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Revista Brasileira de História da Educação

Print version ISSN 1519-5902On-line version ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.24  Maringá  2024  Epub Nov 06, 2023

https://doi.org/10.4025/rbhe.v24.2024.e297 

ARTIGO ORIGINAL

As ‘práticas’ e o corpo para além da educação física: a proposta educacional dos CIEPs (1983/1987-1991/1994)

Las ‘prácticas’ y el cuerpo más allá de la educación física: la propuesta educativa de los CIEPs (1983/1987-1991/1994)

Luiza Silva Moreira1  * 
http://orcid.org/0000-0002-4792-0811

Edivaldo Góis Junior2 
http://orcid.org/0000-0002-0521-1937

Marina Paradela Gurgel1 
http://orcid.org/0009-0003-6163-770X

Antonio Jorge Gonçalves Soares1 
http://orcid.org/0000-0001-7769-9268

1Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

2Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil.


Resumo

O presente estudo buscou analisar como as práticas corporais sistematizadas foram contempladas no programa curricular e arquitetônico dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs). Para tal, foram selecionados os programas curriculares prescritivos da equipe gestora nos dois governos de Leonel Brizola, disponíveis no acervo físico da Fundação Darcy Ribeiro. Observamos que o discurso centrava-se na tríade Educação, Cultura e Saúde e os documentos revelam que todas as competências deveriam ser trabalhadas para formação cidadã, mas isso não significa que, no currículo praticado, tais ideais se materializaram como uma tradição pedagógica ou prática na época.

Palavras-chave: práticas corporais; programa curricular; arquitetura escolar

Resumen

El presente estudio buscó analizar cómo se contemplaron las prácticas corporales sistematizadas en el programa curricular y arquitectónico de los Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs). Para ello, seleccionamos los programas curriculares prescriptivos del equipo de gestión durante las dos administraciones de Leonel Brizola, disponibles en el acervo físico de la Fundação Darcy Ribeiro. Observamos que el discurso se centraba en la tríada de Educación, Cultura y Salud, y los documentos revelan que todas las competencias debían ser abordadas para la formación ciudadana. Sin embargo, esto no significa que, en el currículo practicado, tales ideales se materializaran como una tradición pedagógica o práctica en ese momento.

Palabras clave: prácticas corporales; programa curricular; arquitectura escolar

Abstract

The present study aimed to analyze how systematic bodily practices were incorporated into the curricular and architectural programs of Centro Integrado de Educação Pública (CIEPs). To do so, we selected the prescriptive curricular programs developed by the management team during the two administrations of Leonel Brizola, which are available in the physical collection of the Fundação Darcy Ribeiro. We observed that the discourse was centered around the triad of Education, Culture, and Health, and the documents reveal that all competencies should have been addressed for civic education. However, this does not mean that these ideals were materialized as a pedagogical tradition or practice at the time in the implemented curriculum.

Keywords: bodily practices; curricular program; school architecture

Introdução

O presente artigo busca elucidar como as ‘práticas’1 corporais foram contempladas nos documentos produzidos pela equipe gestora dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) e como elas fizeram parte das estratégias de ampliação da jornada escolar. Os CIEPs, conhecidos popularmente como Brizolões, foram desenvolvidos nos Programas Especiais de Educação (I PEE e II PEE), nos governos de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, em 1983/1987 e 1991/1994. A elaboração e a implantação desses programas apoiavam-se no aumento do tempo de permanência, de alunos e professores, na escola, a partir da oferta de atividades culturais, esportivas, artísticas e de educação higiênica para atender, principalmente, crianças oriundas das camadas populares.

A proposta pedagógica dos CIEPs se baseava no pressuposto de que as desigualdades escolares só poderiam ser reduzidas com uma escola de qualidade, com maior tempo de permanência e com diferentes experiências formativas. Darcy Ribeiro2 indicava que o filho de classe média ou alta tinha a escola como uma dentre várias oportunidades formativas oferecidas pela família. Em contrapartida, para o filho das classes populares, a escola era a única possibilidade de adquirir experiências e capital cultural que pudessem mitigar as desigualdades de origem social. A tarefa principal do programa dos CIEPs, segundo os termos de Darcy Ribeiro, era: “[...] introduzir a criança no domínio do código culto, mas valorizando a vivência e bagagem de cada uma delas. A escola [deveria] servir de ponte entre os conhecimentos já adquiridos pelo aluno e o conhecimento formal exigido pela sociedade letrada” (Ribeiro, 1986, p. 48). Nesse sentido, a função da escola não poderia se restringir apenas a alfabetizar as camadas populares, pois, antes de tudo, deveria fornecer experiências, ferramentas, saberes e códigos de sociabilidade que permitissem aos filhos das classes populares se inserirem na sociedade como cidadãos de direitos (Ribeiro, 1986).

Não era apenas um programa de instrução para as camadas populares, tratava-se, antes de tudo, de uma proposta educativa que tinha uma perspectiva civilizatória e emancipatória voltada para capacitar os alunos para lutarem por uma vida digna e cidadã, sendo, portanto, um projeto ‘herdeiro do iluminismo’ voltado à emancipação destas camadas (Bomeny, 2001). Por meio da educação, os idealizadores dos CIEPs tinham por intenção formar indivíduos críticos e autônomos, capazes de compreender seus direitos e deveres e agir em prol do bem comum. Assim, a educação, na visão de seus idealizadores, se tornaria uma ferramenta de transformação social, capaz de promover a justiça e a igualdade para todos.

As artes, o lazer, a iniciação ao trabalho, tudo isso deveria caber no espaço destinado à escola para a vida metropolitana moderna (Bomeny, 2001), onde seriam preconizados o aprendizado linguístico, o reconhecimento da própria cultura e a formação de atitudes e hábitos. Darcy Ribeiro considerava o aprendizado da língua culta, das atitudes e das informações básicas do funcionamento da sociedade como pontos norteadores a serem trabalhados no ensino primário dos CIEPs.

Partimos da hipótese de que o corpo agenciado, com os cuidados da saúde e com as práticas de fruição3 no espaço escolar, foi central na construção dos currículos dos CIEPs com uma escola de tempo integral. Os estudos sociológicos que tomam o corpo como objeto o entendem como local de inscrição dos processos de subjetivação na sociedade, de modo que as intervenções culturais e sociais são determinantes na aquisição de hábitos, gestos e na construção das identidades coletivas e individuais. Le Breton (2007) indica que a formação de uma criança que nasce na Floresta Amazônica ou em Tóquio será determinada pelo grupo social que desenvolverá suas disposições durante o decorrer do longo processo educativo nas respectivas sociedades. O corpo no contexto escolar não é aqui entendido como organismo ou como um mero mecanismo, mas sim como expressão do sujeito e de todo o processo cultural de subjetivação ao qual foi submetido.

O corpo metaforiza o social e o social metaforiza o corpo. No interior do corpo são as possibilidades sociais e culturais que se desenvolvem. Aos órgãos e às funções do corpo humano são atribuídas representações e valores diferentes de uma sociedade para outra. Algumas vezes, no interior de uma mesma sociedade, diferem também conforme as classes sociais em presença (Le Breton, 2007, p. 70).

Os corpos são, para além da escolarização, agenciados por outras instituições sociais (família, exército, clubes esportivos, centros culturais, igreja etc.) que também moldam, naturalizam e legitimam valores, hábitos e sensibilidades. Educar o corpo, portanto, representa uma noção sociológica entendida como um conjunto de dispositivos utilizados nas intervenções e nos agenciamentos realizados nos e através dos corpos dos indivíduos, de forma intencional ou naturalizada na vida social. Mauss (2003) argumenta que as técnicas corporais são formas de ação social que se manifestam por meio do corpo. Elas são aprendidas, transmitidas e incorporadas pelos indivíduos de uma sociedade específica, influenciando sua maneira de se movimentar, de se expressar e de se relacionar com os outros. De fato, o projeto maussiano criou uma inflexão, ao tomar as ‘técnicas corporais’ como objeto de investigação para observar e desnaturalizar como as diferentes culturas moldam os corpos. Tais técnicas são socializadas para que os indivíduos saibam utilizar seus corpos nos diferentes espaços e ambientes e nas funções sociais determinadas em cada sociedade (Elias, 1994; Mauss, 2003). A educação dos jovens é muito associada a ‘práticas’ centradas no corpo, como as danças, os ritmos, os esportes (Brown, 2019), por isso tais práticas evidenciam a dimensão normativa dos documentos curriculares que prescreviam experiências de fruição, disciplinamentos e autocontrole corporal, constituindo-se num determinado tipo de moralidade.

O ambiente escolar também constrói agenciamentos corporais para formar disposições nos estudantes que se relacionam com a funcionalidade, a moralidade, a estética e os valores preconizados tanto nesse espaço como na sociedade. A escola produz intervenções diretas no corpo através das normas escolares, dos regimentos internos, dos horários programados, da arquitetura e da oferta das mais variadas disciplinas, inclusive, dentre estas, aquelas voltadas para expressão, controle, disciplinas e domínio de técnicas corporais sistematizadas.

A literatura especializada tem utilizado o termo ‘práticas corporais’ institucionalizadas para se referir a um conjunto articulado de saberes e práticas corporais constituintes do esporte, da educação física, das ginásticas, das danças e de variados tipos de divertimentos (Melo, 2014); ou ainda como ‘práticas de educação física’ (Góis Júnior & Soares, 2018). No entanto, essas conceituações dão centralidade, principalmente, à institucionalização histórica do componente curricular Educação Física. Com o intuito de esboçar um conceito mais amplo que falasse das práticas corporais para além da tradicional disciplina responsável pela educação física, Gurgel (2018) conceitua as ‘práticas corporais sistematizadas’ como disciplinas, atividades ou conteúdos com objetivo de ensinar ‘técnicas corporais’ específicas e valores, disseminadas em diferentes tempos e espaços no currículo escolar: dança, arte cênica, esportes, jogos, cuidados com a saúde, dentre outras que ocorrem em diversos espaços e tempos curriculares.

Os CIEPs foram pensados para oferecer uma formação integral do aluno, e, para tanto, as ‘práticas corporais sistematizadas’ seriam uma das estratégias de pensar a educação de forma ampla e diversificada, buscando uma determinada civilidade ou disciplina que seria funcional tanto à emancipação das camadas populares quanto à gestão escolar. Aduzindo a esse argumento, os formuladores desse projeto de educação tinham claro que, para uma criança ou adolescente permanecer durante o dia inteiro na escola, deveriam lhe ser oferecidas atividades corporais e novas experiências não comuns aos currículos padronizados; atividades que ressignificassem a escola na vida dos educandos. A escola para Darcy Ribeiro deveria ser alegre e incentivadora de novas experiências. Veremos que a organização curricular dos CIEPs pensava detalhadamente as ‘práticas corporais’, não as limitando à disciplina Educação Física.

Aliados às ‘práticas’, determinados espaços eram marcados por uma arquitetura escolar específica, pois, entre carnes e pedras, a “[...] escola em suas diferentes concretizações é um produto de cada tempo, e suas formas construtivas são, além dos suportes de memória coletiva e cultural, a expressão simbólica dos valores dominantes nas diferentes épocas” (Viñao Frago & Escolano Benito, 2001, p. 47). Da mesma forma, Faria Filho (1998) compreende os espaços escolares como discursos que evidenciam um sistema de valores. Para Ermel e Bencostta (2019, p. 22), “[...] algumas lacunas necessitam ser melhor investigadas, tanto do ponto de vista dos recortes temporais como de novas prospecções temáticas [...]”, por isso o estudo de diferentes projetos educacionais e suas respectivas arquiteturas é fundamental para construir diálogos e comparações entre diferentes tempos e espaços na história da educação brasileira. De fato, o projeto arquitetônico dos CIEPs potencializava o agenciamento dos corpos, além de outras dimensões educativas.

O foco deste artigo foi analisar como as ‘práticas corporais sistematizadas’ estavam prescritas no programa curricular e arquitetônico dos CIEPs, o que significa dizer que observamos as possibilidades oferecidas para os agenciamentos dos corpos nesse projeto de escola de tempo integral. Nossas fontes foram os programas e as disciplinas explicitadas nos documentos curriculares, bem como as prescrições sobre o uso do equipamento escolar que informavam as possibilidades de fruição e disciplinamento corporal nos CIEPs.

Os caminhos da pesquisa

Observamos os CIEPs como política educacional no estado do Rio de Janeiro nos governos de Leonel Brizola nos períodos de 1983-1987 e 1991-1994, já que, entre esses dois mandatos, houve o governo Moreira Franco (1987-1991). Não realizamos uma análise comparativa entre esses dois períodos de implementação da política nos governos Brizola, apesar de reconhecermos ter havido diferenças na gestão pedagógica e nos recursos humanos nos dois mandatos. Como já anunciado, exploramos ‘as práticas corporais sistematizadas’ descritas nos documentos produzidos pela equipe gestora dos programas curriculares. Isso se deve ao fato de que a transição entre os programas resultou em mudanças na equipe gestora, o que trouxe novas abordagens de trabalho, experiências e estratégias. Além disso, cada fase do programa apresentava características distintas. Enquanto o primeiro programa se concentrou na elaboração e na formulação das bases orientadoras dos CIEPs, o segundo programa foi marcado por ajustes e reformulações.

Realizamos a análise dos documentos administrativos referentes à Secretaria Especial de Educação, disponíveis no Memorial Darcy Ribeiro da Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR), em Brasília. Essa etapa consistiu no levantamento das principais fontes primárias sobre o Programa Especial de Educação (PEE) e a política dos CIEPs. O conjunto de documentos contempla livros do primeiro e do segundo PEE, a saber: relatórios gerais e administrativos, entrevistas, regimentos internos, recursos humanos, fotos diversas, arquivos pessoais e material pedagógico produzido pelas equipes de especialistas e por Darcy Ribeiro; enfim, tudo que fosse ligado à proposta educacional dos CIEPs. Por último, organizamos um modelo de análise que considerou as seguintes dimensões: i) espaços e equipamentos destinados para as ‘práticas’ corporais, observando o número de pavimentos, as salas apropriadas às aulas de música, teatro, artes cênicas, educação física, instalações higiênicas, além do mobiliário; ii) tempo referente à destinação e à distribuição do horário diário e semanal das ‘práticas’ corporais; iii) estruturação curricular das propostas, das atividades e das disciplinas tratadas, de forma sistemática e didaticamente, como ‘práticas’ corporais.

Espaços, tempos e prescrições nos CIEPs

O projeto dos CIEPs foi lançado como possibilidade de oferecer uma educação pública, laica e de qualidade numa escola de tempo integral, cujo objetivo era suprir deficiências sociais e culturais dos alunos das camadas populares. O tempo escolar ampliado e a arquitetura escolar formavam dois dispositivos articulados que tinham por intenção operar mudanças na ‘cultura escolar’ (Julia, 2001). Tais mudanças passavam obrigatoriamente pelo disciplinamento e pelas possibilidades de fruição do corpo no tempo e no espaço escolar.

Assim, a arquitetura dos CIEPs visava à materialização de uma determinada ‘cultura escolar’, na qual aquele projeto educacional fomentava determinados comportamentos e hábitos que vão além das aprendizagens disciplinares (Faria Filho, Vidal, & Paulilo, 2004). Por isso, é preciso compreender a pluralidade da ‘cultura escolar’, melhor dizendo, ‘culturas escolares’, pois há de serem consideradas, conforme o objeto de estudo, múltiplas experiências de ensino, aprendizagem, convivência, socialização, regulação e subversão (Vidal, 2007). O estudo dessas ‘culturas’ leva em conta os modos como os sujeitos se relacionam com as ‘práticas’, pois a escola é um lugar de constante negociação entre o imposto e o praticado (Vidal, 2005).

Há diversos estudos na literatura especializada que vêm se aproximando da educação dos corpos como tema de pesquisa na História da Educação (Soares, 2021; Taborda de Oliveira & Vaz, 2004). Quitzau e Moreno (2021, p. 4) afirmam que “[...] numerosos autores vêm se dedicando a pensar estas questões, e a variedade de publicações que abordam as numerosas práticas e representações sobre o corpo são um indício da consolidação desta temática no âmbito historiográfico”. As autoras acertadamente descrevem um movimento crescente de interesse em relação ao corpo na historiografia da educação (Quitzau & Moreno, 2021). Ao observarmos a recente publicação do dossiê ‘Corpo e história: os múltiplos processos de educação do corpo’ no periódico Educação em Revista (Quitzau & Moreno, 2021), percebemos uma tendência de problematização da temática por meio de duas vertentes: uma focalizando a disciplina Educação Física, e outra problematizando a educação dos corpos fora do contexto escolar. As duas iniciativas são importantes, entretanto, nosso estudo tem como intuito uma outra ótica na qual a problematização da educação dos corpos está intimamente ligada às ‘culturas escolares’, sem, contudo, se restringir à disciplina Educação Física. Seria uma perspectiva semelhante à de Taborda de Oliveira e Linhales (2011, p. 404), na qual uma possível história do corpo busca “[...] compreender permanências e rupturas que marcaram a relação entre escolarização e educação do corpo”. Sendo assim, a originalidade deste estudo reside na análise de um corpus documental inédito sobre o CIEP, a partir de uma problematização que dá centralidade à educação dos corpos no enquadro das culturas ‘escolares’.

É possível identificar alguns desses dispositivos na educação dos corpos nos horários reservados, por exemplo, para as ‘práticas’ de higiene corporal (horário de banho, higiene bucal e prédicas sobre higiene), na infraestrutura destinada às diversas atividades, nas palestras de treinamento/formação dos agentes escolares, na instituição de equipe médica e odontológica e nas refeições oferecidas quatro vezes ao dia, desjejum, almoço, lanche, jantar e banho diário (Moreira, 2015). Os CIEPs foram pensados para ser uma escola com “[...] ambiente adequado e digno, propício [...] [ao] crescimento físico e cultural [...]”4 dos alunos, como destacado nos documentos orientadores.

Para além de alfabetizar, ensinar operações matemáticas e socializar as normas da língua culta, o objetivo desse modelo escolar também tinha por função permitir experiências corporais e socializar saberes e hábitos para que os filhos das camadas populares pudessem se inserir e atuar naquele Brasil que se redemocratizava. De acordo com os documentos produzidos pela equipe gestora do programa, a experiência linguístico-cultural estaria associada ao aprendizado da língua portuguesa como elo integrador de todas as disciplinas; a sociopolítica referir-se-ia à construção da personalidade do aluno e suas atitudes; e, por último, a diretriz ligada ao conteúdo destacaria os principais pontos norteadores das respectivas áreas das disciplinas5.

O modelo pedagógico e civilizatório, pensado por Darcy e seus colaboradores (Bomeny, 2009), trazia no seu discurso o respeito e o reconhecimento das camadas populares como grupos sociais dotados de saberes e culturas. No campo discursivo, Darcy pensava numa educação universalista, laica e republicana e, de forma ad hoc, valorizava o conhecimento e a cultura trazida pelos estudantes. Isto significava considerar a cultura da comunidade não de forma a reproduzi-la acriticamente, tampouco rejeitá-la como algo menor.

De modo geral, o ato de educar parte do pressuposto de que a cultura do aluno nada tem a ver com a escola. Ignorando a cultura que ele traz, supõe-se que todas as crianças, ao entrarem na escola, sejam iguais. Mas a sociedade apresenta desigualdades e a escola termina privilegiando as crianças que têm maior acesso aos meios eletrônicos de comunicação (como TV, vídeo), que manuseiam com maior frequência livros de história, jornais e que, no próprio ambiente familiar, estão expostas a assuntos relacionados aos que vão entrar na escola.

Como o conhecimento trabalhado pela escola tem sido apropriado pelos setores dominantes da sociedade, a criança pertencente às camadas populares tem uma bagagem cultural distante do que é ensinado na escola. Por outro lado, esta criança tem uma série de conhecimentos e habilidades construídos na luta pela sobrevivência, no seio de suas relações sociais que, de modo geral, são ignoradas pelos professores oriundos dos setores médios da população (Ribeiro, 1986, p. 98).

Esse é um argumento retórico interessante no campo pedagógico, quando se tem como perspectiva conciliar tradições inconciliáveis: a) a dimensão civilizatória, a qual hierarquiza espírito/intelecto e corpo, povos desenvolvidos, subdesenvolvidos e primitivos e sensibilidades refinadas e grotescas; b) com a dimensão romântica, que pensa seu desenvolvimento a partir dos próprios termos da cultura, das identidades e dos saberes populares (Lovisolo, 1990).

Essa conciliação percorre dois caminhos de difícil operacionalização no campo escolar: um seria reconhecer as diferenças culturais e de classe no sentido de valorizar e/ou empoderar as camadas populares na escola, tornando legítimos seus saberes pela mesma instituição que os deslegitimou; e o outro seria considerar o conhecimento das camadas populares, aquilo que seus filhos trazem para a escola, como estratégia metodológica, isto é, como ponto de partida das lógicas e dos saberes que possuem para introduzir o dito ‘saber legítimo’, que se torna um instrumento de luta nas sociedades liberais e capitalistas. A difícil conciliação acaba reservando aos saberes populares e às identidades locais, noção também fluida no discurso pedagógico, o lugar periférico no currículo. Festas, danças folclóricas, música popular e expressões culturais inscritas nas corporalidades assumem, em muitos dos casos, as marcas da cultura popular nos currículos escolares. Um indício disto é que os documentos prescritivos dos CIEPs ofereciam mecanismos pedagógicos para os docentes atuarem valorizando os saberes e a cultura local.

Na escola, a criança vai aprender como é que se fala do jeito do professor, mas, para isso, não será conveniente corrigi-la o tempo todo, até ela acabar se convencendo de que não sabe falar. Esse era um dos tipos de prescrição pedagógica para aquela nova escola que surgia. Ela precisaria aprender as regras do que a escola considerava legítimo, como convenções importantes na nossa sociedade, mas não como verdades e valores absolutos (Ribeiro, 1986). Com isso, no programa dos CIEPs dominava a perspectiva de socializar os valores civilizatórios de disciplina, de autodisciplina, de cooperação e de prospecção, valores estes essenciais ao sucesso escolar e à inserção na sociedade capitalista (Souza, 2021). Monteiro (2009, p. 41) afirma que os CIEPs seguiam uma “[...] operação cultural complexa, [um] processo de trocas culturais entre diferentes sujeitos - alunos, pais, membros das comunidades, professores e animadores culturais - [o que] implicou disputas, resistências e apropriações diferenciadas”. Desse modo, é na observação da formalidade das ‘práticas’ (Certeau, 2011) que podemos interpretar como as representações de projeto educacional eram recebidas por professores e estudantes.

O tempo e o espaço são duas categorias centrais para pensar os elementos fundamentais na estruturação do programa dos CIEPs, pois seus objetivos definem prioridades no currículo. A organização, a divisão dos tempos, o conteúdo das disciplinas e os espaços ofertados eram, como demonstraremos, determinantes para incorporar as técnicas corporais funcionais às ‘culturas escolares’. Temos que ter em mente que os CIEPs representavam, em algum nível, a ruptura com a escola até então existente na rede de ensino do estado do Rio de Janeiro, que era de tempo parcial. Darcy queria acabar com a escola de três turnos, mas para isso radicalizou implantando a escola de turno único, que, segundo ele, era comum em outros países. Esta era, inclusive, a primeira das metas básicas da programação educacional do governo: “Acabar com o terceiro turno, de modo a garantir a cada criança um mínimo de cinco horas diárias de permanência na escola” (Ribeiro, 1986, p. 35).

Os CIEPs estavam preparados arquitetonicamente e com programas e atividades para manter os alunos na escola por mais de oito horas diárias. Como argumenta Moreira (2015, p. 96, grifo do autor), “[...] essa nova concepção de educação pensada para os CIEPs exigiu também a construção de uma ‘cultura escolar’ distinta da escola tradicional”6. As atividades variadas e a possibilidade de estar por mais tempo na escola poderiam ser determinantes para impulsionar a formação de novas subjetividades naquele modelo de escola, o que significava que essa ‘cultura escolar’, especificamente, passava fundamentalmente por um tipo de socialização que tinha no corpo um lugar privilegiado para inscrição de novos hábitos, disciplinas e experiências.

É necessário tempo de permanência na escola para que a criança com carências sócio culturais ou outras tenha igualdade de condições educacionais se comparamos com as crianças de classe média que têm, em espaços variados e ao longo do dia inteiro, acesso a linguagens e circunstâncias diversas. É necessário tempo para adquirir hábitos, valores, conhecimentos para exercer direitos e deveres de cidadão numa sociedade complexa como a brasileira do Século XXI. Ninguém adquire hábitos de higiene sem praticar: é necessário tempo para escovar dente; é necessário tempo para fazer leitura crítica das imagens veiculadas pela televisão; é necessário tempo para praticar valores democráticos, na educação física, na hora da refeição, nas discussões em sala de aula. E a necessidade de tempo traz como consequência a necessidade de espaço. São necessárias instalações adequadas para que todos os alunos possam escovar dente e tomar banho; é necessário refeitório adequado para que todos possam comer de forma saudável (Maurício, 2007, p. 10).

Para além das disciplinas clássicas, como Matemática, Geografia e Língua Portuguesa, o currículo destacava atividades, aulas e projetos que destinavam tempo significativo de formação corporal dos alunos na Educação Física, na Animação Cultural, na Educação para a Saúde e Educação Artística.

A proposição de uma ‘cultura escolar’ própria aos CIEPs foi algo pensado pelos governos Brizola, como podemos observar no documento de Recursos Humanos de 1994, ao recomendar agenciamentos e disciplinamentos dos corpos naquele espaço:

[..] criar códigos de comportamentos com os próprios alunos, fazendo com que eles mesmos estabeleçam as normas de convivência, poderá criar sinais sonoros ou visuais em que as crianças identifiquem atitudes permitidas e proibidas; poderá criar um Conselho de Ética, com sua turma, para avaliar atitudes de cada um; promover campanhas com finalidades como coleta de lixo, limpeza da sala, etc.7

A construção de uma nova ‘cultura escolar’ apoiava-se na condição do maior tempo de permanência e exposição dos alunos às experiências escolares. Com isso, prescrições como a citada anteriormente permitiam pautar intervenções que buscavam socializar normas, atitudes e procedimentos considerados civilizados no uso daquele espaço coletivo. O objetivo era, segundo os documentos, estimular que os alunos se tornassem capazes de respeitar o espaço coletivo na escola como valor e prática para uma vida digna em comunidade8.

Noutro trecho, os documentos orientadores dos CIEPs reforçavam o estímulo à incorporação de hábitos para aquele espaço escolar: “[...] o hábito de falar baixo, hábito de andar sem correrias pelos corredores, de participar na sua vez, das diversas atividades, de cuidar do material que é comum a todos”9. As prescrições pedagógicas dialogavam com as imagens de uma escola imaginada como desorganizada, na qual os alunos não foram educados a partilhar aquele espaço como coletivo e da responsabilidade de todos. De fato, as prescrições curriculares indicavam que os professores deveriam fornecer modelos de disciplina e espaços de participação coletiva com o corpo discente para gerar autodisciplina e autocontrole naquele espaço e na vida cotidiana.

O desenho arquitetônico, a qualificação do espaço, potencializava o agenciamento do corpo na formação de hábitos, como é o caso da instalação de paredes com divisórias baixas entre as salas de aula. Darcy dizia que era preciso educar a sociedade a falar baixo, assim as paredes baixas teriam que forçar e conscientizar a comunidade escolar a controlar o tom de voz e não gerar ruídos que atrapalhasse a harmonia do espaço coletivo. Em Moreira, Góis e Soares (2019), foi possível constatar, na entrevista de Oscar Niemeyer10 para o jornal O Globo, a afirmação de que: “[...] uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. Neste caso, percebemos que a educação sistemática do corpo estava prevista para alunos, professores e agentes escolares vivenciarem a experiência nos CIEPs, ratificando a tese de que a arquitetura estava integrada à proposta pedagógica e curricular e tinha os ideais civilizatórios como norte.

A acústica das salas de aula dos CIEPs foi frequentemente criticada durante sua implementação. Segundo Teixeira (1995), a arquitetura dos prédios, caracterizada por grandes espaços abertos, paredes de concreto e tetos altos, resultava em altos níveis de ruídos sonoros e reverberação nas salas de aula. Essa condição prejudicava a comunicação entre professores e alunos, dificultando a compreensão das aulas. Além disso, a falta de isolamento acústico adequado nas salas de aula agravava ainda mais a situação, especialmente para crianças com dificuldades de aprendizagem, que enfrentavam maiores desafios para acompanhar as aulas devido à má qualidade acústica (Teixeira, 1995). Essas questões acústicas representavam um desafio significativo e contribuíam para os altos custos de manutenção dos CIEPs, exigindo investimentos em materiais e técnicas para melhorar a qualidade sonora das salas de aula (Santos, 2008).

A instalação de rampas largas que ligavam os pavimentos foi pensada para proporcionar maior liberdade de circulação e educação dos corpos no espaço escolar. Nos documentos orientadores dos CIEPs havia indicações de intervenções pedagógicas para que se evitassem correria e gritaria na circulação na escola (Moreira, 2015).

A idealização de uma nova ‘cultura escolar’ nos CIEPs, baseada na formação de hábitos e comportamentos civilizados, passava pela estruturação de uma escola com espaços e tempos adequados ao funcionamento dos dispositivos escolares que produzissem transformações nas subjetividades dos atores que partilhavam aquele espaço formativo. Tal ‘cultura escolar’ deveria desencadear novas formas de socialização e de autocontrole dos atores escolares, assim como contemplaria normas e conhecimentos que deveriam ser ensinados e aprendidos. Tal movimento requeria um tipo de reapropriação do espaço que rompesse com as tradições e com a cultura daquela escola que rejeitavam. A política mirava tanto professores e demais agentes escolares quanto estudantes, de modo que não é à toa que o programa dos CIEPs previa capacitar professores e agentes escolares para a nova escola que almejava implantar em escala no estado.

Darcy: Do professorado existente, nós vamos pegar os professores mais dedicados, os melhores, vamos convidá-los, atrair para que eles passem para o Brizolão, mas é preciso que eles atuem como multiplicadores. Você não faz novos professores a partir de nada, então a nossa ideia é que esses professores mais experientes venham nos ajudar, mas venham nos ajudar a formar, acima de tudo, um novo magistério. O novo Magistério entra por um contrato que é uma espécie de bolsa de estudos, que ele entra para ter um ano de treinamento em serviço, só se der certo naquele ano. Aquele treinamento em serviço é um curso intensivo em que ele dá alguma ajuda no trabalho educativo, mas ele é ajudado também. Então nós vamos fazer um sistema muito cuidadoso, de fazer uma espécie de concurso prévio, de selecionar toda a meninada formada em escola normal, forma-se esse ano11.

A arquitetura, por si só, não seria potente ou autoindutora para ressignificar os usos dos espaços escolares por docentes e discentes que traziam em sua bagagem outras experiências escolares. O processo de apropriação e uso dos espaços escolares demanda tempo para reelaborar a ‘cultura escolar’ e as tradições. A escolarização para os atores sociais e qualquer mudança nesse sentido é lenta, apesar dos agenciamentos provocados pelas políticas educacionais. Aqui o conceito de ‘cultura escolar’ é entendido como “[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de ‘práticas’ que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (Julia, 2001 p. 10, grifo nosso). Portanto, a ‘cultura escolar’ não se produz apenas pelo ideal normativo de funcionamento da escola que qualquer política queira definir, pois ela é sempre produto da interação dos atores sociais no espaço contestado do currículo, a partir de suas experiências, percepções e tradições. É nesse momento que as ‘práticas’ (Certeau, 2011) têm uma dinâmica própria marcada por sua formalidade e, por isso, podem se afastar das representações, dos projetos e dos planos.

A arquitetura escolar dos CIEPs permitia que os alunos tivessem acesso às experiências oferecidas no currículo em locais adequados. Os espaços apropriados em uma determinada arquitetura também são aspectos prescritivos do currículo escolar (Ermel & Bencostta, 2019). Desse modo, os alunos contavam com assistência médica e odontológica, um centro médico instalado no próprio CIEP, acesso à biblioteca com coleções para estimular o hábito à leitura, espaço para realizar diversos eventos esportivos e culturais no Salão Polivalente, dentre tantas outras possibilidades de uso dos espaços. Além disso, aquela escola garantia moradias para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade que poderiam residir com seus pais sociais no apartamento, localizado em cima da biblioteca.

O projeto de Oscar Niemeyer mantinha uma planta padrão para todas as unidades e nos chama ainda mais a atenção o tamanho e a autoria de uma arquitetura singular que leva sua assinatura em concreto armado. A construção dos CIEPs ocupava, em geral, uma área média de 5400m². O prédio principal era composto dos seguintes pavimentos: no primeiro, refeitório, cozinha, centro médico; nos dois pavimentos superiores, 20 salas de aula, auditório e salas de atividades especiais (estudo dirigido, dentre outras), instalações administrativas e, no terraço, uma área reservada para atividades de lazer e dois reservatórios de água. A biblioteca/residência tinha área de 320m². O prédio do salão polivalente continha uma área de 1080m², a qual comportava os vestiários femininos e masculinos, a quadra de esporte de 16m x 36m, que poderia ser utilizada para as modalidades de futsal, vôlei, handebol, ginástica e para rodas de capoeira ou apresentações artísticas e culturais, além das arquibancadas (ver Figura 1).

Fonte: Ribeiro (1986).

Legenda: Planta arquitetônica do prédio dos CIEPs.

Figura 1 Projeto padrão dos CIEPs. 

Darcy Ribeiro não pensava nos espaços escolares apenas para alunos e agentes escolares, os CIEPs seriam um espaço destinado, inclusive, a toda comunidade. Sua arquitetura foi planejada para torná-los um espaço público de lazer, cultura, educação e saúde. Segundo Bomeny (2001), a ambição era construir um espaço com sinergia cultural para a participação da comunidade em experiências com as artes, o lazer e a iniciação ao trabalho.

Outro ponto relevante a destacar da arquitetura é que, no pavimento térreo, estavam localizadas salas para atender a toda comunidade e, a partir do primeiro pavimento, distribuíam-se as instalações escolares propriamente ditas. Ribeiro (1986) indica que as instalações comuns deveriam ser construídas no pavimento térreo para que todas as pessoas tivessem acesso.

Começarei dizendo se tratar de um projeto revolucionário, sob o ponto de vista educacional. Escolas que não visam apenas - como as antigas - a instruir seus alunos, mas sim dar um apoio efetivo a todas as crianças do bairro. E isto explica serem, no térreo, para elas abertas aos sábados e domingos, ginásio, gabinete médico, dentário, biblioteca etc. (p. 110).

O padrão arquitetônico dos CIEPs representava a preocupação de proporcionar um espaço escolar bem aparelhado para garantir eficácia na proposta educacional defendida pelo governo Brizola. Como previsto nos documentos do governo, estudantes, funcionários, professores e comunidade do entorno da escola deveriam se sentir pertencentes àquele ambiente.

O centro médico era um local designado exclusivamente a atender às necessidades médico-odontológicas, como já dito. Localizava-se no pavimento térreo de cada CIEP e contava com: dois consultórios para exames clínicos ou oftalmológicos; mesa de exame clínico (que poderia se transformar em mesa de exame ginecológico); sala para entrevistas; sala de enfermagem e banheiro. O equipamento escolar foi pensado como local de atendimento à comunidade que deveria marcar a presença do estado naquelas comunidades, até então desassistidas e invisibilizadas.

A instalação do centro médico contribuía para a meta do programa educacional brizolista de investir na informação de hábitos higiênicos, cuidados com a saúde, prevenção de doenças, atividades de educação para a saúde, assistência nutricional, odontológica e médica (Ribeiro, 1986). De acordo com os documentos, os ensinamentos sobre saúde deveriam ultrapassar os limites da escola e, por isso, necessitaria contar com ambiente e com recursos apropriados para receber estudantes e comunidade. Um dos principais objetivos era disseminar ‘práticas’ de higiene, criar hábitos e conhecimento sobre saúde para as comunidades que viviam em estado de precariedade sanitária.

A oferta de atividades culturais, sociais e corporais no currículo escolar estava prevista para serem realizadas no Salão Polivalente para ‘práticas’ corporais sistematizadas. Essa instalação era utilizada na realização de aulas de educação física, nos espetáculos teatrais, nos shows de música, na roda de capoeira ou nas festas organizadas pelos animadores culturais, pela comunidade e pelos docentes. Esses animadores culturais eram figuras fundamentais no programa dos CIEPs, pois, dentre outras funções, tinham como missão aproximar e trazer a comunidade para dentro da escola, fortalecendo a relação entre educação, comunidade e cultura. Em suma, eram idealizados como mediadores.

De acordo com Darcy Ribeiro, “[a] integração dessas atividades ao processo de aprendizagem escolar agilizaria o desenvolvimento dos alunos, estimularia a aquisição de hábitos e atitudes, elementos essenciais para a conquista de um crescimento harmonioso e saudável”12, além de tornar a escola mais atraente, alegre e mais excitante. Esta foi a perspectiva para o governo Brizola criar uma inflexão no modelo de escola pública da época: os CIEPs deveriam servir à população, oferecer espaços de encontro comunitário, permitir um ensino de tempo integral, estimular estudantes à aquisição de capital cultural e tornar o espaço da escola o principal equipamento cultural daquelas comunidades desassistidas. A arquitetura do CIEP representava um tipo de infraestrutura escolar pública que tentava dar dignidade ao trabalho docente, aos alunos e à comunidade.

Os idealizadores dos CIEPs buscavam transformar a educação pública a partir da combinação de uma inovadora proposta curricular com uma arquitetura funcional para as atividades escolares e culturais. No currículo eram valorizados o desenvolvimento integral dos estudantes, a integração com a comunidade e a diversidade cultural brasileira. A ideia era que a escola se tornasse um ponto de referência na comunidade e um lugar de convivência e aprendizado. No entanto, desde o início, surgiram críticas sobre a genuína preocupação do governo com a educação, levantando-se dúvidas sobre se a proposta era apenas populismo, assistencialismo, propaganda e marca de governo no território. As desconfianças e críticas ao programa seguiram por todo o primeiro mandato do governo Brizola (1983/1986).

Segundo Moraes (2009), havia a dificuldade de encontrar posições favoráveis aos CIEPs, talvez por conta da dimensão político-partidária envolvida no projeto, que teria sufocado os reais objetivos educacionais da proposta. Os discursos políticos do governo Brizola foram questionados, colocando em dúvida sua real preocupação com a educação. A dimensão político-partidária envolvida no projeto sufocava os objetivos educacionais, e a propaganda governamental teria desvirtuado o objetivo principal da escola. Chagas (2012) afirma que o quadro político nos anos 1980 e a associação do CIEP a uma política populista, paternalista e onerosa para as contas públicas concretizaram o ‘efeito sanfona’, caracterizado pela discussão sobre a escola de tempo integral, que ora aparecia como intensa e de forte referência, ora aparecia esquecida, desprezada e relegada a segundo plano, associada ao custo elevado e a serviço de programas partidários.

Prescrições das ‘práticas’ corporais sistematizadas

Darcy pensava que era fundamental que a criança exteriorizasse suas emoções pela arte e pelas demais atividades que afetam as subjetividades. Os registros apontam a valorização do pintar, do desenhar, do modelar, do cantar ou do representar, defendendo que tais ações estimulariam a expressividade.

Quando a criança pinta, desenha, modela, canta ou representa, parte de suas vivências e experiências pessoais, as quais ela seleciona, discrimina e estrutura de uma forma nova. Ela faz muito mais do que reproduzir um objeto ou uma situação: ela se expressa, revelando o essencial de sua personalidade e reestruturando sobretudo a si mesma (Ribeiro, 1986, p. 51).

A ideia era oferecer a maior variedade de experiências com o objetivo de ampliar o conhecimento e a criatividade dos estudantes. Com isso, a escola deveria ser prazerosa e atrair a comunidade para o seu interior como parceira do processo educacional, tornando-se um espaço de sinergia cultural e que comportasse a diversidade das experiências de uma jornada escolar ampliada.

Identificamos que, semanalmente, havia uma grande quantidade de tempos escolares destinados à Educação Física, com cinco tempos; Animação Cultural, com três tempos; e Educação Artística, de quatro a cinco tempos. Se somarmos esses tempos, chegamos à média de doze tempos destinados ao trabalho com ‘práticas corporais sistematizadas’. Isto representava quase 25% do tempo, se olharmos para a grade curricular dos CIEPs13 (Ver Figura 2 e Figura 3).

Fonte: Ribeiro (1986).

Legenda: Plano de estudos oferecidos pelo CIEP.

Figura 2 Horário escolar publicado no O Livro dos CIEPs. 

Fonte: Arquivo Fundação Darcy Ribeiro. DR.GBI/pee. 1986.00.00.V5.

Legenda: Horário Escolar da Turma 203.

Figura 3 Horário escolar. 

O predomínio das disciplinas ligadas à educação dos corpos em movimento demonstra uma posição menos hierárquica dos saberes e aponta para uma tendência de valorizar estas ‘práticas’ corporais sistematizadas no currículo. A Educação Física e as demais disciplinas voltadas para expressão e fruição corporal também poderiam contribuir para um clima escolar favorável e para uma maior adesão dos alunos ao projeto de escolarização. Darcy pensava que a escola tradicional era chata, sem significado, e deixava os alunos por demasiado tempo sentados e passivos. Em uma das reuniões da equipe gestora, o coordenador de Educação Física na época, José Arruda, apresentou aspectos norteadores do trabalho da Educação Física nos CIEPs.

José Arruda: E também eu penso em termos da filosofia, se eu tiver errado, que seja corrigido, dentro da filosofia dos CIEPs de transformar a escola realmente numa escola completa [...]. Terão que ser levadas de forma interessante como artes, outras atividades; não poderá deixar de se movimentar ou não deverá estar parada, sem se movimentar porque o movimento é realmente condição inerente desta faixa etária. Então ele deverá, na minha maneira de pensar ou na nossa maneira de pensar, estar sempre com oportunidade de diariamente poder se exercitar, fazer uma atividade que realmente trabalhe o seu corpo, que ele movimenta o seu corpo de forma, inclusive, consciente, não sempre inconsciente. Como às vezes ele teve recreação, ele corre, corre, corre e brinca igual como brinca em casa. Não, ali ele tem que se locomover de forma controlada, de forma a desenvolver determinadas características, potencialidades, determinados segmentos que vão contribuir para essa formação integral dele. Então, principalmente, [...] os CIEPs que tiverem 1ª à 4ª série, nós devemos estar preocupadíssimos porque inclusive a leitura e a escrita estão muito relacionadas com a capacidade da criança de dominar o seu corpo e desenvolver o seu trabalho [...]; as suas coordenações neuromusculares ou fazer o trabalho psicomotor. Ele realmente aprenderá e isto existe inclusive em pesquisas realizadas e livros sobre o assunto, ele conseguirá aprender mais fácil, mais facilmente tanto a ler a escrever quanto determinadas noções de cor, de forma geométrica etc., se ele jogar estando em questão no jogo essas formas, essas cores, que a criança tem que alcançar, o azul, amarelo, vermelho, o quadrado, retângulo etc. Esse inter-relacionamento inclusive deveria alertar, já que se propõe um modelo de escola, que nunca deixe de haver inter-relacionamento entre todos os setores para que se aproveite o jogo, a educação física para desenvolver mais um determinado aspecto pedagógico que está se procurando desenvolver dentro de uma determinada época14.

O Programa Animação Cultural, do mesmo modo, era visto como necessário para a consolidação do programa dos CIEPs, porque proporcionaria a troca entre a comunidade e a escola. Os animadores culturais não precisavam ser obrigatoriamente professores licenciados, poderiam ser artistas comprometidos com a “[...] produção cultural comunitária [...]” na qual o CIEP estava instalado (Ribeiro, 1995, p. 255). Na visão de Darcy Ribeiro, os animadores deveriam funcionar como um personagem encarregado de estabelecer mediação e laços com a comunidade, sendo definidos como: “[...] elo de integração entre a escola e a comunidade, uma vez que, conhecendo as suas necessidades, transforma-se em ponte entre as suas manifestações culturais, seus anseios e valores, articulando-os com o processo pedagógico escolar” (Ribeiro, 1995, p. 91).

Em um dos livros produzidos pelo governo para divulgar o trabalho, é possível observar a indicação de espaços e as atividades que poderiam ser exploradas nesse programa dos Animadores Culturais.

Quadra: Shows, espetáculos teatrais, de música, de dança, de circo, de mímica, grandes exposições, feiras, festivais, ensaios, festas, bailes, torneios, eventos esportivos que não tenham caráter religioso ou político.

Área Verde: Jardinagem, hortas medicinais ou não, herbários, minhocários, estufas, mudas, adubo orgânico e ações que resguardem a qualidade de vida, a beleza e o equilíbrio ecológico.

Pilotis: Exposições, festas, pagodes, etc.

Biblioteca: Encontro com escritores, lançamento de livros, exposição de artes gráficas, de textos de dramaturgia, de ilustração, de autores, varal de poesias, de cordel, etc.

Auditório: Shows, espetáculos, oficinas, cursos, concertos, seminários, debates, cineclube [sic], encontros, leitura de peças.

Sala de vídeo: Vídeo-clube [sic], festivais, mostras, etc.

Terraço: Oficinas.

Cozinha/Refeitório: Cozinha cultural, cursos de culinária regional, de doces e bolos, trocas de receitas, aproveitamento de sobras, curso de reciclagem de lixo (Ribeiro, 1995, p. 257).

Os Animadores Culturais, como pessoas vinculadas a grupos de teatro, de música, de poesia, de movimentos sociais ou de associações comunitárias, deveriam levar diferentes linguagens da cultura das camadas populares para dentro da escola. Dessa forma, poderiam realizar: festival de pipas; apresentação de grupo de capoeira; jornais internos; teatro de bonecos; montagem de Auto de Natal; encontro de Folia de Reis15; Semana da Cultura Negra; feira de artesanato; rodas de samba e pagode; apresentação de corais, bandas e orquestras; debates sobre arte e educação; seminários sobre a mulher; debate sobre sexualidade, dentre outros eventos realizados pelos diferentes CIEPs (Ribeiro, 1986). Ver na Figura 4 e na Figura 5 dois desses eventos.

Fonte: Arquivo Fundação Darcy Ribeiro.

Legenda: Apresentação de Maculelê no ginásio poliesportivo (Data sugerida, 1993-1994).

Figura 4 Atividade de animação cultural. 

Fonte: Arquivo Fundação Darcy Ribeiro.

Legenda: Apresentação de Coral (CIEP 150, Cabo Frio, 1994).

Figura 5 Atividade de animação cultural. 

Na linha de atividades que favorecessem a criatividade e as ‘práticas’ corporais sistematizadas, identificamos a Educação Artística dos CIEPs como outro programa que compunha o currículo e proporcionava, em parte das atividades, a expressividade corporal. Como identificado no Livro dos CIEPs (1986), eram valorizadas diferentes formas de manifestação corporal a partir do ensino da Educação Musical, Artes Plásticas e Artes Cênicas, como cantar, pintar, desenhar, representar, dentre outros, de modo que os alunos teriam a possibilidade de incorporar técnicas corporais e vivenciar as propostas artísticas e culturais ofertadas nos CIEPs.

Para os idealizadores do programa de Educação Artística, a arte-educação seria uma possibilidade de agenciar o resgate da memória cultural dos alunos. Sendo assim, foram traçadas três diretrizes para a sua estruturação: i) compreender as finalidades da educação; ii) perceber a arte como expressão coletiva dos homens sobre o mundo; e iii) entender a função da arte na educação (Ribeiro, 1986). O essencial era que a criança exteriorizasse suas emoções pela arte.

Podemos perceber como o programa da Educação Artística tinha viés semelhante ao da Animação Cultural, a qual, do mesmo modo, estava interessada em oferecer ao aluno as mais variadas vivências artísticas-culturais-corporais. Em ambos os documentos prescritivos desses programas, era defendido que as atividades incentivariam a compreensão do mundo, a visão crítica, o desenvolvimento do espírito de equipe, a coordenação de movimentos, os pensamentos e as ações. Identificamos nos documentos que:

[...] as atividades de expressão artística podem ter um papel bastante contestador dentro do sistema educacional, contribuindo para que o aluno possa construir seu conhecimento de maneira crítica, enquanto incorpora novos saberes adquiridos através de outras fontes, como a experiência de vida e a cultura popular (Ribeiro, 1986, p. 81).

Essas atividades foram prescritas nos livros de divulgação da proposta dos CIEPs16. A relação entre corpo e expressividade apareciam nas ‘práticas’ e na própria natureza das atividades. O Programa de Educação Artística estava organizado pelas seguintes linguagens artísticas: Teatro, Música, Literatura, Artes Plásticas/Visuais, Dança, Mídia e Circo. Como forma de exemplificar, destacamos a sugestão fornecida para as aulas de teatro: o professor poderia explorar “[...] mímica, preparação corporal, impostação de voz, dicção, teatro de rua, confecção e manipulação de bonecos (luva, dedo, marionete, sombra, caixa preta, vara etc.)” (Ribeiro, 1995, p. 258).

Higiene, saúde e asseio corporal também deveriam ser encarados como educação sistemática dos corpos no CIEP. Os documentos do governo registraram, inclusive, que os temas ligados à saúde deveriam “[...] ser trabalhados com os alunos através de atividades como dramatizações, vídeos, desenhos, jogos, entre outras” (Ribeiro, 1995, p. 245). Essas ações, elaboradas pela equipe de saúde, deveriam contar com a colaboração e a participação de professores e animadores culturais, demonstrando ser mais um programa que consolidava a proposta interdisciplinar. Naquela ‘cultura escolar’, a saúde tornava-se uma questão educacional que, diferentemente de outras escolas, oferecia uma estrutura física condizente com as prescrições do currículo.

O uso do uniforme escolar também era uma das prescrições curriculares. Segundo Ribeiro (1995), cada estudante dos CIEPs, quando se matriculava, recebia um enxoval composto de: calça jeans, duas camisetas de manga com o símbolo do PEE, um short de helanca, uma camiseta sem mangas, um par de tênis e dois pares de meia branca, sendo que o “[...] short e a camiseta só poderão ser usados exclusivamente nas aulas de Educação Física” (Ribeiro, 1995, p. 271). Esta e outras recomendações eram marcas da educação dos corpos na proposta curricular, na medida em que o aluno deveria se vestir ritualmente para viver aquele ambiente escolar. Essa era uma tradição não questionada por aquele modelo de escola.

O asseio deveria ser visível com a limpeza do uniforme e com a higiene pessoal prevista nas atividades diárias de abluções corporais. Sem o uniforme adequado e limpo, as orientações indicavam que os responsáveis deveriam ser convocados pela direção escolar para que o problema fosse sanado. A camiseta e a meia branca davam sinais de que a limpeza e a higiene deveriam ser controladas, e a limpeza do uniforme era de responsabilidade do estudante como parte do processo educativo dos CIEPs.

Desse modo, no discurso de Darcy, é possível perceber que a higiene do estudante era uma das dimensões da educação civilizatória prescrita no currículo do CIEP.

Uma antiga aspiração do Governador Leonel Brizola (criar uma escola em que as crianças pudessem ir para casa depois de tomar banho e jantar) agora torna-se realidade com a implantação dos CIEPs em todo o Estado do Rio de Janeiro. Nos vestiários do Ginásio de Esportes, amplos e confortáveis, as crianças tomam um banho diário que é impossível na residência de muitas delas. Consolidando os hábitos indispensáveis de higiene pessoal que contribuem para a boa saúde das crianças, o CIEP promove uma desejável aliança entre Educação e a Medicina Preventiva (Ribeiro, 1986, p. 130).

O tempo de banho diário era indispensável na proposta curricular do CIEP para tratar a relação entre higiene do corpo e saúde. “Entende-se que uma escola de horário integral se faz necessário o banho como medida de higiene. Por esta razão foi criado um espaço no horário escolar para atender essa necessidade” (Ribeiro, 1995, p. 269). Esperava-se que os alunos incorporassem hábitos entendidos como indispensáveis para se manterem saudáveis, além de que a oferta do banho diário também passava pelo entendimento de que muitos estudantes viviam em habitações precárias, muitas vezes com falta de água e esgoto.

As atividades de educação para a saúde tinham como principal objetivo disseminar as ‘práticas’ de higiene, criar hábitos e socializar conhecimento para manter a saúde. Também havia a preocupação com a acuidade visual dos alunos, os quais eram examinados periodicamente. Em caso positivo de alguma anormalidade, eram oferecidos óculos gratuitamente e, em casos mais sérios, os alunos eram encaminhados para serviços especializados (Ribeiro, 1986). Estava previsto que os alunos fossem acompanhados desde o ato da matrícula na escola com consultas periódicas de enfermagem para avaliação da situação de saúde: “Deverá ser realizada uma consulta de enfermagem para cada aluno por semestre com este fim e mensuração de peso e altura a cada três meses” (Ribeiro, 1995, p. 245).

Considerações finais

Pudemos observar nos documentos que havia representações sobre uma gama de ‘práticas’ possíveis nos mais variados espaços dos CIEPs, com uma arquitetura que permitia diferentes formas de uso e apropriações. Devemos ter em mente que a quantidade de experiências vivenciadas interferia diretamente na educação dos corpos e naquela ‘cultura escolar’. Em cada atividade ou oficina, os corpos eram constrangidos ou incentivados a se adequarem às situações pedagógicas propostas, carregando consigo as marcas culturais, as sensações espaciais e os valores da comunidade e da sociedade em interação com os atores escolares (Faria Filho, 1998; Viñao Frago & Escolano Benito, 2001). Os tempos e os espaços idealizados intencionavam construir novas subjetividades dos atores escolares e, portanto, uma inflexão na ‘cultura escolar’ até então disseminada na maioria das escolas. Todavia, com todo vigor e toda potência que a política pedagógica do CIEP teve, ela não considerou que as mudanças culturais e, especificamente, as culturas escolares demandam processos longos, embates, disputas, avanços e retrocessos que só o tempo acomoda e transforma. Os CIEPs deixaram um legado que pressiona até os dias de hoje o debate sobre uma escola pública de qualidade para as camadas populares, mas os efeitos desejados na construção de uma nova ‘cultura escolar’, como seus idealizadores almejavam, não foram fixados. Todavia, ainda hoje estamos em luta permanente para construir uma escola pública de tempo integral e de qualidade para as camadas populares, a qual transforme as ‘culturas escolares’ e a própria noção de escola que temos.

Um dos objetivos educacionais dos CIEPs era transformar os hábitos considerados saudáveis (banho diário, limpeza de material, cuidado com os pertences, escovação dental, consulta de enfermagem, atividades corporais, dentre outros) em práticas diárias dos alunos e que isso se estendesse para suas famílias. Tínhamos uma escola que tentava mitigar as carências econômicas e habitacionais dos seus atendidos e era idealizada para tentar gerar mais oportunidades educacionais para os alunos, embora se assumisse impotente para atacar as desigualdades estruturais presentes observadas no cenário do estado do Rio de Janeiro.

Darcy e Brizola diziam abertamente que idealizaram uma escola para os pobres terem experiências educativas semelhantes às dos filhos da classe média e das elites. Com isso, os CIEPs pretendiam dinamizar uma educação mais abrangente, a partir da oferta de diferentes atividades intelectuais, corporais, culturais e de saúde. O projeto abrangia, de forma integrada, a tríade Educação, Cultura e Saúde. O norte era a formação para a cidadania, e os documentos revelam que todas as competências deveriam ser trabalhadas para este objetivo. Entretanto, isso não significa que, no currículo praticado, tal ideal se materializou como uma tradição pedagógica.

O discurso propagado era que as atividades corporais poderiam contribuir para o aluno compreender o mundo, para desenvolver um espírito de equipe, um respeito a regras e um trabalho coordenado de movimentos, pensamento e ações. Através das atividades artísticas, de educação física, de esportes, de dança, de expressão corporal, tencionava-se que as crianças organizassem seus pensamentos, emoções e sentimentos. Os registros nos documentos apontam a necessidade de incentivar a expressividade da criança com as variadas ‘práticas’ corporais sistematizadas.

Apesar das boas intenções da proposta pedagógica dos CIEPs, um dos seus legados históricos foi demonstrar que as mudanças na cultura escolar e no campo educacional não se dão apenas por ‘vontade política’ ou boas propostas educacionais. Os CIEPs não conseguiram construir uma nova ‘cultura escolar’ e tampouco uma fecunda tradição pedagógica para pensar a escola, apesar de todo o sentimento de saudade que os educadores nutrem por esse projeto. Apesar das críticas que sofreu na época de sua implantação, uma coisa permaneceu na memória do professorado: aquele foi um governo que priorizou a educação.

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Viñao Frago, A., & Escolano, B. A. (2001). Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa. Rio de Janeiro, RJ: DP&A. [ Links ]

Rodadas de avaliação:

R1: 3 convites: nenhum parecer recebido;

R2: 2 convites; 2 pareceres recebidos;

R3: 2 convites; 1 parecer recebido.

Financiamento: Este artigo conta com financiamento do Programa Cientista do Nosso Estado (CNE), Proc.E-26/200.337/2023(281651) Bolsa de Produtividade 1D, proc.1344156492216028. A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

1O termo ‘práticas’, neste estudo, é utilizado no sentido de Certeau (2011), em que elas obedecem a critérios, classificam-se segundo categorias e visam a objetivos diferenciados, pois revelam uma formalidade. Sendo assim, uma das tarefas do historiador seria medir os distanciamentos, ou as relações, entre as formalidades das práticas e das representações. Esta operação possibilita a análise do que é projetado e planificado por meio das práticas e, concomitantemente, observar como podem ganhar novos significados empreendidos por diferentes sujeitos em uma dinâmica cultural.

2Darcy Ribeiro (1922-1997) foi um renomado antropólogo, escritor, político e educador brasileiro. Destacou-se por suas contribuições na área da educação, sendo um dos principais idealizadores da Universidade de Brasília (UnB) e do projeto dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) no Rio de Janeiro. Foi também vice-governador do estado do Rio de Janeiro durante a gestão de Leonel Brizola. Como ministro da Educação e da Cultura, suas políticas também buscaram fortalecer o ensino superior público e valorizar a diversidade cultural do país.

3A noção de fruição no texto em tela diz respeito a todo tipo de atividade, experiência e prescrição voltada para os deslocamentos dos alunos no espaço da escola, para a prática de exercícios físicos, recreativos, atividades esportivas, danças populares ou folclóricas, artes cênicas, lazer etc.

4Trecho retirado do Arquivo Físico do Memorial Darcy Ribeiro. Referência: DR.GBII/pee. 1994.00.00 -Pasta 5.

5Trecho retirado do Arquivo Físico do Memorial Darcy Ribeiro. Referência: DR.GBII/pee.1994.00.00 Pasta IV.

6O conceito de ‘escola tradicional’, referido por Moreira (2015) e indicado pelos documentos produzidos pelo governo Brizola, se associa às escolas públicas que estavam em funcionamento naquele momento. Essas escolas, ditas tradicionais, eram caracterizadas pelo turno parcial.

7Trecho retirado do Arquivo Físico do Memorial Darcy Ribeiro. Referência: DR.GBII/pee. 1994.00.00 - pasta 3.

8Trecho retirado do Arquivo Físico do Memorial Darcy Ribeiro. Referência: DR.GBII/pee. 1994.00.00 - pasta 3.

9Trecho retirado do Arquivo Físico do Memorial Darcy Ribeiro. Referência: DR.GBII/pee. 1994.00.00 - pasta 3.

10Amigo próximo de Darcy Ribeiro, Oscar Niemeyer é considerado um dos nomes mais respeitados e arrojados da arquitetura moderna internacional, idealizador de projetos arquitetônicos pontuais, como a construção da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, o Museu de Arte Contemporânea, de Niterói, o Sambódromo da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, o Conjunto Arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte, o Edifício Copan, em São Paulo, a sede das Nações Unidas, em Nova York, dentre outros. Mais informações em: http://www.niemeyer.org.br.

11Trecho retirado da transcrição do áudio 102 - Entrevista de Darcy Ribeiro à TV Americana UnB - Jornal de Brasília. Data: 14/11/1986. Essa forma de contratação foi alvo de muitas críticas, e o governo recuou.

12Trecho retirado do Arquivo Fundação Darcy Ribeiro. Referência: DR. GBII/pee 1994.00.00 pasta I.

13De acordo com o Decreto nº 69 450, de 1 de novembro de 1971, a Educação Física escolar obrigatória previa apenas três sessões por semana, e os CIEPs, só nessa disciplina, quase dobraram o tempo oferecido.

14Trecho retirado da transcrição do áudio DR 361 - Lado A - Darcy em Reunião Geral com Equipes. Sem data.

15Eventos como o natal ou Folia de Reis, apesar de serem ritos populares identificados com o catolicismo, são traduzidos, pela perspectiva da laicidade de Darcy, em manifestações da cultura popular.

16O Livro dos CIEPs (1986), publicado no primeiro governo Brizola (1983 a 1987), e O novo livro dos CIEPs (1995), referente ao segundo governo Brizola (1991 a 1994).

Recebido: 26 de Dezembro de 2022; Aceito: 15 de Junho de 2023; Publicado: 15 de Setembro de 2023; Publicado: 19 de Outubro de 2023

*Autora correspondente. E-mail: lmluizamoreira@gmail.com.

Luiza Silva Moreira:

Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - PPGE/UFRJ (Turma 2016), na linha de pesquisa: Políticas e Instituições Educacionais. Doutorado Sanduíche na Universidade de Lisboa/Portugal, em 2009. Mestre em Educação no PPGE/UFRJ. Graduada no curso de Licenciatura em Educação Física da UFRJ (2007-2011); Participa como pesquisadora no Laboratório de Pesquisas em Educação do Corpo (LABEC/UFRJ), atuando diretamente no projeto de pesquisa - Educação do Corpo e Instituições Escolares. E-mail: lmluizamoreira@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-4792-0811

Edivaldo Góis Junior:

Professor doutor da Unicamp. Docente do Programa de Pós-graduação em Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação Física, ambos da Unicamp. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, nível 2. E-mail: gois@unicamp.br https://orcid.org/0000-0002-0521-1937

Marina Paradela Gurgel:

Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - PPGE/UFRJ (2018). Especialista em Administração de Organizações Educativas do Instituto Politécnico do Porto (2019). Graduada no curso de Licenciatura em Educação Física da UFRJ (2011-2015); atua como Coordenadora Administrativa na Escola NAU. Participa como pesquisadora no Laboratório de Pesquisas em Educação do Corpo (LABEC/UFRJ) desde 2014 até o presente momento, atuando hoje diretamente no projeto de pesquisa "Educação do Corpo e Instituições Escolares". E-mail: marinaparadelagurgel@gmail.com https://orcid.org/0009-0003-6163-770X

Antonio Jorge Gonçalves Soares:

Professor Titular da UFRJ (aposentado), orienta no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ; Professor Visitante na UFRN, no Programa Pós-Graduação em Educação; Pesquisador 1D CNPq, Cientista do Nosso Estado/FAPERJ. E-mail: ajgsoares@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-7769-9268

Editor-associado responsável:

Raquel Discini de Campos (UFU) E-mail: raqueldiscini@uol.com.br https://orcid.org/0000-0001-5031-3054

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