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Revista Educação e Cultura Contemporânea

versión impresa ISSN 1807-2194versión On-line ISSN 2238-1279

Rev. Educ. e Cult. Contemp. vol.15 no.40 Rio de Janeiro jul./set 2018  Epub 12-Dic-2017

https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180048 

Artigos

"Imagina, eu me vi na televisão da minha sala!" A produção audiovisual e o empoderamento dos sujeitos do campo

"Imagine, I saw myself on the television in my living room!" Audiovisual production and the empowerment of the people in the rural areas

Eloisa Assunção LopesI 

Marcelo Ximenes BizerrilII 

IUNB, Universidade de Brasília, Brasil;eloisalopes1@gmail.com

IIUNB, Universidade de Brasília, Brasil;bizerril@unb.br


Resumo

A influência das mídias e dos meios de comunicação tem se tornado elementos centrais em discussões e reflexões em diversos âmbitos da esfera social. Tendo como referências o conceito de Educomunicação, Vídeo Participativo e os princípios defendidos por Paulo Freire para uma educação libertadora, o objetivo deste trabalho foi descrever o processo de empoderamento e emancipação de sujeitos do campo por meio da produção de vídeos educativos relacionados ao contexto social dos participantes. O trabalho foi desenvolvido com 22 educandos do curso de Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC) e o desenvolvimento das atividades aconteceu tanto na Universidade quanto nas comunidades dos participantes. Os dados foram construídos por meio da observação, aplicação de questionários e realização de entrevistas. Treze vídeos foram produzidos com os recursos disponíveis (telefones celulares, computadores e câmeras fotográficas), a partir da participação ativa de todos os educandos. Os sujeitos trouxeram em suas produções a contextualização e discussão de assuntos ligados ao seu contexto social específico, mas que atingem a vida no campo de modo geral como o uso dos agrotóxicos e seus impactos, a disputa entre a agricultura convencional e a agricultura orgânica, os princípios da agroecologia e a sustentabilidade socioambiental. A emancipação aliada a novas descobertas por meio da utilização das tecnologias, bem como a ideia de desafios a serem superados e a tecnologia como direito de todos foram entendimentos demonstrados por eles nas reflexões sobre o processo vivenciado.

Palavras-Chave: Educação do Campo; Educomunicação; Sustentabilidade socioambiental; Vídeo Participativo

Abstract

The valuation of the image, the influence of media and mass media has become central elements in discussions and reflections in different areas of the social sphere. Taking as reference the concept of Educommunication, Participatory Video and the principles defended by Paulo Freire for a liberating education, the objective of this study was to describe the process of empowerment and emancipation of subjects from the rural areas through the production of educational videos related to the social context of the participants. The study was conducted with 22 students of the Bachelors Degree in Rural Education and the development of the activities took place both at the University and in the communities of the participants. All data were constructed through observation, questionnaires and interviews. Thirteen videos were produced with the available resources (mobile phones, computers and cameras), from the active participation of all students. The subjects brought in their productions the contextualization and discussion of issues related to their specific social context but that affect life in a general way in the rural areas, such as the use of pesticides and their impact, the dispute between conventional farming and organic farming, the principles agroecology and environmental. The emancipation together with new discoveries through the use of technology and also the idea of challenges to be overcome and technology as a right of all, were understandings demonstrated by them in the reflections on the experienced process.

Key words: Educommunication; Environmental Sustainability; Participatory Video; Rural Education

Introdução

As novas relações comunicacionais que se estabelecem a partir da popularização das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC) provocam a necessidade de um constante e dinâmico exercício de repensar e reavaliar a participação cidadã considerando o pressuposto de que os sujeitos entram, também, em contato com o mundo por meio de artefatos técnico-científicos amplamente disseminados em nossa cultura e sociedade.

Considerando a cultura como o acúmulo das experiências humanas traduzidas nos modos de ser, agir, comunicar e criar das diversas comunidades e povos que integram a nossa grande diversidade cultural, entende-se que a cultura, ou as culturas, se encontram interligadas e interdependentes ao desenvolvimento científico-tecnológico, humanamente elaborado e decorrente de um processo histórico real, contínuo e não linear.

A tecnologia, por meio de invenções históricas marcantes, como a do relógio, da imprensa e das máquinas a vapor e elétricas, modificou profundamente as culturas: o modo de ser, perceber, produzir e viver das pessoas. Mesmo assim, há cinquenta anos era possível argumentar que esse empreendimento comprometido com os bens materiais da humanidade não se integrava à cultura. Em seu sentido restrito, hoje, essa opção é impensável (DELIZOICOV et al., 2011, p.35).

A tecnologia compreendida como conjunto de atividades humanas, associada a cultura faz parte do desenvolvimento científico-tecnológico, mas não se reduz a ele. É "capaz de englobar diferentes aspectos a partir dos quais uma sociedade se desenvolve e se organiza" (VERASZTO, 2004). Para Martín-Barbero (2002, p.02) a tecnologia "não se refere à novidade de aparelhos, mas a novos modos de percepção e linguagem, novas sensibilidades e escritos". Para o autor, as tecnologias não são neutras e se constituem em territórios de condensação e interação de mediações sociais, conflitos simbólicos e interesses econômicos e políticos, tendo um papel primordial nas novas narrativas.

Para Paulo Freire, a cultura enquanto "resultado da práxis do trabalho humano em sua relação dialética com o mundo [...] compreende o universo simbólico e "abrangente" em que os homens atuam como seres conscientes" (LIMA, 2011). Dessa forma, entende- se que a cultura cria e é criada pelos homens em seu percurso histórico e por meio das relações que estabelecem.

Também de acordo com Freire (1983), a comunicação é coparticipação no ato de conhecer, e implica uma reciprocidade que não pode ser rompida. Para ele, na comunicação não há sujeito passivo. Nesse mesmo sentido, Kaplún (2011, p.182) afirma que comunicar é conhecer e que somente "chega-se ao pleno conhecimento de um conceito quando surge a oportunidade e, por sua vez, o compromisso de comunica-lo a outros.

Nesse sentido, comunicação e cultura são dois conceitos que dizem respeito à presença dos sujeitos no mundo. A comunicação integra a identidade cultural dos sujeitos e faz parte da experiência de assumir-se no mundo.

Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar [...] A experiência histórica, política, cultural e social dos homens e das mulheres jamais pode se dar "virgem" do conflito entre as forças que obstaculizam a buscada assunção de si por parte dos indivíduos e dos grupos e das forças que trabalham em favor daquela assunção (FREIRE, 1996, p. 41-42)

Assumir-se enquanto sujeito e cidadão participante no mundo é também ser dialógico, comunicativo, opinante, agente de transformação no e do mundo que vive. Assumir-se no mundo tem relação com os processos educativos e comunicacionais que estabelecemos e demanda autonomia e protagonismo.

Dessa forma, a influência das mídias e dos meios de comunicação proporcionadas pelo desenvolvimento tecnológico têm se tornando ponto chave para discussões e reflexões sobre educação, cultura, economia, meio ambiente, bem como outros aspectos dentro da esfera social relacionados com as tecnologias e a comunicação. Ao refletir sobre as tecnologias e sua influência no cotidiano, percebe-se que homens e mulheres, do campo e da cidade, em maior ou menor grau estão cercados por instrumentos tecnológicos. Para Japiassu (2005, p.202) "o meio em que vivemos é superpovoado de objetos tecnocientíficos e, em boa parte, por eles constituído". De acordo com o autor, esse fenômeno de superpovoamento é tão dominador que já não se pode mais viver sem esse tipo de cultura, correndo-se o risco de viver na alienação.

O impacto do avanço tecnológico (entendido como um processo social) sobre processos e instituições sociais (educação, comunicação, trabalho, lazer, relações pessoais e familiares, cultura, imaginário e identidades etc.) tem sido muito forte, embora percebido de modos diversos e estudado a partir de diferentes abordagens (BELLONI, 2009, p.7).

Diante dessa ampla presença no cotidiano das pessoas, a apropriação prática de alguns aparatos tecnológicos pode estimular as pessoas a olhar para a realidade ao seu redor fazendo uma leitura das possibilidades de transformações.

As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC) a exemplo da TV, a fotografia, o vídeo, o cinema e o som digitais, bem como computadores, internet, webcams, pen drives, cartões de memória, celulares e outras infinidades tecnológicas perfazem o cenário atual veiculando informações de maneira rápida e dinâmica (CARVALHO, 2009).

Nesse trabalho, escolheu-se especificamente o vídeo, por acreditar que, considerado um dos principais mecanismos e estratégias de produção e vinculação midiática, permite em sua elaboração que os cidadãos sejam capazes de fazer a transição de simples e passivos espectadores para produtores, construtores dinâmicos, capazes de desenvolver maior autonomia no contato com as mídias audiovisuais fortemente presentes em nosso cotidiano e predominantemente vinculadas via TV e Internet.

A educomunicação, ao apresentar a tecnologia e a democratização de seu acesso como base de uma proposta fundamentada a partir do diálogo autêntico, defende o empoderamento social dos sujeitos para o fortalecimento da prática cidadã e encontra respaldo em Paulo Freire, que entende o diálogo como "encontro dos homens para a tarefa de saber agir" como forma de pronunciar o mundo e de se comunicar. Para Freire (2013, p.114) "não há o diálogo verdadeiro se não há nos seus sujeitos o pensar verdadeiro, pensar crítico [...] sem diálogo não há comunicação".

Mais do que uma metodologia, no âmbito da didática, a Educomunicação tem sido vista "como um parâmetro capaz de mobilizar consciências em torno de metas a serem alcanças coletivamente nas diferentes esferas da leitura e da construção do mundo, como propunha Paulo Freire" SOARES (2015), aspecto que justifica sua escolha como referência teórica e metodológica desse trabalho.

Nesse sentido, tendo como referenciais os conceitos de Educomunicação, de Vídeo Participativo, e os princípios defendidos por Paulo Freire para uma educação libertadora, o objetivo deste trabalho foi descrever o processo de empoderamento e emancipação de sujeitos do campo por meio da produção de vídeos educativos relacionados ao contexto social dos participantes.

A produção audiovisual como possibilidade

As ideias de emancipação e empoderamento remetem a necessidade do protagonismo, que neste trabalho, se vincula a autonomia para lidar com os meios de comunicação, na medida em que os educandos em formação deixam de serem consumidores para se tornarem produtores, por meio do processo de produção audiovisual e os elementos que dele derivam (criatividade, elaboração de texto para roteiro, manuseio das tecnologias...).

De acordo com Orozco-Gómez (2011, p.169), "cada meio e cada tecnologia exercem uma mediação particular nas pessoas com as quais interatuam e na estruturação dos próprios conteúdos que transmitem.? Ao integralizar diversos meios de expressão e comunicação, as NTIC surgem como possibilidade de promover a emancipação dos sujeitos, na medida em que possibilitam e facilitam a apropriação de práticas como a produção de vídeo.

No que se refere a formação para uma autonomia de produção, Tanaka (2005, p.120), afirma que ela "é vivenciada quando se descobre que antes e atrás de cada imagem há alguém que cria e envolve uma grande ambiguidade de interesses pessoais, políticos e econômicos".

Portanto, ser protagonista de um processo de produção audiovisual é ter a oportunidade de perceber que escolhas são feitas e que existem interesses por parte de quem produz. O ato de produzir o vídeo permite que o sujeito protagonista (produtor), seja o "alguém" que faz sua escolha, que expõe por meio do instrumento tecnológico o pensamento criativo, e se coloca diante da câmera para se expressar e mostrar os seus interesses.

O audiovisual é antes de tudo uma forma de expressão e comunicação que se dá a partir da junção entre o ouvir (áudio) e o ver (visual), mas é também encantamento, pois mexe com as emoções, os sentimentos e o imaginário. Alves (2005) define o audiovisual como:

Um sistema que engloba os subsistemas auditivos e visuais que se combinam em múltiplas variáveis. Esta simbiose resulta num sistema novo, que não deve ser encarado como mera justaposição ou combinação híbrida. O audiovisual não é a soma dos seus elementos, constrói outra realidade, qualitativamente diferente (ALVES, 2005, p.2).

A produção audiovisual trabalha com informações e conhecimentos compartilhando diferentes realidades e visões de mundo a partir da materialidade de cada situação que é escolhida por quem pensa e elabora o vídeo. O campo da produção audiovisual é vasto e abrangente, pois, caracterizado como forma de expressão e comunicação, está sujeito a uma multiplicidade de maneiras de ser produzido.

Na perspectiva da Educomunicação, a produção audiovisual, ao proporcionar a experimentação dos aparatos tecnológicos por meio da interação e manuseio dos instrumentos tecnológicos, se caracteriza como uma ferramenta de intervenção social. É necessário, portanto, oportunizar movimentos que envolvam vivências de práticas reais, momentos em que os sujeitos deixem a imaginação tomar conta da ação, e experimentem a atuação concreta do fazer.

Alguns exemplos de iniciativas no Brasil que tem dado voz aos diversos atores sociais e também têm contribuído como ferramentas de intervenção e transformação social por meio da produção audiovisual são os trabalhos com Vídeo Popular (SANTORO, 1989), e o projeto Vídeo nas Aldeias (GALLOIS; CARELLI, 1995).

O Vídeo Popular, de maneira geral, tem como foco de suas produções o comprometimento com a realidade social e é realizado pelos próprios movimentos populares como forma de ampliar e dinamizar sua participação promovendo possibilidades de denúncia e transformação social por meio da produção audiovisual. O projeto Vídeo nas Aldeias (VNA), criado em 1986 pelo antropólogo franco-brasileiro Vincent Carelli na perspectiva do Cinema Comunitário, tem o objetivo de compartilhar, por meio de produções audiovisuais realizadas pelos próprios índios, suas lutas e experiências a partir de vídeos produzidos por eles (GALLOIS; CARELLI, 1992, 1995).

No contexto internacional esse tipo de abordagem tem sido referida como "Participatory Video" ou Vídeo Participativo, e incluem experiências em diversos contextos culturais e sociais (SHAW; ROBERTSON, 1997; LUNCH, 2004; LUNCH; LUNCH 2006; BAUMHARDT, 2009; MISTRY; BERARDI, 2012.

O vídeo participativo envolve a utilização de um conjunto de técnicas e de equipamentos de vídeo de forma criativa com o objetivo de ajudar as pessoas a se expressarem e explorarem as questões que enfrentam tendo como resultados a construção de confiança, promoção do ativismo e da mudança social.

O Vídeo Participativo (PV) é um poderoso meio de documentar as experiências das pessoas nas comunidades em que vivem. Os participantes (homens, mulheres e jovens) aprendem rapidamente como usar o equipamento de vídeo por meio de jogos e exercícios. Em seguida, eles dirigem e editam mensagens em vídeos curtos sobre questões importantes para eles. PV pode iniciar um processo de análise e mudança que valoriza o conhecimento e a prática local, ao mesmo tempo em que estimula a criatividade, tanto dentro como fora da comunidade. Talvez o mais significativo do PV é ser um processo que capacita e desenvolve a auto-estima (SETCHELL, 2006, tradução nossa).

Há muitas experiências bem-sucedidas no uso do vídeo participativo envolvendo pessoas de diferentes realidades e que podem ser exemplificadas pelos trabalhos a seguir. Peters (et al., 2016) apresentam o vídeo participativo como estratégia para reduzir o estigma relacionado à Hanseníase por parte das pessoas acometidas por essa doença. No âmbito escolar, Blazek (2016) explora questões éticas e políticas relacionadas com o trabalho de produção de vídeos por crianças e jovens relacionando-os com aspectos da geografia. Em um trabalho com comunidades tradicionais, Bignante (et al., 2014) retratam o desafio vivido por cinco indígenas guianenses como facilitadores em atividades com vídeo participativo em outras comunidades da Guiana demonstrando os diferentes terrenos emocionais que são experimentados por meio dessa prática. No campo ambiental, Haynes e Tanner (2013) apresentam o vídeo participativo dando voz a um grupo de jovens de três comunidades nas Filipinas com o intuito de ampliar a participação de crianças e jovens na redução do risco de desastres relacionados às mudanças climáticas e envolve-los na esfera de decisão política, ajudando-os a tomar decisões e advogar em favor de suas comunidades. Ainda na temática ambiental, Baumhardt (2009) demonstra a experiência de agricultores em uma aldeia no Malawi aprendendo a operar uma câmera de vídeo, desenvolvendo um roteiro, e fazendo um vídeo com exemplos de práticas de adaptação que desenvolvem para ajustar seus meios de subsistência à mudança climática.

Nesse sentido, as produções audiovisuais realizadas por grupos sociais independentes, que priorizam a realidade social local do coletivo produtor, bem como sua efetiva participação e envolvimento no processo, possibilitam em seu desenvolvimento que o sujeito exerça ações consideradas importantes para sua atuação cidadã e o desenvolvimento de sua autonomia, entendida segundo Vasconcelos e Brito (2014, p.49), como "um processo gradativo de amadurecimento, que ocorre durante toda vida, proporcionando ao indivíduo a capacidade de decidir e, ao mesmo tempo, de arcar com as consequências dessa decisão".

O processo de produção de vídeo possibilita trabalhar uma série de características que excedem o simples uso das tecnologias e o tecnicismo; ensinando, exercitando e aprimorando conhecimentos necessários ao ensino-aprendizagem como a elaboração e escrita de um bom texto, a boa pronuncia, a prática do emprego da criatividade, incentivo a convivência em grupo e ao trabalho coletivo (LOPES, 2014), aptidões que devem ser incentivadas e praticadas nos processos educativos.

Desse modo, pode-se afirmar que, da concepção à criação final, o processo de produção audiovisual exige uma série de habilidades importantes e necessárias à ação formativa dos sujeitos, cujo resultado deve ser o empoderamento social dos sujeitos no desenvolvimento de consciência e atitudes críticas relacionadas à capacidade de expressar suas perspectivas frente a questões sociais.

A transformação da realidade surge a partir do protagonismo e autonomia conquistados. Para se compreender a televisão, precisa-se entender os equipamentos e como se produzem mensagens. Apenas mentalmente, não se pode conhecer a tecnologia da televisão. É preciso manipular, operar. Se o educador desejar desmitificar a TV, deve começar pelo conhecimento de sua materialidade. A evolução tecnológica simplificou as operações técnicas, os preços, fazendo equipamentos fáceis de operar e acessíveis (CARNEIRO, 2001, p.11).

A construção audiovisual pode possibilitar o entendimento do dinamismo e da pluralidade que a tecnologia oferece, na medida em que há uma ressignificação da tecnologia pelos sujeitos a partir de outro olhar sobre os meios tecnológicos e o mundo que o cerca. A câmera fotográfica passa a ser filmadora, e o computador, além da função de digitar textos, navegar nas redes sociais e fazer pesquisas, oferece a possibilidade de organizar, editar e compartilhar vídeos.

Nessa perspectiva os sujeitos se veem diante de uma nova maneira de enxergar a sua realidade, o que pode lhes oferecer condições de atuar sobre a realidade e sobre as situações concretas vivenciadas e retratadas colocando-os frente a um protagonismo transformador.

Nesse sentido, entende-se que a compreensão crítica dos meios de comunicação passa pelo estudo e pela experimentação dos aparatos tecnológicos e compreende-se como fundamental o manuseio e a busca pelo conhecimento das funções e possibilidades tecnológicas pelos sujeitos, por meio da prática educativa.

A prática educativa participativa, na qual o diálogo e a transformação de situações de opressão aparecem como ponto chave de aquisição de conhecimento e libertação, é central na pedagogia Freireana, e faz refletir sobre a importância que tem a comunicação para a educação, pois só se educa quando há comunicação sobre algo, seja por meio de textos, imagens, falas, vídeos, etc.

Contribuições de Paulo Freire para pensar a Educação e a Comunicação

Paulo Freire foi um educador que transcendeu a esfera pedagógica. Preocupado com a formação e emancipação humana, foi um homem politicamente engajado que soube valorizar as classes populares, movimentos sociais e seus saberes. Propôs e defendeu pedagogias de valorização humana e uma prática educativo-crítica, a "prática da liberdade?, como meio de superar a opressão imposta por um discurso dominante.

Freire desejava que os sujeitos fossem conscientes de sua verdadeira situação, das possibilidades de mudança e transformação da realidade, e que conscientes das oportunidades soubessem fazer uso das palavras para entender sua situação, fazer-se ouvir, e proclamar seus direitos.

Seu legado se estende a vários campos do conhecimento. Alfabetizar e conscientizar as pessoas sobre sua real situação era seu intuito. Foi um dos principais representantes da tradição teórica da comunicação como diálogo. Segundo Lima (2011, p.22), "Freire teorizou a comunicação interativa antes da revolução digital, vale dizer, antes da internet e de suas redes sociais." Nas palavras do próprio Freire:

Para mim, essa distinção " que poderia ser feita por alguns, entre o informar e educar - não existe como algo separado. Não acredito que uma pessoa possa dizer que está apenas informando, sem que isso constitua, de uma forma ou de outra, parte de um processo pedagógico (FREIRE; GUIMARÃES, 2011, p.153).

Para além do processo pedagógico, Freire entende a comunicação como forma de expressão, de ser e estar no mundo. A noção de diálogo proposta por Paulo Freire está intimamente ligada à ideia de ação, ação de sujeitos ativos e conscientes de seu papel na sociedade, verdadeiros cidadãos que ao tomarem conhecimento de seu contexto de vida querem pronunciar a palavra capaz de mudar, de transformar a sua situação.

Pronunciar o mundo é desenvolver práticas sociais educativas que permitam, aos sujeitos, se apropriarem de conhecimento crítico que lhes possibilitem fazer uma nova leitura da realidade, resgatando o agir coletivo como processo de criação de novos conhecimentos, olhares e ações. (PERNAMBUCO, GOUVÊA DA SILVA, 2006 p. 204).

Em sua obra "Pedagogia do Oprimido", Freire revela opressores e oprimidos constituindo as bases históricas e culturais de nossa sociedade. Para o autor, ambos, opressores e oprimidos, são sujeitos, que embora não percebam, residem na mesma consciência. Freire dizia que se os oprimidos "pudessem compreender seu próprio valor enquanto homens (...), alcançar uma consciência crítica de sua condição social e se organizar politicamente seriam capazes, então, de mudar as coisas para melhor" (LIMA, 2011, p.79). Ele partilhava da ideia de que a comunicação deveria estar comprometida com a emancipação dos oprimidos.

Emancipação que, segundo Moreira (2016, p.145), aparece na obra de Paulo Freire "como uma grande conquista política a ser efetivada pela práxis humana, na luta ininterrupta a favor da libertação das pessoas de suas vidas desumanizadas pela opressão e dominação social". Emancipação entendida, nesse artigo, como ação de independência e libertação por meio dos processos educativos que visam a transformação dos sujeitos envolvidos. Emancipação que, também, está muito relacionada a outro conceito central no referencial Freireano, o empoderamento que, de acordo com Guareschi (2016, p.147), "deve ser tomado no sentido de ativar a potencialidade criativa de alguém, como também de desenvolver e potencializar a capacidade das pessoas". Empoderamento de pessoas envolvidas ativamente em processos e ações formativas.

Educação e comunicação: uma interação necessária

Partindo do princípio do qual afirma Moran (1993, p.164), de que "a educação para a comunicação é parte do processo de educação para a organização individual, grupal e coletiva, de educação para a cidadania e para a transformação social", o referencial teórico metodológico que dá sustentação a prática de produção audiovisual, nesse trabalho é a Educomunicação, que preocupada com a participação dos sujeitos e a formação cidadã, está muito relacionada ao já apresentados conceitos de emancipação e empoderamento.

O conceito de Educomunicação é relativamente novo e se estabelece, no Brasil, na década de 90 tendo como marco conceitual uma pesquisa desenvolvida, entre 1997 e 1999, por pesquisadores do Núcleo de Educação e Comunicação da Universidade de São Paulo - NEC-USP que, liderados pelo professor Ismar de Oliveira Soares, realizam uma pesquisa com doze países da América Latina sobre o perfil de um novo profissional que surgia nesses países, cujo nome já havia sido referido pelo argentino Mario Kaplún nos anos oitenta, o "educomunicador".

De acordo com Mello (2013) antes de ser "ressignificado e adotado para nomear um novo campo de intervenção social?, o termo Educomunicação foi conceituado oficialmente pela primeira vez durante um evento da UNESCO ocorrido no início dos anos de 1990, no Chile, a partir de contribuições e debates feitos por especialistas em educação com mediação tecnológica da região Iberoamericana.

Nesse sentido, de acordo com Soares (2000, p.12), "firma-se, principalmente na América-Latina, um referencial teórico que sustenta a inter-relação comunicação/educação como campo de diálogo, espaço para o conhecimento crítico e criativo, para a cidadania e a solidariedade".

a educomunicação não nasceu no espaço escolar formal, mas nos embates das lutas sociais, junto ao público presente nos programas de educação de jovens e adultos, numa trajetória que conta mais de 30 anos. Envolveu, primeiramente, os agentes sociais do movimento popular; chegou depois à mídia, renovando a linguagem e os conteúdos de programas massivos, especialmente na produção de documentários de interesse educativo nas grandes emissoras de rádio e TV, para aportar finalmente na escola... SOARES(2003, p.9).

Segundo Lima e Melo (2008), a "Educomunicação é um neologismo, ou seja, uma palavra nova, fruto da junção de duas outras já conhecidas " educação e comunicação". Para as autoras, a educomunicação possibilita o uso dos meios de comunicação como ferramentas para a construção de uma educação emancipadora, na qual os sujeitos "usando computador, internet, equipamentos de rádio, de vídeo, ou outro qualquer passam de consumidores de informação a produtores de comunicação" (LIMA; MELO, 2008, p.170).

A Educomunicação procura dar à comunicação intencionalidade educativa e favorecer um diálogo que permita intervenção e reflexão do mundo para sua transformação. Propõe uma apropriação dos meios de comunicação diferenciada onde os sujeitos se envolvem de maneira democrática e livre com os meios de comunicação, defendendo uma prática educativa em que os participantes podem fazer parte da construção da comunicação e da disseminação da informação.

Assim sendo, a educomunicação é grande aliada da educação crítica e dialogada e,

nessa perspectiva nunca é individual, mas sempre grupal. "Ninguém se educa sozinho?, mas através de experiências compartilhadas, na integração com os outros. Esse tipo de educação pode até utilizar recursos audiovisuais ou outros recursos tecnológicos. Não somente para reforçar conteúdos, mas sim para problematizar e estimular discussões, diálogos, reflexões e a participação dos envolvidos (COSTA, 2008, p.14).

Para Soares: "O Brasil, vive um novo estágio na compreensão das relações entre tecnologias e os processos educativos" e a educomunicação se define como:

o conjunto das ações inerentes ao planejamento, implementação e avaliação de processos e produtos destinados a criar e fortalecer ecossistemas comunicativos em espaços educativos, melhorar o coeficiente comunicativo das ações educativas, desenvolver o espírito crítico dos usuários dos meios massivos, usar adequadamente os recursos da informação nas práticas educativas, e ampliar capacidade de expressão das pessoas (SOARES, 2003, p.1)

Nessa perspectiva os processos educacionais motivados pela interação e mediação entre comunicação e educação constitui esse novo campo de intervenção social que, preocupado em garantir novas formas de expressão, se caracteriza por serem construções coletivas e pela busca do empoderamento social e a democratização dos acessos às tecnologias.

Metodologia

O trabalho foi desenvolvido com 22 (vinte e dois) sujeitos do campo, estudantes do curso de Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC) da Universidade de Brasília (UnB), que optaram pela área de habilitação em Ciências da Natureza e Matemática (CIEMA). O trabalho envolveu as disciplinas "Grandes Temas Ambientais do Campo" e "Ecologia de Agrossistemas".

O curso de Licenciatura em Educação do Campo da UnB, segundo Molina e Sá (2011), tem como objetivo formar e habilitar educadores do campo que estejam atuando como docentes ou em outras atividades educativas em sua comunidade e que ainda não possuam a titulação mínima exigida pela legislação educacional em vigor. A matriz curricular do curso na UnB apresenta duas áreas do conhecimento: Linguagens e CIEMA. A área de linguagens está relacionada à Expressão oral e escrita em Língua Portuguesa, Artes e Literatura, e CIEMA corresponde às Ciências da Natureza e Matemática. Segundo Molina (et al., 2010), essa proposta desenvolve uma estratégia multidisciplinar de trabalho docente.

A forma de organização curricular peculiar da Educação do Campo integra dois espaços e dois tempos diferentes, o Tempo Escola (TE) e o Tempo Comunidade (TC) que devem ser considerados tempos integrados de trabalho e formação, e não tempos segregados e desarticulados. Esses diferentes tempos caracterizam a metodologia da Alternância, uma estratégia de organização curricular do curso. O TE acontece na instituição de ensino e envolve aulas teóricas e práticas, e no TC os educandos retornam à comunidade onde realizam suas atividades de pesquisa.

Dos 22 estudantes participantes da pesquisa, 13 eram do sexo feminino e 9 do sexo masculino, a média de idade da turma foi de 33 anos. Os educandos eram procedentes de 17 comunidades distintas, localizadas em 15 municípios, distribuídos em cinco diferentes estados brasileiros, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Rondônia.

As atividades desenvolveram-se na sala de informática da Faculdade UnB Planaltina, onde havia disponíveis dez computadores com acesso à internet e ao programa Windows® Live Movie Maker, e nas comunidades dos estudantes. Esse é um software de edição de vídeos da Microsoft© e foi escolhido pela facilidade de acesso e por ser um programa simples e de fácil utilização, o que permite que pessoas sem muita experiência com informática possam manuseá-lo sem grandes dificuldades.

Etapas do trabalho

As etapas de trabalho foram desenvolvidas de abril de 2012 a dezembro de 2013 totalizando um ano e oito meses de trabalho distribuídos em três Tempos Comunidade (TC) e quatro Tempos Escola (TE) respeitando os tempos e espaços de organização do curso.

No Tempo Escola 1 (TE1) foram realizadas observações em sala de aula com o intuito de conhecer a turma, o professor e identificar possibilidades de trabalho. Findado esse período os educandos retornaram a suas comunidades para o Tempo Comunidade 1 (TC1). Na universidade iniciou-se o planejamento das atividades junto com o professor das disciplinas observadas, nesse momento importância de envolver os educandos em um trabalho que aliasse ensino ao uso das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC) ficou evidente frente à importância e possibilidade do uso das tecnologias se integrarem a formação. Optou-se então pelo trabalho de produção de vídeo e estabeleceu- se a parceria.

No Tempo Escola 2 (TE2), quando os estudantes retornaram à universidade, a proposta foi apresentada e discutida, aconteceu uma conversa sobre criatividade e a primeira oficina sobre "Produção audiovisual". Nessa etapa foi solicitada uma tarefa para o Tempo Comunidade 2 (TC2) que consistia na elaboração de um vídeo de duração máxima de 10 minutos.

As orientações foram dadas de modo a proporcionar a atuação (participação) dos estudantes em um processo que foi pensado a partir da prática educomunicativa que, de acordo com Soares (2011, p.09) busca promover "habilidades marcadas pela criatividade, motivação, contextualização de conteúdos, afetividade, cooperação, participação, livre expressão, interatividade e experimentação" SOARES (2011, p.09).

Os vídeos produzidos deveriam: (1) contemplar conceitos científicos estudados e relacionados às disciplinas "Grandes Temas Ambientais do Campo" e "Ecologia de Agrossistemas"; (2) ter formato adequado ao uso em educação, de tal forma que após sua conclusão pudesse ser utilizado como material didático de apoio em sala de aula para o ensino dos conceitos escolhidos; (3) possuir um roteiro escrito que deveria acompanhar o vídeo como explicação do mesmo, contendo as seguintes partes: breve revisão teórica sobre o assunto abordado e a descrição da proposta do vídeo (sinopse); (4) ser entregue em uma pasta digital com todos os documentos adquiridos durante o processo de construção do vídeo (gravações digitais, fotos digitais, gravação de áudio digital entre outros).

A edição final dos vídeos foi realizada na Universidade. O Tempo Escola 3 (TE3) compreendeu um período de dois meses e foi o momento em que as atividades com os estudantes se intensificaram, pois, eles já haviam escrito o roteiro e captado as imagens na comunidade. Nessa etapa os estudantes responderam um questionário cujo objetivo foi avaliar as atividades de produção audiovisual desenvolvidas no Tempo Comunidade 2. As imagens captadas no TC2 foram exibidas e discutidas coletivamente com a presença de dois professores convidados. Em seguida foi realizada a 2ª Oficina denominada "Introdução à edição?, momento em que foi exibido um vídeo construído pelos autores do trabalho, como exemplo para trabalhar questões referentes ao roteiro final e edição. Após conclusão das edições os estudantes responderam outro questionário a fim de avaliar o processo de produção audiovisual por eles. Na última semana da etapa foi realizada a entrega de DVDs contendo todos os vídeos realizados pela turma. Os estudantes retornaram a suas comunidades no Tempo Comunidade 3 (TC3).

Quando eles retornam para o Tempo Escola 4 (TE4) foi realizada uma entrevista com o intuito de integrar um processo de reflexão dos estudantes em relação a produção audiovisual. A entrevista também teve o objetivo de ouvir os estudantes havendo decorrido um tempo após a produção dos vídeos, bem como saber se houve algum desdobramento das ações realizadas.

Todas as etapas e procedimentos levaram em consideração alguns princípios da Educomunicação que a partir de Soares (2011), são compreendidos como: participação coletiva, diálogo, promoção da cidadania, apropriação e leitura crítica dos meios, reconhecimento do direito a comunicação, e uso e gestão democrática dos recursos de informação no ensino-aprendizagem.

Procedimentos metodológicos

A complexidade das pesquisas em educação sugere que os dados não devam ser isolados a poucas variáveis quantitativas. Por isso, para a análise dos resultados desse trabalho elegeu-se a abordagem qualitativa, baseada em Ludke e André (1986). Como instrumentos de coleta de dados, optou-se pelo uso da observação, a aplicação de questionários e a realização de entrevistas semiestruturadas.

Para a apreciação dos resultados utilizou-se a análise de conteúdo, descrita por Franco (2012), a partir da transcrição dos questionários e entrevistas e posterior categorização do conteúdo buscando encontrar e destacar os principais achados da pesquisa.

A entrevista semiestruturada consistiu em um momento muito importante da pesquisa por acontecer três meses após o encerramento das atividades desenvolvidas, indicando que os dados obtidos passaram por um tempo de maturação necessário e proposital na pesquisa. Questionários e entrevistas foram considerados importantes por suscitar a reflexão e a partilha sobre o trabalho de produção de vídeo e o uso das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC).

Com a intenção de preservar suas identidades, quando identificados, nas entrevistas, os educandos foram caracterizados como letras do alfabeto e sua idade, no caso dos questionários foram distinguidos com a letra Q e números.

É importante evidenciar que antes de iniciar a intervenção, apresentamos aos sujeitos às intenções da pesquisa e uma solicitação de permissão para registros audiovisuais e consentimento de participação no processo da pesquisa.

Resultados e discussão

Os sujeitos do campo não se encontram desprovidos de equipamentos tecnológicos. Em relação ao acesso às NTIC percebe-se que os sujeitos dessa pesquisa são engajados, não alheios às tecnologias e aos recursos por ela oferecidos.

A tecnologia está presente em ações efetuadas por eles e isso ficou explícito na interação que tivemos durante o desenvolvimento das atividades de produção audiovisual. A tabela abaixo demonstra os recursos tecnológicos que os estudantes, sujeitos do campo, possuem.

Recursos;Nº de estudantes; %

Tabela 1: Tabela 1 – Recursos tecnológicos que os estudantes possuem 

Os vídeos foram realizados na Comunidade com os recursos disponíveis (telefones celulares, computadores e câmeras fotográficas), e os estudantes se envolveram e participaram ativamente do processo, reconhecendo a importância do uso das tecnologias, como na fala de um deles: "nos dias de hoje, com a tecnologia tão avançada, a gente precisa tomar providencias e conseguir acompanhar esse ritmo da tecnologia que tá aí, senão sofre muito..." (T, 47 anos). Outro foi categórico ao afirmar que "hoje em dia saber 'mexer' na tecnologia é essencial" (Q18).

A construção de um vídeo envolve aspectos que podem ser considerados relevantes para a formação cidadã, pois possibilita a abrangência de temas em diversos campos do conhecimento, incentiva o trabalho coletivo nos momentos das produções e a elaboração de um bom texto para estruturar o roteiro, dentre outros aspectos como criatividade e oralidade adequada.

Alguns estudantes demonstraram ter clareza no entendimento de algumas dessas possibilidades, como é o caso da estudante Q16 que afirmou que "do planejamento às associações de ideias, à identificação dos problemas até a produção de roteiros e edição dos vídeos acontece uma série de leituras, produções e construção de conhecimento que não ocorrem de outra forma", ou do estudante Q5 que disse que "a produção do vídeo mostra a deficiência de formulação de argumento, quando falamos parece excelente, quando gravamos observamos que fica faltando ou passando informações. Então, a produção nos leva, além do domínio da informática, a uma correção de conceitos e formulação do discurso", e ainda da estudante Q3 que ressaltou que "O vídeo traz no seu contexto linguagem oral, que significa reflexão e aprimoramento na linguagem escrita. Por isso... mais propriedade na fala e na escrita."

Além disso, a produção audiovisual demanda conhecimentos técnicos como tipo de iluminação, ruídos, enquadramento, o conhecimento das funções básicas da câmera filmadora ou fotográfica, o manuseio de um computador onde serão armazenadas e editadas as imagens e muitos outros aspectos que podem ser considerados importantes frente às novas demandas comunicacionais.

Ao analisar os questionários antes e após a produção dos vídeos percebeu-se que os sujeitos do campo a princípio se revelaram tímidos na relação com as tecnologias, mas que por meio da apropriação da prática foram aos poucos se desafiando e se empoderando no processo, pois ao lidar com a condição de não familiaridade com recursos tecnológicos, principalmente para os educandos de maior idade, souberam se expressar por meio da apropriação das NTIC desenvolvendo e potencializando sua capacidade criativa.

Essa afirmação fica visível quando alguns educandos trazem em sua fala a necessidade e o receio em lidar com os equipamentos, e demonstram a emancipação, ou seja, a ação de independência proporcionada pela produção do vídeo que, aliada a novas descobertas por meio da utilização das tecnologias, bem como a ideia de desafios a serem superados e a tecnologia como direito de todos, expressa o, já mencionado, empoderamento desses sujeitos.

"quanto mais trabalharmos com essas ferramentas tecnológicas, mais ampliamos nossa prática também. Quem vive no campo tem de certa forma um "receio" em "mexer" com tecnologias como esta, por exemplo!" (Q6)

"conhecer a ferramenta e as técnicas de produção de vídeo foi e continua sendo muito importante, pois ganhei a liberdade de observar algo na minha própria prática e produzir" (Q3)

"O uso do equipamento fotográfico, filmadoras, e computadores no manuseio da edição são desafios a serem superados por muitos. A produção do vídeo contribui para quebrar essas barreiras, vencer esses obstáculos." (Q16)

"... a tecnologia é direito de todos entre campo e cidade." (Q8)

A percepção da tecnologia como direito está muito relacionada a um dos princípios da educomunicação que defende a democratização do acesso às tecnologias por entender que estas são parte das mediações que a cultura contemporânea apresenta para garantir suas formas de expressão.

A cultura em Paulo Freire "representa a somatória de toda a experiência, criações e recriações ligadas ao homem no seu espaço de hoje e na sua vivência do ontem, configurando-se como a real manifestação do homem sobre e com o mundo" (VASCONCELOS E BRITO, 2014, p.67). Para Freire (2015, p.85), a comunicação é coparticipação dos sujeitos e "implica uma reciprocidade que não pode ser rompida" é diálogo na medida em que é encontro de sujeitos e pronunciamento do mundo, dos seus significados.

Foram treze vídeos produzidos ao final. Os temas escolhidos pelos sujeitos foram diversificados, e assim como solicitado apresentavam relação com os temas estudados por eles no curso de Licenciatura em Educação do Campo, contudo identificou-se também grande relação dos temas aos contextos sociais das comunidades em que viviam.

Tabela 1 Recursos tecnológicos que os estudantes possuem 

Título Assuntos abordados
1 A horta na escola contribuindo no ensino de ciências Possibilidades pedagógicas a partir do trabalho com horta escolar
2 A origem dos agrotóxicos Revolução verde e prejuízo do uso abusivo de agrotóxicos
3 Ácidos e Bases Produção de indicador ácido-base natural
4 Agricultura convencional X Agricultura orgânica Contraposições entres agricultura convencional e agroecológica
5 Assentamento Areiais, Nioaque-MS Diversidade biológica e sociocultural do assentamento
6 Consequências e implicações da agricultura convencional Consequências da exploração dos recursos naturais.
7 Construindo a própria história Possibilidades e importância do processo de produção audiovisual desenvolvido
8 Formas alternativas de plantação de alimentos Processo de compostagem e sua importância na relação solo/planta
9 Horta orgânica Produção agroecológica na horta orgânica de uma família Quilombola
10 O que está acontecendo com o Rio das Pedras" Rebaixamento do lençol freático na região do Rio das Pedras em Mambaí-GO
11 Os abusos dos agrotóxicos Apelo ao risco do uso abusivo de agrotóxicos para a saúde, não só dos seres humanos, mas também dos outros animais.
12 Por que a agroecologia" Importância da produção agroecológica.
13 Sustentabilidade: semear e consumir com consciência Importância do consumo consciente e da produção agroecológica.

Quadro1 - Títulos e principais assuntos abordados nos vídeos produzidos e pelos educandos.

Por serem produções próprias dos educandos todos os vídeos e caracterizam, segundo Ferrés (1996), como "vídeo processo". Com o intuito de evidenciar alguns aspectos do processo emancipatório foi realizada uma breve análise dos audiovisuais produzidos e alguns aspectos foram identificados. São eles: a) a presença de narração com textos criados pelos próprios educandos nos vídeos 3, 6 e 13 demostrando o processo criativo independente, b) vídeos como os 2, 4, 7, 9, 12 e 13 em que os educandos aparecem como atores ressaltando que a participação envolve além do roteiro e da produção, a atuação deles o que confere também identidade a produção, e que tem muita relação com c) os vídeos em que as comunidades aparecem como cenário principal 2, 5, 8, 9, 10, 12 e 13, e d) os vídeos em que aa trilhas sonoras expressam um pouco do perfil dos educandos 4, 5, 9 e 10, por meio de músicas que falam sobre a educação e os modos de produção no campo e a reforma agrária, por exemplo no vídeo 4 a música "Ordem e progresso" de autoria de José Pinto, no vídeo 5 a música "Terra e Raiz" de composição dos músicos do MST, no 9 com a música de Gilvan Santos "Não vou sair do campo" ou no vídeo 10 com a música "Desde os tempos de Sépe" de Pedro Ortaça.

Além do mais, os sujeitos trouxeram em suas produções a contextualização e discussão de assuntos importantes para a vida no campo, como o uso dos agrotóxicos e seus impactos, a disputa entre a agricultura convencional e a agricultura orgânica, os princípios da agroecologia e a sustentabilidade socioambiental. Todos diretamente ligados ao seu contexto social e relacionados à sua leitura de mundo, segundo a qual para Freire (1996, p.123) "revela, evidentemente, a inteligência do mundo que vem cultural e socialmente se constituindo".

Para Freire não há inteligência da realidade sem a possibilidade de ser comunicada. O vídeo enquanto forma de expressão e comunicação é também maneira de expressar a leitura de mundo dos sujeitos. De acordo com Freire (1996, p.118) uma das características da experiência existencial no mundo é a "capacidade que homens e mulheres criam de inteligir com o mundo em que atuam, o que se dá simultaneamente com a comunicabilidade do inteligido".

Os estudantes indicaram o contato com a natureza, a multiplicidade de temas oportunizados pelo convívio em comunidade e pelos trabalhos desenvolvidos, tanto no campo, quanto dentro das escolas, como atividades que facilitavam a produção do vídeo. Essas indicações demonstram a importância do coletivo e a relevância das relações sociais em comunidade, revelando vínculos inseparáveis entre comunicação, coletividade e cultura e reafirmando os princípios de participação coletiva e diálogo da Educomunicação.

Em entrevista, quando indagados sobre o momento posterior a produção dos vídeos, em que eles retornaram para suas comunidades, dezessete, dos vinte e dois sujeitos surpreenderam ao afirmar que haviam utilizado o vídeo, pois essa não foi uma solicitação prévia. Entre os estudantes que revelaram ter feito o uso do vídeo na comunidade, doze apenas realizaram a exibição e sete exibiram e desenvolveram atividades vinculadas. A atitude de utilizarem o vídeo ganha relevância ao considerar-se a possibilidade de produção de vídeo como empoderamento social da tecnologia.

Os locais onde os vídeos foram exibidos foram: na escola com os estudantes (dez sujeitos), no sindicato ou associação com produtores e pessoas da comunidade (três sujeitos) e em casa com os familiares (oito sujeitos).

"eu fui trabalhar como professora regente da escola que eu estagiei, aí eu peguei e falei assim, ah já que eu preparei o vídeo eu vou usar como introdução; achei ótimo!? (aluna A, 27 anos).

"Mostrei pra algumas pessoas da Associação de moradores, pois eu sou da diretoria e sempre quando eu chego eles querem saber o que eu fiz aqui. O pessoal que viu adorou, a família também viu, foi bom.? (aluna V, 33 anos).

"eu passei o vídeo para minha mãe e apresentei pra ela como foi todo o processo de produção, aí ela propagou lá no curso de agroecologia que ela está fazendo em Cuiabá.? (aluna B, 36 anos)?

É interessante perceber os desdobramentos desses vídeos e a repercussão que tiveram em escolas de Assentamentos, Comunidades Camponesas e Quilombolas, Associações, Sindicato de trabalhadores e em um Curso de agroecologia em Cuiabá - MT.

Essa ampla abrangência ressalta o papel do vídeo como importante meio de comunicação, como possibilidade de diálogo. Demonstra como o audiovisual pode disseminar ideias e informações por meio da troca de saberes entre os sujeitos, nesse caso entre os estudantes e deles com outras pessoas, pois o vídeo se torna um meio pelo qual eles falam e podem ser ouvidos, o que representa um importante movimento de apropriação da prática e empoderamento do uso dos meios de comunicação, principalmente em uma sociedade como a nossa, em que estes "não são evidentemente apenas meios de comunicação, mas meios de venda, atrelados a uma engrenagem industrial que divulga, numa grande vitrine, uma série de produtos e serviços" (FREIRE; GUIMARÃES, 2011, p.57).

Em relação ao poder e não neutralidade dos processos comunicativos, Freire (1996, p. 139) diz que "toda comunicação é comunicação de algo, feita de certa maneira em favor ou na defesa, sutil ou explícita, de algum ideal contra algo e contra alguém, nem sempre claramente referido." Um estudante ao falar sobre o processo de produção de vídeo durante a entrevista trouxe a ideia do vídeo como "arma" e como possibilidade de empoderamento das pessoas demonstrando consciência crítica sobre as mídias e o seu próprio processo de empoderamento:

"... então a gente percebe que o vídeo é uma arma muito forte, assim dependendo da forma que a gente for usar ele... é um processo que dá pra você formar uma outra ideia a partir dessa que o pessoal usa que é pra manipular as pessoas [...] eu acredito que o vídeo é fundamental nessa questão da potencialização das pessoas, no campo ou em qualquer outro espaço que ele esteja. É uma forma também da gente ir aprendendo a usar as tecnologias a nosso favor porque não dá pra nós só ficar olhando ela." (estudante C, 36 anos).

Processos educativos com o uso de produção de vídeo podem gerar reflexões e percepções importantes para a formação cidadã crítica. Essa consciência aliada ao entendimento da necessidade de lidar com as NTIC é muito importante diante das novas relações comunicacionais que se estabelecem.

Pensando ainda na atuação dos sujeitos, além da exibição e divulgação dos vídeos, outro modo de utilização chamou a atenção, pois quatro estudantes, por serem professores atuantes em suas comunidades, realizaram, em suas escolas, atividades de produção de vídeos com seus educandos, reproduzindo assim, as atividades que foram desenvolvidas nos momentos de formação vivenciados por eles na universidade.

Esse é um aspecto interessante, pois ao fazer o vídeo com seus educandos no Tempo Comunidade (TC), os sujeitos do campo, professores em formação, demostraram a apropriação da prática e autonomia no processo de construção audiovisual, ao passo que, ao ter a iniciativa de mediar às atividades com seus educandos nas escolas do campo puderam vivenciar novamente a experiência de elaboração do vídeo e visualizar seus alunos no papel que foi desempenhado por eles na universidade.

Na função de protagonistas e mediadores, os sujeitos tiveram a oportunidade de partilhar seus aprendizados e perceber novas possibilidades a partir da experiência de ensinar algo que eles próprios haviam produzido. Considera-se que isso só foi possível devido à apropriação da prática que aconteceu com o empoderamento dos sujeitos no processo de produção audiovisual como alternativa de trabalho, como descoberta, como possibilidade de lidar com as tecnologias, como diálogo com o outro, como aumento da autoestima, "[...] imagina eu cheguei lá e coloquei no meu aparelho e me vi na televisão da minha sala [...] é muito chique! " (R, 48 anos).

"Pra mim a tecnologia é como a leitura, pois por mais que a gente saiba sempre vai ter alguma coisa que a gente não sabe e a gente vai ter que se desafiar [...] eu já tinha visto vídeos, só que assim, eu nunca tinha tido a oportunidade de mexer, de fazer um vídeo da minha realidade e para mim foi grande! Eu gostei." (B, 36 anos)

O processo de empoderamento dos sujeitos na produção audiovisual também aconteceu porque ao desenvolverem grande parte das atividades na comunidade, sem um acompanhamento mais próximo e direto do proponente, os sujeitos tiveram liberdade e autonomia nos processos criativos de escolha dos temas, elaboração dos roteiros e captação de imagens. Nesse sentido, para Leonardi (1999, p.23) a construção do conhecimento se torna lúdica e atraente quando a liberdade está presente, ele afirma que a atividade educacional com a presença da criatividade no processo de produção de novos conhecimentos promove a realização do próprio homem, e que na ausência dessa criatividade, o "mimetismo comanda, e o resultado é a antieducação: a dominação ideológica, a massificação e o adestramento com fins imediatistas, todos eles prejudiciais para o autoconhecimento e a auto-realização".

No contexto do que foi descrito, as afirmações acima remetem a experiência do Vídeo Participativo que, como meio de documentar realidades próprias de seus produtores, por meio do engajamento e envolvimento no processo de produção, se caracteriza por ser um processo que capacita e desenvolve a autoestima, valoriza o conhecimento e a prática local, ao mesmo tempo em que estimula a criatividade.

Os aspectos levantados por eles para justificar o bom desempenho das atividades necessárias à produção do vídeo na comunidade foram diversos, com destaque para os benefícios para a comunidade e a afirmação do vídeo como experiência de aprendizagem:

"A tarefa de pensar o vídeo no TC vi como produtiva, pois ao fazer levantamento das referências e dos conceitos a gente acaba descobrindo muita transformação e valores da comunidade" (Q4)

"Foi muito produtivo, a partir da ação na produção do vídeo, eu e minha mãe até construímos uma horta em nossa casa" (Q7)

"Foi muito produtiva a construção do vídeo porque nos levou a refletir sobre a comunidade, e os impactos ambientais ocorridos no assentamento." (Q12)

Levando em consideração a fala dos três sujeitos acima e partindo do pressuposto de que a tecnologia é parte das relações sociais e que, a partir do momento em que se insere no contexto social dos sujeitos, causa impactos significativos em seu cotidiano, podendo se constituir como mediadora dos processos de aprendizagem, fica claro que a produção de vídeo pelos educandos desencadeou ações para os envolvidos que vão além da formação profissional, pois os levaram a descobrir coisas novas, a identificar algumas possibilidades potenciais que antes não eram percebidas por eles.

Posto isso e pensando que "o uso das tecnologias enquanto mediação só se constitui a partir da criação e da negociação de significados estabelecidos e partilhados na rede de relações sociais" (ARANHA et al., 2007, p. 229), constatamos que a produção do vídeo, além de se caracterizar como instrumento de formação para o uso das NTIC, demonstra ser grande aliada nos processos de mediação da aprendizagem e de valorização das relações sociais. De fato, os estudantes empenhados na tarefa de produção exploraram a comunidade, buscaram maneiras criativas de abordar os temas nos vídeos e puderam partilhar a experiência com seus colegas, como destaca o educando Q14: "Foi produtivo, houve uma troca de experiências?, aspecto que se reafirma quando 80% dos estudantes afirmam ter envolvido outras pessoas da comunidade no processo de produção de vídeo:

"Envolvemos duas alunas do ensino fundamental que protagonizaram o roteiro do vídeo, foi incrível ver a performance e o interesse das meninas pelo trabalho" (Q8) "A pessoa que envolvemos foi uma senhora que participou e participa de todo processo histórico de luta do assentamento o que nos levou a procura-la para fazer parte dessa produção" (Q12)

A educomunicação considera que todos são aprendizes, porque todo tem o que socializar, ensinar e aprender, independentemente da idade ou formação acadêmica. Soares (2012) afirma que a educomunicação deve criar procedimentos que permitam a "socialização das maneiras de entender o mundo e que garantam que as pessoas nesse universo se sintam autoras de seu próprio processo de aprender, de ensinar e de construir o mundo". Para Freire somente a comunicação dá sentido à vida humana e esta deve acontecer em torno de uma realidade, a realidade vivenciada pelos sujeitos que pronunciam o mundo e se reconhecem na intercomunicação, pois "ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo" (FREIRE, 2013, p.96).

O vídeo participativo em sua amplitude "abrange uma grande variedade de práticas, propósitos e filosofias" (PETERS et al. 2016, p.3) e na dinâmica de sua proposta, cujo ponto central é a ação colaborativa dos sujeitos no protagonismo de construção da linguagem audiovisual, se estabelece como possibilidade de intercomunicação.

Dessa forma podemos afirmar que os sujeitos dessa pesquisa souberam refletir e problematizar situações próprias produzindo audiovisuais significativos para eles e para sua comunidade. Como protagonistas do processo, ao retratar assuntos de interesse próprio ou da comunidade, difundindo informações interessantes ligadas à vida no campo, eles puderam se ver representando e sendo representados, criando possibilidades de novos olhares e entendimentos sobre a realidade captada no momento da elaboração do vídeo.

Todo esse processo é muito condizente com a ideia da educomunicação que defende o empoderamento social e democratização da tecnologia como oportunidade de luta contra um sistema de comunicação hegemonicamente hierarquizado em que para alguns se dá a possibilidade de falar e se expressar e a outros a possibilidade de ouvir, pois a educomunicação acredita que àquele que era limitado à escuta será concedida a possibilidade de produção (SOARES, 2012).

De forma criativa e autônoma os sujeitos do campo, por meio da produção audiovisual, puderam trabalhar com as NTIC, aprender com a prática e se empoderar no processo. Esse processo fica explícito na fala da estudante "K" de 25 anos;

"[...] a gente viu o tanto que a gente cresceu, o tanto que a gente pode, eu mesma, eu não fazia ideia que eu teria a capacidade de fazer o que eu fiz, entendeu ? Foi muita novidade e com o pouco tempo que a gente teve, a gente conseguiu enfrentar aquilo ali e quando você vê o resultado, nossa, é emocionante. Eu cheguei em casa mostrei pro meu marido e ele falou: Não, você não fez isso. Eu falei: Fiz! Acredita que eu fiz!"

Considerações finais

Pode-se afirmar que a possibilidade de ter vídeos que são produzidos pelos próprios professores em formação, a partir da realidade que estão inseridos comtempla, além do protagonismo, aspectos sócias, culturais, políticos e pedagógicos e incentivam a emancipação por meio do processo criativo que é estimulado pela necessidade de pensar e criar algo em seu contexto local e frente a sua realidade sociocultural e política.

Esse trabalho ao tratar das NTICs como possibilidade para o fortalecimento da autonomia dos sujeitos em processos formativos defende o protagonismo dos sujeitos e não da tecnologia, sendo esta última, o meio pelo qual as possibilidades de transformação acontecem, e não o fim que reduz todo o processo ao simples uso instrumentalizado do aparato. Defende a ideia de que a comunicação é um direito, assim como qualquer outro e que os donos desse debate e espaço são o povo. Considera que nenhuma sociedade pode ser efetivamente democrática se ela não democratizar seus espaços de comunicação e empoderar seus sujeitos para participarem e protagonizarem democraticamente desses espaços.

Trabalhar a produção do vídeo com estes estudantes, sujeitos do campo, como meio de comunicação contribuiu para a construção da cidadania e a valorização histórica e cultural da população ao passo que o vídeo funcionou como meio de expressão que permite a descoberta de artistas locais, e a discussão de temas importantes que podem ser divulgados de maneira criativa por meio de audiovisuais bem elaborados.

Enquanto processo educativo os vídeos propostos e produzidos neste trabalho podem ser caracterizados como vídeos didáticos, pois, segundo Paim (2006, p.22) "qualquer vídeo que sirva para ensinar alguma coisa a alguém pode ser denominado vídeo didático". Porém, se partirmos do pressuposto de que "o audiovisual educativo deve ir além do audiovisual didático" (PAIM, 2006, p.23), por ter que considerar valores ensinados e aprendidos promovendo a interação por meio da contextualização, os vídeos aqui produzidos podem ser, também, considerados vídeos educativos na medida em que produzir um vídeo sobre os conteúdos das disciplinas que trata de temas relacionados às atividades deles no campo permite a contextualização por meio de fatos do cotidiano de quem produz considerando além dos valores ensinados e aprendidos, valores peculiares da cultura de cada comunidade.

Incorporar a tecnologia à prática de ensino a partir da produção de materiais audiovisuais impediu a segregação entre o pensar, criar, elaborar os materiais e utiliza-los. Os estudantes puderam contemplar o processo em diferentes pontos de vista: o de produtor protagonista, aquele que fez o vídeo participando amplamente de todos os processos no período de formação, e o de produtor mediador, aquele que soube mediar o processo de produção com os alunos nas escolas da comunidade.

As novas descobertas por meio da utilização das tecnologias, bem como a ideia de desafios a serem superados e a tecnologia como direito de todos foram entendimentos demonstrados por eles nas reflexões sobre o processo vivenciado. A emancipação e a apropriação das práticas de produção foram perceptíveis em ações dos sujeitos durante o processo formativo e na construção dos vídeos. Dessa forma, e de acordo com os princípios da educomunicação e do vídeo participativo entende-se que o conhecimento gerado no processo de produção do vídeo pode ser mais rico do que o que é apresentado no vídeo final. Foi explícito o empoderamento social dos sujeitos participantes. A democratização da tecnologia é uma necessidade e deve ser uma conquista social abrangente, sem distinções.

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Recebido: 28 de Abril de 2017; Aceito: 12 de Dezembro de 2017

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