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Revista Brasileira de História da Educação

versión impresa ISSN 1519-5902versión On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.23  Maringá  2023  Epub 26-Sep-2023

https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e288 

Artigo Original

A batina como projeto de família: a preparação sacerdotal na educação laica e religiosa de José Américo de Almeida

The cassock as a family project: the priestly preparation in the lay and religious education of José Américo de Almeida

La sotana como proyecto familiar: la preparación sacerdotal en la formación laica y religiosa de José Américo de Almeida

Luiz Mário Dantas Burity1 
http://orcid.org/0000-0003-1357-1243

1Fundação Casa de José Américo, João Pessoa, PB, Brasil. E-mail: marioburity@hotmail.com.


Resumo

Na última década do século XIX, a família de José Américo tomou providências quanto à sua escolarização. Ao observarem a tradição familiar de formar padres poderosos no estado e a aparente vocação do rapaz para o mundo das letras, decidiram encaminhá-lo para a vida sacerdotal. O objetivo deste texto é compreender como o projeto do sacerdócio foi arquitetado e vivido pela família e pelo próprio José Américo. Com esse propósito, as reflexões de Pierre Bourdieu (2004) e Lev Vigotski (2009) foram agenciadas e foram consultados livros de memórias, processos de ordenação e os registros de exames do seminário. Percebeu-se que o garoto experimentou a formação sacerdotal, primeiro, entre as vivências na casa de seu tio padre, depois de modo institucionalizado no seminário. Por vezes, tomou as lições como violências ao seu corpo e às suas ideias, mas, em outras, se identificou com o que aprendia, atingindo boas notas nos exames.

Palavras-chave: formação religiosa; primeiras letras; seminário; José Américo de Almeida

Abstract

In the last decade of the 19th century, José Américo's family took measures regarding his schooling. Observing the family tradition of forming powerful priests in the state and the boy's apparent vocation for the world of letters, they decided to guide him towards the priestly life. The objective of this text is to understand how the project of the priesthood was conceived and lived by the family and by José Américo himself. For this purpose, I used the reflections of Pierre Bourdieu (2004) and Lev Vigotski (2009). Memoirs, ordination processes, and seminary examination records were consulted. We noticed that the boy experienced priestly formation, first among the experiences in his priest uncle's house, then in an institutionalized way in the seminary. Sometimes he took the lessons as violence to his body and his ideas, but sometimes he identified with what he was learning, achieving good grades in the exams.

Keywords: religious education; first letters; seminar; José Américo de Almeida

Resumen

En la última década del siglo XIX, la familia de José Américo tomó medidas respecto a su escolaridad. Observando la tradición familiar de formar sacerdotes poderosos en el estado y la aparente vocación del muchacho por el mundo de las letras, decidieron orientarlo hacia la vida sacerdotal. El objetivo de este texto es comprender cómo el proyecto del sacerdocio fue concebido y vivido por la familia y por el mismo José Américo. Para ello, utilicé las reflexiones de Pierre Bourdieu (2004) y Lev Vigotski (2009). Se consultaron memorias, procesos de ordenación y registros de exámenes del seminario. Notamos que el muchacho experimentó la formación sacerdotal, primero entre las experiencias en la casa de su tío sacerdote, luego de manera institucionalizada en el seminario. A veces tomaba las lecciones como violencia a su cuerpo y a sus ideas, pero a veces se identificaba con lo aprendido, logrando buenas notas en los exámenes.

Palabras clave: educación religiosa; primeras letras; seminario; José Américo de Almeida

Introdução

“Precisava de um terno novo e davam-me uma batina”. Em seu livro de memórias, José Américo de Almeida1 (1976, p. 139) definia assim a decisão dos parentes mais velhos de matriculá-lo no Seminário Nossa Senhora da Conceição em 1901. Aos quatorze anos, sem que ele fosse consultado, a família determinou o seu destino - seria padre. Era uma carreira promissora, sobretudo dada a importância de dois dos seus tios na hierarquia eclesiástica e no campo político estadual. Odilon Benvindo de Almeida era vigário da paróquia de Areia e o monsenhor Walfredo Leal foi um dos chefes da oligarquia que comandou o estado da Paraíba nas primeiras décadas da República.

Mas o que, afinal de contas, significava ser padre na virada do século XIX para o XX? O advento do regime republicano, declarado laico no texto da Constituição de 1891, determinava o fim do padroado2. A Igreja Católica, por esse caminho, deveria perder uma série de prerrogativas sobre o Estado: o controle dos rituais oficiais; os postos de poder ocupados por clérigos; e os subsídios para a manutenção da grandiosa estrutura arquitetônica dos templos e palácios. Em concomitância a isso, houve uma demanda no interior da Santa Sé que requeria maior controle sobre o clero e as paróquias. Havia denúncias de irregularidades na conduta dos padres, por exemplo, sacerdotes que mantinham mulheres e filhos, agiam como chefes políticos, eram coniventes com bandidos3.

A Igreja Católica promoveu, nesse momento, uma transformação interna para proporcionar uma maior centralização em seu comando, em particular quanto à orientação e à fiscalização das práticas religiosas e pessoais de seus prelados - a chamada romanização. No Brasil, entre o final do século XIX e o início do XX, foram instituídas dioceses em vários estados, as quais deviam submissão direta às autoridades romanas, em contraste com o poder antes concedido ao Imperador sobre a hierarquia eclesiástica. A Diocese da Paraíba foi criada em 1892 e teve a administração, por quatro décadas, de D. Adalto de Miranda Henriques. A proposta, como argumenta Lúcia Guerra Ferreira (2016), era ampliar os regimes de vigilância e controle das paróquias, inventando novos planos de coesão ideológica entre os membros do clero e os fiéis. Tratava-se de um programa de racionalização e de moralização das práticas com base nos preceitos do poder central.

Esses códigos morais rígidos que circundaram a Igreja Católica, portanto, estiveram presentes na educação do menino, depois rapaz, José Américo. Com isso em mente, apropriamo-nos das ideias de Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron (2014), que discutem as muitas formas por meio das quais um indivíduo herda os capitais políticos, econômicos e, sobretudo, culturais da parentela. Imerso em um mundo de referências católicas, o garoto aprendeu desde cedo o que qualificaria um bom pároco. Isso acontecia ora de maneira intencional, por meio da escolarização, do catecismo e de práticas educativas domésticas; ora de modo não intencional, através da percepção dos comportamentos, das rotinas e dos valores - o habitus - dos parentes mais velhos.

Acontece que os indivíduos apreendem o seu mundo de maneira intersubjetiva, como nos ensina Lev Vigotski (2009), havendo sempre uma forma pessoal de entender e agenciar os signos à sua volta. Assim sendo, o objetivo de nosso texto é compreender como o projeto do sacerdócio foi arquitetado e foi vivido pela família e pelo próprio José Américo4. Para tanto, consultamos o seu livro de memórias Antes que me esqueça (Almeida, 1976); os relatos de sua professora de primeiras letras Júlia Verônica dos Santos Leal; os processos de ordenação dos seus dois tios padres; e os registros de matrícula e exames do Seminário Nossa Senhora da Conceição.

Do engenho à casa paroquial

Nascido em 10 de janeiro de 1887, José Américo de Almeida era o quinto filho de Inácio Augusto de Almeida e Josefa Leopoldina Leal de Almeida, ambos descendentes de donos de engenho e comerciantes com grande influência política na região do Brejo Paraibano desde o início do século XIX. Essa era um uma época na qual as famílias arquitetavam as carreiras e os matrimônios de suas proles. Conforme Gilberto Freyre (2013), era importante que os herdeiros do senhor seguissem caminhos diferentes - o primeiro era destinado à vida sacerdotal, com o propósito de assegurar as relações com a religião; o outro deveria seguir a vida rural, para garantir os domínios da terra; se houvesse mais um, seria caso de encaminhá-lo para a formação de bacharel e, então, para a política.

Essas medidas variavam a depender da parentela e dos indivíduos, mas vale a pena percebermos como elas funcionaram nas famílias do pai e da mãe do garoto. Inácio Augusto herdou do pai a responsabilidade e as terras para se fazer senhor de engenho; seu irmão, Odilon, estudou no seminário e se tornou padre da freguesia de Areia; Francisco foi pelo caminho do bacharelado; e as mulheres, Minervina e Ângela, foram educadas para o trabalho doméstico. O primogênito da família de sua mãe, Walfredo Leal, concluiu os estudos sacerdotais em Roma, tornou-se vigário em Guarabira e, mais tarde, chefe da oligarquia Leal-Machado, quando assumiu o poder no estado entre 1892 e 1912; Graciano seguiu pelo bacharelado; e as mulheres, Josefa e Ana Emília, foram preparadas para o casamento e a maternidade (Burity, 2021).

Entre os filhos e as filhas de Inácio Augusto e Josefa, o projeto familiar também desembocou em um resultado semelhante a esse. O mais velho, Inácio, deveria ser padre e, dessa forma, ainda muito novo, mudou-se para a casa do tio Odilon, vigário na freguesia de Nossa Senhora da Conceição em Areia, para estudar as primeiras letras e o catecismo. O segundo filho, Jaime, deveria seguir os caminhos do pai e cuidar das terras da família. Depois dele, nasceram Maria das Neves e Maria Amélia. O quinto filho, terceiro entre os homens, foi José Américo. Seguiram-se a ele, Hermenegildo, Augusto, Miguel, Arcanja, Júlia e João (Almeida, 1976). Dos herdeiros mais velhos, segundo Sérgio Miceli (2001), era esperada a continuidade do poder político e econômico da parentela e, com esse propósito, dedicava-se maior atenção e investia-se mais capital na educação desses.

Em uma família com onze rebentos, era preciso eleger prioridades. Dessa forma, na hora de arranjar os recursos para prover a escolarização, foram priorizados os filhos homens, que deveriam seguir os caminhos das letras. Enquanto Inácio foi morar na casa paroquial com o tio vigário, Jaime ficou no engenho, aguardando a sua vez de aprender a ler, escrever e contar. O mesmo se deu com Maria das Neves e Maria Amélia. Foi quando José Américo completou sete anos, convencionada à época como a idade certa para o ingresso no mundo escolar, conforme Mary Del Priori (2016), que a família contratou uma preceptora para ministrar aos dois meninos e duas meninas os rudimentos do saber. Júlia Verônica dos Santos Leal chegou ao engenho em 4 de setembro de 1894 e estava, desde o primeiro momento, atenta ao caçula do grupo, que seria, segundo os seus relatos memoriais, o mais interessado nas lições que ela apresentava5.

Em fevereiro de 1897, o pai decidiu que José Américo deveria continuar a sua formação elementar em Areia, na casa de seu tio, como fizera o irmão Inácio. O fato é que, naquele mesmo mês, como a saúde de sua mãe não andava bem, também Júlia precisou voltar para a cidade6. A documentação não esclarece se os dois eventos tinham relações entre si, mas é válido notarmos como o rapaz, que não era o mais velho dentre os que ficaram desprovidos das aulas de primeiras letras, foi o primeiro a tomar novo rumo e dar continuidade à sua educação escolar. O garoto contaria nas memórias, anos mais tarde, que o seu destino fora decidido sem que ele tivesse sido consultado. Areia ficava a ‘meia légua e tanto’ do engenho, ainda assim a mudança impactava demasiadamente a rotina do menino. Tratava-se, afinal, não apenas de um distanciamento do núcleo familiar, mas de um estilo de vida muito diferente daquele que passaria a ter (Almeida, 1976).

O padre Odilon Benvindo de Almeida e Albuquerque era o vigário da paróquia Nossa Senhora da Conceição em Areia. José Américo foi o quarto dos sobrinhos que moraria em sua casa. Isso aconteceu com Inácio, irmão mais velho, e também outros dois primos. Ao que tudo indica, por trás dessa atitude, o pároco intencionava, com a conivência dos pais dos garotos, que tomassem o sacerdócio por destino, como aconteceu com dois deles, considerando a decisão de Américo e que o terceiro morreu. O projeto de formação dos sobrinhos como padres começava antes do ingresso no seminário. Era na rotina da casa que ele censurava os comportamentos incompatíveis com a postura esperada de um clérigo no final do século XIX. Esse também foi um tempo no qual a Igreja passou a exercer maior vigilância sobre o comportamento dos padres, de maneira que a sua movimentação e a de sua casa deveriam seguir um código rígido de conduta.

O cotidiano na casa paroquial era tomado por uma moral religiosa que não necessariamente tinha a forma das palavras. José Américo guardaria na memória a imagem de um lugar recluso em sua arquitetura e no silêncio que pairava sobre os cômodos na maior parte do tempo. O portão fechado à chave e as paredes e janelas diminutas cerceavam a liberdade do garoto criado ao ar livre. Contava ainda que o tio era um homem de poucas palavras e que prezava pela discrição como uma virtude a ser cultivada. No momento das refeições, a comunicação era restrita ao necessário, o padre não lhe dirigia a palavra. Em caso de comportamento considerado excessivo, um olhar era o suficiente para repreendê-lo. Também era assim a sua relação com a criada. Luzia tinha cabelos encaracolados e, dizia ele, “[...] de tão amarela aparentava ser branca”. Em suas poucas palavras, ela jamais teria sorrido (Almeida, 1976, p. 86).

A escola de primeiras letras ficava próxima à casa paroquial, de modo que o menino não precisava andar mais do que alguns metros para alcançá-la. As aulas aconteciam na residência do professor, que devia ter entre seis e oito estudantes matriculados. O local funcionava como um internato, mas admitia discentes externos. Naquela instituição, o menino aprendeu a multiplicar e a dividir e, talvez, tenha conseguido formar as suas primeiras frases. A modalidade de ensino empregada pelo mestre, a julgar pelos relatos do garoto, deveria variar entre os métodos individual e mútuo. Em algumas atividades, ele se orgulhava em dizer que “[...] ninguém me ensinava a lição, nem em casa, nem na aula [...]”, mas havia os momentos de roda de leitura, nos quais era preciso soletrar, escrever os ditados, cantar a tabuada (Almeida, 1976, p. 88).

Os garotos por vezes se estranhavam pelos motivos mais diversos. José Américo descreveu uma dessas cenas, quando um menino, de nome Altino, o desafiou para um duelo e ele aceitou, o que lhe custou um galo na cabeça, que, apesar dos seus esforços, ele não conseguiu revidar. Em outras circunstâncias, quando o professor tomava ciência, os maus comportamentos eram corrigidos com a palmatória. Ao longo desses anos em que morou em Areia, o menino tomou lições com três mestres diferentes, dos quais guardou algumas características: Francisco Cavalcanti “[...] pisava nas pontas dos pés, como se estivesse armando um voo, e voou, antes do tempo [...]”, tendo deixando sonetos inéditos; Antônio Elias era boêmio e também escrevia poemas; Augusto Everton fora desembargador no Piauí, mas fugira por perseguição política (Almeida, 1976, p. 90).

O tempo na cidade também foi uma oportunidade, ou pelo menos era dessa maneira que pensavam os mais velhos, para que o menino participasse com mais constância das missas e demais atividades que aconteciam na Igreja. Era parte de sua rotina tocar o sino, entre outras preparações para as celebrações domingueiras. Em certa ocasião, compôs um hino para a Nossa Senhora das Vitórias, que depois foi musicado por Manuel Nunes e cantado por sua primeira professora, Júlia Verônica. Em todo o caso, o menino compreendia como liberdade as oportunidades que tinha de, em alguns finais de semana, regressar ao engenho, o que muitas vezes fez a pé (Almeida, 1976).

Ao final das missas domingueiras, a casa paroquial era convertida em um salão no qual um grupo de intelectuais, políticos e outras personalidades da elite local, que partilhavam do ciclo mais próximo de relações do pároco, almoçavam e restavam por muitas horas discutindo assuntos vários: “[...] começavam pelo caso do dia, pelos casinhos cacetes. O tempo, os negócios, os preços, as brigas e as doenças tinham maior consumo”. Havia frequentadores mais assíduos. Era o caso de José Berardo, que fora aluno de Joaquim da Silva, sendo também ele professor de latim de gerações de rapazes, sobretudo depois de meados da década de 1860, quando seu mestre se aposentou. A maior parte dos discentes era gente da elite local, que, àquela altura, já ocupava postos de poder na sociedade. O vigário fora seu amigo de infância e costumava conceder a ele a cabeceira da mesa (Almeida, 1976, p. 95; Almeida, 1980).

Outras figuras recorrentes eram o padre José Cabral, parente distante, único dos visitantes que ousava tomar liberdades com o anfitrião; Joca César, que contava suas histórias com gesticulações nervosas; Antônio Pereira, que devia ser um comerciante local, a julgar pelas vestimentas - tinha libras esterlinas nos botões do punho e colete, corrente de relógio e broche de gravata. As portas se abriam para um ateu, Ciro Gouveia. Mas o que decerto chamava a atenção era um jovem “[...] político até a medula [...]”, que se tornaria figura obrigatória, Antônio Simeão Leal, que “[...] tinha olhos orientais e um começo de palidez. Soltava uma risadinha curta, para deixar bem o camarada, tinha trato amistoso, dando-se com todos, abraçando e golpeando as costas com palmadinhas indolores”. Tratava-se de um primo materno de José Américo (Almeida, 1976, p. 95-96).

O menino ouvia as conversas, na maior parte das vezes, desde o corredor da casa, porque o salão não era lugar para crianças, ou porque já passara da hora de dormir. Ainda assim, vez por outra, esbarrava em algum dos convidados e conversava com eles por instantes. Entre outras coisas, dizia impressionar-se com o silêncio de seu tio, que não era de falar muito, “[...] salvo para um conselho, uma advertência ou uma simples explicação”. Quando era preciso responder a algo, usava gestos discretos. José Américo teria aprendido com ele a ouvir mais que falar. Entre os assuntos mais comentados, era pauta recorrente os caminhos da política estadual, àquela época, orquestrada por uma oligarquia originária da região do brejo, que se manteria no poder por longos vinte anos. Tratava-se do presidente de estado, Álvaro Machado, mas também do primeiro vice-presidente, o seu tio, monsenhor Walfredo Leal (Almeida, 1976, p. 95).

Ainda em 1897, ao que indica a documentação, a família de José Américo instalou-se em um sobrado na cidade de Areia. A necessidade mais iminente, naquela ocasião, era escolarizar as outras crianças, tanto quem havia parado as lições no início do ano, quanto as mais novas. Mediante as novas circunstâncias, o garoto voltou a morar com a mãe, as irmãs e os irmãos, o que também significava, ainda que parcialmente, fugir ao controle do tio. Ele escreveu nas memórias que foi dessa maneira que passou a conhecer a cidade, as ruas para além da que cruzava para ir à escola, o comércio da região e podia inclusive ir à feira pública (Almeida, 1976).

A convivência com a família permitiu que ele partilhasse dos problemas que, naquele momento, abalavam seu irmão mais velho. Inácio, que devia estar no segundo ou terceiro ano do seminário, contou ao pai de suas incertezas quanto ao desejo de ser padre. Tratava-se de um conflito comum, que acometeu outros colegas, como seu amigo José Cavalcante. O certo é que a notícia de que o rapaz deixaria o sacerdócio correu a cidade e provocou comentários maliciosos. Diziam que o motivo seria o interesse pela professora Júlia Verônica. Ela contou constrangida, em seus relatos, que, certa vez, os boatos chegaram ao ouvido do pai do garoto, que rebateu, afirmando que se tratava de um problema espiritual, pois o jovem estaria transtornado por dúvidas e incertezas e que só o tempo resolveria. José Américo e Júlia Verônica lembravam que o senhor de engenho não interferiu na decisão do filho e que teria até mesmo mandado fazer um terno para rapaz. Mas é provável que a família tenha pressionado de outras maneiras. Em todo caso, foi bastante comemorada a notícia de que o primogênito decidiu regressar às aulas no seminário7.

Meses depois, no apagar do século, uma doença teria acometido o pai. Começou com as dores no corpo, que se estenderam para uma febre e, em pouco tempo, ele estava de cama. Tentaram de tudo, médicos e curandeiros, injeções e sanguessugas, nada deu certo. Inácio Augusto de Almeida faleceu em 22 de julho de 1899. O diagnóstico impreciso apontava algo entre o tifo e a malária. Foi enterrado em dia de chuva. O periódico Cidade de Areia (1899) publicou uma nota como homenagem que ocupou toda a página de capa. A orfandade, tão logo secaram as lágrimas, exigiu dos filhos mais velhos atitudes de adultos que ainda não eram. À véspera da morte, o pai teria chamado o segundo filho para uma conversa, pois era de sua vontade, como fora sinalizado em outros momentos, que Jaime assumisse a chefia da casa. Ele justificava essa escolha, em detrimento do primogênito, alegando que “[...] batina não dá conta de família e sim casaca”. D. Josefa também passaria a contar com o apoio dos cunhados e irmãos, que dariam suporte financeiro e na tomada das decisões mais importantes8.

Pouco tempo mais tarde, José Américo regressou à casa do tio padre, que, dessa vez, o observava de perto, temendo que se perdesse devido à falta do pai. Mas, naquela ocasião, as circunstâncias eram outras e o rapaz, já aos doze anos, não abdicou da liberdade conquistada de andar pelas ruas. Esse voluntarismo, no entanto, tinha os seus limites, sobretudo em relação aos valores e aos propósitos políticos mais caros à família.

Nessa época, também passou a circular o jornal O Comércio, editado pelos maçons, que tinham atritos com o pároco. O nosso personagem, curioso para saber do que se tratava, foi em busca do impresso; mas o vigário o flagrou tão logo pôs as mãos em um dos números, o que lhe custou uma surra. Era seu sobrinho, morava em sua casa e era muito jovem para tamanha rebeldia. Em um tempo que a sobrevivência das famílias dependia da solidariedade dos membros, não poderia ele trair as convicções políticas e morais do tio (Almeida, 1976).

Nessa idade, começaram a aparecer os primeiros romances do garoto, que sonhava com as moças que via na igreja ou que passavam na janela. Ele falava de uma menina com quem trocava olhares de longe na missa e que ele se esforçava para enxergar com a sua expressão míope. O esforço, outro dia, chamou a atenção de seu tio, era uma profanação à casa de Deus. Outra vez, se tomou de encantos por uma garota de vestido curto, que devia ter treze anos e passeava ao lado da irmã na rua de casa. Aproveitou que o tio saíra a cavalo e foi vê-la, mas o vigário o pegou no flagra, correu atrás dele e deu-lhe uma surra. Uma terceira garota foi descrita como “[...] mulatinha, que cheirava a banha de porto e óleo de capim-de-cheiro [...]”, imagem que mostra como ele agenciava seus desejos com os marcadores de gênero, raça e classe (Almeida, 1976, p. 132).

A intenção de fazer do menino um padre, seguindo a trajetória que ele mesmo trilhara em sua vida, tomava para o pároco uma forma cada vez mais definida. Tanto era assim que, encerradas as lições de primeiras letras, José Américo passou a tomar aulas com José Berardo, que foi professor de latim de seu tio Walfredo e de gerações de homens de letras nascido por aquelas bandas e era colega e amigo de infância do vigário Odilon. Era parente do menino por causa de sua descendência materna, filho natural de seu tio avô Antonio José dos Santos Leal. Por ter perdido o pai aos cinco anos de idade, foi criado pelo boticário Simão Patrício e entrou para o Seminário de Olinda, mas abandonou a formação clerical depois das denúncias de suas aventuras amorosas, que foram feitas por um médico, o doutor José Evaristo. José Berardo era pai de Júlia, mas ela nunca falou dele em suas correspondências ou relatos autobiográficos. Um professor severo com os deveres morais e que tinha poucos alunos já fazia algum tempo (Almeida, 1976).

A orfandade tornava os meninos e as meninas mais vulneráveis em uma sociedade ainda regida prioritariamente pelo poder patriarcal. Ao passo que responsabilidades eram conferidas a eles, também faltava quem os representasse no mundo social e garantisse a estabilidade material, moral e política da qual a família carecia para manter seu prestígio e poderio econômico. Nesse sentido, ficavam à mercê da parentela. Órfãos e órfãs se tornavam, dizia Sérgio Miceli (2001), ainda mais dependentes na lógica do sistema patriarcal, que tinha um papel predominante na organização das relações sociais. Assim, destacamos que os dois tios clérigos passaram a exercer um poder ainda maior para arbitrar o destino da prole do falecido Inácio Augusto.

José Américo terminara, aos catorze anos, os estudos que podia fazer em Areia. Odilon Benvindo e Walfredo Leal decidiram, então, em reunião com D. Josefa, que ele deveria ir para o seminário. Aquela possibilidade decerto já era pensada desde muito tempo por ambos os párocos e compartilhada com o pai do garoto. O nosso personagem não fora consultado e tomou conhecimento da ‘conspiração’ quando Maria das Neves deixou escapar a notícia. Foi um drama, a começar pelo momento no qual contaria de sua partida à namorada, para a qual não deu nome em suas memórias. Ele seguiria, portanto, o destino de seus dois tios, do irmão mais velho e de um primo: “Precisava de um terno novo e davam-me uma batina” (Almeida, 1976, p. 139).

No Seminário Nossa Senhora da Conceição

O leitor cético não conhece o convento de S. Francisco. E se conhece, não sabe o que é viver perdido naqueles corredores sombrios, dentro daquele vazio, refugiado numa visão de amor, aos fogos da puberdade (Almeida (1994, p. 20)9.

No dia 3 de março de 1901, José Américo de Almeida foi matriculado no Seminário Nossa Senhora da Conceição. A instituição funcionava num antigo prédio de arquitetura barroca da companhia franciscana na cidade da Paraíba. O menino viajou oito léguas a cavalo até Guarabira, onde ficava a paróquia de seu tio materno, monsenhor Walfredo Leal. Daquela localidade, embarcou no trem em direção à capital do estado. Era a primeira vez que andava por aquelas paragens: “Chegando, conduziram-me a pé por uma ladeira marginal, que era o caminho mais curto e mais cansativo. Passei pela catedral e não me mostraram a cidade que poderia tentar-me”. E seguia descrevendo como a ornamentação do prédio e do pátio impactaram as suas primeiras impressões do lugar: “Topei com o cruzeiro, um posto avançado que vigiava o adro dos velhos azulejos a contarem suas histórias” (Almeida, 1976, p. 144).

A Igreja de São Francisco e o Convento de Santo Antonio, que funcionava em um prédio anexo a ela, eram as edificações mais altas da cidade colonial. Alocavam-se em uma de suas pontas e, ao longo da história, foram ocupadas por diferentes instituições religiosas e seculares, em particular, por aquelas de finalidade instrucional ou educativa10. Em princípios do regime republicano, esse imóvel se tornou objeto de disputa entre a Igreja Católica e o Estado11. A alocação do seminário naquele espaço, portanto, não era em nada despropositada, tratava-se de uma maneira de ocupá-lo com os propósitos educativos caros ao novo regime, mas a partir da confirmação das ideias religiosas. Essa instituição deveria responder pela formação intelectual de um clero que representaria e reafirmaria o poder católico em um tempo no qual a Cúria Romana decidiu racionalizar e moralizar as práticas e as imagens do catolicismo no Brasil.

O processo de romanização implicou em um controle severo sobre o modo como o catolicismo era professado no Brasil, sobretudo no que tangia às condutas dos clérigos, no controle dos paroquianos e nos comportamentos cotidianos. Assim, a criação da Diocese da Paraíba em 1892 tornava a fiscalização romana sobre as freguesias mais próxima e, por isso, mais eficiente. Lúcia Guerra Ferreira (2016) mostra que esse esforço moralizador foi empreendido por diferentes caminhos, dentre os quais estavam as cartas e visitas pastorais, com a circulação das ideias e a presença efetiva do arcebispo mesmo nas localidades mais distantes do estado. O Seminário Nossa Senhora da Conceição, nesse mesmo espírito, foi criado em 1894, com o propósito assegurar que os próximos clérigos fossem formados por esses novos preceitos doutrinários.

Foi em meio a esse cenário que se instrumentalizou o projeto familiar de poder da parentela de José Américo, ao decidir o sacerdócio como destino mais apropriado para que ele constituísse a sua carreira. Os seus dois tios padres ocupavam posições de destaque no interior da elite eclesiástica estadual e, como consequência disso, também tinham projeção no mundo da política. Essa, pois, era uma forma de garantir uma quantidade cada vez maior de parentes ocupando os espaços de poder no interior da própria diocese - “[...] os vigários preparavam os seus suplentes”. Assim havia acontecido com seu irmão mais velho, Inácio, e ora acontecia com o seu primo materno, José Leal, filho de Graciano Soares dos Santos Leal (Almeida, 1976, p. 147).

Nos estudos da constituição do campo religioso, Pierre Bourdieu (2004) explica que esse movimento de racionalização e moralização promovido pela Igreja Católica pode ser entendido como uma reação conservadora aos processos de urbanização, modernização e secularização do mundo, mas também ao individualismo que tomava contornos cada vez mais fortes nas sociedades ocidentais. Era fortalecida, nesse momento, a ideia de que os sujeitos tinham, tanto querer, quanto poder e que isso lhes permitiria decidir os seus próprios destinos.

O seminário, entretanto, representava o oposto disso. Era a afirmação do poder divino e institucional sobre comportamentos e pensamentos, sobre as escolhas da família, sobre as vontades dos meninos, sobre as normas e sobre os impulsos: “[...] a religião está predisposta a assumir uma função ideológica, função prática e política de absolutização do relativo e de legitimação do arbitrário”, só tendo sentido quando pensada também em termos materiais (Bourdieu, 2004, p. 46).

Era um conflito entre as liberdades individuais que o liberalismo afirmava e os dogmas mais caros de uma ascese católica, que pregava valores como a abnegação e a humildade. A esse respeito, Sérgio Miceli (2009, p. 12) argumenta que “[...] enquanto os intelectuais [seculares] dependem da conquista de um nome próprio, da fartura de um estilo e de um universo temático reconhecíveis, do aplauso dos pares, o êxito dos prelados é julgado com base em indicadores de caráter administrativo”. Esse conflito, a propósito, fez parte da rotina dos seminaristas na virada de século. José Américo, em seu livro de memórias, trata da trajetória no seminário como se, desde o momento de seu ingresso, tivesse certeza do desejo de não seguir aquele caminho. Ao que tudo indica, no entanto, embora o dilema ‘ser ou não ser padre’ tivesse aparecido para ele antes, a insatisfação foi de fato construída ao longo do tempo na instituição e isso depois de alguns momentos nos quais o rapaz acreditou que aquele seria o seu destino.

O Seminário Nossa Senhora da Conceição dispunha de um currículo estruturado em três etapas diferentes da escolarização dos sujeitos. A primeira eram as aulas de primeiras letras, das quais eram dispensados aqueles que já tinham conhecimento dos fundamentos da língua nacional e de operações matemáticas. O estágio subsequente era dividido em quatro anos, ao longo dos quais os estudantes tinham lições de Latim, em quatro classes, uma por ano, Português e Francês, com duas classes cada, ministradas nos primeiros anos, mas também Geografia, História do Brasil, Aritmética, Catecismo, História Universal, Geometria e História Natural. Nessa primeira fase, a educação secular era mais presente do que a educação religiosa no currículo formal, com isso, mostrava-se o perfil do que era esperado dos futuros clérigos. Atentos ao momento político depois da instauração do regime republicano, os gestores inventavam uma instituição na qual, para além de padres, a ideia decerto era formar também intelectuais.

Ao fim dessa etapa, os estudantes que continuassem a formação clerical restariam mais três anos naquela instituição, nos quais poderiam fazer matrículas no curso Teológico ou no curso Filosófico. Os discentes do curso Teológico deveriam estudar Teoria Dogmática, Teoria Moral, Literatura Sagrada, Escritura Sagrada, Dogma, Moral, Liturgia, Doutrina Canônica e Canto Gregoriano. Enquanto isso, aqueles que optassem pela formação filosófica teriam lições de Filosofia, História Eclesiástica, Ciências das Religiões, Eloquência e Física. Notamos, portanto, uma forte presença das ideias científicas, sobretudo para os matriculados no Filosófico. A Igreja Católica, na romanização, reagia à laicização do poder público nacional formando um clero que estivesse preparado para as discussões com os ‘homens de ciência’, bem como para agir no mundo da política12.

As aulas eram ministradas por professores clérigos que haviam se formado no Seminário de Olinda, estudado teologia em Roma ou em outra instituição congênere. Mas o corpo docente também admitia professores leigos e discentes mais avançados do seminário. José Américo falaria de algumas aulas e professores com empolgação; porém outros não teriam despertado maior interesse ainda que tivesse aprendido com eles alguma coisa. O professor Aristides Ferreira, o primeiro da lista, “[...] ensinava francês e viciou-me [...] a pronúncia dessa língua”. Ele seria morto, alguns anos depois, na passagem da Coluna Prestes por Caicó. O cônego Francisco de Assis, mestre das aulas de História e Geografia, não era bom professor, mas impressionava com sua habilidade para conduzir relacionamentos humanos. Ainda estudante, Odilon Coutinho lecionava Latim, com voz de quem falava ao pé do ouvido (Almeida, 1976, p. 153).

O que as memórias nos sugerem, sobretudo se contrastadas com a bibliografia e a leitura do contexto em questão, é que muito mais do que o conteúdo propriamente ministrado, o aprendizado dos seminaristas passava pela observação das atitudes dos ‘lentes’ - que corporificavam um habitus sacerdotal romanizado -, cujo controle passava por outros momentos e maneiras para além das aulas. Em um tempo de mudanças tão profundas na filosofia e na administração que regiam a Igreja Católica, observamos, entre os sacerdotes do alto clero diocesano, mas também entre os mestres do seminário, a afirmação de um comportamento e de uma maneira de pensar que se desejava mais atenta aos preceitos morais e éticos ultramontanos13. Essas instituições almejavam promover, e promoviam de fato, uma mudança no habitus clerical em meio ao processo de constituição desse campo religioso no Brasil14.

Além das disciplinas, os jovens seminaristas passavam um tempo do dia na sala de estudos, que era um salão repleto de bancas ocupadas pelos estudantes com suas leituras e era fiscalizado do alto de uma janela pelo vice-reitor, Alfredo Pegado. Ele descia repentinamente e surpreendia os discentes em seus relapsos. José Américo contava que foi nessa época que aprendeu a sentar adequadamente, com a postura ereta, sem espreguiçar-se, coçar-se ou bocejar. Isso aconteceu quase que sem perceber diante da banca que, dizia ele, o obrigava a estudar. O controle do corpo, um dos esforços primeiros e mais duradouros dos processos de escolarização das crianças, se tornava mais severo naquela instituição religiosa, na qual se acrescentava a necessidade de que os comportamentos atendessem a uma disciplina apropriada para um padre, que deveria ser um exemplo da moral e dos valores cristãos em sua paróquia.

Essa vigilância dos corpos estendia-se da hora de dormir ao momento do banho, em que se descia a ladeira até a bica de Santo Antonio, onde havia banheiros divididos por tabiques. Nesse momento, não se podia demorar e devia-se controlar a percepção: “[...] os corpos nus não deviam ser contemplados nem pelos próprios olhos”.

As refeições aconteciam em um salão, onde havia uma mesa para padres e outra para seminaristas. Antes de servidos, um dos estudantes lia um trecho da História Sagrada. Uma vez, diante um erro nas páginas, ocasião na qual Fenelon Lira começou a frase descrevendo Eva e terminou na Arca de Noé: “Deus deu uma mulher a Adão que tinha... vinte metros de comprimento por trinta de largura e era toda breada por dentro e por fora [...]”, não puderam controlar a gargalhada. Todavia, comia-se em silêncio. Quando o reitor tocava a campainha, Deo gratias, conversavam um pouco, mas na segunda campainha, voltavam à rotina (Almeida, 1976, p. 156, 152).

Podemos afirmar, dessa maneira, que o habitus investido por essa instituição e com o qual os discentes estariam se formando era apreendido, sobretudo, fora das salas de aula, pelo rigor com os horários que deveriam ser cumpridos, pela apreensão dos gestos exagerados, pelos olhares vigilantes dos mais velhos, pela observação dos seus comportamentos e da rotina institucional diocesana. Era isso que se esperava de um intelectual católico em tempos de romanização. As conversas eram evitadas de tal forma, que andavam em fila, o que favorecia o silêncio e a meditação. José Américo se recordaria daquele espaço como alheio a qualquer intercâmbio de sentimentos: “Ninguém era amigo de ninguém [...]”, mesmo os irmãos não teriam liberdade para se falar. E o resumia com a expressão: “[...] a casa estava cheia e era vazia” (Almeida, 1976, p. 149).

Mas se o silêncio funcionava como estratégia e havia sempre uma figura responsável por fiscalizar os comportamentos dos estudantes, os discentes logo criaram as suas táticas para sobreviver às normas tão estritas de comportamento e de socialização. O que vale observarmos, sobretudo, é que, por meio desses comportamentos desviantes, José Américo percebia as individualidades: “[...] havia de tudo, os mais puros e gabolas, briguentos, falsos, faladores, invejosos, debochados”. Mais que isso, era dessa maneira que ele podia ver como cada um vivia suas crises em relação ao controle estrito de seus instintos:

O seminário formava, entretanto, uma escola. A ausência de estimulo preservava as consciências e convivia-se numa atmosfera capaz de sanear os corações mais impuros. Tudo era vulnerável e continha-se a natureza. As maiores crises nasciam da castidade; a continência acendia fogueiras em imaginações exaltadas que sublimavam um ato medíocre. Mas a disciplina congelava e a carne ia perdendo a sua sensibilidade. Reinava a paz dos sentidos, à prova do sexo, o pecado que infundia mais horror (Almeida, 1976, p. 149).

José Américo constituiu a sua própria maneira de viver o seminário. Ele dizia que tinha pouco o que falar ao padre no confessionário. Antes, havia um tempo para refletir os pecados e ele não conseguia contabilizar os seus, “[...] faltava-me oportunidade e sobretudo tentação” (Almeida, 1976, p. 156, 151). Seria um santo, comentou certa vez o padre Gabriel Rocha. O reitor Joaquim de Almeida também fez um elogio a ele enquanto passava no corredor: “Muito bem. Vou mandar dizer a seu tio que está feito um vigarinho”. Essas relações interpessoais no interior da diocese favoreciam o seu reconhecimento pelos professores e pelas autoridades diocesanas e, decerto, garantiriam uma boa posição no interior do clero tão logo ele terminasse os estudos.

Nesse sentido, Sérgio Miceli (2009) explica que o período passado no seminário era um divisor de águas quanto ao caminho que os futuros clérigos tomariam na carreira eclesiástica. Nesse momento, eles eram observados e também era quando os seminaristas conheciam a cultura organizacional e as oportunidades que existiam:

Durante esse período, os seminaristas vão aos poucos se dando conta das estratégias de enquadramento, mais ou menos dissimuladas conforme o prestígio e a autoridade dos lentes, do diretor espiritual, dos reitores, mediante as quais os mentores buscam ajustar as expectativas de trabalho de seus pupilos às posições em aberto na divisão do trabalho religioso (Miceli, 2009, p. 126).

Contudo, também devemos levar em consideração os sentidos políticos externos à instituição que, de uma alguma forma, interferiam na maneira como esses estudantes eram percebidos no cotidiano das aulas e demais atividades que envolviam o seminário. Nos dois primeiros anos, nosso personagem fez dois cursos de Latim, dois de Francês, dois de Português, um de Geografia. Em todos os casos, o jovem estudante foi agraciado com o grau de distinção. Isso em um tempo no qual os resultados dos exames eram descritos como aprovado simplesmente, aprovado plenamente e distinção15.

Por um lado, poderíamos compreender a excelência do seu aproveitamento das disciplinas ministradas como uma medida de seu esforço pessoal, o que não deve ser mentira, pois, ainda que o seminário fosse rigoroso quanto ao tempo de estudo, isso não garantia que o discente concedesse toda a sua atenção para o livro ou caderno; mas devemos concordar com Pierre Bourdieu (2015) que afirma que as aprendizagens prévias no ambiente familiar contam bastante para resultados como esse - habilidades já instrumentalizadas e todo um arsenal cultural que devia fazer parte de seu cotidiano.

No tempo em que morou na residência de seu tio, o garoto teve oportunidade de cursar não só uma cadeira de primeiras letras por muitos anos, como fez aulas de Latim. Além disso, ele provavelmente vivenciou outras referências às culturas eclesiástica e secular na rotina da casa. Até mesmo a facilidade com a qual moldou seu corpo, aprendendo a andar e a sentar conforme a postura considerada correta, decorria de estímulo prévio. Por essa e outras razões, a sua excelência não era resultado exclusivo de sua inteligência, mas também não se pode desconsiderar que os exames são uma forma de comunicação, em que são expressos sentimentos e atitudes diante do conhecimento adquirido. Assim, arriscamos indicar que, nos dois primeiros anos, o seminário não o contrariava de todo, ou que era o conhecimento erudito que o agradava bastante.

Decerto José Américo não era visto como um estudante qualquer, posto que era sobrinho do padre Odilon, vigário de Areia, que tinha boas relações no alto clero diocesano, mas principalmente do monsenhor Walfredo Leal, pároco de Guarabira, uma das lideranças do Partido Republicano e, por consequência, da oligarquia que, nesse momento, governava o estado da Paraíba. O desembargador José Peregrino de Araújo, desde o último trimestre do ano de 1901, era o presidente do estado. Ainda que não se tratasse de um membro da parentela dos Machado e dos Santos Leal, como acontecera na década anterior, ele fora indicado por razões políticas pelos chefes da oligarquia em questão. Nesse momento, a propósito, foi nomeado chefe de polícia o jovem bacharel Antônio dos Santos Leal (Trigueiro, 1982).

A presença do monsenhor Walfredo Leal na cúpula da referida oligarquia e do Partido Republicano da Paraíba (PRP), no contexto de romanização da Igreja Católica, não era despropositada. Ela atendia a propósitos políticos específicos daquele sujeito e da sua família e não deixava de significar também uma importante representação dos propósitos diocesanos no interior da administração pública. A política republicana havia se tornado, daquela maneira, uma necessidade desse clero desprotegido pela chancela monárquica. Isso, porque a acomodação dos párocos nas freguesias, os recursos necessários e a autorização para os projetos diocesanos, tudo, enfim, dependia de decisões políticas que envolviam a negociação com elites locais e determinações legais das instituições legislativa ou executiva estadual (Miceli, 2009).

O caso do estado paraibano, nesse sentido, era paradigmático. O bispo e depois arcebispo D. Adauto Aurélio de Miranda Henriques ocupou esse posto por longos quarenta e um anos, ao longo dos quais, disse Sérgio Miceli (2009), contou com o apoio do pároco e seu amigo Walfredo Leal e dos irmãos Álvaro e João Machado, com os quais conseguia recursos, subsídios e favores para a organização eclesiástica. Além disso, a presença de um padre, formado já em tempos da afirmação do movimento ultramontano, bem relacionado com o alto clero romanizado da Diocese da Paraíba, acabava por imprimir um caráter prioritariamente conservador e moralizador, tanto no que se refere às posturas da sociedade quanto no que diz respeito ao tratamento da administração pública: “[...] sob o aspecto moral - naquele tempo mais importante que hoje - a política dos Machado foi ilibada. De certo modo, ela podia ser simbolizada na figura de Walfredo Leal - modesto, prudente e econômico” (Trigueiro, 1982, p. 36).

No ano de 1897, foi inaugurado um seminário de férias. Era uma recomendação do papa para evitar ao máximo que os estudantes ficassem expostos a influências externas por muito tempo, inclusive da própria família. O retiro acontecia em uma propriedade na Serra da Raiz. Os discentes saíam da capital de trem, faziam uma parada em Guarabira, passavam a noite na igreja matriz, e seguiam no dia seguinte para o casarão onde passariam o resto dos dias. No primeiro ano, José Américo foi acometido por uma febre enquanto transitava pela estrada de ferro e foi deixado com o seu tio vigário, portanto, ainda na primeira parada, o que permitiu que aproveitasse o recesso junto à família. No segundo ano, dizia ele não ter tido a mesma sorte, e teve que se juntar aos colegas no Seminário Ferial. Era o ano de 1902, no entanto, quando um dos estudantes morreu afogado enquanto os seminaristas nadavam no açude, deu-se o fechamento dessa instituição (Almeida, 1976; Ferreira, 2016).

A experiência impactou o nosso personagem e os demais seminaristas. Tanto foi assim que ele relatou esse evento em dois momentos distintos16, associando-o à sua tomada de decisão de não mais ser padre. Foi decerto no retorno dessas férias catastróficas que essa ideia se tornou mais firme em sua cabeça e que ele começou a pensar nos artifícios dos quais poderia se valer para convencer a família de sua saída do seminário.

Um dos primeiros confidentes com o qual discutiu essa vontade foi um dos monitores, que era um aluno mais velho que auxiliava o professor na transmissão do conteúdo e que o apoiou, porque faria o mesmo. Nesse tempo, era possível flagrar a crise na qual o menino vivia no rendimento das disciplinas: foi aprovado simplesmente nas disciplinas de Aritmética, Catecismo e na segunda classe de Latim, que foram cursadas da quarta para a primeira. Além disso, teve distinção em História do Brasil. Esses resultados não eram tão satisfatórios se comparados ao seu histórico17.

As férias do terceiro ano ele pôde passar em casa por causa do fechamento do Seminário Ferial. Esse também foi o momento em que se deu o casamento de sua irmã, Maria das Neves, com Josefá César Falcão. Era 19 de janeiro de 1904, toda a família estaria reunida e ele, mais uma vez, sentia-se estranho por não poder ter um par, que era incompatível com a sua posição de seminarista. No domingo, quando alguém o advertiu da hora da missa, fez uma cena e disse a todos que não voltaria para o seminário. As reações foram as mais diversas. Ele contava que seu tio paterno, o vigário Odilon, escolheu ficar neutro, e quem mais ofereceu resistência foi Inácio: “[...] meu irmão padre trancou-se no quarto, amuado, só aparecendo uma vez para ameaçar-me de suspender os estudos”. A mãe Josefa e o irmão Jaime, que respondia pela chefia dos negócios da família, contudo, apoiaram a decisão. José Américo, aos dezessete anos, não voltaria para o seminário (Almeida, 1976, p. 170).

O deslocamento da vida religiosa para a formação laica era resultado de uma escolha, talvez a primeira de grande relevo que o garoto teve a oportunidade de fazer por conta própria. Tratava-se de uma decisão que não implicava apenas do abandono, ou do não do sacerdócio, mas de toda uma maneira de pensar e de se comportar, de estar em sociedade - um habitus. Ele abandonava, portanto, a vida solitária dos párocos, que cerceava a possibilidade de contrair matrimônio e de constituir uma família nuclear, aos moldes do que era entendido naquela época como família, e que também dava limites às amizades que poderiam ser mantidas. Mais do que isso, era produto de um desejo de liberdade e de autonomia, naquele início de século, quando o imaginário republicano e liberal propunha um mundo com outras oportunidades para os indivíduos.

Apesar disso, devemos alertar que a conclusão do curso secundário no seminário não era caminho certo para a ordenação e, muitos seminaristas, sobretudo aqueles que ficaram nas aulas secundárias, sem se aventurar no curso superior, em conformidade com Raylane Barreto (2009), se tornaram intelectuais seculares importantes no espaço público, casaram, tiveram filhos e seguiram outras carreiras. O seminário se tornou, no final das contas, uma alternativa de educação secundária para os estudantes que não conseguiam matrícula no Liceu Paraibano, ou para aqueles que vinham das cidades do interior e careciam de um internato para que fosse possível continuar a formação. Mas entendemos que, para um garoto com essa história na família, tendo dois tios e um irmão padre, a pressão depois da conclusão do curso teria outros significados, de modo que não terminar os estudos no seminário, mesmo que apenas o primeiro ciclo, talvez fosse a maneira mais segura de garantir para si um destino liberal.

A continuidade dos estudos em alguma instância do ensino superior, no entanto, exigia certificação das competências necessárias para a formação do ensino secundário. Não era qualquer instituição que poderia conferir esse título, o próprio Liceu Paraibano demorou muito para conseguir o reconhecimento necessário para que fosse possível garantir aos seus discentes o título em questão, o que só se deu depois de muita negociação no ano de 1896. Isso exigiu, de acordo com Itacyara Viana Miranda (2017), toda uma mudança nos métodos de avaliação, para que a instituição estivesse em conformidade com os testes do Ginásio Nacional, como passou a ser denominado na República o Colégio Pedro II. José Américo, como acontecia com os discentes de outras localidades do estado, teve de fazer, portanto, os exames de madureza, que àquela ocasião, depois da reforma, estavam muito mais rígidos.

Aprovado, ele poderia seguir os estudos. Mas não como militar, como ele diria anos depois que era o seu desejo, uma carreira a propósito demasiadamente masculinizada, como mostra Sérgio Miceli (2001), o que seria muito apropriado depois de tanto tempo de batina, visto que o sacerdócio era uma função com características mais ‘femininas’, dotada de maior sensibilidade e sem grandes impulsos de bravura. A miopia, no entanto, atrapalhara esse projeto. Ele ficou, então, com a Faculdade de Direito do Recife, onde pôde dar sequência à relação com os livros e com o conhecimento científico, sobretudo das línguas e humanidades, o que parecia agradá-lo bastante. Foi assim que providenciou com os irmãos e os tios a sua matrícula e o enxoval - no qual deveria constar um terno -, bem como os recursos necessários para a sua mudança para a capital pernambucana.

Considerações Finais

O sacerdócio era um projeto de poder para as famílias Almeida e Santos Leal na virada do século XIX para o XX. A carreira fora promissora na geração anterior, cada sobrenome com um representante de grande influência no cenário político estadual. Por esse motivo, também se prometia profícua para os jovens. A bem dizermos, muito antes de atravessar os portões do seminário, eles já haviam aprendido alguma coisa sobre as disciplinas que fariam. José Américo, por exemplo, teve aulas de latim com José Berardo, mas principalmente aprendeu sobre o habitus de um clérigo, sobre a economia dos gestos e outras regras que versavam como era preciso se comportar nas mais variadas circunstâncias da vida social. Mas, para além disso, as relações político-institucionais abriam os caminhos para rapazes com ele, aos olhos dos professores e dos demais representantes dos altos extratos da diocese, afinal de contas, era sobrinho do vigário Odilon Almeida e do monsenhor Walfredo Leal.

Isso tudo decerto contou bastante para os resultados favoráveis que José Américo conseguiu computar, sobretudo nos primeiros anos, em seus exames como discente. Contudo, é preciso considerar que o garoto deveria simpatizar, de alguma maneira, com os conhecimentos com os quais tinha contato. Talvez o gosto pelas letras o tenha entusiasmado, de alguma forma, na aprendizagem em disciplinas como História Geral e do Brasil, Português, Francês, Geografia ou mesmo Latim. Em outros tempos, menos tomados pelo arroubo dos individualismos, talvez ele tivesse seguido o sacerdócio com menor pesar, mas deu-se que o desejo de liberdade - em contraponto à rigidez da Igreja no processo de romanização - imperou em suas decisões e, nesse caminho, foi aceito também por sua família. José Américo, assim, matriculava-se na Faculdade de Direito do Recife e trocava a batina pelo terno e, com ele, assumia toda uma nova postura diante dessa sociedade que se montava nos primeiros anos da República.

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Rodadas de avaliação: R1: três convites; três avaliações recebidas.

Financiamento: A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Licenciamento: Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

1José Américo de Almeida (1887-1980) foi um intelectual e político paraibano de grande evidência na história da República do Brasil. O seu romance A bagaceira ficou conhecido como precursor do movimento regionalista na literatura. Além disso, foi ministro de Viação e Obras Públicas no primeiro governo de Getúlio Vargas, contribuindo para a consolidação da Revolução de 1930. Até o final de sua vida, foi um articulador político e notório escritor de ficção e não-ficção (Burity, 2021).

2O padroado era um mecanismo jurídico acordado pelo papa que concedia, até a decadência do regime imperial, às coroas ibéricas e, mais tarde, aos monarcas brasileiros, poder sobre a administração e hierarquia eclesiástica. Em contrapartida, o Reino Português e, depois, o Império do Brasil seriam oficialmente católicos, o que implicava em uma série de chancelas para as paróquias e os bispados.

3Algumas críticas dessa natureza, a título de exemplo, foram direcionadas ao Padre Cícero (1844-1934). Lira Neto (2009) enumera algumas das acusações que pesavam sobre ele nesse momento: seria um mistificador, semeador de fanatismos, que se aproveitaria da crença das pessoas mais simples; tratar-se-ia de um vigário rebelde e desobediente nas vezes em que fora repreendido pelos seus superiores; além disso, falava-se bastante do seu relacionamento com jagunços e cangaceiros, para os quais ele benzia rifles, punhais e bacamartes, como era o caso de Lampião, que se dizia seu afilhado.

4Usaremos as reflexões de Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron (2014) em contraste com as de Vigotski (2009) para ressaltar que, para além das estruturas sociais, os indivíduos produzem uma forma intersubjetiva de estar no mundo. Nessa esteira, ponderamos a leitura de Pierre Bourdieu (1996), ao tratar da ilusão biográfica, de que a vida seja uma sucessão de alocações e deslocamentos. Embora ele tenha razão ao dizer que os caminhos que as pessoas trilham não estão previamente determinados por qualquer vocação, ele se equivoca ao levar essa reflexão às últimas consequências. Pessoas constroem projetos de vida, para si e para os outros que vivem à sua volta, e os seguem, conforme as suas possibilidades e os seus desejos, ainda que tenham obstáculos no caminho que exijam delas reorientações nessas rotas (Clot, 1989).

5Relato de memórias de Julia Verônica dos Santos Leal, provavelmente do ano de 1962, caixa 39. Arquivo Pessoal José Américo de Almeida. Fundação Casa de José Américo.

6Relato de memórias de Julia Verônica dos Santos Leal, datado do dia 18 de abril de 1955, caixa 39. Arquivo Pessoal José Américo de Almeida. Fundação Casa de José Américo.

7Conforme memórias de José Américo de Almeida (1976) e o relato de memórias de Julia Verônica dos Santos Leal, provavelmente do ano de 1962, caixa 39. Arquivo Pessoal José Américo de Almeida. Fundação Casa de José Américo.

8Relato de memórias de Julia Verônica dos Santos Leal, datado do dia 18 de abril de 1955, caixa 39. Arquivo Pessoal José Américo de Almeida. Fundação Casa de José Américo.

9Trecho da novela Reflexões de uma cabra, publicada em 1922, cujo personagem principal também foi seminarista, com um enredo que em certos momentos se mostrou quase autobiográfico.

10Antonio Carlos Ferreira Pinheiro (2008, p. 11) destaca que, no período colonial, boa parte das escolas da cidade “[...] funcionavam nos conventos, seminários e salões paroquiais”. No Império, era possível encontrar escolas, mesmo as que tinham uma finalidade secular, funcionando em alguma das salas de um prédio construído com propósitos religiosos. Assim, a disputa pela posse desses prédios, que tinham em si uma razão material, porque se tratavam de patrimônios que valiam bastante, significava também o poder sobre um instrumento simbólico de grande valor na arquitetura da cidade.

11É válido destacarmos que, no Decreto nº 119A, de 7 de janeiro de 1890, ficava proibido ao Estado intervir em matéria religiosa e estava garantido o direito da Igreja ao domínio de seus bens.

12Essas informações quanto ao currículo dos cursos oferecidos pelo Seminário Nossa Senhora da Conceição foram observadas nos livros de matrículas e resultados dos exames dos discentes do seminário, o qual foi consultado no Arquivo Eclesiástico da Paraíba.

13O ultramontanismo foi um movimento, no interior da Igreja Católica Oitocentista, cujo “[...] escopo era o fortalecimento do poder papal e da hierarquia clerical, bem como da normalização institucional, num esforço singular de retardamento das transformações advindas da modernidade e da revalorização dos aspectos medievais e barrocos da religiosidade católica” (Gomes Filho, 2023, p. 226).

14Entendemos, a partir das leituras de Pierre Bourdieu (2004), que só é possível falar de um campo religioso, sistematizado e racionalizado, no Brasil, com o processo de romanização e a consequente estadualização das dioceses, isso no contexto da virada do século XIX para o início do século XX.

15De acordo com o livro de exames do Seminário Nossa Senhora da Conceição. Consultado no Arquivo Eclesiástico da Paraíba.

16O livro Antes que me esqueça (1976) e a entrevista a Aspásia Camargo, Sérgio Flaksman e Eduardo Raposo publicada no livro O nordeste e a política: diálogos com José Américo de Almeida (1984).

17Livro de exames do Seminário Nossa Senhora da Conceição. Arquivo Eclesiástico da Paraíba.

Recebido: 21 de Dezembro de 2022; Aceito: 31 de Maio de 2023; Publicado: 18 de Julho de 2023

Luiz Mário Dantas Burity:

Doutor em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mestre e graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pesquisador da Fundação Casa de José Américo. E-mail: marioburity@hotmail.com https://orcid.org/0000-0003-1357-1243

Editor-associado responsável:

Carlos Eduardo Vieira (UFPR) E-mail: cevieira9@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-6168-271X

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