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Revista de Educação Pública

versión impresa ISSN 0104-5962versión On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.29  Cuiabá ene./dic 2020  Epub 01-Dic-2020

https://doi.org/10.29286/rep.v29ijan/dez.8374 

Artigos

Histórias de vida e ensino da matemática na educação básica catarinense entre 1970 e 1990

Life narratives and mathematics teaching in the basic education of Santa Catarina state between 1970 and 1990

Adriana  RICHIT1 
http://orcid.org/0000-0003-0778-8198

Lidiane Tania Ronsoni MAIER2 

1Doutoranda em Educação Matemática (UNESP, Rio Claro). Mestre em Educação (UFFS, Chapecó). Servidora pública na Universidade Federal da Fronteira Sul – SC.

2Doutora em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista (UNESP, Rio Claro, SP). Pós-doutora pela Universidade de Lisboa. Professora na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim, Rio Grande do Sul, Brasil. Docente dos Programas de Pós-graduação em Educação e Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, ambos da UFFS. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Matemática e Tecnologias (GEPEM@T).


Resumo

O Oeste Catarinense, região criada oficialmente em 1917, foi historicamente marcado pelo descaso do poder público com o desenvolvimento da educação. Com isso, o ensino de Matemática nessa região tem enfrentado muitos desafios, o que nos motivou a investigar os desafios enfrentados por professoras de matemática entre 1970 e 1990. Guiadas pela História Oral, entrevistamos professoras que atuavam em escolas públicas estaduais à época. As entrevistas foram gravadas, transcritas e textualizadas, constituindo o documento-base do estudo. Como resultados, evidenciamos desafios de formação, profissão e ensino da matemática, os quais embasam uma versão da história do ensino em Santa Catarina.

Palavras-chave História da educação matemática; História oral; Ensino de matemática

Abstract

The western region of Santa Catarina, officially created in 1917, historically has been marked by the neglect of public authorities with the development of education. As a result, teaching mathematics in this region has faced many challenges, which motivated us to investigate the challenges faced by mathematics teachers between 1970 and 1990. Guided by Oral History, we interviewed teachers who worked in public schools at the time. The interviews were recorded, transcribed, and textualized, constituting the basic-document of our study. As a result, we highlight challenges in mathematics education, profession, and teaching, which support a version of the teaching history in Santa Catarina.

Keywords Mathematics education history; Oral history; Mathematics teaching

  1. Introdução

Historicamente, os processos educacionais na educação básica, em diferentes regiões do país, têm refletido as disparidades socioeconômicas da sociedade, que muitas vezes são agravadas por questões geográficas e/ou políticas. Com isso, as práticas escolares contribuem para reforçar as diferenças sociais e econômicas entre os indivíduos que atende e, também, corroboram as condições de descaso, como é o caso da região do Oeste Catarinense.

Nesta perspectiva, a sociedade, caracterizada pela heterogeneidade cultural e pelas desigualdades socioeconômicas, reflete uma relação de exclusão e marginalização das pessoas que a compõe, de modo que os direitos dos cidadãos não são atribuídos de forma igualitária, a exemplo das condições de oferta de vagas e garantia de permanência na escola; o provimento de recursos materiais, pedagógicos e humanos às escolas como forma de assegurar e qualificar o ensino; a expansão e qualificação dos processos de formação de professores e; a exigência pela qualidade da educação como forma de desenvolvimento social e econômico.

Acrescentamos a estes desafios o fato da educação escolar ter sido instituída em nosso país como um privilégio aos filhos das famílias de condição social e econômica privilegiada. Desde o início da constituição das sociedades brasileiras até meados do século vinte, a educação escolar e universitária destinava-se a poucos: primeiro restringia-se à elite masculina do país e depois às mulheres das classes privilegiadas como forma de status. Apenas recentemente, sobretudo mediante a necessidade de ampliação da escolarização básica para atender aos filhos dos trabalhadores e promoção da formação de mão de obra básica em face ao desenvolvimento industrial vigente na primeira metade do século vinte, é que houve uma significativa expansão do sistema escolar no Brasil.

A problemática assinalada no parágrafo anterior, devido às especificidades geográficas e político-culturais das diversas regiões do Brasil, tem sido acrescida de alguns fatores agravantes, os quais têm colocado obstáculos à democratização da educação básica e superior até a primeira década do século atual. A exemplo disto é o que se verifica na região Oeste do Estado de Santa Catarina, que é marcada, além dos problemas históricos relativos ao desenvolvimento da educação básica, por um descaso com a educação superior, sobretudo no que diz respeito à formação de professores, devido à insuficiência de instituições públicas e a escassa oferta de cursos de licenciatura, em especial na área da matemática.

Por outro lado, no bojo das transformações sociais e políticas da segunda metade do século vinte, um movimento de discussões e estudos sobre o ensino de matemática no Brasil surgiu e se consolidou, a educação matemática, sobretudo a partir da criação da Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM), no início da década de 1980. E no percurso de consolidação e expansão da educação matemática, enquanto campo científico e profissional (FIORENTINI; LORENZATO, 2006), uma importante temática emergiu e ganhou espaço: a história do ensino da matemática no Brasil, que tem mobilizado pesquisas em diferentes regiões do Brasil. Observamos, entretanto, que ainda são escassos os trabalhos sobre o ensino de matemática em Santa Catarina e que não há trabalhos relacionados à região Oeste Catarinense. Mediante uma busca1 realizada na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD), da Capes, a partir do descritor “história do ensino de matemática em Santa Catarina”, foram identificados apenas os trabalhos de Silveira (2013), Arruda (2011) e Gaertner (2004), sendo que nenhum deles refere-se à região focada em nosso estudo.

Estes aspectos nos mobilizaram a investigar o ensino de matemática na referida região, focando os desafios educacionais enfrentados no ensino de matemática por professoras da educação básica, no espaço geográfico de abrangência da 4ª Gerência Regional de Educação (GERED) de Santa Catarina, no período compreendido entre 1970 e 1990. A escolha por este contexto prende-se ao aspecto de ser uma região historicamente negligenciada em termos do desenvolvimento econômico e educacional, principalmente no âmbito da educação superior. E o recorte temporal refere-se ao período histórico em que o Brasil foi atravessado por grandes mudanças políticas e econômicas, que impactaram fortemente na reorganização social e educacional. Para tanto, e tomando por base os pressupostos teóricos e metodológicos da história oral, realizamos entrevistas semiestruturadas, orientadas por fichas temáticas, com cinco professoras de matemática da educação básica, que atuavam em escolas públicas da região no período estabelecido em nosso recorte.

Ressaltamos, assim, a relevância deste estudo na constituição de uma história do ensino da matemática no Oeste de Santa Catarina, por tratar-se de uma região que tem enfrentado desafios de ordem política, social e cultural, além do isolamento cultural e científico em relação a outras regiões brasileiras. Além disso, este estudo é pioneiro na investigação sobre os desafios de formação e profissão enfrentados pelas professoras de matemática entre 1970 e 1990, tomando-se por contexto a respectiva região geográfica.

    2.. Revisão de literatura e perspectivas teóricas

A história da matemática, ao longo do século vinte, é marcada por diversos acontecimentos em nível nacional e internacional, tais como a criação dos grupos escolares, a visita de Albert Einstein ao Brasil, a fundação de revistas e associações específicas de matemática, o Movimento da Matemática Moderna, a criação de programas de pós-graduação de matemática e de educação matemática, entre outros.

A primeira metade do século vinte foi marcada, também, pela criação dos grupos escolares, que segundo Saviani (2011), eram entendidos como uma proposta de reunião de escolas isoladas agrupadas segundo a proximidade entre elas. Os grupos escolares inauguraram um novo modelo de organização escolar no início da República, que “reunia” as principais características da escola graduada, um modelo utilizado no final do século dezenove em diversos países da Europa e nos Estados Unidos como forma de possibilitar a implantação do ensino em classes coletivas (ensino mútuo) e consolidar a educação pública. Os grupos marcaram o início de uma nova forma/estrutura de ensino e trouxeram inovações ao ensino de matemática em Santa Catarina, que teve os primeiros grupos escolares instalados em 1911 (GOMES, 2012).

Outro marco importante neste período, refere-se à fundação, em 1929, da primeira revista brasileira totalmente dedicada à matemática, a Revista Brasileira de Mathematica Elementar, sob influência da Escola Nova em Educação, com representantes e agentes em vários estados brasileiros. Esse fato se caracteriza para D’Ambrosio como “um indicador do crescente interesse pela matemática e sua educação em todo o país” (D’AMBROSIO, 2011, p. 67). Esse periódico assumiu relevância em função da disseminação de ideias matemáticas vindas da Europa, já que era publicada na Bahia por estudantes da Escola Politécnica da Bahia, os quais traduziam artigos de revistas europeias de autores de diversas nacionalidades, de matemáticos da vanguarda científica e de matemáticos interessados em questões pedagógicas, históricas ou filosóficas sobre matemática elementar e superior (DIAS, 2002).

Outro evento relevante diz respeito ao movimento da Escola Nova, que surgiu na primeira metade do século vinte, centrado no objetivo de renovação do ensino, e influenciou fortemente a educação na Europa e na América, incluindo o Brasil. O movimento buscava expandir o conceito de educação como “elemento eficaz para a construção de uma sociedade democrática, que leva em consideração as diversidades, respeitando a individualidade do sujeito, aptos a refletir sobre a sociedade e capaz de inserir-se nessa sociedade” (SANTOS et al., 2006, p. 133).

Miorim (1998) defende que esse movimento introduziu dois aspectos no ensino da matemática: o “princípio da atividade” e o “princípio da introdução na escola de situações da vida real”, que tinham em comum a ênfase em situações matemáticas que envolviam os alunos com seu cotidiano. Acrescenta que estas mudanças modificaram a abordagem da matemática apenas no ensino primário, de modo que o ensino secundário continuou baseado na “memorização e na assimilação passiva dos conteúdos” (MIORIM, 1998, p. 90).

Outro episódio relevante no ensino no Brasil, refere-se à modificação do público de alunos atendidos pelas escolas públicas, devido à inserção, “na educação escolar, de alunos provenientes das camadas populares, que vinham reivindicando há muito tempo o direito à escolarização” (GOMES, 2012, p.22). Este fenômeno, característico da democratização da escola que passou a receber os filhos da classe trabalhadora, influenciou a educação à época, pois a expansão abrupta de matrículas na educação básica impôs a necessidade de se ampliar os quadros de professores e, consequentemente, levou à diminuição da exigência na seleção dos professores devido à inexistência de profissionais qualificados para o ensino.

Na busca por superar estes desafios, o governo brasileiro priorizou, entre 1956 e 1960, o desenvolvimento científico e tecnológico, fomentando a criação das universidades e organizando-as em cátedras, departamentos e faculdades, como ainda se vê nos modelos atuais (D’AMBROSIO, 2011).

Também a França realizava esforços nesse sentido, incentivando pesquisadores e matemáticos a disseminar um ideário renovador no ensino da matemática. A confluência desses fatos propiciou o início do Movimento da Matemática Moderna (MMM2), que pretendia “renovar o ensino pela introdução, no currículo da matemática, de aspectos matemáticos desenvolvidos mais modernamente” (GOMES, 2012, p. 23). Além da renovação no currículo, o MMM buscava incorporar ao ensino de matemática a relevância da precisão da linguagem dessa disciplina, uma nova abordagem dos conteúdos e o destaque para as propriedades em lugar da ênfase nas habilidades computacionais (GOMES, 2012).

De acordo com Souza e Garnica (2013), o MMM propunha que a matemática fosse ensinada logicamente, revelando o raciocínio subjacente ao método, favorecendo a compreensão dos alunos. Esta perspectiva de abordagem já era desenvolvida no ensino secundário, no ensino de geometria, que principiava com definições e axiomas, prosseguindo com as provas dedutivas e conclusões, denominadas teoremas. Assim, a principal mudança incidiria nas disciplinas de Aritmética, Álgebra e Trigonometria. Esses autores esclarecem que a matemática moderna era, inicialmente, um projeto para o ensino secundário, porém, especialistas defendiam que, pela “ausência de vícios”, sua aplicação deveria incidir também sobre o ensino primário.

Um fator importante para a posterior divulgação do MMM no Brasil foi o surgimento, também nessa época, com periodicidade bienal, a partir de 1957, “dos Colóquios Brasileiros de Matemática, patrocinados pelo CNPq, formando grupos de matemáticos promissores em todos os estados do Brasil” (D’AMBROSIO, 2011, p. 89). E foi a partir desses colóquios que o MMM teve grande repercussão no país por estimular a criação de grupos em diversos locais do país, com o intuito de preparar os professores para o magistério, em concordância com as novas diretrizes propostas.

De acordo com Souza e Garnica (2013, p. 379), membros dos grupos criados à época elaboravam e faziam circular massivamente volumes de livros didáticos, divulgando o MMM, pois, embora este Movimento não tenha sido assumido como “política pública para o ensino de matemática, suas diretrizes – principalmente a partir dos livros didáticos que ingressavam nas escolas – pouco a pouco começaram a ser incorporadas nas legislações educacionais e, consequentemente, a ingressar nas salas de aula”.

Entretanto, a forma como o MMM foi instituído e os resultados produzidos têm sofrido muitas críticas. Pinto (2005, p. 9-12) cita como aspectos negativos “a mudança brusca no ensino, sem o preparo do professor, a indústria do livro didático, a dificuldade dos professores na compreensão da própria teoria nova, a axiomatização com excessivas justificativas”. Outra crítica, explicitada em Souza e Garnica (2013), diz respeito ao fato de que o sofrimento causado pelo ensino de matemática permanecia inalterado, o que mudava eram apenas as causas.

Em meio às críticas ao Movimento da Matemática Moderna, ao longo da segunda metade do século vinte, e a necessidade de modificar o ensino de matemática em nível mundial, consolidou-se um movimento que levou ao surgimento da educação matemática. No Brasil, entretanto, a educação matemática foi consolidada apenas na década de 1980, mediante a criação da Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM). Este aspecto explica a escassez de registros sobre a história da educação matemática, e no seu interior a história do ensino da matemática, ao longo do referido século.

Além disso, a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) em 1961, e sua nova edição em 1971, garantiu, além do direito à educação, a fixação de um currículo mínimo para as disciplinas. Posterior a isso, algumas mudanças em relação às abordagens para o ensino de matemática foram introduzidas, a exemplo da resolução de problemas, proposta em 1980, quando o Conselho Nacional de Professores de Matemática dos Estados Unidos3 apresentou recomendações para o ensino de matemática, destacando a resolução de problemas como foco do ensino. Essas ideias influenciaram especialmente as reformas que ocorreram mundialmente, entre 1980 e 1995 (BRASIL, 1997).

Em 1997, o Ministério da Educação publicou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para a educação básica, que propõem, entre outras coisas, a formação para a cidadania mediante um ensino de matemática que oportunize aos alunos calcular, medir, raciocinar, argumentar, tratar informações estatisticamente. Esse documento aponta para a “criação de estratégias, comprovação, justificativa, argumentação, espírito crítico, criatividade, o trabalho coletivo, a iniciativa pessoal, a autonomia e o desenvolvimento da confiança na própria capacidade de conhecer e enfrentar desafios” (BRASIL, 1997, p. 26).

Outro importante ponto em relação à educação matemática no Brasil, na segunda metade do século vinte, refere-se à criação de programas de pós-graduação em matemática (1971) e a implantação de cursos de pós-graduação em educação matemática, em nível de mestrado e doutorado a partir de 1987, com a finalidade de formar pesquisadores para o desenvolvimento da pesquisa em matemática e em educação matemática (GOMES, 2012).

Portanto, no que diz respeito ao ensino de matemática no Brasil, os últimos 70 anos (1950-2020) foram marcados por importantes conquistas face às mudanças sociais, econômicas e culturais. A expansão do sistema escolar e a necessidade de redefinir as finalidades da escola, seu papel e modo de funcionamento, repercutiram na organização curricular, inclusive da matemática, que conquistou notável função: formar as novas gerações para o desenvolvimento do país.

É neste contexto que se consolidou a história do ensino da matemática no Brasil, cujas especificidades sociais, culturais e econômicas das diferentes regiões geográficas possibilitaram movimentos e composições históricas distintas, a exemplo da história do ensino da matemática da região oeste de Santa Catarina.

    3.. Metodologia

O documento-base do estudo4 foi constituído a partir da realização de entrevistas abertas e individuais, realizadas com cinco professoras de matemática que lecionavam em escolas da região oeste de Santa Catarina, entre as décadas de 1970 a 1990, que aqui referimos como depoentes. O depoente, segundo Thompson (1992, p. 44), “constitui-se como fonte da pesquisa, cujas narrativas compõem o material de base da História Oral”.

As cinco professoras depoentes foram definidas tomando-se os seguintes critérios, previamente estabelecidos: a) ter ministrado aula em um dos municípios de abrangência da 4.ª GERED de Santa Catarina; b) ser ou ter sido professora de matemática no período de 1970 a 1990; c) possuir maior tempo de serviço no magistério público estadual. A relação de nomes das professoras que atuavam em escolas da região no período citado foi concedida pela 4.ª GERED, assim como alguns contatos telefônicos e/ou endereço eletrônico. Também foram consultadas listas telefônicas para localizarmos professoras, quando os registros disponibilizados pela GERED estavam desatualizados ou não dispunham destas informações. Com isto, nos comunicamos com cinco professoras (Euri5, Glaci, Helena, Janice e Salete), as quais concordaram voluntariamente em colaborar com nosso estudo.

A etapa seguinte consistiu na comunicação efetiva com as depoentes, a qual se deu mediante o agendamento de um primeiro encontro, realizado via contato telefônico, para apresentação da proposta de investigação e esclarecimentos sobre as suas etapas e procedimentos da constituição das narrativas. Neste encontro solicitamos, para cada depoente, permissão para gravação em áudio da entrevista/narrativa, mediante assinatura de documento formal, previamente elaborado. Também definimos a data e o local das entrevistas, que por indicação das professoras, foram realizadas nas suas respectivas residências. Também asseguramos a possibilidade de supressão e alteração de trechos, os quais as depoentes pudessem considerar inconvenientes para serem divulgados.

Posterior a esta etapa, em data previamente estabelecida, procedemos à realização das entrevistas, que foram guiadas por fichas com indicação de temas centrais, que se constituíram em diretrizes para a narrativa das depoentes, permitindo que cada professora pudesse falar livremente sobre suas experiências. Os temas indicados em cada uma das fichas foram: identificação, formação acadêmica, história de vida, trajetória profissional, escolas de atuação, cultura da escola, dificuldades no ensino, suporte pedagógico. As fichas foram colocadas sobre uma mesa e as professoras escolhiam sobre qual temática desejavam falar no decorrer da entrevista. Ressaltamos, entretanto, que na fase de testagem do instrumento de constituição de dados do estudo utilizamos um roteiro de entrevista. Contudo, o roteiro mostrou-se inadequado para o objetivo da investigação, pois direcionava os depoimentos para aspectos muito pontuais, que acabavam por limitar as narrativas, e, por isto, foi substituído pela técnica das fichas temáticas.

Os depoimentos fornecidos pelas professoras foram gravados, transcritos, textualizados e, posteriormente, encaminhados à elas para revisão e validação, é o que Garnica (2003, p. 33) define como “Legitimação e Conferência”. Após as alterações solicitadas pelas professoras, os depoimentos textualizados foram incorporados à pesquisa mediante a concessão de uso. Relativamente a este aspecto, Garnica (2003) pontua que as fontes historiográficas produzidas pela história oral são lançadas pela oralidade e constituídas em momentos de entrevista. O entrevistado é quem decide como seus relatos serão tornados públicos, via concessão de direitos.

Por fim, procedemos à análise dos depoimentos de cada uma das professoras, mediante a qual nos dedicamos a evidenciar os desafios enfrentados por elas nos seus percursos formativos e profissionais, segundo a perspectiva da História Oral (HO). Ao sistematizar alguns princípios para a análise de dados em HO, Garnica (2003, p. 36) destaca “a necessidade de uma análise como forma de alinhavar as compreensões que foram possibilitadas pelos depoimentos”.

Ainda sobre a análise em História Oral, Garnica (2003, p. 37) cita alguns cuidados a serem tomados, dos quais destacamos: “Há que se ressaltar, que o mesmo estatuto de verdade absoluta que negávamos aos documentos escritos deve também ser negado aos depoimentos orais”. E adverte que “Não se trata de estabelecer verdades e preencher as lacunas da memória e da história, muito menos de julgar depoimentos e depoentes, trata-se de inventariar possibilidades que outras pesquisas poderão levar à frente” (GARNICA, 2003, p. 39). É necessário que o pesquisador leve a voz e as reivindicações do depoente para além da sua.

    4.. Os desafios evidenciados nas narrativas das professoras

A análise do material empírico do estudo evidenciou vários aspectos relativos à formação profissional e ao ensino de matemática em sala de aula das professoras depoentes que, em sua essência, caracterizam-se em desafios educacionais relativos aos percursos de formação profissional e da prática em sala de aula. Tais aspectos foram organizados em três temas principais: desafios da formação para a docência, desafios no ensino da matemática e desafios da profissão, os quais constituem as categorias de análise abordadas.

Nas três subseções seguintes, buscamos constituir alguns entendimentos a partir da convergência dos desafios manifestados, pautando-nos em excertos das falas das professoras depoentes, de forma a produzir as discussões das referidas categorias. Neste processo, apresentamos algumas reflexões sobre as circunstâncias mediante as quais esses desafios se constituíram, problematizamos as implicações desses desafios à constituição de uma versão da história do ensino da matemática no Oeste Catarinense e elaboramos algumas reflexões sobre o modo como estes aspectos influenciaram a história constituída.

3.1 Os desafios da formação para a docência

A formação de professores no Brasil, considerando-se os problemas e desafios de natureza distinta que permeiam historicamente esse processo, está distante da excelência almejada pelos pesquisadores e especialistas da área. A história da educação do Brasil, que inclui a história da formação de professores, evidencia que desde a criação dos primeiros cursos de licenciatura, os professores deveriam buscar formação às próprias custas (SAVIANI, 2011), evidenciando-se a falta de preocupação e de investimento do poder público para com a formação dos profissionais da educação. Acrescemos a isso, as dimensões geográficas do país, a escassez de instituições formadoras de professores e o imenso contingente de escolas criadas mediante a expansão da educação pública, que demandaram um grande número de profissionais do ensino. Em face disso, por décadas, os professores enfrentaram desafios, sobretudo em relação às possibilidades de formação profissional.

Além disso, consolidou-se, ao longo dos anos, um movimento de modificação do perfil dos aspirantes à docência no Brasil. Inicialmente a formação de professores, que era promovida pelas escolas normais, destinava-se exclusivamente para os homens, que buscavam manter privilégios e ter acesso a cargos públicos importantes, e, mais tarde, nas primeiras décadas do século vinte, destinava-se, também, a um seleto grupo de mulheres como forma de status. Contudo, a pressão da sociedade por escolaridade levou à expansão da escola pública, trazendo a demanda por mais professores, fenômeno este que abriu para as mulheres e jovens das classes populares a possibilidade de buscarem formação e ingressarem na docência (TANURI, 2000). Fenômeno similar verificou-se na oferta da educação básica.

Relativamente à formação de professores para o ensino da matemática nos anos finais do ensino fundamental e ensino médio, o fenômeno da predominância do público masculino perdurou até a década de 1970. E foi nesse movimento de transformação social, cultural e política do país que as depoentes vivenciaram sua formação, conforme revelaram em entrevista, e apontamos algumas temáticas a seguir6.

As narrativas das professoras evidenciam, primeiramente, que a formação de professores de matemática na região do Oeste Catarinense até 1990 exigia dos aspirantes a carreira docente muitos sacrifícios, sobretudo porque precisavam deslocar-se para os Estados vizinhos em busca de cursos de licenciatura. Esses desafios ficam evidentes nas narrativas das cinco depoentes, as quais realizaram seus percursos formativos em universidades no Estado do Paraná e sob condições muito precárias, por exemplo, frequentando cursos em regime de alternância7 e responsabilizando-se por criar as condições pedagógicas e organizativas para afastarem-se das atividades profissionais nos períodos da formação.

Além da necessidade de percorrer grandes distâncias em busca de formação profissional, as professoras citaram o isolamento geográfico da região Oeste em relação às universidades públicas da região Sul do Brasil. Sobre isto destacamos que, à época, havia uma única universidade pública federal no Estado de Santa Catarina, sediada na capital Florianópolis. As demais universidades federais estavam sediadas nos Estados vizinhos Paraná (em Curitiba) e Rio Grande do Sul (nas cidades de Porto Alegre, Santa Maria, Pelotas e Rio Grande). Além disso, eram escassas as instituições privadas que ofertavam cursos, entre eles licenciatura em matemática, e eram distantes da região Oeste de Santa Catarina.

Além disso, as professoras destacam a carência de cursos de formação específica na área da matemática (os cursos ofertados assumiam caráter multidisciplinar, promovendo, conjuntamente, a formação de professores para as disciplinas do campo das ciências exatas (matemática) e das ciências naturais – química, física, ciências, biologia). Entre as décadas de 1960 e 1990, a formação de professores de matemática era promovida em Cursos de Licenciatura Curta em Ciências com Habilitações em Matemática, Física, Química e Biologia, mediante as diretrizes estabelecidas pela LDB 5.692, de 1971. Este aspecto comprometia a formação específica na área de matemática, de modo que muitas vezes o conhecimento desenvolvido na formação inicial revelava-se insuficiente para a realização do ensino em sala de aula. Assim, o modelo multidisciplinar sofreu muitas críticas ao longo da década de 1980, que levaram a implantação de cursos de Licenciaturas Plena em Matemática a partir da promulgação da LDB 9394, de 1996.

As professoras acrescentam, também, a insuficiência de recursos financeiros que lhes permitissem permanecer nesses cursos e custear sua estadia nas cidades que sediavam tais instituições. Além disso, assinalam a falta de incentivos pedagógicos e de recursos humanos que cumprissem as atividades desses profissionais enquanto estivessem afastados para a realização dos cursos de formação, bem como a falta de investimentos do poder público estadual na formação continuada dos professores. Este aspecto, de acordo com as professoras, levava-as a uma sobrecarga de trabalho nas escolas, de modo que as obrigações profissionais, incluindo-se o cumprimento da carga horária letiva, fossem concluídas previamente ao período em que se afastariam para estudar.

Ademais, até 1990 havia em Santa Catarina apenas quatro instituições de ensino superior que ofertavam o curso de licenciatura em matemática, situadas em Joinville, Blumenau, Florianópolis e Lages. Dessas, a instituição formadora mais próxima à região Oeste, a Universidade do Planalto Catarinense (UNIPLAC), em Lages, distava trezentos e trinta quilômetros da região de Chapecó. Assim, devido às condições de isolamento geográfico da região e à falta de transporte coletivo entre as cidades, o acesso a essas instituições era muito limitado. As alternativas encontradas reduziam-se às instituições formadoras do Estado vizinho Paraná, situadas nas cidades de Palmas, Corbélia, Ponta Grossa e Guarapuava, para as quais havia maior facilidade de acesso.

Os desafios decorrentes da insuficiência e distanciamento das instituições formadoras e/ou da falta de oferta de cursos de formação de professores de matemática, no Estado de Santa Catarina, foram minimizados somente depois de 2005, com a criação de vários cursos de licenciatura em matemática na região, a exemplo do curso ofertado pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), que veio ampliar significativamente a oferta de cursos de formação de professores, não apenas na área da matemática.

Complementarmente, os depoimentos das professoras ressaltam aspectos relacionados ao currículo dos cursos de formação para a docência que elas frequentaram, com destaque para as deficiências da licenciatura, ao programa curricular da licenciatura que privilegiava a abordagem da matemática de uma maneira muito formal, a insuficiência dos conhecimentos desenvolvidos na universidade para a prática profissional e, ainda, a necessidade de receberem formação continuada como forma de sanar algumas das suas dificuldades. Entretanto, a busca por alternativas para melhorar a formação para a docência, conforme sinalizam os depoimentos das professoras, colaborou para o enfrentamento dos desafios cotidianos relativos à matemática e à profissão, com destaque para a busca por formação continuada e o trabalho em grupos nas escolas, que era uma tendência nacional à época.

Em síntese, os depoimentos evidenciam as dificuldades e os desafios enfrentados pelas professoras de matemática entre as décadas de 1970 e 1990. Desde então, vimos modificar muitas coisas, como o melhoramento das oportunidades de acesso, e, com maior concentração de instituições formadoras na região Oeste, ampliando as possibilidades de buscar formação nesta área, ao mesmo tempo em que tem contribuído para a qualificação dos processos formativos e, portanto, a qualificação dos processos de ensino da matemática escolar.

As reflexões apresentadas evidenciam que, para além dos desafios evidenciados, as possibilidades de superação dos desafios apontados por cada depoente, sobretudo na busca de conhecimentos para o desenvolvimento da docência, para a concretização do ensino em sala de aula e para o enfrentamento das alternâncias da profissão. Para as professoras, tais possibilidades incidem no fortalecimento dos cursos de licenciatura existentes, valorização da formação continuada e ampliação dos cursos de pós-graduação, em nível de mestrado e doutorado, de forma a contemplar também os professores da rede pública de educação básica.

3.2 Os desafios no ensino da matemática

O ensino da matemática no Brasil, histórica e culturalmente, tem sido marcado por alguns aspectos que, ao mesmo tempo, evidenciam a importância da matemática na educação escolar e na formação profissional em algumas áreas (engenharias, por exemplo), e por outro se revelou uma área pouco atrativa por referir-se a um campo do conhecimento caracterizado pela dureza das suas estruturas e processos. E embora nos primórdios do processo histórico de colonização e desenvolvimento do Brasil, entre os séculos dezessete e dezoito, os jesuítas atribuíam pouca visibilidade aos estudos matemáticos, sem conseguir desenvolver uma estrutura para a matemática escolar (VALENTE, 1999), ao longo da história o ensino da matemática na escola foi ganhando importância e consistência, de modo que a matemática acabou por tornar-se uma das disciplinas mais enfatizadas nos currículos escolares.

A história do ensino de matemática, portanto, tem sido permeada por constantes questionamentos sobre os problemas inerentes aos processos de ensino e de aprendizagem, pela introdução de mudanças que decorrem dos movimentos de professores e especialistas, assim como por desafios que emergem em face das diversidades sociais, culturais e históricas.

Nosso estudo mostrou que estes aspectos se verificaram no contexto em que atuavam as depoentes. Os desafios relacionados ao ensino de matemática também provocam um sentimento de estranhamento, receio e preocupação sobre o ensino que realizavam.

Nesta direção, as professoras destacam estes aspectos, assim como evidenciam as condições sob as quais o ensino de matemática tem sido ofertado na educação básica catarinense ao longo das últimas décadas.

Relativamente ao ensino de matemática no Oeste Catarinense entre os anos de 1970 e 1990, as professoras revelam que enfrentaram diversos desafios, especialmente no que diz respeito à escassez de material e à falta de suporte pedagógico, haja vista as condições nas quais o ensino era ofertado na época e, especialmente, devido às condições estruturais do sistema de ensino à altura. Em razão das condições econômicas da região, que impactavam na organização e funcionamento do ensino escolar, havia poucos funcionários nas unidades escolares para atender as funções mobilizadas nas escolas, assim como havia poucos recursos didático-pedagógicos para auxiliar o professor na concretização do ensino em sala de aula. Por vezes esta escassez se refletia no desenvolvimento das atividades mais triviais de ensino.

Outros desafios citados pelas depoentes referem-se à limitação de tempo para planejamento das aulas, o despreparo para o atendimento especializado (alunos com deficiência), à incorporação de mudanças pedagógicas a cada nova gestão escolar, à falta de equipe especializada para tratar dos problemas sociais dos alunos e à falta de professores. Alguns desses desafios emergiram em face das transformações econômicas, sociais e culturais pelas quais o país atravessava na segunda metade do século vinte (GOMES, 2012), em que houve aumento no número de matrículas na educação básica, impactando na necessidade de profissionais para atender o crescente número de alunos que ingressavam na escola pública.

Relativamente aos desafios mencionados no quadro anterior, nota-se que alguns vêm sendo superados em nível nacional mediante a criação de políticas públicas específicas, tais como a adequação dos programas de formação inicial por meio da incorporação de componentes curriculares voltados à educação especial, a contratação de professores com formação em educação especial para atendimento aos alunos com deficiência, definição de diretrizes sobre o tema da educação especial, bem como a contratação de equipe especializada em coordenação pedagógica e supervisão escolar, destinada ao atendimento pedagógico de docentes e questões relacionadas às demandas sociais dos alunos.

Quanto aos desafios relativos às condições de trabalho, os depoimentos evidenciam um movimento de reorganização e estruturação dos espaços escolares mediante a implementação de laboratórios de ensino, laboratórios de informática, acesso a rede mundial de computadores, distribuição de recursos e materiais didáticos diversos, dentre eles a distribuição em larga escala de livros didáticos e, principalmente, a regularização de outras funções dentro do espaço escolar, as quais, embora não estejam, muitas vezes, diretamente relacionadas ao ensino em sala de aula, são fundamentais para o funcionamento das unidades escolares. E isto tem se constituído em avanço no contexto social-geográfico do nosso estudo.

Além disso, alguns dos desafios evidenciados referem-se principalmente à prática docente em sala de aula. Destacam-se aí a busca por sanar as dificuldades de aprendizado dos alunos, maneiras de lidar com o fracasso escolar associado à matemática e, ainda, a busca por superar a cultura da algoritmização no ensino da matemática. No caso das professoras participantes da pesquisa, este desafio interferia diretamente no desenvolvimento do ensino em sala de aula, porque solicitava delas práticas e conhecimentos específicos para enfrentar tais problemas que não eram viáveis devido ao modo como as escolas eram organizadas e funcionavam. Além disso, não dispunham de recursos e apoio pedagógico para tal.

Havia, ainda, conforme os depoimentos das professoras, desafios que interferiam nos processos de ensino e, especialmente, da aprendizagem dos alunos, tais como a indisciplina e o crescente desinteresse do público discente. Estes desafios demandavam das redes de ensino profissionais especializados, o que não era possível à época em que estas professoras lecionavam nas referidas escolas. Este aspecto associa-se ao processo de desvalorização da profissão docente, que se verifica em nível nacional a partir da segunda metade do século vinte, assim como a crescente escassez de profissionais em algumas áreas (VALENTE, 1999), e a falta de estruturação da carreira docente (GATTI, 2014).

Além destes aspectos destacamos a distância da região do Oeste Catarinense em relação às principais instituições e centros acadêmicos do país, o que levava a um isolamento dos professores no que se refere aos debates e eventos promovidos, nacional e internacionalmente, sobre o ensino de matemática, seus desafios, limites e mudanças necessárias. Diante da impossibilidade de participarem desses eventos, de acordo com as depoentes, alternativamente, a discussão sobre o ensino da matemática e a partilha de experiências profissionais entre pares locais constituía-se em estratégia de superação dos desafios. Nesse sentido, as narrativas apontam a superação de alguns desses desafios quando mencionam a criação de grupos de estudos organizados pelos docentes de matemática da região do Oeste Catarinense, que oportunizou aos participantes encontrar estratégias para lidar com o fracasso dos alunos na matemática e a falta de recursos pedagógicos.

Destaca-se, ainda, o fato de que os professores foram solicitados a realizar uma abordagem de sala de aula para a qual não receberam formação. Sobre isso, Souza e Garnica (2013) criticam algumas das mudanças no ensino de matemática implementadas no período pós-movimento Matemática Moderna, as quais trouxeram em seu bojo “a imposição do rigor, de um tratamento extremamente formal e desnecessário a linguagem, com problemas desvinculados do mundo real” (SOUZA; GARNICA, 2013, p. 383). Sobre isso, D’Ambrosio (2011) pontua a preocupação com as discussões acerca do ensino tecnicista e excessivamente conteudista, evidenciando a dicotomia entre a forma e o conteúdo. No contexto de atuação das professoras estes desafios eram superados por iniciativas individuais e de pequenos grupos, que de maneira colaborativa e voluntária, buscavam superá-los, melhorando o ensino que promoviam nas instituições escolares em que atuavam.

3.3 Os desafios da profissão

A profissão docente tem se caracterizado, ao longo da história do ensino, por vários dilemas, como a autonomia dos professores e o docente como professor reflexivo (CONTRERAS, 2002), os saberes docentes e a formação profissional (TARDIF, 2014), o trabalho docente como interação humana (TARDIF; LESSARD, 2005), entre outros.

Assim como os desafios no ensino da matemática e de formação, os desafios da profissão têm tomado espaço crescente nas discussões nacionais sobre a profissão docente e, sobretudo, nos depoimentos das cinco professoras. Estas discussões têm evidenciado diferentes problemáticas relativas à precariedade da profissão docente, tais como a falta de infraestrutura e comprometimento da legislação normativa educacional (NÓVOA, 2009), levando a desmotivação profissional, o desinteresse pela docência e, cada vez mais, a insuficiência de profissionais interessados em exercê-la. Neste sentido, as narrativas evidenciam a preocupação relacionada ao futuro da profissão, uma vez que os avanços alcançados ainda são insuficientes para assegurar um cenário estável.

Os desafios citados pelas professoras depoentes estão relacionados, predominantemente, à profissão, a qual atravessava um processo de precarização devido ao parco e inadequado subsidiamento do poder público estadual, que impactava na infraestrutura ofertada e insuficiência de escolas e profissionais. Sobre isto, as professoras destacam que à época [1970-1990], embora o governo do Estado oferecesse benefícios àquelas pessoas que se disponibilizavam a deslocar-se da capital Florianópolis para o interior para lecionar, esta medida era insuficiente para atrair profissionais a estas realidades, assim como para motiva-los a permanecer nas escolas situadas nas localidades interioranas.

E é nesse sentido que os depoimentos descrevem os desafios enfrentados pela maioria dos professores, ministrando aulas de matemática entre as décadas de 1970 e 1990 na rede pública de ensino público do Estado de Santa Catarina. Primeiramente citam o descaso do poder público estadual com a infraestrutura das escolas, a exemplo do depoimento da professora Janice, que descreve as condições em que se encontrava a escola na qual foi ministrar aula em 1974, no interior do município de Concórdia. As condições eram precárias e se multiplicavam por todo o Oeste do Estado.

Ainda em relação à falta de infraestrutura nas escolas, os depoimentos destacam o isolamento das escolas em termos de distância às cidades e as péssimas condições de acesso, bem como a forma de organização e o funcionamento da escola. As professoras relatam que além de ensinar, elas desempenhavam diversas outras atividades não relacionadas à docência, tais como a manutenção da limpeza das dependências da escola, organização e cuidado da horta e jardim escolar, organização e funcionamento da biblioteca e, também, a elaboração das refeições (merenda) dos alunos. Somado a isso, lecionavam em classes multisseriadas, nas quais, devido aos outros desafios citados, tornava-se difícil promover um trabalho adequado às necessidades de aprendizagem de grupos etários tão diversificados. Para além destes aspectos, assinalam a excessiva carga horária assumida pelo professor em função das necessidades financeiras, assim como a falta de apoio pedagógico nas escolas.

Ainda nesse sentido, reiteramos que a região Oeste de Santa Catarina enfrentou, em sua recente trajetória de emancipação política-administrativa, desafios diversos, desde o tardio desenvolvimento econômico em virtude da falta de acesso de bens e serviços, os limites de locomoção, pela distância até a capital, até o moroso desenvolvimento educacional.

Outros dois desafios apontados referem-se ao sistema de acompanhamento pedagógico do ensino em sala de aula instituído pelos gestores educacionais. Neste sentido, as depoentes relatam que à época, a legislação estadual previa que o diretor da escola assistisse o maior número possível de aulas ministradas pelo professor como forma de controle e verificação da aplicação dos métodos e conteúdos vigentes à época. Citam, ainda, a dificuldade de adaptação às mudanças impostas a cada nova gestão estadual, uma vez que a cada troca administrativa mudavam-se as estruturas e equipes gestoras educacionais, comprometendo a qualidade do ensino realizado devido à descontinuidade dos projetos.

Contudo, de acordo com as professoras, alguns dos desafios destacados têm sido superados por influência das novas diretrizes educacionais. Porém, alguns desafios históricos ainda perduram, tais como a excessiva carga horária docente, em geral agravada pelos baixos salários, que levam a sobrecarga com aulas para complementação salarial. Isso sinaliza que a desvalorização docente também se legitima pela baixa remuneração da profissão.

Para as professoras depoentes, os desafios relativos à profissão, além de tornar o cotidiano do professor complicado e desgastante, têm contribuído para agravar o processo de desvalorização da profissão e, sobretudo, para torná-la menos atrativa às novas gerações. Este aspecto, por sua vez, acaba por acentuar a crise educacional no país, especialmente no âmbito da formação de professores.

Por fim, relativamente aos desafios da profissão, e tendo em vista que Santa Catarina é um dos Estados do Brasil que ainda não aderiu ao piso8 salarial nacional para professores, constata-se que os desafios destacados pelas professoras tendem a agravar-se e transformar-se em novos desafios, complexificando as possibilidades de os superarmos.

    5.. Considerações finais

A profissão docente, embora desprivilegiada no cenário político-social nacional, ainda assume importante papel para o desenvolvimento da sociedade. E em meio a este cenário controverso, a história da educação brasileira evidencia que os professores têm se deparado com desafios de diferentes naturezas, que se iniciam ainda no processo de formação docente e estendem-se por toda a trajetória profissional, interferindo diretamente no ensino realizado em sala de aula. No caso de Santa Catarina, especificamente, nosso estudo aponta para o descaso do Estado para com a infraestrutura das escolas; normatizações pouco adequadas à promoção da qualidade da educação; excessiva carga horária de trabalho dos professores; desvalorização salarial; insuficiência de profissionais do ensino; plano de carreira profissional pouco atrativo; inexistência de um projeto de incentivo e suporte para afastamento dos docentes para qualificação em nível de pós-graduação stricto sensu, entre outros. E estes aspectos têm marcado os processos educativos promovidos neste contexto e, portanto, os sistemas de ensino instituídos. Esses são alguns dos desafios que os professores enfrentam na rede estadual de ensino, evidenciando que há vários aspectos que precisam ser melhorados.

Nessa perspectiva, o estudo realizado evidencia que as inconstâncias no contexto nacional – desde a esfera política, perpassando o sistema econômico até o cenário educacional – produziram implicações em todas as dimensões das atividades das pessoas, conforme assinalam os depoimentos das professoras entrevistadas. E essas implicações, de uma maneira geral, acabam por refletir-se na educação, constituindo-se, muitas vezes, em novos desafios. E a superação desses desafios tem contribuído para a modificação do cenário educacional, que no caso específico da região oeste de Santa Catarina, no período analisado, é caracterizada por importantes avanços em termos da oferta de formação inicial de professores e estruturação (física, pedagógica e administrativa) das escolas públicas de educação básica.

Outro aspecto relativo ao Oeste do Estado de Santa Catarina, diz respeito ao fato de que nos primeiros cinquenta anos da sua criação a região foi marcada por um cenário de pouco desenvolvimento, o que se modificou apenas a partir da década de 1990. À época, o ensino no Oeste do Estado, especialmente na área da matemática, contava com professoras geralmente sem formação concluída, por falta de profissionais com formação para a docência. Nesse sentido, destacamos que as aspirantes a professoras de matemática da região Oeste enfrentaram grandes desafios em busca da formação inicial e continuada, a começar pelo deslocamento para Estados vizinhos para buscar formação em nível superior, melhorando as suas condições sociais e econômicas e, especialmente, o ensino realizado.

Citamos ainda o histórico descaso com o Oeste catarinense com relação ao ensino público em todos os níveis, especialmente a formação de professores. Nesse sentido, alguns avanços recentes têm sido alcançados mediante a criação de vários cursos de licenciatura e de dois cursos de Mestrado Acadêmico em Educação. Por outro lado, considerando que esta região não possui nenhum curso de doutorado na área da Educação, e considerando também o quão tardio está sendo sua tentativa de desenvolvimento educacional, torna-se evidente que há outros desafios, de outras naturezas, em outras instâncias, que têm comprometido o desenvolvimento educacional da região e que precisam ser investigados.

Em relação ao ensino de matemática, muitos dos desafios enfrentados entre as décadas de 1970 e 1990, foram superados, porém, alguns modificaram-se e outros foram surgindo, comprometendo as possibilidades de desenvolvimento de um ensino de qualidade. Esperamos que os desafios enfrentados pelos professores hoje sejam, no futuro, históricos!

Além disso, olhando para o processo de desenvolvimento da educação matemática no Brasil, cujo percurso histórico é marcado por legados importantes, principalmente no último século, verifica-se que a região Oeste de Santa Catarina tem ficado à margem deste processo, o que se confirma pela não existência de um programa de pós-graduação específico da área em todo o Estado. Embora algumas conquistas recentes tenham sido alcançadas, como a criação de grupos de pesquisa em educação matemática e o desenvolvimento de pesquisas nesta área, ainda há muito para se fazer até a sua consolidação na referida região.

Finalizando, por tratar-se de uma profissão que assume uma importante função social – a educação escolar possibilita mudanças na concepção de mundo e de atuação de cada pessoa mediante os desafios que se colocam na sociedade –, mudanças fazem-se necessárias como forma de assegurar melhores condições de trabalho ao professor e a valorização da carreira docente. Faz-se necessária uma agenda política que contemple a extensa pauta educacional, priorizando políticas públicas comprometidas com a qualidade da educação.

Referencias

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1Busca realizada em maio de 2018. Consideramos que atualmente a mesma busca pode retornar novos trabalhos sobre esta temática, entretanto todos são posteriores ao nosso estudo.

2Movimento internacional, predominante na Europa e Estados Unidos, que surgiu na década de 1960 em face as preocupações com o ensino da matemática. Trouxe mudanças que enfatizavam a formalidade e o rigor dos fundamentos da teoria dos conjuntos e da álgebra para o ensino e a aprendizagem da matemática.

3National Council of Teachers of Mathematics (NCTM).

4Projeto aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Fronteira Sul, em novembro de 2015 sob CAAE: 50227415.4.0000.5564.

5Usamos os nomes verdadeiros das professoras, com prévia autorização expressa em carta de cessão de direito, uma vez que a identidade de cada uma representa a coletividade do grupo. Ademais, um dos objetivos do estudo é a constituição de fontes históricas sobre o ensino de matemática na região do Oeste catarinense, o que requer o uso dos nomes das depoentes.

6As entrevistas e os excertos destacados podem ser consultados na dissertação: História do ensino da matemática na educação básica catarinense (1970-1990): desafios educacionais enfrentados na formação e atuação docente, disponível no Repositório Digital da Universidade Federal da Fronteira Sul: https://rd.uffs.edu.br/browse?type=author&value=Maier%2C+Lidiane+Tania+Ronsoni.

7Cursos de licenciatura realizados de forma não regular, de modo que as atividades eram realizadas em regime concentrado em dois períodos letivos distintos, geralmente nos meses de janeiro-fevereiro e em julho, com aulas nos três turnos. Este regime de alternância permitia que os professores frequentassem cursos de formação sem interferência nas atividades profissionais nas escolas.

86 A Lei 11.738, de julho de 2008, trata da instituição do piso salarial profissional nacional para profissionais do magistério público da Educação Básica. Dentre outras providências esta lei estipula que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não poderão fixar o vencimento inicial das Carreiras do magistério público da educação básica, para a jornada de 40 (quarenta) horas semanais, abaixo do piso salarial nacional exigido.

Recebido: 15 de Maio de 2019; Aceito: 25 de Agosto de 2019

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