólica do espaço vivido. O território, assim, é compreendido pelo autor como uma construção histórica e, portanto, social, que possui tanto uma dimensão mais subjetiva da apropriação do espaço quanto uma dimensão mais objetiva ou funcional de dominação do espaço (Haesbaert, 2007). O autor reforça que “[...] se o território é uma construção histórica, [...] as territorialidades também são forjadas socialmente ao longo do tempo em um processo de relativo enraizamento espacial” (Haesbaert, 2007, p. 47). Esse enraizamento diz respeito ao “[...] modo como as pessoas se organizam no espaço e como elas dão significado ao lugar” (Haesbaert, 2007, p. 22).

Haesbaert aponta para uma superposição espacial na contemporaneidade, com a utilização de novo aparato tecnológico-informacional do qual dispomos, na qual se mesclam territórios virtuais, fazendo emergir “[...] uma multiterritorialidade, não apenas por deslocamento físico como também por ‘conectividade virtual’, influenciando e de alguma forma, integrando outros territórios” (Haesbaert, 2007, p. 37, grifo do autor).

O autor vai distinguir, assim, duas formas básicas de efetivação da multiterritorialidade. A primeira proporcionada pela crescente facilidade e cada vez maior velocidade dos meios de transporte, possibilitando deslocamento físico rápido, constante, e na escala do globo como um todo. A segunda, com maior carga imaterial, é a que nos permite

[...] pela comunicação instantânea, contactar e mesmo agir sobre territórios completamente distintos do nosso, sem a necessidade da mobilidade física. Trata-se aqui de uma multiterritorialidade envolvida nos diferentes graus daquilo que poderíamos denominar como sendo a vulnerabilidade informacional (ou virtual) dos territórios (Haesbaert, 2011b, p. 345).

Dessa forma, as novas articulações em rede dão origem ao que o autor vai denominar de “[...] territórios-rede flexíveis onde o mais importante é ter acesso aos pontos de conexão que permitem ‘jogar’ com a multiplicidade de territórios existente, criando assim uma nova territorialidade” (Haesbaert, 2011b, p. 345, grifo do autor).

Assim, as múltiplas formas de vivenciar os territórios, sejam simultânea ou sequencial, vão possibilitar, segundo Haesbaert (2007, p. 39) o surgimento de uma “[...] nova experiência espacial integrada [...]” que vai incluir “[...] uma dimensão tecnológico-informacional de crescente complexidade em torno daquilo que podemos denominar uma reterritorialização via ciberespaço”.

O autor enfatiza, ainda, a velocidade de acesso e trânsito por outros territórios virtuais, que também faz comparecer outras territorialidades “[...] elas próprias muito mais instáveis e móveis - e, dependendo de nossa condição social, também muito mais opções para desfazer e refazer constantemente essa multiterritorialidade” (Haesbaert, 2011b, p. 344).

Imersos no ciberespaço, muitos de nós se encarrega de “[...] tecer sua própria rede, ou melhor, seu(s) próprio(s) território(s)-rede(s) -que implicam, sem dúvida, a vivência de uma multiterritorialidade” (Haesbaert, 2007, p. 37). Mas, a efetivação dessa multiterritorialidade no ciberespaço se dará em diferentes graus, a partir das condições socioeconômicas que vão cercear, em maior ou menor grau, o acesso ao território virtual.

O autor, em suas discussões, expõe a fragilidade do argumento, de certo modo consensado, de que ‘estamos todos conectados’, provocando em nós a reflexão sobre as diferenças de apropriação do território virtual, que ecoam as diferenças de apropriação de outros territórios por grande parte da população brasileira deslocada da terra, como nas migrações sazonais, ou aqueles que vivem em condições precárias de existência, cuja entrada nesse território virtual é cerceada pelas próprias condições materiais de existência. Temos assim, com relação ao ciberespaço, um processo cada vez mais múltiplo e complexo “[...] por um lado mais híbrido e flexível, [...] das novas tecnologias da informação e, por outro, mais inflexível e fechado, marcado pelos muros que separam ricos e pobres” (Haesbaert, 2011a, p. 66).

O autor nos provoca a refletir sobre as diferenças de acesso ao território virtual, e sobre impossibilidade de ignorarmos o fato de que

[...] assim como não há ‘ciberespaço’ unificado, válido para a Terra inteira, permanecendo uma grande parcela da humanidade off-line, também não há uma territorialidade que manifeste o ‘hibridismo’ entre ciberespaço e espaço material difundido da mesma forma por toda a superfície da Terra (Haesbaert, 2011a, p. 66, grifo do autor).

Desse modo, além de uma transformação quantitativa que amplia as alternativas territoriais, a facilidade de acesso e a velocidade das mudanças, o autor vai ressaltar em suas discussões, uma transformação qualitativa de experiência espaço-temporal mais fluida, “[...] uma experiência que pode ser profundamente diferenciada de acordo com as classes sociais e os grupos culturais a que pertencemos” (Haesbaert, 2011b, p. 345).

Tomando como referência as contribuições do autor, adotamos teoricamente a compreensão de multiterritorialidade para explicar a vivência de múltiplos territórios virtuais por docentes e discentes que trouxemos para compor este artigo, em um processo aberto e dinâmico com múltiplas possibilidades de conexão em uma rede de interações, com caminhos imprevisíveis, aberturas e fechamentos, acesso à informação, o que nos leva, neste estudo, a acionar a potência do conceito de rizoma proposto por Deleuze e Guattari (1995).

Nas palavras dos autores, “[...] um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo” (Deleuze & Guattari, 1995, p. 37). Gallo (2008) explora a metáfora do rizoma como possibilidade de abertura e multiplicidade em contraste ao modelo arborescente que remete à unicidade, hierarquização e fechamento que paralisa o pensamento. Ao contrário, “[...] o rizoma, sempre aberto, faz proliferar pensamentos” (Gallo, 2008, p. 76).

Ao olharmos para o ciberespaço, podemos vê-lo de forma semelhante ao rizoma, instaurando rupturas no modo de produção e difusão de informações, constituindo-se como uma “[...] estrutura comunicativa de livre circulação de mensagens, agora não mais editada por um centro, mas disseminada de forma transversal e vertical, aleatória e associativa” (Lemos, 2002, p. 85).

No ciberespaço, as possibilidades de produção, armazenamento e compartilhamento de informações, no modelo todos-todos, são ampliadas pelas tecnologias da inteligência que, por serem tecnologias interativas, “[...] elas nublam as fronteiras entre produtores e consumidores, emissores e receptores” (Santaella, 2007, p. 79).

Essas mudanças e transformações advindas da cibercultura vão suscitar o debate e a tomada de decisões políticas, tanto para ampliar o acesso às tecnologias quanto para “[...] implicar as escolas em outras dinâmicas de ensino/aprendizagem” (Alonso, 2008, p. 749), em que ao professor caberá, entre outras coisas, “[...] aprender a gerenciar vários espaços e a integrá-los de forma aberta, equilibrada e inovadora [...] incrementando outros espaços e tempos de aprendizagem” (Moran, 2013, p. 27).

Na perspectiva de Moran (2013), a escola vai deixando de atuar apenas no seu espaço físico, limitado, para se estender, virtualmente até os limites do universo, podendo integrar “[...] espaços significativos da cidade: museus, centros culturais, cinemas, teatros, parques, praças, ateliês, centros esportivos, centros comerciais, centros produtivos, entre outros” (Moran, 2013, p. 29), potencializando a interface cidade-ciberespaço (Santos, 2019).

A interface território material/virtual impele a novos modos de conhecer, em uma complexa rede de relações, na qual se sobrepõe a força do território virtual, acionando multilinguagens e processos mais fluidos de aprendizagens, definidos por Santaella (2010, p. 19) como:

Processos de aprendizagem abertos significam processos espontâneos, assistemáticos e mesmo caóticos, atualizados ao sabor das circunstâncias e de curiosidades contingentes e que são possíveis porque o acesso à informação é livre e contínuo, a qualquer hora do dia e da noite. Por meio dos dispositivos móveis, à continuidade do tempo se soma a continuidade do espaço: a informação é acessível de qualquer lugar. É para essa direção que aponta a evolução dos dispositivos móveis, atestada pelos celulares multifuncionais de última geração, a saber: tornar absolutamente ubíquos e pervasivos ao acesso à informação, a comunicação e a aquisição de conhecimento.

Compreendendo, pois, a fluidez dos processos de aprender é que recorremos à cartografia proposta por Deleuze e Guattari (1995) como ferramenta analítica neste estudo. A proposta é acompanhar os movimentos, os pontos de tensão, a multiplicidade de conexões, ao mapearmos multiterritorialidades e processos de conhecer de docentes e discentes no território virtual. O exercício é cartografar sentidos, modos de apropriação do ciberespaço com suas múltiplas entradas e saídas, tal como o rizoma, que “[...] enquanto mapa, possui sempre regiões insuspeitas, uma riqueza geográfica pautada numa lógica do devir, da exploração, da descoberta de novas facetas” (Gallo, 2008, p. 77).

Da produção da cartografia

Inspiradas em Santaella (2007), nos interrogamos sobre como produzir dados sobre territorialidades moventes, fluidas, que deslizam por espaços intersticiais, mesclando as dimensões física e virtual. Essa foi uma das perguntas que fizemos na produção do material empírico de uma pesquisa1, realizada em uma escola da rede pública, em um município de médio porte do Estado de Minas Gerais, que funciona em tempo integral, cujo projeto pedagógico, no ano de realização do estudo, era voltado para o uso das tecnologias na escola com aulas de alfabetização digital, robótica, manutenção de computadores e arte digital, o que definiu a escolha dessa escola.

Na resposta à pergunta que abre esta seção, compreendemos a necessidade de buscar as linhas, os traçados, os nós, as conexões, enfim, fazer rizoma! Para isso, construímos texto dos movimentos empreendidos no campo de pesquisa; o acompanhamento de docentes e discentes do 9º ano em diferentes momentos: nas aulas específicas do uso da tecnologia, durante os intervalos de almoço de docentes e discentes, e na realização de entrevistas. Neste artigo, tomamos como objeto de análise do material empírico gerado, a textualização das entrevistas realizadas com docentes e discentes.

Optamos por entrevistas narrativas pela potencialidade de captura de experiências subjetivas dos participantes, a partir de uma questão geradora2:

Eu quero lhe pedir que me conte como foi o seu primeiro contato com as tecnologias móveis, com tablets, notebooks, smartphones ou outros equipamentos que você conheça. Quero também que me conte como é a sua relação com esses equipamentos hoje na sua casa, na escola...Você pode demorar o quanto quiser fazendo isso, incluindo também os detalhes, porque para mim interessa tudo que é importante para você no que diz respeito ao uso dessas tecnologias (Elaboração própria).

Capturamos nas entrevistas, territorialidades de 4 docentes com idades entre 29 e 59 anos - Isa, July, Joel e Mauro3, selecionados intencionalmente, observando a paridade de gênero e tempo de exercício profissional (dois iniciantes e dois com maior tempo de experiência profissional). Profissionais marcados pela desvalorização histórica da profissão, que precisam fazer jornada dupla para sobreviver, que ora resistem às tecnologias, ora fazem as pazes com ela.

Também capturamos, por meio de entrevistas, as territorialidades de Ana, Bia, Carol, Íris, Ian, Abel, Zoé e Kauã, discentes entre 13 e 17 anos de idade, que se dispuseram a ser entrevistados4. Jovens que moram em bairros periféricos, cuja população tem baixo poder aquisitivo e suas vivências são marcadas por um cenário de vulnerabilidade social, tanto que o acesso à internet é limitado: ora partilhado com os colegas, ora com a mãe ou com outros membros da família. Esses(as) jovens acessam o território virtual para realizar atividades escolares, para jogar, assistir a vídeos, ouvir músicas, pesquisar partituras, comunicar-se com familiares e amigos(as).

Deleuze e Guattari (1995) nos apresentam 6 princípios do rizoma: conexão, heterogeneidade, multiplicidade, ruptura a-significante, cartografia e decalque. Demos atenção maior ao princípio da cartografia, por se configurar como um princípio rizomático metodológico profícuo para mapearmos processos em movimento. A proposta, tal como sugere Deleuze e Guattari (1995), é colocar o mapa sobre o decalque. É olhar para o território escolar em que identidades, de modo geral, são vistas como uma essência (fixas, imutáveis), para refletir sobre o fato de que essas identidades são constitutivas dos territórios, sobre o modo como os sujeitos se apropriam e dão significado ao espaço vivido, forjando territorialidades (Haesbaert, 2007, 2011a, 2011b).

A cartografia vai reforçar o rizoma enquanto mapa, “[...] aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente” (Deleuze & Guattari, 1995, p. 22). Assim, foi possível acompanhar movimentos, mapear apropriações do território virtual e os movimentos de multiterritorialidades docentes e discentes, uma vez que acessam uma rede de interações rizomáticas na cibercultura. Capturamos, assim, na constituição dessas multiterritorialidades, diferentes graus de vulnerabilidade informacional e diferentes processos de conhecer.

Multiterritorialidades e processos de conhecer

Para a discussão sobre multiterritorialidades e processos de conhecer, acionados e produzidos no território virtual, apresentamos a Figura 1, gerada no intuito de cartografar nós de intensidades que ecoaram nas entrevistas.

Figura 1 Multiterritorialidades docentes e discentes. 

Fonte: Elaborado pelas autoras.

A figura nos remete às diversas conexões de docentes e discentes na cibercultura. Os círculos cinza-claros representam docentes e discentes e as linhas pontilhadas referem-se aos diferentes lugares de onde acessam o território virtual, da escola e fora da escola, e aos agenciamentos5 (Deleuze & Guattari, 1995) empreendidos por esses sujeitos no desejo de acessarem esse território. O primeiro nó corresponde, assim, ao acesso de docentes e discentes ao território virtual (por meio de computadores e diferentes dispositivos móveis), a partir de duas ramificações distintas: o Wi-Fi e o plano de dados.

O segundo nó ilustra conhecimentos sobre as tecnologias, como utilizá-las para realizarem melhores experiências no território virtual, e envolvem diferentes conexões com familiares, colegas de sala e/ou trabalho, oficinas realizadas nas escolas, cursos específicos de informática ou de qualificação docente e a própria experimentação desses sujeitos com os dispositivos tecnológicos. Os processos de conhecer, demarcados pela cibercultura, são ilustrados no terceiro nó e nos remetem às aprendizagens ubíquas, fluidas e dinâmicas, produzidas a partir da interação de docentes e discentes com as tecnologias, explorando territórios virtuais de músicas, vídeos, aplicativos, jogos, notícias e pesquisas escolares.

Acreditamos na potência ilustrativa da figura para fazer rizoma, para apresentar conexões, linhas de entradas e saídas de docentes e discentes ao ciberespaço e as múltiplas aprendizagens que brotam dessas interações. Na tentativa de compreender que essas conexões fazem emergir pontos de intensidade relativos aos processos de conhecer, optamos por nomeá-los, neste texto, de nós, pela força de congregar sentidos.

Na análise do primeiro nó, observamos que o acesso de docentes e discentes ao território virtual denuncia diferentes graus de vulnerabilidade informacional (Haesbaert, 2011b) para adentrar o ciberespaço, a partir das condições socioeconômicas desses sujeitos.

Para os discentes, essa entrada se dá, sobretudo, pelo compartilhamento do aparelho celular, como explica Ana ao relatar sobre como acessa o território virtual: “Eu e minha mãe dividimos o celular para o WhatsApp. Ela fica com o celular na parte da manhã e eu fico com o celular na parte da tarde, e da noite”6.

O relato de Ana é semelhante ao de outros cinco estudantes que participaram da entrevista e acessavam a rede pelos aparelhos de pai, mãe, familiares e colegas, por não terem um dispositivo próprio. Desses, dois já tiveram celular, mas no momento estavam estragados. Apenas dois discentes possuíam smartphone e acessavam a internet pelo Wi-Fi de casa e o plano de dados “[...] de vez em quando” (Carol), quando a mãe inseria créditos no aparelho.

Esse cerceamento de acesso ao ciberespaço tem duas ramificações diferentes, que também atingem os docentes. A primeira delas deve-se ao custo dos planos de dados das operadoras de telefonia móvel. Embora esse valor tenha se tornado mais popular nos últimos anos, ainda assim a inserção de créditos no aparelho só ocorre eventualmente, seja no celular do estudante ou dos familiares, como explica Iris: “Às vezes, quando meu pai colocava a internet no celular pelo telefone”.

Embora os(as) docentes utilizem mais que os discentes o plano de dados móveis, o valor do pacote de serviços para internet também é indicado nas entrevistas com os docentes como um dos motivos que limitam o acesso ao território virtual, como destaca Joel: “[...] agora que tá começando a ficar mais fácil a gente ter acesso a um pacote de dados pra usar a internet em qualquer lugar”.

A outra ramificação de acesso ao ciberespaço é o Wi-Fi. Nesse formato, a conexão se faz via cabos de rede a um servidor central e é distribuída para acesso à internet por um roteador, podendo ser partilhada por diferentes dispositivos, como acontece com Bia, ao se conectar: “Tem Wi- Fi lá em casa, tem o computador que dá pra mexer, tem o tablet”.

O uso do Wi-Fi permite uma velocidade maior de acesso à internet e maior qualidade de navegação. Contudo, à medida que o usuário se distancia do ponto de acesso (roteador) a conexão vai se perdendo, o que impossibilita o uso do Wi-Fi no segundo pavimento da escola, onde estão as salas das turmas do 9º ano. “É difícil porque as salas são em cima, então não dá pra poder usar o sinal da escola [...], eu uso mais do meu” (Isa, docente).

Os diferentes graus de vulnerabilidade informacional dos discentes também são observados em sala de aula por uma docente, ao explicar o compartilhamento de aparelhos celulares pelos colegas. Na observação de Isa, “[...] não é o dono do próprio celular que fica mexendo [...], ele empresta pro colega que não tem e não pode comprar, porque a nossa escola é uma escola que não são todos que tem acesso a esse bem em casa”.

Nos excertos discursivos acima, podemos ler as desigualdades econômicas e sociais dos discentes participantes da pesquisa, e observar que a escola se coloca como o principal ponto de acesso ao território virtual, o que é reafirmado por Íris: “[...] eu gosto de mexer. É o único lugar que a gente pode mexer com isso (os jogos online) porque em casa a gente não tem essas coisas”.

Os diferentes graus de acesso à internet de docentes e discentes, e que cerceiam fortemente a entrada dos discentes no território virtual, são referendados pela pesquisa TIC Kids Online Brasil que investiga, desde 2012, o uso da internet por crianças e adolescentes, de 09 a 17 anos de idade, no País. Os dados informam a desigualdade da proporção de crianças e adolescentes que entram no território virtual. “Enquanto a quase totalidade das crianças e dos adolescentes de 9 a 17 anos das classes AB (98%) e C (94%) era usuária de Internet em 2018, entre aqueles das classes DE, a proporção foi de 73%” (Comitê Gestor da Internet no Brasil [CGI.BR], 2019, p. 110), podendo ser consideradas essas últimas as classes dos participantes do nosso estudo. A análise dos dados do relatório 2018 indica que, “[...] de modo geral, no Brasil, as classes mais altas possuíam melhores condições de acesso à rede, a utilizavam com mais frequência, por meio de uma pluralidade maior de dispositivos e em uma maior variedade de locais” (CGI.BR, 2019, p. 119).

Ao refletir sobre multiterritorialidades que se efetivam no acesso ao ciberespaço, que brotam em um circuito técnico-informacional globalizado, capturamos diferentes graus de vulnerabilidade informacional (virtual) (Haesbaert, 2011b) nesse território, denunciadores de desigualdades sociais que não podem ser desconsiderados, ao se discutir tecnologia e educação. As experiências espaçotemporais de docentes e discentes no uso das tecnologias são moldadas pelas diferentes condições socioeconômicas, marcadas por processos de precarização socioespacial, limitando a entrada desses sujeitos nesse território.

No segundo nó, que se ramifica na direção do conhecimento sobre as tecnologias, dos processos que docentes e discentes mobilizam para conhecer e utilizar os diferentes dispositivos tecnológicos, capturamos que esses processos envolvem diferentes conexões com familiares, colegas de sala e/ou trabalho, cursos de informática, oficinas realizadas nas escolas, cursos de graduação e pós-graduação. São processos que envolvem a dimensão mais prática e funcional do conhecimento, em que docentes e discentes buscam aprender sobre digitar e editar textos, criar pastas, acessar redes sociais, enviar e-mail, compartilhar vídeos, baixar aplicativos, jogos ou músicas, e ampliar conhecimentos escolares.

As relações espaçotemporais inscritas nesse processo de conhecer os dispositivos tecnológicos são experiências que não se circunscrevem apenas aos limites físicos e temporais da escola, mas são potencializadas e ampliadas pelo ciberespaço. Nesse sentido, docentes e discentes aprendem em um movimento ubíquo, na escola, no horário de intervalo, nas aulas específicas de tecnologias, perguntando, mostrando, pedindo ajuda aos colegas e partilhando conhecimentos. Aprendem, nesse mesmo movimento, em outros espaços, em casa ou na casa de familiares e colegas, mediados pela própria tecnologia, pelos equipamentos - computadores, tablets, notebooks, celulares, que podem ser acessados de forma livre, informal, descentrada (Santaella, 2010). Cabe refletir, que a liberdade de acesso está circunscrita às condições socioeconômicas que permitirão a docentes e discentes fazerem uso dos aparatos técnicos-informacionais.

O acesso a essas informações, tanto vão colaborar com o processo de conhecer melhor as potencialidades dos dispositivos tecnológicos, bem como vão possibilitar ampliar os conhecimentos escolares, como nos conta Bia: “[...] não é mais só a matéria explicativa no quadro, [...] tem vídeo, videoaula, não precisa só do professor ficar escrevendo no quadro”. A possibilidade oferecida pelas tecnologias é vista como complementar ao trabalho do professor e de livre acesso, caso seja necessário aprofundar o conhecimento. “Às vezes a matéria da sala de aula que eu não entendo muito bem, aí eu vejo tutorial na internet, professor dando aula online...” (Bia).

Abel mobiliza conhecimentos sobre as tecnologias aprendidas na escola, como uma forma de geração de renda. “Geralmente quando eu estou com tempo e preciso de um dinheiro eu trabalho formatando computadores e trocando peças”. Atividade que demonstra conhecimento dessa tecnologia, adquirido nas aulas de manutenção de computadores, ratificada pelo professor, referindo-se ao estudante: “Ele pegou, abriu tudinho, limpou tudinho e tal... aquele negócio todo... e montou direitinho aquela coisa toda e entregou funcionando perfeitamente” (Joel).

Para além de conhecimentos sobre a montagem de equipamentos, capturamos também conhecimentos para acessar funcionalidades do território virtual relacionadas ao setor de prestação de serviços, como nos conta Ana, que utiliza o computador para ajudar o pai no trabalho dele, quando ele “[...] precisa fazer as notas fiscais dele eu que faço pra ele”.

Criar grupo no WhatsApp foi um conhecimento que Carol obteve com a ajuda da irmã. “Ela me ensinou como colocar as pessoas no grupo [...] e colocar link também, aí eu criei um grupo do 9º ano B, aí quando tem trabalho eu mando pra eles e eles recebem. Quando eu falto eles também me mandam”. O conhecimento, nesse caso, adquirido com a irmã foi colocado em prática pela discente, no intuito de compartilhar informações sobre as atividades escolares com os colegas que faltaram à aula. A aprendizagem, nesse sentido, ganha um significado na ação.

Ainda no domínio das tecnologias, o conhecimento, tal como o rizoma, não se coloca no modelo hierárquico da árvore, e sim espalha suas raízes em diferentes direções. O conhecimento das tecnologias não é primazia de docentes, nem daqueles que se graduaram na área, como nos conta Joel: “Como eu ainda não tenho o domínio desse jogo... Eu sei do que se trata mas eu não tenho domínio desse jogo, [...] eu teria que tirar essa dúvida com os alunos mesmos”. Interessante perceber aqui como as tecnologias, na escola, promovem o deslocamento do eixo central dos processos de ensino tradicional, com foco nos conteúdos e nos professores. Quando as tecnologias entram nesse cenário elas desestabilizam esse processo, reconfiguram relações educacionais docentes e discentes e imprimem à escola outra dinâmica de ensino-aprendizagem (Kenski, 2008).

Essa nova dinâmica “[...] questiona profundamente as formas institucionais, as mentalidades e a cultura dos sistemas educacionais e, sobretudo, os papéis de professor e de aluno” (Lévy, 1999, p.172). O fragmento captura o reconhecimento do docente sobre a possibilidade de aprender com os discentes, invertendo o modelo tradicional centrado no professor como única fonte de conhecimento.

Podemos pensar, assim, sobre a imagem do professor infalível, posto em xeque pelas tecnologias que, “[...] se você perguntar todo mundo fala que sabe, tem medo, vergonha de falar que não sabe [...] todo mundo sabe na teoria...” (July). A partir dessa imagem, o professor que não lida com as tecnologias é visto como atrasado em relação aos que dominam esse conhecimento. De qualquer forma, com graus maiores ou menores de conhecimento das tecnologias, docentes e discentes acessam o território virtual e tecem novos e múltiplos conhecimentos.

Quanto aos modos de conhecer, demarcados pela cibercultura, no terceiro nó, identificamos, que trilhando caminhos diversos no território virtual, docentes e discentes acionam processos “[...] espontâneos, assistemáticos e mesmo caóticos, atualizados ao sabor das circunstâncias e de curiosidades contingentes e que são possíveis porque o acesso à informação é livre e contínuo, a qualquer hora do dia e da noite” (Santaella, 2010, p. 19); esses processos são acessados por esse grupo, muitas vezes nas contingências da vulnerabilidade socio-informacional. O acesso ao território virtual possibilita que docentes e discentes aprendam e ampliem conhecimentos sobre o próprio ciberespaço, as possibilidades de comunicação e interação, a produção e compartilhamento de conteúdos. Cabe refletir, que a perspectiva de acesso livre e contínuo a qualquer momento, não diz respeito a uma visão idealizada do ciberespaço, e sim a uma forma de acesso livre que as tecnologias móveis possibilitam. Neste texto, assume-se um movimento que é livre e contínuo não por si só, mas como produto de condições socioeconômicas, pois são essas condições que em maior ou menor grau possibilitarão jogar com os múltiplos territórios virtuais (Haesbaert, 2011b).

Movidos por desejos coletivos, docentes e discentes acessam a rede para realizar pesquisas, para buscar diferentes fontes de informação, qualificando o trabalho pedagógico para baixar aplicativos e jogos, como narrado nos fragmentos a seguir de quatro discentes e uma docente:

Utilizo pra fazer trabalhos, pra pesquisar, pra aprender as vezes a matéria da sala de aula que eu não entendo muito bem (Bia).

Então geralmente eu procuro saber algo de novo nos computadores. Sobre games e inúmeros aplicativos que fazem coisas... (Ian).

Pra jogos...jogos só... Sobrevivência, corrida, coisas que você tem que se virar pra conseguir as coisas (Zoé).

Pesquisar partituras [...] que depois eu toco na igreja [...] conversar com os amigos (Kauã).

Estava passando a reportagem sobre aqueles problemas que estavam acontecendo lá nos EUA, então você quer se aprofundar [...] é automático! Você vai e pesquisa pra saber como é que está a intensidade, é aonde, como é que foi, quem está envolvido, por quê? Quando você chega aqui na escola alguém vai te perguntar alguma coisa e também pra você estar ciente do que está acontecendo no mundo (Isa).

Os fragmentos acima enfatizam desejos distintos, diferentes contextos de vida, estilos, movimentos espontâneos a partir dos quais docentes e discentes demarcam multiterritorialidades. Ian relata a possibilidade de ampliar o conhecimento sobre Geografia, agenciado pelo desejo de viajar, e busca essa experiência com o acesso ao mapa virtual pelo Google Maps, na modalidade Street View, que permite ao usuário uma experiência como se estivesse caminhando pela rua. “Como a gente tem o desejo de viajar algum dia pra outro país a internet possibilita visão de primeira pessoa [...] você consegue fazer a busca pelo Japão, China [...] e pode ter uma visão bacana da cidade” (Ian).

Joel também ressalta essa possibilidade de vivenciar outros territórios via ciberespaço, sem necessariamente estar lá fisicamente. “Eu tenho vontade de conhecer... aí eu converso com quem já foi lá e falo que conheço também, sem nunca ter ido lá, tudo isso por ter visto vídeos, mapas, avenidas... eu conheço mesmo!... tem tudo na internet, né?”.

O acesso virtual a outros países é oportunizado tanto para discentes quanto para docentes, e a experiência de simulação é vivenciada por ambos. Quando se trata da busca espontânea do discente ou docente para conhecer outro país, o que os move é o desejo, o interesse individual em conhecer algo que lhes confere prazer e faça sentido.

Mobilizada pelos processos de aprender para melhorar a qualificação profissional e utilizar as tecnologias com intencionalidade pedagógica na escola, July buscou conhecimentos em um curso de pós-graduação em Gestão do Ensino Superior, na modalidade de Educação a Distância. “Nesse curso tinha uma aula específica pra gente trabalhar dentro das tecnologias junto com os alunos [...]”, aprendendo também sobre algumas especificidades das tecnologias, como comprar um notebook e “[...] um mini modem pra colocar e a gente ter internet e junto com minhas colegas lá a gente fazer os trabalhos. A tecnologia à distância foi um período assim... que me ajudou bastante”.

Outro conhecimento que emerge dessa apropriação do ciberespaço se relaciona aos aplicativos. Ana baixou em seu celular um aplicativo disponível em um site gratuito para ensino de idiomas, para ajudá-la durante uma aula na escola. Esse aplicativo é o “[...] duolingo pra fazer aula de inglês. Eu gostava tanto que até a minha irmãzinha pequenininha aprendeu a gostar”.

A possibilidade de desenvolver aplicativos na escola foi sinalizada por Mauro, docente da área tecnológica, que poderia se efetivar por meio de uma plataforma gratuita “[...] aberta, de fácil acesso, fácil programação, fácil entendimento e você consegue utilizar todos os recursos que o celular tem como sensores, unidades de led, comunicação, armazenamento de dados em rede, enfim...”. Mauro explica que esses aplicativos não foram desenvolvidos por falta de tempo, mas essa atividade já foi proposta à escola por ele, reconhecendo a programação como uma tendência que está se tornando cada vez mais comum entre os jovens. “Essa programação é muito ampla eu posso fazer aqui, por exemplo para os meninos, passar para eles jogos pra eles desenvolverem [...] é robótica!”.

Quando se trata de jogos, estudantes demonstram o desejo de inventar e aprender, que para Ian, permite “[...] inventar engenhocas [...] pode criar biomas, montanhas e gerar animais. Eu gosto sempre de jogar com os colegas porque eu sempre estou aprendendo com eles mesmo em jogo ou na vida real”. As aprendizagens sinalizadas pelo discente também são frutos da interação com os colegas, da convivência potencializada pelo ambiente colaborativo do jogo, mas que o extrapolam e reforçam as aprendizagens com os colegas nos contextos sociais, fora da escola, dos quais participam coletivamente.

Ao que nos parece, os jogos acionam conhecimentos de diferentes áreas e estimulam o formato colaborativo e a autoria dos estudantes, apresentando uma “[...] linguagem de desafios, recompensas, de competição e cooperação” (Moran, 2015, p. 18). A possibilidade aqui é de transcender ao consumo de produtos acabados, desenvolver uma produção autoral, criando e recriando produtos e conteúdos. Santaella (2007, p.79) afirma que “[...] como meio bidirecional, dinâmico, que só pode ir se realizando em ato, por meio do agenciamento do usuário, o game implode radicalmente os tradicionais papéis de quem produz e de quem recebe [...]”, a partir de interações rizomáticas por onde o conhecimento transita, escapando do conhecimento (e da forma) escolar, ainda marcada pela transmissão de conteúdo.

A imersão no território virtual, seja em casa ou na escola, coloca os docentes frente a situações novas, demandando alta capacidade de adaptação, rompendo com modos de aprender que já estavam cristalizados. “Eu sou super jurássica... sou da era do papel, eu gosto de papel, eu aprendi estudar escrevendo então quando eu escrevi eu aprendi mais, eu gravo mais então quando você faz no computador, no celular parece que é uma coisa distante de você (July).

Se por um lado July se mostra avessa à tecnologia utilizada para atividades ligadas à escrita, em outros momentos, a vê como uma fuga para a solidão, buscando trazê-la para mais próxima do seu convívio: “[...] lá em casa quando vi que era só eu e o computador no quarto, me deu um negócio ruim, então eu comprei um notebook... eu me sentia sozinha e o notebook eu podia levar para qualquer canto, mas aí veio o celular, esse é a salvação”.

As duas situações nos levam a visualizar uma mescla de angústia e entusiasmo expressos pela docente. Primeiramente ela resiste em não abandonar o suporte do papel, sobre o qual possui mais controle, familiaridade e maior conhecimento. O território virtual, para a realização de atividade laboral, surge como um espaço estranho, com trilhas ainda desconhecidas e pouco exploradas. O desconforto de July nos parece ser provocado pela linguagem no ciberespaço que desestabiliza o que pensávamos do texto, “[...] já não há lugar, nenhum ponto de gravidade de antemão garantido para qualquer linguagem, pois todas entram na dança das instabilidades. Texto, imagem e som já não são o que costumavam ser” (Santaella, 2007, p. 24). Posteriormente, a docente exalta a mobilidade oferecida pelo notebook e mais precisamente pelo celular, promovendo uma linha de fuga da solidão em que a desterritorialização do espaço físico em que se encontra sozinha é bem-vinda, pois por meio desses dispositivos é possível reterritorializar-se em outros espaços e tempos, com amplas possibilidades de conexões via ciberespaço.

Os nós capturados nesse exercício cartográfico, permitiram-nos refletir sobre o acesso ao território virtual, os conhecimentos práticos necessários para explorá-lo e os múltiplos conhecimentos que emergem, a partir da interação de docentes e discentes com os dispositivos tecnológicos. A entrada no ciberespaço abre possibilidades de experiências docentes e discentes marcadas por diferentes graus de vulnerabilidade informacional (Haesbaert, 2007), a partir de suas condições socioeconômicas. Ao adentrar o território virtual, docentes e discentes mobilizam conhecimentos que os permitem explorar as inúmeras funcionalidades dos dispositivos, que serão necessários para as vivências de múltiplas experiências no ciberespaço, ou uma “[...] nova experiência espacial integrada [...]” (Haesbaert, 2007, p, 39), de maior complexidade.

Conhecer coloca-se como desafio para docentes e discentes e abre possibilidades no ciberespaço para processos mais espontâneos, “[...] atualizados ao sabor das circunstâncias e de curiosidades contingentes” (Santaella, 2010, p. 19) em que as aprendizagens serão mais abertas, mais fluidas, sem demarcações espaçotemporais.

Considerações finais

Das conexões que nos foram possíveis mapear, capturamos multiterritorialidades docentes e discentes na cibercultura em movimentos desiguais de entrada no território virtual, marcados pelas diferentes condições socioeconômicas desses sujeitos, denunciando que essas desigualdades são reforçadas na cibercultura.

Independente das condições de acesso, discentes e docentes entram no território virtual e se apropriam dele de diferentes formas, fazem rizomas, produzem novas territorialidades. Os processos de conhecer emergem como uma brotação com múltiplas raízes, estendendo-se a direções várias.

Ajudar o pai a preencher notas fiscais eletrônicas, baixar aplicativo para aprender inglês, criar grupo no WhatsApp, adicionar participantes, criar aplicativos, pesquisar sobre outras culturas, fazer trabalhos escolares, criar biomas no jogo colaborativo são algumas aprendizagens que conseguimos mapear decorrentes das apropriações que docentes e discentes fazem do ciberespaço.

Nessa rede rizomática, docentes e discentes vivenciam relações espaçotemporais mais fluidas que vão incidir na produção de aprendizagens ubíquas, potencializadas pelos dispositivos móveis que podem ser acessados de qualquer lugar e a qualquer hora, rompendo os limites da escola.

Espera-se que este estudo possa contribuir com o campo da educação, suscitando novos debates e pesquisas sobre cibercultura e os diferentes processos de conhecer de docentes e discentes, para além das aprendizagens escolares. Cumpre refletir sobre os diferentes graus de vulnerabilidade informacional e suas implicações para o acesso ao território virtual, e que esse acesso propicia multiterritorialidades que são engendradas em processos identitários.

Referências

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1Pesquisa aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisa. Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

2A questão foi adaptada para a pesquisa, a partir da pergunta narrativa geradora ampla apresentada por Flick (2013).

3Adotamos, no texto, nomes fictícios para docentes e discentes, a fim de preservar suas identidades.

4Após um tempo de acompanhamento dos participantes no campo de pesquisa, fizemos um convite à turma do 9º ano, com 26 discentes, para as entrevistas. Foram entrevistados todos os discentes que se dispuseram a participar, seguindo as normas éticas da pesquisa com seres humanos, aprovada pelo protocolo CEP/ 2.134.556.

5O termo é utilizado pelos autores “[...] para significar qualquer combinação ou ligação dispare - sem qualquer hierarquia ou organização centralizada - de elementos, fragmentos, ou fluxos das mais variadas e diferentes naturezas: ideias, enunciados, coisas, pessoas, corpos, instituições” (Silva, 2000, p. 15).

6Os excertos discursivos das entrevistas respeitam a oralidade.

10NOTA: As autoras Karla Nascimento de Almeida, Maria Celeste Reis Fernandes de Souza e Cristiane Mendes Netto foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito CARTOGRAFANDO MULTITERRITORIALIDADES DOCENTES E DISCENTES NA CIBERCULTURA e ainda, aprovação da versão final a ser publicada pela Revista Acta Scientiarum. Education.

Recebido: 31 de Março de 2020; Aceito: 27 de Julho de 2020

*Autora para correspondência. E-mail: nasci.karla@gmail.com

Karla Nascimento de Almeida: Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Vale do Rio Doce - UNIVALE (2012). Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - (2015). Mestre em Gestão Integrada do Território pela UNIVALE (2018). Atuou como professora de Educação Infantil da rede municipal de Governador Valadares de 2009 a 2015. Trabalhou como jornalista no Centro de Informação e Assessoria Técnica (CIAAT) em 2013. Desempenhou função de Secretária Municipal de Educação Adjunta em Governador Valadares, MG. Atualmente é professora e coordenadora do curso de Pedagogia da UNIVALE. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Núcleo Interdisciplinar de Educação, Saúde e Direitos - UNIVALE. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0324-9410 E-mail: karla.almeida@univale.br

Maria Celeste Reis Fernandes de Souza: Pedagoga, Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais UFMG (2008) e realizou estágio de pós-doutoramento em educação na Universidade Federal de Sergipe UFS (2015). Docente do Programa de Pós-Graduação em Gestão Integrada do Território da Universidade Vale do Rio Doce - UNIVALE. Desenvolve trabalhos de ensino, pesquisa e extensão no campo da educação em interface com estudos sobre Território. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Núcleo Interdisciplinar de Educação, Saúde e Direitos - UNIVALE. Pesquisadora colaboradora dos Grupos de Pesquisa: Grupo de Estudos sobre Numeramento GEN/UFMG e Educação e Contemporaneidade EDUCON/UFS. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6955-5854 E-mail: maria.celeste@univale.br

Cristiane Mendes Netto: Doutora em Gestão e Organização do Conhecimento pela Universidade Federal de Minas Gerais (2017). Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002). Bacharel em Informática pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2000). Especialista em Educação a Distância pelo SENAC-RJ (2008). Especialista em Design Instrucional para EaD Virtual pela UNIFEI (2008). Atua como docente na Universidade Vale do Rio Doce - UNIVALE e coordenadora do Núcleo de Educação a Distância. Tem experiência em gestão acadêmica e em pesquisas na área de Tecnologias na Educação e Educação a Distância. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Núcleo Interdisciplinar de Educação, Saúde e Direitos - UNIVALE. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5725-8323 E-mail: cristiane.netto@univale.br

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