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Revista Exitus

On-line version ISSN 2237-9460

Rev. Exitus vol.10  Santarém  2020  Epub Mar 28, 2022

https://doi.org/10.24065/2237-9460.2020v10n0id1155 

Dossiê

AS EXPERIÊNCIAS COM O ENSINO E A APRENDIZAGEM DE MATEMÁTICA DOS MEDALHISTAS CEGOS DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE MATEMÁTICA DAS ESCOLAS PÚBLICAS (OBMEP)

THE EXPERIENCES WITH TEACHING AND LEARNING OF MATHEMATICS OF THE BLIND MEDALISTS OF THE BRAZILIAN OLYMPIAD OF MATHEMATICS OF THE PUBLIC SCHOOLS

LAS EXPERIENCIAS CON LA ENSEÑANZA Y EL APRENDIZAJE DE MATEMÁTICA DE LOS MEDALHISTAS CEGOS DE LA OLIMPIADA BRASILEÑA DE MATEMÁTICAS DE LAS ESCUELAS PÚBLICAS

Daner Silva Martins1 
http://orcid.org/0000-0003-0937-7827

Maria do Carmo Galiazzi2 
http://orcid.org/0000-0003-0513-0018

Cleiva Aguiar de Lima3 
http://orcid.org/0000-0002-2273-8802

1Doutor em Educação em Ciências: Química da vida e Saúde pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) – Campus Rio Grande. E-mail: daner.martins@riogrande.ifrs.edu.br

2Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC). Professora da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) – Campus Carreiros, Rio Grande/RS. E-mail: mcgaliazzi@gmail.com

3Doutora em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) – Campus Rio Grande. E-mail: cleiva.lima@riogrande.ifrs.edu.br (A pesquisa recebeu fomento do IFRS).


RESUMO

Este trabalho apresenta uma análise acerca das experiências escolares dos medalhistas cegos da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas. A presente investigação visa compreender os processos relativos ao ensino e à aprendizagem da disciplina durante a trajetória escolar destes estudantes, a fim de contribuir com outros alunos cegos e com a formação de professores. Para tanto, foram realizadas entrevistas narrativas com os medalhistas, no intuito de escutar suas histórias acerca dos processos de ensino e aprendizagem de Matemática vivenciados durante a Educação Básica. Para analisar os elementos emergentes das referidas falas, foi adotada a Análise Textual Discursiva. As barreiras impostas pela sociedade, o reconhecimento do outro e as especificidades da cegueira a partir do (re)conhecimento de si emergiram como elementos que compõem as categorias implicadas nestas experiências. A abordagem destes temas tem o potencial de contribuir com docentes em formação para o ensino de Matemática na perspectiva inclusiva.

Palavras-chave: Ensino de Matemática para Cegos; Formação de Professores de Matemática; Educação Matemática Inclusiva; Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas

ABSTRACT

This paper describes the analysis of experiences which involve school practices undergone by blind students who got medals in the Brazilian Mathematics Olympiad in Public Schools. This investigation aims at understanding the processes of Mathematics teaching and learning they experienced throughout their school life, in order to contribute to other blind students’ learning processes and teacher education programs. Therefore, narrative interviews were made with the students so as to listen to their stories about processes of Mathematics teaching and learning experienced in Elementary School. Discursive Textual Analysis was used for analyzing elements that emerge from their talks. Barriers imposed by the society, acknowledgement of the other and specificities of blindness which arise from self-knowledge emerged as elements that compose categories implied in these experiences. The analysis of the themes can contribute to teachers who undergo inservice programs that aim at inclusive Mathematics teaching.

Keywords: Mathematics Teaching for the Blind; Mathematics Teacher Education; Inclusive Mathematics Education; Brazilian Mathematics Olympiad in Public Schools

RESUMEN

Este trabajo presenta un análisis sobre las experiencias escolares de los medallistas ciegos en la Olimpiada Brasileña de Matemáticas de las Escuelas Públicas. La investigación pretende entender los procesos de la enseñanza de el aprendizaje de la disciplina durante la trayectoria escolar de estos estudiantes, con la finalidad de contribuir con otros alumnos ciegos y con la formación de profesores. Para ello, se realizaron entrevistas con los medallistas, con el fin de escuchar sus historias acerca de los procesos de enseñanza y aprendizaje de Matemáticas vividos durante su Educación Primaria y Secundaria. Para analizar los elementos emergentes de las referidas historias escolares, fue utilizado el análisis textual discursivo. Las barreras impuestas por la sociedad, el reconocimiento del otro y las particularidades de la ceguera a partir del (re) conocimiento de sí surgieron como elementos que componen las categorías implicadas en estas experiencias. El enfoque de estos temas tiene el potencial de contribuir con profesores en formación para la enseñanza de Matemáticas en la perspectiva inclusiva.

Palabras clave: Enseñanza de Matemáticas para Ciegos; Formación de profesores de matemáticas; Educación Matemática Inclusiva; Olímpiada Brasileña de Matemáticas de las Escuelas Públicas

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta a compreensão dos processos de ensino e aprendizagem de Matemática a partir das narrativas acerca das experiências escolares de sete alunos cegos medalhistas na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP), entre os anos de 2005 e 2016. Para isso, foram realizadas entrevistas narrativas com esses estudantes, no intuito de escutar suas vivências escolares e, principalmente, sua relação com a Matemática, com os professores desta disciplina, com os colegas de classe e com a comunidade escolar ao longo da Educação Básica. A questão orientadora do estudo à luz da Fenomenologia foi: o que é isto: a aprendizagem de Matemática a partir da experiência de alunos e professores cegos?

Inicialmente, apresento o contexto acerca da criação da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP) e seus objetivos. Na sequência, discorro sobre os procedimentos para produção dos dados da pesquisa e das entrevistas com os medalhistas cegos da OBMEP. Posteriormente, descrevo as etapas realizadas para análise dos dados, a partir da Análise Textual Discursiva (ATD) e discorro sobre as categorias.

Para concluir, apontei alternativas para criação de ambientes inclusivos dentro da escola regular. Nesse contexto, conhecer tais especificidades sobre a aprendizagem da Matemática por parte de alunos cegos dispõe do potencial de contribuir para os cursos de formação de professores da disciplina.

O RECONHECIMENTO DA OBMEP

De acordo com uma das idealizadoras do projeto OBMEP (DRUCK, 2018, p.2), quando da criação da proposta, a meta principal foi “permitir que os estudantes da Rede Pública de todo o país tivessem acesso aos mesmos desafios que os estudantes da Rede Particular”. Aprovado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em junho de 2004, o projeto OBMEP foi criado pela Sociedade Brasileira de Matemática (SBM) e pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), passando a ter a chancela do Ministério da Educação (MEC) e do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), para ser aplicado em todo o Brasil, a partir do ano de 2005. A OBMEP visa estimular o estudo de Matemática e a descoberta de jovens talentos para área.

A OBMEP4 contempla a realização de uma prova aplicada em duas fases, bem como a participação oferecida aos alunos medalhistas em um Programa de Iniciação Científica Júnior (PIC) com duração de um ano. Cada prova é dividida em três níveis, de acordo com a seriação escolar dos alunos, a partir do 6º ano do Ensino Fundamental até o 3º do Ensino Médio.

Na primeira fase, qualquer escola pode se inscrever. Efetuada a inscrição, essa se organiza, aplica e corrige as provas de múltipla escolha realizadas pelos estudantes. Posteriormente, envia a lista com aproximadamente os 5% dos alunos mais bem colocados, aptos a participar da segunda fase. Essa fase consta de uma prova discursiva, realizada em um local predeterminado, aplicada e corrigida por professores da coordenadoria regional da OBMEP.

Ao término de cada edição da OBMEP, são premiados: alunos, professores e escolas públicas com melhores desempenhos. Aos alunos, a premiação é dividida em: medalhas (ouro, prata e bronze) e menção honrosa.

Além disso, cabe ressaltar que o tema da inclusão, foco desta pesquisa, parece ser uma preocupação da equipe organizadora da OBMEP. Um exemplo disso é que para pessoas com deficiência visual a prova também é oferecida em duas versões: ampliada e em Braille, com descrições e figuras em relevo. Ademais, é disponibilizado o auxílio de um fiscal ledor e escrevedor para os estudantes cegos. Para tais adaptações, a equipe organizadora da prova recebe o auxílio de profissionais do Instituto Benjamim Constant (IBC)5, do Rio de Janeiro.

QUEM SÃO OS MEDALHISTAS CEGOS DA OBMEP?

Para identificar os alunos cegos ganhadores de premiações na OBMEP, contatei, em janeiro de 2017, o professor Dr. Alvino Sant’Ana, um dos coordenadores regionais da Olimpíada no Rio Grande do Sul. Esse, repassou o pedido à coordenadoria nacional, a qual prontamente encaminhou a lista de estudantes cegos premiados entre os anos de 2005 e 2016.

Na referida lista, constavam: o ano da premiação, a localidade, o nome do aluno e o nível da prova. Foram 111 premiações para estudantes cegos neste período, distribuídas para 96 alunos diferentes, pois alguns receberam premiações em mais de uma oportunidade. Dessas, apenas 8 estudantes cegos foram ganhadores de medalhas nas 12 edições consultadas.

Desses estudantes, 7 concordaram em participar, de modo que marcamos um horário para que as entrevistas fossem realizadas por Skype. As entrevistas que compõem o corpus de análise deste ensaio ocorreram nos meses de fevereiro e março de 2017.

A cada um, solicitei que narrasse suas experiências escolares, como também com a realização da prova da OBMEP e com o curso oferecido para os medalhistas. Dessa maneira, a intenção foi escutar, atentamente, o que os alunos tinham a dizer, sobretudo em relação aos fatos significativos relacionados ao ensino e à aprendizagem da Matemática durante o percurso na Educação Básica.

O intuito da investigação destas narrativas foi o de buscar compreender como os estudantes aprenderam a disciplina de Matemática, a fim de oferecer subsídios aos docentes da disciplina.

[...] experiências são as histórias que as pessoas vivem. As pessoas vivem histórias e no contar dessas histórias se reafirmam. Modificamse e criam novas histórias. As histórias vividas e contadas educam a nós mesmos e aos outros, incluindo os jovens e os recémpesquisadores em suas comunidades (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p.27).

O corpus6 foi constituído pelas entrevistas narrativas dos estudantes: Fábio, do Distrito Federal, medalhista de ouro em 2005; Márcio, do Rio de Janeiro, medalhista de prata em 2009; Luana, de Minas Gerais, medalhista de ouro em 2010; Cristian, de Minas Gerais, medalhista de bronze em 2010; Aline, do Espírito Santo, medalhista de prata em 2010; André, de Minas Gerais, medalhista de bronze em 2011 e Maria, de São Paulo, medalhista de bronze em 2012.

“SE PODES OLHAR, VÊ. SE PODES VER, REPARA” – O QUE MOSTRA A ANÁLISE TEXTUAL DISCURSIVA

A seguir, apresento o processo de análise, a partir da metodologia proposta por Moraes e Galiazzi, a Análise Textual Discursiva (ATD) que:

[...] pode ser compreendida como um processo auto-organizado de construção de compreensão em que novos entendimentos emergem a partir de uma sequência recursiva de três componentes: a desconstrução dos textos do “corpus”, a unitarização; o estabelecimento de relações entre os elementos unitários, a categorização; o captar o emergente em que a nova compreensão é comunicada e validada (MORAES; GALIAZZI, 2013, p.32).

O momento inicial da ATD, a unitarização, corresponde à fragmentação do corpus, neste caso das transcrições das entrevistas dos 7 participantes, em unidades de significado diferentes, atribuídas pelo pesquisador. Tal etapa pode ser compreendida a partir do excerto de Moraes e Galiazzi, no qual afirmam que:

[...] unitizar um texto é desmembrá-lo em unidades elementares, correspondendo a elementos discriminantes de sentidos, significados importantes para a finalidade da pesquisa, denominadas unidades de significado ou sentido (MORAES; GALIAZZI, 2013, p.32).

Em busca de novas compreensões, iniciei a etapa da unitarização com a leitura e releitura do corpus. À medida que os dizeres dos entrevistados mudavam de assunto, uma nova unidade era criada. Dessa maneira, foram separadas 312 unidades de significado.

Na próxima etapa, realizei uma releitura da unitarização no intuito de aproximar as unidades de significado semelhantes para iniciar a categorização, que:

[...] constitui um processo de classificação em que elementos de base – as unidades de significado – são organizados e ordenados em conjuntos lógicos abstratos, possibilitando o início de um processo de teorização em relação aos fenômenos investigados (MORAES; GALIAZZI, 2013, p.75).

Emergiram, então, três categorias que retratam as experiências com a Matemática: “Costuma-se até dizer que não há cegueiras...”; “O que é ter olhos num mundo de cegos”: a visão de quem enxerga a cegueira; e “Só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são”.

Na sequência, foi elaborada a terceira etapa da ATD, a qual consiste na produção dos metatextos com o objetivo de comunicar o novo emergente, através do entrelaçamento entre os dizeres dos entrevistados, as vivências do autor e o referencial teórico escolhido, a partir das etapas anteriores da análise.

METATEXTO

“COSTUMA-SE ATÉ DIZER QUE NÃO HÁ CEGUEIRAS...”

A primeira categoria revelou a imposição, por parte da sociedade, de barreiras7 sociais e políticas que dificultaram o acesso do estudante cego aos processos de ensino e aprendizagem da Matemática. Em certa medida, tais barreiras revelam uma negação da cegueira. O conjunto de falas aqui apresentado está em consonância com a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), a qual, após 15 anos de tramitação no Congresso e no Senado Nacional, foi promulgada pela ex-presidente Dilma Rousseff, em 2015.

A partir da LBI, o conceito de deficiência ganhou um novo viés, deslocando para sociedade a falta de adaptação para atender ao outro. De acordo com a relatora do documento, a Deputada Federal Mara Gabrilli, a maior novidade nesta perspectiva é que:

A deficiência deixa de ser um atributo da pessoa e passa a ser o resultado da falta de acessibilidade que a sociedade e o Estado dão às características de cada um. Ou seja, a LBI veio para mostrar que a deficiência está no meio, não nas pessoas. Concluímos, então, que: quanto mais acessos e oportunidades uma pessoa dispõe, menores serão as dificuldades consequentes de sua característica (GABRILLI, 2016, p.5).

Este é o mesmo entendimento do professor de Física e pesquisador Dr. Eder Pires de Camargo, o primeiro e único livre docente cego do Brasil. Ele afirma que:

[...] só se é cego, por exemplo, quando se vive numa sociedade de e para videntes. Essa sociedade que se estruturou e se planejou majoritariamente em função de ver constrói e impõe ao indivíduo provido somente das percepções não visuais a fragilidade de sua diferença (CAMARGO, 2017, p.13).

Neste sentido, trechos das narrativas dos alunos entrevistados estão em consonância com tal perspectiva, na medida em que revelam o despreparo da sociedade e da esfera pública em garantir as condições mínimas necessárias para que um estudante cego seja capaz de ser incluído em uma escola regular.

Um obstáculo comum identificado na fala de alguns entrevistados diz respeito à demora clínica em resolver os problemas da visão, fato que atrasou o ingresso na escola e, consequentemente, o aprendizado. Além disso, a carência de serviços especializados para o atendimento ao estudante cego tornou ainda maior essa dificuldade. Tais aspectos podem ser percebidos nos extratos:

Eu fiquei muito tempo tratando dos problemas da visão, por isso entrei mais tarde na escola e o meu contato com o Braille foi mais tarde ainda, pois os professores não tinham capacitação e não sabiam nada sobre o sistema Braille (CRISTIAN 48).

[...] as escolas estavam passando a ser inclusivas, então perdi o apoio da escola especial e na regular ainda não tinha o AEE. Isso demora mais para sair, mas quando o governo quer mudar alguma coisa ele começa acabando com tudo, para depois pensar em construir. Fiquei sem apoio por uns dois anos (MÁRCIO 256).

A pessoa vidente, em geral, tem contato com os códigos necessários à alfabetização (letras do alfabeto e números) previamente à entrada na escola, a partir da convivência social. No caso do cego, geralmente, tal contato com o código Braille só ocorre após o ingresso na escola especializada ou na escola regular contemplada com uma sala de AEE, instituições essas que não estão presentes, de maneira homogênea, em todas as regiões do Brasil. Nessa perspectiva, ao cego não são proporcionadas as mesmas oportunidades de aprendizagem.

Esse fato, de acordo com a LBI, a qual está em consonância com a Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, seria um caso de discriminação, pois:

§1º Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas (BRASIL, 2015).

A oferta de elementos necessários ao desenvolvimento dos cegos pela escola especializada é requisito para garantir o direito à habilitação e à reabilitação, os quais estão previstos pela LBI, no artigo 14, em seu parágrafo único:

O processo de habilitação e de reabilitação tem por objetivo o desenvolvimento de potencialidades, talentos, habilidades e aptidões físicas, cognitivas, sensoriais, psicossociais, atitudinais, profissionais e artísticas que contribuam para a conquista da autonomia da pessoa com deficiência e de sua participação social em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas (BRASIL, 2015).

Um fator bastante recorrente em reclamações por parte dos medalhistas da OBMEP diz respeito à troca excessiva de professores durante o período escolar, como mencionado por Márcio 273: “Tive vários professores, pois passei por várias trocas de professores fato que dificulta ainda mais a adaptação”.

Tais trocas dificultam o acompanhamento escolar de qualquer estudante, mas essa dificuldade se potencializa para o aluno cego, o qual, na maioria das vezes, necessita de espaço e tempo para dialogar e até mesmo auxiliar o novo docente nas metodologias utilizadas para o acompanhamento das aulas.

Além disso, em algumas ocasiões, os professores dificultavam a aprendizagem de Matemática dos alunos cegos. Aqui, novamente, o desconhecimento do sistema Braille foi um dos grandes entraves para a aprendizagem da disciplina, fato que fica evidente nos relatos a seguir:

Tive até uma professora de Matemática que queria que eu escrevesse em tinta, imagina? Ela fazia as matrizes em folhas grandes e escrevia os números em tinta para eu estudar, ela não entendia que não é assim. Eu também não entendia nada (LUANA 89).

Eu tive alguns professores que falaram que não tinham obrigação de dar aula para cegos. Até hoje na faculdade, eu tenho problemas1 com isso (LUANA 106).

Nas falas acima, ficam evidentes nas atitudes dos professores a carência de formação docente, pois existe uma tentativa de imposição de uma cultura vidente8, a qual se sobrepõe às necessidades da pessoa cega. Tal constatação demonstra que a deficiência está no meio social, como sinaliza a LBI. É importante que o professor da sala regular conheça as especificidades da escrita Braille, para favorecer as trocas dialógicas com o aluno cego. Para Camargo (2012, p. 257), “o cego somente sabe que não enxerga em razão dos conflitos sociais que enfrenta numa sociedade majoritariamente formada por pessoas videntes”.

Em alguns casos relatados, a deficiência de capacitação fez com que os professores reduzissem os conteúdos escolares e/ou tomassem a atitude de aprovar o aluno cego sem a necessidade de avaliações. Esse aspecto foi recorrente nas falas dos alunos entrevistados e pode ser percebido em:

A professora não conhecia nada de recursos, então muitas partes da matéria ficaram faltando. Eu acabava passando sem saber, fazia prova apenas com os conteúdos que eles conseguiam adaptar, então ficaram muitas falhas, coisas para trás que nunca mais vou aprender (ALINE 171).

Tive professores que me perguntaram se para cego a gente sempre dá a média para passar de ano? Como assim? Se aprendeu ótimo, se não repete como qualquer outra pessoa (MARIA 197).

Os medalhistas entrevistados repudiam tal prática, pois consideram que estão na escola para aprender. Esse desejo pelo conhecimento e a revolta com o descaso de uma parcela dos docentes pode ser verificada a seguir:

Eu acabava recebendo nota sem ter o conteúdo, era um absurdo. Imagina ter nota sem aprender, fui reclamar na direção, eu quero aprender! Eles tiveram que dar um jeito. É o mínimo que eu preciso, eu preciso aprender! (MARIA 195).

Estes professores tomam tal atitude provavelmente por desconhecerem os distintos métodos de ensino e aprendizagem imprescindíveis aos cegos, fato que indica que aos docentes não está sendo oferecida capacitação nos cursos de graduação e formação continuada. Essa lacuna demonstra a hegemonia da cultura vidente, conforme afirma Camargo:

Graças à ausência da observação visual, fui obrigado a reinventarme, entender a diferença e compreender que a homogeneização dos espaços simbólicos e objetivos resulta da ideologia daquele que temporalmente e circunstancialmente domina. O vidente precisa abrir mão de sua postura hegemônica frente ao cego, atribuindo-lhe a palavra e compreendendo sua forma de perceber. Cegos e videntes devem construir atividades multiculturais, confrontando distintas posições em ambientes de convívio social (CAMARGO, 2017, p.13).

Na concepção de Camargo (2016), os professores que trabalham com alunos cegos necessitam diversificar os planejamentos escolares, a fim de proporcionar a todos os alunos a oportunidade de aprendizagem. Para que isso ocorra, é imprescindível a valorização da carreira docente, pois, no cenário brasileiro, a maioria dos docentes trabalha com uma carga horária elevada, o que dificulta o planejamento das atividades diárias e, até mesmo, limita o tempo disponível para qualificação.

De todo modo, tal diversidade precisa estar no horizonte dos docentes, no sentido de buscar contemplar, em seu planejamento, a multiplicidade de percepções e experiências dos distintos sujeitos, em detrimento da hegemonia da cultura vidente. Márcio destaca a importância desta atitude:

O professor tem que acreditar no aluno, independente do número de empregos que ele tenha. Na medida do possível, o professor deve tirar um tempinho para atender o aluno com dificuldade, a recompensa vem, você vai ver o resultado lá na frente. Estou muito feliz em poder contar essas histórias, nesta entrevista. É o sinal dos resultados, que não foram fáceis, foi muito difícil (MÁRCIO 283).

O filósofo Hans-George Flickinger (2011) enfatiza que, desta forma, o processo educativo,

[...] funcionará única e exclusivamente se for entendido também como experiência social, ao longo da qual cada um dos envolvidos se consciencializa do fato de lidar com outros indivíduos autênticos, que carregam consigo experiências biográficas, orientações culturais específicas e normas ético-morais próprias (FLICKINGER, 2011, p.231).

Outra atitude tomada por alguns professores foi juntar os alunos cegos com os mais destacados da turma na disciplina de Matemática. No viés do entrevistado, esta era a “garantia” de que os cegos teriam sucesso nas avaliações, o que pode ser apreciado no extrato:

Uma solução que alguns professores tomavam era me colocar com algum colega sabido da turma, para que eu tirasse notas melhores, como que se quisessem se eximir da culpa de eu não aprender, estavam pouco se lixando se eu ia ou não aprender. Eu fazia trabalhos em dupla com os mais inteligentes da turma (CRISTIAN 66).

Além disso, burocracia para solicitação de materiais didáticos também se configura como um entrave enfrentado pelos cegos, sendo mais uma imposição de barreira política. O entrevistado relata uma situação recorrente no país “O estado não dá o suporte necessário para o professor trabalhar com os deficientes. O pior é que as vezes têm o recurso, mas isso não chega em quem precisa” (MÁRCIO 291). Então, o aluno cego depende da criatividade docente para ultrapassar essas barreiras. Em diversas situações, os entrevistados relataram tal empecilho:

Eu não tinha um multiplano e não tinha condições de comprar. Na escola o professor solicita esse material para a coordenação, que repassa o pedido para direção, que passa o pedido para secretaria de educação e o material não chega, é muito complicado. Fica dependendo um do outro, e se você ficar esperando passa o ano inteiro e você deixa de aprender as coisas, por que o material simplesmente não vem. Adaptar quando você não tem, esse é o pulo do gato quando você não tem condições (MÁRCIO 292).

Para superar essa dificuldade, é preciso se dispor a encontrar soluções simples e criativas, o que pode ser percebido em: “O professor fez um multiplano de maneira artesanal, furou um pedaço de madeira e comprou uns arrebites e borrachas. À medida que eu ia contornando esse material, tinha como ter uma noção dos gráficos” (MÁRCIO 283). Não é a situação ideal, considerando que este material deveria ter sido fornecido pela Secretaria de Educação, mas foi a maneira que o professor reconheceu o outro9 na sala de aula e fez a diferença na aprendizagem deste aluno. De acordo com Flickinger, “o educador é responsável pelo educando no que se refere à oferta de oportunidades de viver a educação como ampliação e aprofundamento do saber e experiência social” (FLICKINGER, 2014, p.106).

Outra barreira social diz respeito à expectativa do sistema de ensino em um modelo de comportamento padrão para o estudante cego, sendo que, de acordo com esta crença, esse precisa se enquadrar em um ideal disciplinar, conforme pode ser evidenciado no extrato: “A escola quer que o cego seja um exemplo, você não pode fazer nem uma bagunça. A própria direção pensa assim. São muitos obstáculos, além de educacionais, existem os sociais impostos pela escola” (ALINE 173).

Esse tipo de atitude torna-se um empecilho para a socialização do aluno cego com o restante da turma, pois o coloca em situação de inferioridade, como no relato, “durante muito tempo, eu era o coitadinho, que não brinca, que não zoa, então eu me dei conta que também posso fazer o que todos fazem. O aluno tem que passar por todas essas experiências, é muito importante!” (MÁRCIO 307). Na visão de Flickinger (2014, p.101), é preciso que sejam oportunizadas experiências para que o aluno conheça suas capacidades: “A liberdade dos indivíduos só se desenvolve quando aliada a oferta de oportunidades de, no meio social, eles fazerem a experiência de seu próprio potencial”.

Alguns alunos cegos enfrentam, ainda, uma culpabilidade atribuída à cegueira diante de qualquer insucesso de aprendizado, como relata a aluna: “Você precisa sempre provar que consegue fazer alguma coisa e quando não consegue as pessoas colocam a culpa na cegueira, mas todas as pessoas têm limites, não é?” (ALINE 174). Por vezes, tal fracasso se dá devido à falta de procura por alternativas que abarquem as especificidades de aprendizagem do estudante cego. Neste sentido, Flickinger destaca que:

O educador tem de dominar diferentes métodos, para poder escolher aquele que melhor condiz com os seus objetivos. Para isso, ele precisa tanto de conhecimentos da psicologia da criança quanto da familiaridade com os métodos de incentivo aos interesses dos adolescentes ou com técnicas de intervenção (FLICKINGER, 2014, p.96).

Os entrevistados destacaram alguns aspectos relativos a barreiras de tecnologia assistiva, as quais foram um empecilho à participação no curso para medalhista, uma vez que este possuía uma plataforma de resolução de exercícios, via internet, pouco acessível. Tal fato dificulta a participação independente do aluno cego, conforme pode ser notado: “[...] a maioria das atividades do curso para medalhistas eram realizadas pela internet, na época o site não era muito acessível. Eu precisava pedir ajuda de uma pessoa para ler as questões” (ALINE 154).

A falta de acessibilidade não é exclusividade do portal da OBMEP, pois tal empecilho ocorre também em diversos outros sites10. Os entrevistados relataram que esse é mais um obstáculo, o qual dificulta o aprendizado de Matemática, como pode ser notado em: “[...] para o cego estudar Matemática fica difícil, fora da aula, em outras matérias você pode ver um vídeo aula no YouTube, mas Matemática não dá, não existem sites com áudio descrição. Então, eu preciso aproveitar as aulas” (ALINE 164).

Esta dificuldade é recorrente inclusive nas revistas científicas da área de Matemática, ou porque essas não possuem acessibilidade e/ou porque os leitores de tela disponíveis para estudantes cegos não efetuam a leitura de simbologias específicas da disciplina. Neste sentido, Camargo (2017, p. 27) afirma que “[...] os instrumentos sociais que disponibilizam informações básicas para um trabalho intelectual são fortemente fundamentados em códigos visuais”, o que evidentemente limita o acesso universal à informação11. Tais barreiras relativas à inacessibilidade revelam que a desigualdade na garantia de direitos precisa ser amenizada, pois:

A sociedade, representada por suas várias instâncias, tem a obrigação ética, legal e atitudinal de tornar os caminhos que conduzem a educação, trabalho e lazer etc. das pessoas com deficiências, transtorno global de desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação muito menos desiguais para que possamos falar em direitos (CAMARGO, 2017, p.53).

Uma das formas de amenizar esta barreira, segundo o pesquisador, consiste na garantia de autonomia aos estudantes deficientes visuais – a qual é fundamental para seu desenvolvimento. Para tanto, é indispensável disponibilizar livros e materiais didáticos no sistema Braille e no Código Matemático Unificado para Língua Portuguesa (CAMARGO, 2016).

Os relatos indicaram barreiras enfrentadas por aqueles que, de alguma maneira, não se enquadram no padrão de normalidade projetado pela sociedade. Nessa medida, as falas analisadas estão em consonância com a expressão “condição de estrangeiro”, cunhada por Camargo (2016). Para o pesquisador, tal termo representa uma metáfora para descrever como se sentiu durante muito tempo estudando em ambientes sociais, os quais privilegiam o sentido da visão em detrimento dos demais sentidos.

“O QUE É TER OLHOS NUM MUNDO DE CEGOS”: a visão de quem enxerga a cegueira

A presente categoria representa as atitudes e adaptações realizadas por professores, familiares e escola, a fim de reconhecer o aluno cego em suas especificidades com o objetivo de proporcionar condições alternativas de aprendizagem da Matemática. Nesta seção, os entrevistados destacam os diferentes modos como foram vistos e contemplados em suas demandas, de modo que fica evidente que isto promove o reconhecimento do próprio cego no que tange às suas potencialidades e à sua autonomia.

Reconhecer alguém tem algo a ver com a capacidade de suportar diferenças. A luta pelo reconhecimento é idêntica à luta pela chance de articular e de ver respeitadas reivindicações diferentes. Por isso, a disposição recíproca de reconhecimento deveria ser vista como pressuposto ético-moral para a conquista ou ampliação da autonomia e autoestima individuais (FLICKINGER, 2011, p. 11).

A partir das narrativas, foi possível perceber que, em alguns casos, o cego chegou primeiro do que a formação para os professores na escola regular. Mesmo assim, sem as devidas informações e a carência de recursos, muitos professores fizeram a diferença na vida escolar dos participantes desta pesquisa, conforme exposto no extrato a seguir: “Lá tinha uma professora que mesmo não sabendo como, pois não tinha curso de preparação, decidiu me ajudar, ela colava canjica em uma folha de papel e ia me ensinando as letras e os números” (CRISTIAN 53). Essa atitude, mesmo que não seja a mais indicada, pois o cego utiliza o Braille como código universal para escrita e leitura, foi fundamental para garantir a aprendizagem do aluno.

No excerto a seguir, o entrevistado destaca que a disposição da professora para encontrar alternativas, mesmo ante a ausência de recursos, foi determinante no processo de aprendizagem:

Eu não aprendi, no início Matemática no Braille. Eu ia escrevendo com um lápis para marcar o papel, meio estranho para um cego. Foi muito bacana, pois eu estava bem chateado com a situação da cegueira, mas percebi que existiam pessoas que estavam dispostas em ajudar, mesmo não sabendo como. Foi bem humilde, mas foi feito de coração (CRISTIAN 56).

É importante ressaltar a capacidade de reconhecimento do outro, aberta por meio do diálogo entre professor e aluno, o que pode ser evidenciado no extrato:

Tive um professor de Matemática que ficava me perguntado tudo, qual era a melhor maneira de ensinar isso e aquilo. Eu ficava impressionado, pois tinham professores que nem para minha cara olhavam. Acho que eles pensavam que eu não conversava, sei lá (ANDRÉ 235).

O professor é o responsável por essa abertura dentro da sala de aula, de modo que sua atitude frente à inclusão interfere diretamente no sucesso do aluno com deficiência. Para Camargo (2012), a partir da comunicação entre professor e aluno e entre os próprios alunos é que são desenvolvidos os processos de ensino e aprendizagem em sala de aula. De acordo com a filósofa Nadja Hermann, a linguagem possibilita a todos os seres humanos o reconhecimento de si e do outro, pois:

Como possuidores de linguagem, somos seres sempre suscetíveis a novas compreensões do outro e de nós mesmos. E nessa experiência alojam-se as expectativas de uma abertura ética que mantenha a relação com a alteridade, supere o universalismo que assimila e nivela, para criarmos um mundo comum (HERMANN, 2014, p. 480).

O atendimento individual do professor ao aluno cego também foi considerado fundamental para o sucesso do processo de ensino e aprendizagem, o que demonstra que o estudante cego foi visto e teve suas demandas consideradas. Este fato foi relatado em diversas oportunidades pelos entrevistados e pode ser apreciado no extrato:

Eu sempre que estudei na escola regular pedia uma atenção ao professor, para me dar uma explicação enquanto o pessoal copiava do quadro. Até fora do horário, os professores me atendiam, a pessoa cega precisa disso! Duas horas de aula por semana, você gravar tudo é bem complicado, então eu pedia ajuda aos professores para conversar e para verificar se eu tinha compreendido bem as explicações (MÁRCIO 280).

Em outros casos, o sistema de ensino estava organizado para receber o aluno cego: com professores capacitados, sala de AEE, recursos e materiais didáticos disponíveis. Tal realidade fica evidente na fala da entrevistada:

Quando passei para sala regular, utilizava o material dourado, o Sorobã e todo o material didático eu recebia em Braille. Estudei assim até a 4ª série ou 5ª série, além disso recebia na parte da tarde o AEE de conteúdos que eu não aprendia na parte da manhã (MARIA 176).

A entrevistada revela que, no caso dela, desde muito cedo, os alunos cegos de sua escola tiveram contato com os recursos e adaptações necessárias para o aprendizado de Matemática. Esses aspectos foram determinantes na inclusão destes estudantes. Por exemplo, a entrevistada Maria relatou que: “Eu sempre tive uma professora para me auxiliar em horário diferenciado. Eu recebia os livros em Braille, máquina Braille, impressora e computador” (MARIA 178).

Esse reconhecimento por parte do sistema escolar foi fundamental para que os estudantes desenvolvessem sua autonomia e, por conseguinte, sua autoestima, as quais desempenham papel significativo no desenvolvimento social da pessoa com deficiência. “O início foi bem difícil, mas quando eu descobri que eu podia aprender, não parei mais. Nem eu sabia das minhas potencialidades” (ALINE 113).

Neste sentido, Flickinger (2011, p. 11) afirma que: “[...] à educação cabe assumir, antes de tudo, o desafio de ajudar o educando a alcançar uma postura de reconhecimento social, através da qual ele mesmo consegue conquistar sua autoestima e autonomia individual”.

Infelizmente, essa é uma realidade muito distante da maioria dos cegos. Em estudos anteriores, indiquei a falta de interlocução entre o professor de Matemática da escola regular e o profissional da sala de AEE. Tal prática se mostrou distinta no contexto do entrevistado medalhista da OBMEP, conforme se explicita no extrato:

Na escola estadual os professores de matemática procuravam também o CAP, para aprenderem a melhor maneira para me ajudar e trabalhar determinado conteúdo. Havia um diálogo entre esses professores. Tinham professores que na aula mesmo já me avisavam que eu precisava procurar o CAP, pois eles já tinham conversado e planejado a melhor maneira para eu aprender (ANDRÉ 229).

Os trabalhos desenvolvidos pelas associações de cegos e escolas especializadas foram reconhecidos como fundamentais para o desenvolvimento escolar dos alunos cegos entrevistados, conforme pode ser notado na seguinte fala:

Foi graças ao apoio que recebi na escola especial, ao aprender o Braille e o Sorobã, que sempre me ajudaram para me virar lá fora, e se não fosse isso talvez eu tivesse um pouco mais de dificuldade. E os frutos disso, colho até hoje, como por exemplo essa nossa entrevista, depois de tanto tempo (MÁRCIO 275).

Nesse excerto, é possível verificar que houve um reconhecimento mútuo entre a instituição e o estudante, o que favorece as condições para o desenvolvimento da autonomia e da autoestima dos envolvidos, conforme destaca Flickinger:

Em vez de seguir o modelo de reconhecer o outro no sentido de tratá-lo como objeto, o ato de reconhecer vê no outro também um indivíduo autônomo, ao qual se atribui a capacidade de reconhecer. Trata-se de uma relação recíproca. Somente essa reciprocidade incondicional da relação garante a autonomia do parceiro, possibilitando, assim, sua autoestima (FLICKINGER, 2011, p. 10).

Outra situação que emergiu das falas diz respeito à importância da aprendizagem do Código Unificado de Matemática, em Braille. Alunos entrevistados narraram que essa simbologia foi ensinada nas salas de AEE:

[...] os símbolos matemáticos eu aprendia no AEE, para depois utilizar na sala de aula regular. Os símbolos não são difíceis, mas alguém precisa te ensinar não tem como o cego adivinhar. É mais fácil Braille do que Matemática (hehehehe) (ALINE 156).

A prova da OBMEP foi mencionada várias vezes nesta categoria. Na opinião dos entrevistados, ela foi a primeira oportunidade para realização de uma avaliação de Matemática realmente adaptada em todos os seus aspectos, tais como o sistema Braille, a disponibilidade das figuras em relevo, descrição de figuras e a presença de um fiscal ledor. Esse reconhecimento relativo à organização da Olimpíada pode ser apreciado a seguir:

[...] a prova veio em Braille e um professor que lia as questões para mim e anotava as respostas. Era uma beleza, as questões vinham em Braille e, também, emborrachadas uma beleza, tudo bem explicado. Pena que não é sempre assim, se na escola fosse assim seria uma beleza (CRISTIAN 61).

A prova da Olimpiada foi elogiada devido à apresentação de uma estrutura particular, a qual privilegia o raciocínio em detrimento dos conteúdos. Essa característica, na opinião do medalhista, potencializa a construção de conhecimento: “As coisas básicas são muito importantes e essa base forte é fundamental para você aprender Matemática. A OBMEP te ajuda a construir essa base, pois faz você pensar” (MÁRCIO 275).

Além disso, outro elemento relevante que emergiu das entrevistas diz respeito à importância de um professor de Matemática ler a prova, fato que ocorreu na realização da Olimpíada. Dessa maneira, a presença de um profissional especialista no assunto, desempenhando a atividade de fiscal ledor transmite tranquilidade e segurança para o aluno. Essa afirmação pode ser comprovada nos extratos a seguir:

Eu realizei a OBMEP, com um professor de Matemática lendo a prova, eu prefiro que um professor de Matemática leia, pois ele não vai falar o resultado, mas a leitura de quem entende o conteúdo é diferente (MÁRCIO 263).

Os entrevistados a apontaram como a primeira oportunidade de realização de uma avaliação de Matemática com todos os requisitos de acessibilidade: prova em Braille, com descrição de figuras e gráficos e com um professor da disciplina como fiscal ledor. O curso oferecido aos medalhistas foi ressaltado como um ambiente de acolhimento e inclusão.

Deste modo, a OBMEP, além de cumprir todos os objetivos propostos em sua criação, também é um projeto que inclui os alunos com deficiência visual. De acordo com Flickinger: “Muito mais importante do que uma inclusão social, custe o que custar, é uma educação que leve a uma postura social capaz de aceitar diferenças, de reconhecer a autenticidade do outro e de assim alcançar a própria maioridade e autonomia do educando” (FLICKINGER, 2011, p. 12).

Outro exemplo da implicação de tais processos destacado pelos alunos entrevistados refere-se à preocupação e disponibilidade dos professores, ministrantes do curso oferecido aos medalhistas da OBMEP, em promover um ambiente inclusivo aos estudantes cegos. Tal reconhecimento a essa prática pode ser apreciado no extrato:

Eu fui com muito medo, pois tinha insegurança, pensava que as pessoas iam rir quando eu não soubesse alguma coisa. Quando eu cheguei lá, pensa em professores que sabem conduzir bem os alunos? Não no sentido da lição, mas do meio ambiente, que faça tu te sentir à vontade com as outras pessoas. Isso eu acho muito importante e muitos alunos desistem por se sentirem deslocados na escola. Isso fez a diferença, tenho até o certificado. Se não fosse a boa vontade deles eu não teria realizado o curso, a interação da pessoa com deficiência naquele meio social é essencial para o sucesso da pessoa deficiente (CRISTIAN 63).

Nesta perspectiva, Flickinger destaca que há uma relação de corresponsabilidade entre educador e educando, a qual fica evidente nestes relatos acima. Se por um lado o professor precisa oportunizar conhecimentos, por outro o aluno necessita cooperar a permitir a realização do trabalho docente.

O educador é responsável pelo educando no que se refere à oferta de oportunidades de viver a educação como ampliação e aprofundamento do saber e da experiência social. E o educando, por seu lado, é responsável por permitir e facilitar ao educador exercer sua profissão da melhor maneira possível e realizar, assim, seus objetivos pedagógicos (FLICKINGER, 2014, p.106).

Observei que a referida corresponsabilidade indicada por Flickinger se traduziu de forma abrangente nesta categoria na medida em que os atores sociais que se propuseram a enxergar os cegos em suas especificidades revelaram-se responsáveis e compromissados com a inclusão e o aprendizado destas pessoas.

Nesta categoria, os entrevistados destacaram a prática de professores que desenvolveram uma boa comunicação com os alunos e, especialmente, escutaram as necessidades destes. Ademais, os estudantes cegos receberam, um atendimento individualizado para sanar dúvidas. Estas práticas podem ser adotadas como exemplo para efetivar a inclusão dos alunos cegos.

“SÓ NUM MUNDO DE CEGOS AS COISAS SERÃO O QUE VERDADEIRAMENTE SÃO”

Nesta seção, estão agrupadas algumas das especificidades reveladas por meio do (re)conhecimento dos cegos enquanto deficientes em ambientes inclusivos da escola regular. Conhecer essas particularidades pode contribuir no processo de formação docente na compreensão do universo da cegueira, o que, por conseguinte, pode basear o planejamento no sentido de atender as demandas destes alunos. Esse conhecimento vai ao encontro do proposto por Flickinger, pois:

É inevitável que cada profissional leve consigo a carga de orientações experimentadas ao longo de sua socialização. É igualmente inquestionável que a interpretação de suas opções pedagógicas dependerá de diretrizes assimiladas no período de sua formação (FLICKINGER, 2014, p. 98).

Em relação aos alunos cegos, foi destacada a relevância de experimentar diferentes materiais adaptados, em que se priorize o sentido do tato, em uma escala apropriada. Isso porque, muitas vezes, a percepção visual orienta a confecção dos materiais para os estudantes cegos, situação que dificulta o entendimento desses, por desconsiderar esta especificidade. Na declaração de um dos medalhistas cegos da OBMEP: “[...] as adaptações, como maquetes, gráficos e etc, devem ser grandes. Jamais basear a eficiência de uma maquete ou gráfico na sua opinião visual, mas sim, deve ser tátil” (FÁBIO 41).

Nesse mesmo sentido, a afirmação da aluna Aline salienta a importância da experimentação: “[...] quem enxerga tem como imitar, o que outra pessoa fez. Eu não! Eu preciso experimentar!” (ALINE 128). O aspecto da imitação mencionado aqui também corresponde a um elemento complicador no que tange ao ensino de Matemática, pois até mesmo a maneira de organização das informações que o professor utiliza no quadro para resolver um exercício não pode ser observada pela pessoa cega.

Em relação a essa temática, Camargo (2012, p. 87) conclui, a partir de suas pesquisas sobre o ensino de Física em classes com a presença de alunos cegos, que: “O aluno cego, por não conseguir registrar e observar simultaneamente, não executa a relação triádica raciocínio/registro/observação, o que o deixa com enormes dificuldades nas atividades de cálculo”. Assim, fica evidente a importância de disponibilizar a utilização de recursos adaptados – como o Sorobã e a máquina Braille, por exemplo –, a fim de que o aluno possa experimentá-los e identificar aqueles com os quais se sinta mais confortável.

Ainda no que diz respeito às adaptações, muitas vezes estas são propostas, porém sem levar em consideração a especificidade que mais se adequa às demandas do estudante cego. Atualmente, os livros didáticos adaptados são entregues em formato de áudio livros. Tal alteração, apesar das vantagens em relação à prática e ao armazenamento das informações, apresenta certa restrição por parte de um dos entrevistados, como pode ser notada a seguir:

O pessoal do centro escaneava e passava os livros para CD, mas eu senti falta do meu material em Braille. Eu prefiro receber o texto em Braille, não gosto de áudio não, mas agora é tudo em áudio. Não é a mesma coisa, uma pessoa ler para você do que você mesmo ler e reler, você aprende melhor em Braille. Com os livros em áudio até me esquecia de alguns sinais matemáticos em Braille, por que era tudo falado. E se você não utilizar acaba esquecendo (ANDRÉ 233).

Além disso, existe a preferência na utilização do Braille e do Sorobã para estudar Matemática em detrimento do computador. Isso ocorre em virtude de o Braille possibilitar um contato tátil com a informação, aspecto que facilita o aprendizado, na opinião dos entrevistados:

Na sala de aula durante muito tempo escrevi em Braille, depois passei para o computador, mas a Matemática eu sempre preferi o Braille, por que o computador pode te ajudar, mas ele não pode substituir o Braille e o Sorobã, tem gente que não concorda, mas essa é minha opinião. Cada um trabalha de um jeito diferente, mas Matemática sempre usei o Braille (MÁRCIO 311).

Nesse sentido, é importante reafirmar e considerar, nos processos de adaptações de materiais, a importância em disponibilizá-los em Braille, pois, por meio deste, o aluno cego pode adquirir autonomia no processo de aprendizagem. De acordo com o entrevistado Márcio, é preciso levar em conta a primazia do sentido do tato, bem como do Braille no contexto da cegueira, uma vez que: “[...] o que as pessoas veem, nós precisamos tocar, esse é o segredo. Para quem não enxerga o concreto faz toda a diferença. Se tiver isso a pessoa cega consegue aprender” (MÁRCIO 295).

Outro tópico mencionado pelos entrevistados se refere à objetividade nas explicações. Como o aluno cego necessita armazenar uma grande quantidade de informações durante as aulas de Matemática, as explicações objetivas são comumente entendidas com mais facilidade. O aluno Fábio afirma que: “A objetividade é a alavanca no aprendizado dos cegos e, creio eu, para qualquer um. Eu necessito de uma explicação bem clara” (FÁBIO 46).

Um aspecto recorrente nesta pesquisa é a de que a facilidade em memorizar as informações é uma aliada no processo de ensino e aprendizagem do cego. Para exemplificar essa situação, apresento aqui o extrato da aluna Luana: “Eu estudava Matemática copiando, em Braille, na sala. Eu tenho uma memória muito boa, então eu prestava bastante atenção na sala e não precisava estudar muito em casa” (LUANA 101).

Apesar das novas tecnologias e da disseminação dos leitores de telas para computador, o código Braille ainda foi o preferido pelos estudantes para estudar Matemática, fato reforçado na fala: “[...] sempre tive a memória muito boa. Sempre copiava tudo em Braille e depois lia em casa e resolvia os exercícios novamente” (MÁRCIO 309).

Nesta categoria, busquei elencar especificidades do universo da cegueira, no intuito de que essas sejam levadas em conta nos processos de ensino e aprendizagem. Tal definição acerca das diferenças se orienta não na intenção da segregação, mas no sentido da inclusão, para que todos integrem e acessem as mesmas oportunidades.

Se é verdade que cegos e videntes diferem-se pela visão e não visão, também é fato que se assemelham no tatear, ouvir, degustar e cheirar. É preciso que aprendamos com nossas diferenças para crescermos juntos e não para distanciarmo-nos. Da mesma forma, necessário se faz aproveitarmos nossas semelhanças a fim de construirmos um novo mundo. Lá, haverá a participação efetiva de todos, sem hegemonias e sim solidariedades (CAMARGO, 2017, p.75).

O esforço empreendido aqui, de escutar e conhecer algumas das especificidades da cegueira, deu-se com a finalidade de subsidiar os professores de Matemática no sentido de ir ao encontro do mundo utópico idealizado por Camargo (2017). Para tanto, busquei escutar os alunos entrevistados, no intuito de conhecer suas preferências e opiniões pessoais. Cabe ressaltar que, nesta categoria, a palavra experimentar foi utilizada de maneira recorrente pelos entrevistados, no sentido de destacar a importância do contato com diferentes recursos pedagógicos, a fim de subsidiar a escolha daqueles que melhor se adaptam às necessidades individuais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise das narrativas foi possível verificar que a região do país onde se concentram os medalhistas cegos da OBMEP é a sudeste. O estado de Minas Gerais apresentou significativo destaque, uma vez que totalizou 50% dos medalhistas cegos entre os anos de 2005 até 2016. O referido estado apresenta também uma posição de destaque entre os medalhistas videntes, pois, proporcionalmente, é o estado que mais recebeu premiações no Brasil, neste mesmo período.

Na primeira categoria de análise, “Costuma-se até dizer que não há cegueiras...”, foi possível perceber que os alunos cegos enfrentam dificuldades de acesso a instituições especializadas e até mesmo de ingresso na escola regular. Tal situação desencadeou um atraso na relação idade e série. Para amenizar tal atraso, são necessários investimentos nas instituições especializadas e nas associações de cegos, para que essas desenvolvam o trabalho de habilitação e reabilitação da pessoa cega ou com baixa visão. Além disso, essas instituições, em parceria com as universidades, poderiam servir como referência para os professores da rede escolar no que tange aos processos de formação e capacitação docente. A referida ação estaria em consonância com o proposto pela Meta 4 do Plano Nacional de Educação (PNE), em sua estratégia 4,312. A referida prática já é adotada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)13 em parceria com o Instituto Benjamin Constant (IBC), no estado do Rio de Janeiro.

Outro elemento relevante no que se refere ao cotidiano escolar diz respeito à troca excessiva de professores, a qual dificulta o entrosamento escolar e consequentemente o aprendizado do aluno cego. Esse fato pode ser minimizado pelo poder público com políticas de valorização docente, conforme prevê a Meta 17 do PNE, a qual indica as diretrizes nacionais referentes ao plano de carreira e piso salarial docente.

Em diversas situações relatadas nas entrevistas, os professores não souberam lidar com o cego na sala de aula, sendo assim responsáveis pela imposição de barreiras em relação aos conteúdos programáticos e avaliações. Um dos fatores possivelmente desencadeantes desta situação é o desconhecimento das especificidades da deficiência, por parte docente, o que foi repudiado pelos participantes desta pesquisa. Essa vicissitude poderia ser amenizada a partir das medidas supracitadas, como a parceria entre universidades e instituições especializadas, valorização e incentivo aos programas de capacitação docente.

Outro fator importante para o sucesso do aluno cego na escola regular e, consequentemente, um mediador para o planejamento docente das atividades escolares cotidianas refere-se aos materiais didáticos adaptados. Entretanto, a burocracia e a demora na entrega desses têm dificultado os processos de ensino e aprendizagem. Neste sentido, indico um monitoramento, centralizado nas secretarias de educação, em parceria com as instituições especializadas, no intuito de acompanhar a distribuição dos materiais didáticos. Tal ação precisa atender as necessidades específicas de cada estudante com deficiência e diminuir a morosidade dos processos, de modo que o recurso chegue a quem precisa rapidamente.

A busca por um modelo de aluno idealizado pela escola e pela sociedade, no qual se espera que o cego se enquadre, criou, uma barreira social para a inclusão na escola regular. Tratar as idiossincrasias como intrínsecas à diversidade da espécie humana é uma concepção a qual deve orientar os processos de formação de toda a sociedade, pois acredito que todos são responsáveis pela inclusão escolar, não podendo delegar essa tarefa apenas aos professores.

Ainda no que tange às barreiras sociais, os entrevistados sinalizaram a dificuldade em estudar fora do ambiente escolar, devido à falta de acessibilidade em sites e à carência de materiais didáticos adaptados. Para amenizar essa situação, é necessário que se cumpram as exigências para a construção de sites e documentos acessíveis, tais como os sinalizados em pesquisas e publicações do Centro Tecnológico de Acessibilidade14 (CTA), do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS). Além disso, para democratizar o conhecimento, é importante que as revistas científicas utilizem métodos de leitura para fórmulas Matemáticas e adotem descrições de figuras e gráficos.

Na segunda categoria, “O que é ter olhos num mundo de cegos”: a visão de quem enxerga a cegueira, o diálogo entre os professores de Matemática e de AEE foi evidenciado como fundamental para o sucesso destes alunos entrevistados. Para potencializar esta interlocução e até mesmo os processos de capacitação docente, indico a realização de parcerias entre a escola regular e as instituições especializadas.

Os entrevistados destacaram o protagonismo das escolas especiais e das associações de cegos no desenvolvimento dos processos de ensino e aprendizagem. Esse reconhecimento, por parte dos integrantes desta pesquisa, representa um indício de que as instituições especializadas precisam receber incentivo financeiro e a devida valorização social pelo trabalho de excelência realizado com os alunos deficientes, os quais buscam autonomia e inserção social.

Para isso, é fundamental reorganizar os sistemas de ensino, de acordo com as especificidades e demandas de cada região do país. Nesse sentido, se faz necessário instrumentalizar as escolas especializadas e as salas de AEE já existentes, bem como criar novas onde não há. Ademais, receber mais precocemente o aluno cego na escola especializada, oferecendo-lhe serviços de estimulação precoce15, alfabetização em Braille, oficinas de Sorobã, práticas de orientação e mobilidade e atividades da vida diária, é essencial para auxiliar na capacitação deste estudante para o ingresso na escola regular de maneira autônoma.

De acordo com os entrevistados, o diálogo do professor com os alunos foi fundamental para o êxito dos processos de ensino e aprendizagem de Matemática. Nesse sentido, o diálogo e a cooperação entre os estudantes necessitam ser incentivados em detrimento da competitividade e do individualismo presente nas escolas dos dias atuais.

Em relação aos processos concernentes à OBMEP, foi possível perceber que esses exerceram papel fundamental no desenvolvimento da autoestima dos alunos entrevistados, pois, por meio de uma prova adaptada, que considerou a diferença e a autenticidade destes sujeitos, proporcionou-se aos cegos uma participação igualitária e autônoma em relação aos demais participantes. Tal prática precisa ser adotada pela escola regular, a fim de instrumentalizar o aluno cego para participar de concursos, tais como: o Vestibular e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

Na terceira categoria, “Só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são”, ficou evidente que, por não possuir a percepção visual, o aluno cego necessita experimentar recursos que estimulem os demais sentidos. Desse modo, as diferentes experiências propostas pelos docentes, como maquetes em material concreto, materiais em Braille e em relevo, são fundamentais para a aprendizagem e para o desenvolvimento da autonomia. Explorar estas demais potencialidades recursivas e sensoriais inclusive amenizaria as dificuldades impostas pela impossibilidade de o cego aprender por imitação, a qual é realizada, principalmente, por meio da observação visual.

Cabe destacar a preferência dos entrevistados pelos livros didáticos no formato em Braille, em detrimento do áudio livro. Isso ocorre em virtude do material tátil possibilitar um contato direto com as simbologias específicas da disciplina de Matemática, as quais são esquecidas no formato digital. Ademais, os estudantes relataram que a utilização excessiva de áudio contribui para o esquecimento da grafia das palavras e dos símbolos matemáticos, fato que acarreta problemas na escrita para os cegos.

O percurso de traçar e identificar barreiras sociais enfrentadas pelos medalhistas cegos da OBMEP apresentado neste trabalho permitiu que emergissem aspectos com o potencial de desvelar o universo da cegueira para os videntes que buscam reconhecer e atuar na inclusão dos estudantes cegos. Assim, a partir desta investigação, a qual se orientou pela escuta das histórias destes alunos, foi possível compreender os processos relativos ao ensino e à aprendizagem da Matemática durante sua trajetória escolar. Por meio do conhecimento das especificidades destes sujeitos, é possível que nos inspiremos na visão de quem enxerga a cegueira, a fim de contribuir com a formação de professores de Matemática para atuarem com cegos, bem como com o desenvolvimento da autonomia destes estudantes na sociedade.

4Informações disponíveis em: Avaliação do impacto da Olimpíada Brasileira de Matemática nas Escolas Públicas – OBMEP 2010. Brasília: Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, 2011.

5Centro de referência nacional para questões educacionais ligadas à área da deficiência visual.

6Para preservar a identidade dos participantes, utilizei apenas nomes fictícios.

7A LBI, no seu artigo 3, o qual considera “barreira” como: “qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros”.

8A imposição da cultura vidente e a identificação da identidade cega foram temas pesquisados por Souza (2015) em sua tese de doutorado.

9O reconhecimento do outro foi pormenorizado, à luz das reflexões de Nadia Hermann (2011), no artigo “O Ensino de Matemática para Cegos no Município do Rio Grande”, que compõe a tese: Formação de Professores de Matemática a partir da Experiência de Alunos e Professores cegos, disponível em https://www.argo.furg.br/?BDTD12169.

10A temática sobre a falta de acessibilidade em ambientes virtuais foi abordada na pesquisa de Splendiani (2015).

11O referido acesso é garantido pela LBI, no seu artigo 63, o qual determina que: “é obrigatória a acessibilidade nos sítios da internet mantidos por empresas com sede ou representação comercial no País ou por órgãos de governo, para uso da pessoa com deficiência, garantindo lhe acesso às informações disponíveis, conforme as melhores práticas e diretrizes de acessibilidade adotadas internacionalmente”.

12“Implantar, ao longo deste PNE, salas de recursos multifuncionais e fomentar a formação continuada de professores e professoras para o atendimento educacional especializado nas escolas urbanas, do campo, indígenas e de comunidades quilombolas”.

13Projeto Fundão. Disponível em: http://www.matematica.projetofundao.ufrj.br/.

14Disponível em: http://cta.ifrs.edu.br/

15Serviço prestado por profissionais capacitados para desenvolver os aspectos psicomotor, sensorial, afetivo e social de crianças de 0 a 4 anos.

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Recebido: 17 de Julho de 2019; Aceito: 26 de Novembro de 2019

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