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Revista de Educação Pública

Print version ISSN 0104-5962On-line version ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.30  Cuiabá Jan./Dec 2021  Epub Dec 15, 2021

https://doi.org/10.29286/rep.v30ijan/dez.11244 

Artigos

Repertórios profissionais da docência no contexto do ensino de Ciências e Biologia

Professional teaching repertoires in the context of science and biology teaching

Endrigo Antunes MARTINS1 
http://orcid.org/0000-0003-4676-9352

Jair  LOPES JUNIOR2 
http://orcid.org/0000-0002-8918-3805

1Doutor em Educação para Ciência pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP/Bauru-SP. Professor de Educação Básica pela Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso.

2Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo - USP. Docente no Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem e Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, ambos na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP/Bauru-SP.


Resumo

Este artigo apresenta uma síntese de doutorado em Ensino de Ciências que teve como objetivo investigar as relações entre as interações dialógicas professor-pesquisador e professor-aluno com dimensões estimadas e relevantes de “Repertórios Profissionais da Docência. Os dados empíricos foram produzidos a partir de sessões de autoscopia, por meio de seleção de episódios gravados, nas aulas de Biologia de uma professora da rede pública estadual de São Paulo. Os resultados demostraram que, após reflexões sobre suas próprias práticas, a professora de Biologia demonstrou indícios de uma possível mudança de práticas pedagógicas que inicialmente caracterizavam serem pautadas em uma educação bancária.

Palavras-chave Educação bancária; Habilidades e competências; Ensino de Ciências; Autoscopia

Abstract

This article presents a synthesis of a doctorate in Science Teaching that aimed to investigate the relationship between teacher-researcher and teacher-student dialogic interactions with estimated and relevant dimensions of “Professional Teaching Repertoires”. Empirical data were produced from autoscopy sessions, through the selection of recorded episodes, in the Biology classes of a public school teacher from São Paulo network. The results showed that, after reflections on her own practices, the Biology teacher showed signs of a possible change in pedagogical practices that initially characterized being based on banking education.

Keywords Banking education; Skills and competences; Science teaching; Autoscopy

Introdução

Este artigo apresenta uma síntese dos resultados da análise dos dados de uma tese de doutorado em Ensino de Ciências (MARTINS, 2019). Trata-se de um estudo de caso inserido no contexto do sistema público de ensino do estado de São Paulo que, dentre outros aspectos, apresenta a existência de um currículo “organizado” em habilidades a serem desenvolvidas que estão descritas em um documento denominado Matriz de Avaliação Processual (SÃO PAULO, 2016). Na referida matriz estão explicitados os conteúdos, as competências e as habilidades que devem ser desenvolvidas ao longo do percurso escolar, organizados em quatro bimestres distintos. Para subsidiar ainda mais os professores, o estado de São Paulo conta com a utilização de um material de apoio denominado Caderno do Aluno e Caderno do Professor (SÃO PAULO, 2014). Os referidos cadernos são compostos por sequências didáticas denominas de “Situação de Aprendizagem”, organizadas a partir das habilidades e competências

Partindo do princípio de que as habilidades são compostas por um verbo e, portanto, por uma ação a ser realizada em um determinado contexto, parte-se do princípio de que essas ações deverão ser executadas pelos alunos nos contextos de aula para que possam ser observados de alguma maneira pelos professores e, a partir disso, ocorrer algum tipo de feedback entre professores e alunos sobre os seus desempenhos nas respectivas habilidades das quais tenham sido avaliados, com a necessária mediação para o alcance delas.

Tais ações em contextos por parte dos alunos seriam uma prova escrita? Uma avaliação de múltiplas escolhas? Apresentações orais? Interações dialógicas? Parte-se da premissa de que poderiam ser todas essas alternativas ou quaisquer outras, ou seja, não haveria uma resposta única e uma “fórmula mágica” para se avaliar desempenhos dos alunos sobre determinadas habilidades de um dado currículo. No entanto, admite-se que tais ações referentes aos verbos das habilidades deverão ser realizadas pelos alunos em determinados contextos de aula. Diante disso, a presente pesquisa apoia-se no conceito de “Repertórios Profissionais da Docência”, compreendido como sendo o conjunto das práticas pedagógicas que os professores realizam em sala de aula buscando gerar situações nas quais os alunos venham a manifestar por meio de determinadas ações o alcance de objetivos de aprendizagem, ou seja, o desenvolvimento de habilidades (BOTOMÉ, 1997, 2011; LOPES JUNIOR, 2016; MARTINS, 2019).

Nesse sentido, o objetivo geral da presente tese consistiu em investigar as relações entre as interações dialógicas professor-pesquisador e professor-aluno com dimensões estimadas e relevantes de “Repertórios Profissionais da Docência” no ensino de conteúdos curriculares dos componentes de Ciências e de Biologia. Dentre os objetivos específicos, buscou-se investigar quais são as práticas pedagógicas dos professores que possam vir a viabilizar ações por parte dos alunos em correspondência com as habilidades do currículo bem como investigar quais são as práticas avaliativas que os professores utilizam para observar essas ações e avaliar o desempenho dos alunos. Em linhas gerais, a questão central desta pesquisa buscou responder o seguinte questionamento:

Sob quais condições de mediação do trabalho do professor torna-se possível construir “Repertórios Profissionais da Docência” no ensino de conteúdos curriculares dos componentes de Ciências e de Biologia?

Para subsidiar a construção de possíveis evidências para responder à questão central supracitada, parte-se da hipótese inicial de que a existência de interações dialógicas entre professor-pesquisador e entre professor-alunos constituem-se como condições favorecedoras ao desenvolvimento ou ao aprimoramento de práticas pedagógicas (repertórios) que permitem evidenciar o alcance de objetivos de aprendizagens (desenvolvimento de habilidades) por parte dos alunos.

Perspectivas dialógicas de ensino em uma perspectiva “freiriana”

Tendo como premissa refletir sobre algumas práticas pedagógicas pautadas em pressupostos dialógicos, a tese de Martins (2019) trouxe reflexões acerca do ensino dialógico proposto por Paulo Freire (1987) e sobre algumas perspectivas de ensino baseadas na Teoria do Agir Comunicativo de Jürgen Habermas (2002, 2016a, 2016b) e nos trabalhos de Longui (2008), que buscou “analisar as características da ação educativa na perspectiva do agir orientando pelo entendimento” (LONGUI, 2008). Objetivando apresentar parte dos dados analisados, o presente artigo se pautará somente nas análises que envolveram as perspectivas dialógicas “freirianas”, deixando as análises “habermasianas” para futuras publicações.

Na perspectiva de iniciar uma reflexão acerca do “diálogo freiriano”, faz-se necessário conceituar um tipo de educação denominado por Freire (1987) de “educação bancária”. Nesse tipo de prática, o conhecimento é transmitido dos professores aos alunos de maneira vertical, ou seja, de alguém que detém todo o conhecimento (educador) para alguém que não possui nenhum conhecimento (educando), cabendo a esse último ser apenas um mero expectador, ou melhor dizendo, um receptor de informações.

Nesse sentido, o saber dentro de uma perspectiva de educação bancária passa a ser uma “doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber” (FREIRE, 1987, p. 58). Com isso, os alunos adquirem características relacionadas a memorizar e repetir os “saberes” de forma passiva, transformando-se em reprodutores de um saber descontextualizado e alienado (CASTRO, 2014). Ao se estabelecer essas relações verticais entre professor e aluno, ou entre educador e educando nas palavras de Freire, o professor passa a ser considerado o sujeito que deverá conduzir seus alunos a uma “memorização mecânica do conteúdo narrado”. Tal narração transforma os alunos em “vasilhas” ou “recipientes a serem enchidos” pelo professor, sendo que quanto mais capaz for de “encher” os recipientes com seus “depósitos”, melhores professores serão. E quanto mais dóceis forem ao se deixarem encher, melhores alunos serão (FREIRE, 1987, p. 58).

Por outro lado, Freire aponta para uma prática educativa contrária à educação bancária, em que alunos e professores passam a estabelecer uma relação horizontal de diálogo e de aprendizagem. Nesta nova proposta de educação, denominada por Freire (1987) como educação libertadora ou também de educação problematizadora, são propostas mudanças na relação entre educador e educando. Neste sentido, Freire “defende uma relação que não oprime, mas que valoriza a contribuição de todos e todas e busca a libertação das pessoas das situações que as oprimem” (GALLI, 2015, p. 52).

Nessa nova lógica, o conhecimento não é mais exclusivo do professor, pois os conhecimentos trazidos dos alunos do seu meio social passam a fazer parte do diálogo que se estabelecerá entre professor e alunos. Por meio desse diálogo, “o objeto a ser conhecido medeia os dois sujeitos cognitivos. Em outras palavras, o objeto a ser conhecido é colocado na mesa entre os dois sujeitos do conhecimento. Eles se encontram em torno dele e através dele para fazer uma investigação conjunta” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 65). Outro aspecto diz respeito à necessidade de ausência de autoritarismo. No lugar deste, deverá existir uma situação dialógica livre, ou seja, uma situação na qual a tensão existente entre autoridade e liberdade propiciem o surgimento da liberdade dos alunos. Sendo assim, a prática baseada em uma educação problematizadora tem como um dos principais pilares a existência de um diálogo livre de coerções entre educador e educando.

Buscando uma reflexão acerca da conceituação da palavra “diálogo”, a pesquisa de Galli (2015) evidenciou a presença de alguns elementos centrais presentes na obra Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1987), sendo eles: o amor, a fé, a confiança, a humildade, a esperança e o pensamento crítico.

Sobre o elemento “amor”, parte-se do princípio de que a constituição do diálogo se dá quando duas ou mais pessoas se relacionam, sendo o amor uma das bases da constituição dessa relação. Além disso, Galli afirma que “tal amor representa o compromisso que uma pessoa tem para com a outra em sua libertação, ou seja, na superação da relação opressora” (2015, p. 58), caracterizando-se pelo ato de comprometimento com o ser humano, além da coragem para lutar e transformar o mundo. Se esse amor não existir, a ação dialógica será algo vazia e sem sentido. Portanto, será o compromisso com o outro em buscar a transformação que caracterizará o amor como um importante elemento do diálogo (GALLI, 2015).

O elemento “humildade” relaciona-se ao reconhecimento do outro enquanto indivíduo capaz de ser mais, tendo assim o direito de pronunciar o mundo. Ser humilde, no sentido “freireano”, está ligado as lutas por direitos e a libertação dos oprimidos. Ao considerar a relação entre humildade e a libertação dos oprimidos, Freire destaca que o diálogo é algo inviável diante da arrogância de pelo menos uma das pessoas envolvidas, ou seja, não é possível se estabelecer um diálogo se uma das partes se considerar melhor do que a outra. Sendo assim, “é essencial, na teoria freireana, que o diálogo estabeleça-se entre pessoas humildes que considerem a fala das outras pessoas” (GALLI, 2015, p. 59).

Com relação ao elemento “fé”, este relaciona-se com a habilidade e a possibilidade que os seres humanos têm em se transformarem, ou seja, a possibilidade de mudar. Nesse sentido, os seres humanos passam a ser compreendidos como seres inconclusos, incompletos e inacabados (GALLI, 2015).

Inconclusos porque estão sempre em transformação, mudando, aprendendo e conhecendo o mundo; incompletos porque precisam das outras pessoas para se relacionar e se compreenderem como seres humanos e inacabados, pois são imperfeitos, nunca sabem tudo, estão em constante aprendizado. Esta definição nos remete diretamente à sua visão ontológica dos processos de humanização e de desumanização enquanto possibilidades dos seres humanos inconclusos e conscientes de sua inconclusão, sendo que somente a humanização é capaz de proporcionar a libertação das pessoas (GALLI, 2015, p. 52).

Com relação aos processos de humanização, Freire caracteriza-o pelo ser mais, ou seja, um ser que é consciente da sua inconclusão e que ao se relacionar com as outras pessoas, vai sempre buscar aprender mais. E assim, “ao se conscientizarem de que seu ser é incompleto, inconcluso e inacabado, as pessoas buscam se tornar seres completos, conclusos e acabados e, dessa forma, vivenciam a contradição de um ser buscando ser mais” (GALLI, 2015, p. 52).

Não há também diálogo, se não há uma intensa fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e de refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens. [...] Sem esta fé nos homens o diálogo é uma farsa. Transformar-se, na melhor das hipóteses, em manipulação adocicadamente paternalista (FREIRE, 1987, p. 81, grifo do autor).

Nesse sentido, ter fé na transformação dos seres humanos é uma das condições essenciais para o estabelecimento do diálogo, mantendo sempre a premissa de que a partir desse diálogo, as pessoas vão considerar a transformação do mundo.

O elemento “confiança” é estabelecido a partir das relações com os três elementos anteriores: amor, humildade e fé. Ao se estabelecer um diálogo verdadeiramente pautado nesses três primeiros elementos mencionados, as pessoas se sentirão seguras para se expressarem de maneira autêntica, tendo total conforto em falarem sobre suas angústias, realidades, incertezas, dentre outros sentimentos ou pensamentos. Sendo assim, se por algum motivo não existir a confiança entre as pessoas que estiverem dialogando entre si, muito provavelmente alguns desses três elementos iniciais não ocorreu de forma autêntica, ou seja, provavelmente tenha ocorrido um falso amor ou uma ausência de fé ou de humildade. Além do mais, “para que seja instaurada a confiança, além do amor, da humildade e da fé, é necessária a coerência entre a palavra e a ação no mundo. Assim, é a partir da relação verdadeira que se estabelece o diálogo verdadeiro” (GALLI, 2015, p. 61-62).

O elemento “esperança” é compreendido como a maneira na qual as pessoas enxergam a possibilidade de transformarem a situação de opressão para uma situação de liberdade. Sendo assim, a esperança passa a ser o elemento motivador pela busca do ser mais. Sem ela, as pessoas não buscarão o diálogo, pois terão a consciência de que a opressão é algo imutável. Em uma situação de desesperança, de opressão e de antidiálogo, “as pessoas não têm como buscar ser mais, pois perdem a esperança de transformação, o que torna impossível a ocorrência do diálogo” (GALLI, 2015, p. 62-63).

O elemento “pensamento crítico”, assim como a confiança, não é somente necessário ao diálogo, mas também gerado por ele. A partir dele, as pessoas são capazes de reconhecer a possibilidade de mudanças que são possíveis no mundo. Cabe ressaltar que o mundo não é igual para todas as pessoas, pois estas possuem suas próprias experiências de vida e, portanto, suas realidades são subjetivas. Essa compreensão de realidades subjetivas só pode ser compreendida pelas pessoas a partir do diálogo e a interação proveniente desse diálogo vai possibilitar o desenvolvimento do pensamento crítico. “Em outras palavras, para que a interação dialógica seja possível, o pensamento crítico é necessário; ao mesmo tempo, a criticidade é gerada pela possibilidade de, em interação, conhecer diferentes realidades” (GALLI, 2015, p. 64).

Dessa maneira, o diálogo pautado no pensamento crítico vai possibilitar o reconhecimento dessa diversidade de realidades, permitindo assim que as pessoas olhem para as realidades com diferentes perspectivas e com novas visões. “Nesse sentido, uma das bases para o estabelecimento do diálogo é o pensamento crítico que permite que as pessoas sejam reconhecidas e escutadas” (GALLI, 2015, p. 64).

Ao se estabelecer uma relação dialógica pautada nos elementos amor, humildade, fé, confiança, esperança e pensamento crítico, o diálogo se consolidará na práxis e na pronúncia do mundo. A práxis é caracterizada pela coerência entre o que se fala e o que se faz, sendo composta por dois elementos básicos: a ação e a reflexão.

Sendo assim, o objetivo que se espera da ação dialógica é de “proporcionar que os oprimidos, reconhecendo o porquê e o como de sua ‘aderência', exerçam um ato de adesão à práxis verdadeira de transformação da realidade injusta" (FREIRE, 1987, p. 173, grifo do autor). Ao se concretizar a ação de buscar transformar o mundo por meio da práxis e do diálogo, se estabelecerá uma ação denominada por Freire de pronúncia do mundo. “Ao pronunciarem o mundo, as pessoas agem de acordo com a sua reflexão, em comunhão com as outras pessoas e tornam-se livres das relações opressoras, tornando-se Ser mais ao exercerem sua vocação ontológica” (GALLI, 2015, p.129, grifo do autor). Em outras palavras, “O diálogo, como encontro dos homens para a 'pronúncia' do mundo, é uma condição fundamental para a sua real humanização" (FREIRE, 1987, p. 134).

Metodologia de pesquisa

O presente artigo descreve parte dos resultados de uma tese caracterizada como uma pesquisa qualitativa do tipo estudo de caso na qual foram estabelecidas interações dialógicas com três professores de uma escola pública de educação básica do interior do estado de São Paulo objetivando viabilizar reflexões sobre suas concepções e práticas educativas.

Sobre a metodologia de estudo de caso, Lüdke e André apontam para algumas características ou princípios que, segundo suas reflexões, “são frequentemente associados ao estudo de caso ‘naturalístico’ se superpõem às características gerais da pesquisa qualitativa” (1986, p. 18). Tais características envolvem o fato de que os estudos de caso visam a descoberta, enfatizam a “interpretação do contexto”, buscam retratar a realidade de forma completa e profunda, usam variadas fontes de informação, revelam experiências vicárias que, por sua vez, possibilitam generalizações naturalísticas, representam diferentes e as vezes conflitantes pontos de vista presentes em dadas situações sociais, além de, segundo as autoras, utilizarem uma linguagem nos relatórios de pesquisa mais acessíveis (LÜDKE; ANDRÉ, 1986).

As ações metodológicas tiveram como premissas investigar como os professores de Ciências e Biologia definem quais serão os objetivos de aprendizagens que irão orientar suas aulas, bem como investigar como são feitas a interpretação das habilidades que fazem parte do currículo oficial do estado de São Paulo. Também foram objeto de investigação os critérios utilizados pelos professores de Ciências e Biologia para selecionarem os conteúdos de aprendizagens a serem abordados em suas aulas, bem como a escolha e a execução das práticas pedagógicas e avaliativas. E sobre as práticas avaliativas, também se buscou compreender quais ações eram observadas e analisadas pelos professores de Ciências e Biologia para serem utilizadas como critério de definição e evidenciação de aprendizagens (objetivo alcançado, habilidade desenvolvida, etc.). Por fim, uma vez estabelecendo diversas interações dialógicas com os professores, possíveis indicativos de mudanças nas concepções e práticas pedagógicas dos professores de Ciências e Biologia também foram objeto de investigação.

Com utilização da metodologia da autoscopia, durante a exibição dos respectivos episódios a cada professor, foram conduzidas discussões e reflexões sobre suas ações, bem como sobre as suas interações com os alunos. A autoscopia é uma técnica de pesquisa na qual se utiliza gravações em vídeo das ações de quem se deseja investigar em um determinado contexto. Basicamente a autoscopia compreende dois momentos, sendo eles o da filmagem propriamente dita e o da posterior reflexão. Na presente pesquisa, esses dois momentos foram ampliados para quatro momentos distintos, sendo eles: a) Planejamento da aula a ser filmada; b) Filmagem da aula; c) Edição de episódios; d) Reflexões (feedback com o professor).

O planejamento baseou-se em compreender como os professores pretendiam conduzir suas aulas, tendo como ponto de partida as habilidades presentes no currículo oficial. Vale ressaltar que, anterior a esse processo, os professores haviam relatado que utilizavam as habilidades do currículo como objetivos de aprendizagens a serem alcançados. A filmagem e a edição dos episódios foram conduzidas pelo próprio pesquisador, ressaltando que a escolha dos pequenos trechos, aqui denominados de episódios, foram escolhidos tendo como critério a seleção de momentos em que houveram interações dialógicas entre professores e alunos.

Nos momentos denominados de reflexão, os professores se assistiram nos episódios e puderam dialogar com o pesquisador sobre diversos aspectos de sua prática. O ponto de partida nesses diálogos reflexivos foram a solicitação por parte do pesquisador para que os professores indicassem algum ponto específico do episódio em que se pudesse inferir a ocorrência de aprendizagens relacionadas ao desenvolvimento de alguma habilidade do currículo.

Objetivando sintetizar a descrição dos dados empíricos, este artigo apresentará na próxima seção um recorte parcial das análises de uma professora de Biologia, tratada nesta pesquisa pelo pseudônimo Rosa. No total, foram analisados quinze episódios envolvendo as práticas de Rosa referentes a três aulas duplas em uma turma de 1º ano de Ensino Médio, referenciadas nessa pesquisa como aulas R-01, R-02 e R-03. Fazem parte da aula R-01, os episódios EpR-01 ao EpR-05, da aula R-02 os episódios EpR-06 ao EpR-08 e da aula R-03 os episódios EpR-09 ao EpR-15.

A autoscopia com a professora Rosa se caracterizou por dois momentos distintos, sendo o primeiro deles referente a reflexões de oito episódios retirados das aulas R1 e R2 e um segundo momento referente a reflexões de sete episódios retirados da aula R3, totalizando quinze episódios das aulas de Rosa. Sendo assim, a aula R3 foi planejada e realizada após um período de reflexões sobre alguns aspectos de suas aulas. Após o término das reflexões desse primeiro momento e antes do início do planejamento do segundo momento, o pesquisador analisou as autoscopias dos oito primeiros episódios e sintetizou tais análises no que se denominou nesta pesquisa de aspectos didáticos evidenciados. Ao total, foram sete aspectos didáticos evidenciados nas práticas pedagógicas de Rosa que serviram de subsídios para o planejamento e posterior reflexão da aula R3.

Na próxima seção serão apresentadas algumas considerações acerca de quatro, desses sete aspectos didáticos evidenciados, demonstrando as reflexões de Rosa sobre sua própria prática bem como alguns aspectos que proporcionaram um repensar pedagógico de sua parte. Esses quatro aspectos didáticos que foram escolhidos para serem apresentados neste artigo possuem em comum o fato de terem como referência teórica as concepções de ensino dialógico embasados nas ideias de Freire (1987). Os outros três aspectos suprimidos deste artigo foram constituídos com outras bases teóricas também relacionadas com o ensino dialógico.

Resultados e discussões

Conforme mencionado na seção anterior, serão apresentados quatro, de um total de sete aspectos didáticos que foram evidenciados nas práticas pedagógicas de Rosa. São eles o primeiro aspecto didático denominado de “Aula centrada na figura do professor”, o terceiro aspecto denominado “Práticas que se aproximam do método dialógico de ensino”, o quinto aspecto denominado “Indícios de superação de concepções bancárias de educação” e o sétimo aspecto denominado “Não é qualquer ação do aluno que evidenciará aprendizagens”. Todos eles, como também já mencionado, apoiam-se nas concepções de ensino dialógico propostos por Freire (1987).

O primeiro aspecto didático evidenciado denominado “Aula centrada na figura do professor” foi constituído a partir dos diversos momentos em que a prática pedagógica de Rosa se limitou a aulas expositivas em que somente ela falava sobre determinado assunto, ou mesmo ainda quando fazia perguntas para a turma de alunos e, logo em seguida, ela mesma as respondia. Além do mais, nos primeiros episódios que foram pauta das reflexões de autoscopia, Rosa apontou como indícios de aprendizagens alguns momentos em que ela explicava os conteúdos e os alunos apenas ouviam, possibilitando novamente afirmar a perspectiva de concepções e práticas bancárias de educação.

Ao analisar a reflexão de autoscopia do episódio EpR-01, Rosa afirmou que os alunos que não responderam aos questionamentos feitos para a turma, mas que ouviram atentamente sua “explicação do conteúdo”, teriam aprendido. A interpretação analítica desse trecho sugere uma concepção por parte de Rosa no que tange compreender que o ato de ensinar estaria relacionado ao “ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos”, ou seja, sua “tarefa indeclinável seria ‘encher’ os educandos dos conteúdos de sua narração” (FREIRE, 1987, p. 58-59). Na mesma lógica, possibilita também uma interpretação analítica no sentido de que Rosa concebe o ato de aprender associado ao simples ato de ouvir, tendo como premissa a ideia de que os “educandos são os que não sabem e que, portanto, precisam ser os que ouvem docilmente” (FREIRE, 1987, p. 59). Diante disso, o ensino e a aprendizagem pautados nessas concepções se limitariam a ações narrativas por parte de Rosa e a ações de ouvir e memorizar tais narrativas por parte dos alunos.

Nesta mesma lógica de raciocínio, interpretações analíticas provenientes de reuniões de reflexão da autoscopia de outros episódios também reforçaram tais perspectivas sobre esse primeiro aspecto didático evidenciado. Na reflexão do episódio EpR-03, Rosa apontou suas próprias ações de mostrar uma cartela de pílulas anticoncepcionais e ter explicado sobre ela como evidência de aprendizagem relacionada à habilidade de “identificar diferentes métodos contraceptivos” (SÃO PAULO, 2014, p. 20). Da mesma forma, na reflexão da autoscopia do episódio EpR-05, Rosa associa a sua ação de ter “falado para os alunos” sobre possíveis consequências de uma gravidez precoce como evidência de aprendizagem relacionada à habilidade de “reconhecer o impacto de uma gravidez na adolescência” (SÃO PAULO, 2014, p. 20). Para fins de exemplificação, segue um trecho do diálogo entre Rosa e o pesquisador em que tais perspectivas bancárias de educação apareceram:

Pesquisador: Você consegue identificar então alguma habilidade sendo desenvolvida?

Professora Rosa: Acho que este daqui né. Reconhecer o impacto de uma gravidez na adolescência e o que mais? (Pensativa)

Pesquisador: Em que momento você acha que isso acontece?

Professora Rosa: No momento em que eu falo para eles: Oh, seguinte. Olha o que que acontece se uma menina engravidar agora neste momento, por exemplo. Ela vai parar de estudar. Então a maioria acontece isso. Eu acho que neste momento [...] (Reunião de reflexão da autoscopia R-01 / EpR-05).

O terceiro aspecto didático evidenciado foi denominado “Práticas pedagógicas que se aproximam ao método dialógico de ensino”, sendo constituído a partir das interações dialógicas que ocorreram a partir de uma pergunta que foi feita por uma aluna para Rosa no decorrer da aula R-01. Ao ter tido a iniciativa de levantar um questionamento sobre a eficácia do preservativo quando utilizado incorretamente, a aluna trouxe consigo uma informação que até então não havia sido abordada por Rosa naquela aula, a de que a retirada incorreta do preservativo poderia vir a comprometer sua eficácia. Nesse sentido, a ação que a aluna teve de não ser uma mera expectadora e sim de participar ativamente do diálogo com base em informações trazidas do seu cotidiano de vida possibilitou que Rosa, ao menos naquele momento, evidenciasse uma aprendizagem em desenvolvimento através de uma interação dialógica.

Professora Rosa: Então, a questão da aprendizagem. Olha, quando o próprio aluno responde né, ele já entendeu que se ficar lá, vai correr o risco de engravidar e então você pode ver nesse momento.

Pesquisador: E você acha que isso tem a ver com alguma dessas habilidades que você decompôs?

Professora Rosa: Eu acho que tem a ver com esta daqui. Avaliar a eficácia dos diferentes métodos contraceptivos, porque o seguinte, ele já percebeu que vai funcionar a camisinha, mas se não for usada corretamente aí vai ser comprometida essa eficácia, eu acho que é dessa maneira.

Pesquisador: Então olha só, deixa eu ver se eu entendi. A pergunta da aluna, ela deu abertura para construção de uma informação importantíssima?

Professora Rosa: Sim. [..]

Pesquisador: E veja que essa habilidade, você só conseguiu um feedback ali quando a aluna se manifestou.

Professora Rosa: Isso, quando ela falou, que não foi uma coisa que veio de mim (Reunião de reflexão da autoscopia R-01 / EpR-02).

Diante disso, a interpretação analítica proveniente do consenso que se estabeleceu entre Rosa e o pesquisador sobre o terceiro aspecto didático evidenciado foi no sentido de compreender a importância do aluno se sentir “à vontade” para trazer seus pontos de vista, seus argumentos e suas vivências para dentro dos contextos dialógicos da sala de aula. Tal perspectiva remete aos elementos do diálogo enunciados por Galli (2015), em especial ao elemento confiança. Uma vez o diálogo estando pautado nos elementos amor, humildade e fé, o elemento confiança possibilitará que as pessoas se sintam “seguras para expressar-se de forma verdadeira e falar sobre suas reais intenções e realidades” (GALLI, 2015, p. 61). Com isso a “confiança vai fazendo os sujeitos dialógicos cada vez mais companheiros na pronúncia do mundo” (FREIRE, 1987, p. 82). Nesse sentido, vislumbra-se a possibilidade de que nas relações construídas entre Rosa e seus alunos, em especial com a aluna que fez a pergunta, houve a constituição dos elementos amor, humildade e fé, possibilitando, assim, a constituição de uma relação de confiança que proporcionou para a aluna a “coragem necessária” para falar algo relacionado ao uso de preservativos que ela havia aprendido em outro momento de sua vida.

O quinto aspecto didático evidenciado foi denominado de “Indícios de superação de concepções bancárias de educação” e as interpretações analíticas que possibilitaram a sua constituição se basearam em evidências provenientes das reflexões da autoscopia do episódio EpR-05. O referido episódio trouxe em seu conteúdo uma discussão entre os alunos sobre de quem seria a responsabilidade de uma gravidez indesejada na adolescência. Seria do menino, da menina ou de ambos? Na ocasião, três alunos começaram a discutir entre si, tendo pontos de vistas divergentes sobre o assunto. Rosa, ao invés de mediar o diálogo e levar os alunos a apresentarem cada vez mais argumentos que sustentassem os seus pontos de vista ou mesmo chamar mais alunos a opinarem, optou por apresentar a sua opinião sobre o assunto em questão.

Professora Rosa: Olha só. Isso é a concepção de cada um. O que eu quero que vocês entendam é o seguinte, prestem atenção. O problema é o fato de que prevenir-se não é responsabilidade nem só do homem e nem só da mulher. A menina tem que saber que as consequências pra ela são muito mais pesadas do que para os meninos. Para o menino tem consequências só que se ele sumir na vida, sumir no mundo igual vocês tem alguns pais que já fizeram isso aqui, vocês sabem disso, tem pessoas que não estão nem aí e a menina vai arcar com a consequência sozinha. Porque o que eu quero dizer pra vocês é o seguinte, vou deixar bem claro. A responsabilidade de se prevenir é de ambos, os dois tem que se preocupar com isso. Só que eu, na minha posição de mulher, eu me preocuparia mais (Episódio EpR-05).

No entanto, ao se assistir no episódio e refletir sobre a sua prática, Rosa relata não ter visto nenhum problema em ter se posicionado, mas que deveria ter dado a oportunidade dos alunos terem dialogado mais entre si, para que depois ela pudesse ter apresentado seus argumentos e suas opiniões. “Eu acho que eu deveria ter perguntado primeiro para elas para depois ter colocado a minha posição né. Eu acho que é isso” (ROSA, Reunião de reflexão da autoscopia R-01 / EpR-05). É passível de se interpretar um indicativo de Rosa estar repensando suas concepções a partir da auto análise que faz sobre o contexto do diálogo do referido episódio. Tal indicativo de um possível repensar sobre suas concepções aparece novamente quanto Rosa reflete sobre esse quinto aspecto didático na reunião de planejamento R-03. Nesse momento, Rosa relata que nunca havia pensado sobre esse aspecto e que realmente deveria mediar mais as discussões e as argumentações dos alunos em contextos dialógicos como esse que ocorreu no episódio em questão. Além do mais, Rosa saliente que tal ação irá “matar o ponto de vista do aluno”, uma vez que irá induzi-los a pensar de acordo com o seu pensamento.

Professora Rosa: Quando a gente observa, é como eu comentei, as vezes eu poderia ter feito assim, mas eu nunca parei para pensar. Por exemplo, a questão de ao invés de colocar a minha opinião primeiro, perguntar a deles, perguntar como eles fariam e como seria. Então eu acho que que eu nunca tinha reparado, que eu nunca tinha parado para pensar nisso sabe. E a gente conversando, realmente né. Eu não sei, eu vejo assim, é importante deixar que eles falem, que eles se expressem. No meu ponto de vista, eu acho que eu posso falar sim, mas eu acho que eu tenho que verificar e ver. Isso eu acho que é importante.

Pesquisador: É uma questão de talvez levar os alunos ao processo de reflexão também?

Professora Rosa: Sim, porque quando eu coloco primeiro a minha (opinião), eu já matei né. Eu matei e eles não vão poder pensar de outra maneira.

Pesquisador: Até poderiam né, mas o que vai acontecer normalmente é eles se fecharem.

Professora Rosa: Eles foram induzidos pelo meu pensamento né.

Pesquisador: Porque aí temos uma questão de verticalidade. O professor está falando.

Professora Rosa: É isso.

Pesquisador: Eu até penso diferente, mas eu vou ficar quieto.

Professora Rosa: É isso mesmo (Reunião de planejamento R-03).

Portanto, a interpretação analítica proveniente desse quinto aspecto didático permite afirmar que Rosa apresentou uma prática baseada nos pressupostos bancários, mas que sua concepção, que inicialmente também era de centralizar as ações em suas práticas de narrar os conteúdos e de expor seus pontos de vistas e argumentos na frente dos pontos de vistas e argumentos dos alunos, foi repensada. Também foram trazidos no diálogo com o pesquisador algumas questões relacionadas à horizontalidade do diálogo, ou seja, os aspectos relacionados à necessidade de se estabelecer interações dialógicas nas quais as características de uma situação ideal de fala estivessem presentes. Nesse sentido, estima-se a necessidade de se estabelecer uma igualdade comunicativa, definida por Pizarro como sendo aquele contexto dialógica em que “os participantes podem falar de igual para igual, sem restrições e de maneira livre de coerções ainda que existam relações de dominação vigentes”, bem como o estabelecimento de igualdade de fala, definida pela mesma autora como sendo o contexto dialógico em que “os participantes podem fazer uso de todo o tipo de fala recorrendo a explicações, expressões, recomendações e juízo para problematizar as pretensões de validade que estão em jogo em uma situação de diálogo” (PIZARRO, 2014, p. 138-139).

O sétimo aspecto didático evidenciado foi intitulado “Não é qualquer ação do aluno que evidenciará aprendizagens” e apresentou elementos que contrapuseram o primeiro aspecto didático e complementaram as interpretações analíticas do terceiro. Relembrando alguns detalhes do primeiro aspecto didático, suas análises tiveram como base alguns elementos oriundos da reflexão da autoscopia dos primeiros episódios analisados, mais precisamente nos episódios EpR-01, EpR-03 e EpR-05. Em todos eles, o aspecto em comum foi no sentido de Rosa apontar suas próprias ações de explicar, mostrar, falar, etc. como indicativos de evidências de aprendizagens. No entanto, conforme observa-se no trecho abaixo retirado da reflexão do episódio EpR-07, Rosa passa a repensar suas concepções sobre quais ações devem ser observadas para inferir o desenvolvimento ou não de determinadas habilidades por parte dos alunos.

Professora Rosa: Pois é, como eu falei para você né. Eu não consigo ver. Eu não vejo, mas na verdade aqui essa fala só evidencia que ela viu isso em algum lugar né, mas não que ela aprendeu, ou seja, que ela compreendeu. É isso mesmo. Nossa, isso é uma coisa que não deveria acontecer, mas acontece {fala com tom de surpresa}.

(Reunião de reflexão da autoscopia R-02 / EpR-07).

Diante disso, a interpretação analítica referente ao sétimo aspecto didático permite se estabelecer que o primeiro aspecto didático evidenciado não é um aspecto que possibilita evidenciar aprendizagens por parte dos alunos, ou seja, não se permite identificar o desenvolvimento de habilidades, o alcance de objetivos, etc. Nesse sentido, a simples ação por parte dos alunos em prestarem atenção à explicação dada pelo professor em um determinado contexto de aula não garante a evidência de aprendizagem (ou o desenvolvimento de habilidades). Por outro lado, nas interações dialógicas que o aluno tece algum comentário, seja ele reforçando aquilo que o professor já falou, trazendo novas informações para o assunto em discussão, fazendo alguma pergunta ou mesmo realizando algum tipo de comentário sobre o assunto em pauta, é passível de se considerar tal ação por parte do aluno como um possível indicativo de aprendizagem.

Sendo assim, reforçam-se os pressupostos estabelecidos no terceiro aspecto didático evidenciado no sentido de que os atos-de-fala dos alunos podem, dependendo do contexto em que sejam realizados, evidenciar a ocorrência de aprendizagens por parte dos alunos ou, ao contrário disso, evidenciar algo que os alunos estejam interpretando de maneira incompleta ou incorreta.

Antes de se iniciar o detalhamento das reflexões das autoscopias dos episódios da aula R-03, reforça-se uma particularidade já mencionada de que o planejamento desta aula contou com reflexões ocorridas em diálogos entre Rosa e o pesquisador acerca dos sete aspectos didáticos evidenciados, sendo que tais reflexões sobre esses aspectos ocorreram logo no início desta reunião, ou seja, antes de se colocar o planejamento da aula R-03 como pauta do diálogo. Além do mais, ao final da reunião de planejamento da aula R-03, foi disponibilizado de maneira intencional uma cópia impressa contendo os sete aspectos didáticos. Com isso, buscou-se proporcionar para Rosa a possibilidade de realizar novas leituras e novas interpretações.

Diante disso, partiu-se da premissa de que as concepções que Rosa demonstrou possuir e aquelas que ela demonstrou estar sinalizando possíveis mudanças ao longo das reflexões das autoscopias das aulas R-01 e R-02 e dos próprios sete aspectos didáticos pudessem surgir enquanto práticas a serem observadas no momento da filmagem da aula R-03. Em outras palavras, previu-se a possibilidade de proporcionar à Rosa uma situação de conflito teórico-prático às vésperas da filmagem da aula R-03.

Alguns elementos relacionados a mudanças de concepção que refletiram na prática pedagógica de Rosa puderam ser observados já na reflexão do primeiro analisado da aula R3, ou seja, do episódio EpR-09:

Professora Rosa: Sim. Dá para reconhecer quando a aluna D responde.

Pesquisador: Aluna D é essa do canto e de cabelo enrolado?

Professora Rosa: Sim. Mesmo o aluno F quando falou para mim, ele respondeu corretamente.

Pesquisador: Pois é, eu não consegui captar o áudio do que ele falou.

Professora Rosa: Ele respondeu correto, mas ele fala baixinho, ele é todo acanhado (Reunião de reflexão da autoscopia R-03 / EpR-09).

Conforme observa-se no episódio EpR-09, Rosa aponta como um possível indicativo de aprendizagem o momento em que a Aluna D e o Aluno F respondem corretamente as questões que estavam sendo colocadas para a turma, relacionando o uso compartilhado de seringas e o consequente contato com sangue de outros usuários, como um fator de risco de contágio do vírus HIV.

Seguindo a mesma lógica de raciocínio do episódio anterior, no episódio EpR-10 Rosa também aponta como evidência de aprendizagem a fala dos demais alunos que tentaram corrigir o Aluno A que estava interpretando erroneamente a situação de risco relacionada ao compartilhamento de agulhas de tatuagem. Em outras palavras, Rosa evidenciou aprendizagens em outros alunos, como por exemplo no Aluno B, que até tentou dar umas dicas para ao Aluno A dizendo “se você sangrar e ela sangrar também”.

Pesquisador: Você consegue identificar a aprendizagem do aluno neste episódio?

Professora Rosa: Sim, principalmente por causa dos outros alunos que responderam. Eu não sei se você percebeu, mas a maioria dos alunos estavam indignados que ele estava pensando isso. Você percebeu?

Pesquisador: Percebi.

Professora Rosa: Todos estavam tipo assim, teve um aluno que até falou “ah seu burro”.

Pesquisador: Além desta questão, teve aquele momento em que você perguntou: Com a mesma agulha? E ele disse sim. Você acha que não haverá problema? E ele respondeu não. Aí o aluno B fez o seguinte comentário: Se você sangrar e ela sangrar também. Então veja que ele meio que deu uma dica querendo dizer: olha haverá contato sanguíneo.

Professora Rosa: Isso. Foi isso mesmo (Reunião de reflexão da autoscopia R-03/ EpR-10).

E assim, como ocorreu nos episódios EpR-09 e EpR-10, Rosa se manteve com o mesmo raciocínio nas reflexões dos demais episódios da aula R-03, ou seja, observando ações dos alunos para indicar elementos que pudessem evidenciar aprendizagens / habilidades em desenvolvimento.

Outro elemento relacionado à mudança de concepções que refletiram na prática pedagógica de Rosa foi relacionado a suas práticas observadas nos primeiros episódios, nas quais Rosa narrava todo o conteúdo aos alunos e não lhes oportunizava atos de fala. Em muitos casos, fazia perguntas para a turma e logo em seguida as respondia, caracterizando aulas monologas e centradas somente em suas próprias falas. Sobre isso, Rosa relatou que:

Professora Rosa: Olha, deixa eu falar uma coisa para você. Se você soubesse o tanto que eu me policiei para não lançar as perguntas aos alunos e eu mesmo ficar respondendo.

Pesquisador: Mas porque você se policiou com isso?

Professora Rosa: Por causa dessas reflexões que nós fizemos, esperar eles falarem ao invés de eu ficar colocando meu ponto de vista.

Pesquisador: Mas você vê isto como um aspecto positivo?

Professora Rosa: Sim, sim. Porque provavelmente eu teria respondido as perguntas que fiz ao invés de deixar por conta deles. Então foi uma coisa que eu fiquei assim muito atenta. Mas aí eu pensava assim, eu perguntava e aí quando eu ia responder eu falava. Não, deixa eu ficar quieta (risos). Mas veja, é um hábito né. (Risos) (Reunião de reflexão da autoscopia R-03/ EpR-9).

E por fim, ao ser questionada em uma reunião de encerramento da produção empírica de dados ocorrida após o término de todas a sessões de autoscopia sobre quais mudanças julgava ter ocorrido em suas práticas pedagógicas, Rosa relata que:

Professora Rosa: O que mais mudou assim foi naquelas questões de várias vezes nós conversamos e eu ficar trazendo as respostas prontas para eles né. Eu já dava a minha opinião e eu deixava pronto pra eles. E eu achava que eu facilitava pra eles né. Mas, pensando e nas nossas conversas eu percebi que realmente né. Porque você os induz a pensarem igual a você, ao invés de observar a maneira como eles pensam. Qual a maneira que eles podem apresentar. Se está correto daquela maneira pra poder ajuda-los. Então isso foi o que mais mudou pra mim. Então agora eu falo: deixa eu prestar atenção, deixa eu ver como ele pensa, qual é a experiência que ele tem né, qual é a vivência que ele tem, como ele pode trazer isso pra mim. E leva-los a pensar e me dizer né. Como você faria isso? Sendo que antes eu já chegava com a resposta pronta. Oh, isso é isso e aquilo é aquilo. Então é dessa maneira. Isso já mudou bastante (Reunião 07).

Nesse sentido, Rosa remete como a principal mudança atribuída às reflexões que ocorreram nas autoscopias aquelas relacionadas à sua postura de não ficar apenas narrando os conteúdos e colocando seus pontos de vista sobre os assuntos em pauta. Ao contrário disso, afirma que a partir dessas reflexões começaria prestar mais atenção nos diálogos e tentaria proporcionar maior protagonismo dialógico aos alunos.

Em síntese, as práticas pedagógicas de Rosa, incluindo seus princípios avaliativos, passaram por um processo de repensar pedagógico e culminaram com mudanças relacionadas aos tipos de interações dialógicas diferentes quando comparadas àquelas observadas nos primeiros oito episódios analisados. Inicialmente, Rosa narrava seus conteúdos de maneira a “despejá-los” aos alunos para uma possível memorização. E a partir dessa perspectiva, Rosa demonstrou ter uma concepção inicial de que a ação por parte dos alunos de ouvirem atentamente tais narrações seria uma evidência de que eles estavam aprendendo, ou seja, ao atuarem como meros expectadores e receptores de informação, já estariam aprendendo aquilo que lhes era “despejado” na narração de Rosa.

Algumas considerações

Fundamentadas em auto-observações e análises no âmbito das autoscopias, afirmou-se nesta pesquisa que as interações dialógicas entre professores e pesquisadores possui grande potencial formativo, sendo considerada uma importante condição favorecedora para o desenvolvimento ou mesmo o aprimoramento de Repertórios Profissionais da Docência tanto na formação inicial quanto na formação continuada.

Em outras palavras, estima-se que o estabelecimento de interações dialógicas entre professores e alunos, tendo como base as premissas do “diálogo freiriano”, conforme já mencionado neste artigo, possibilitam a construção de evidências relacionadas a ações observáveis que permitem ao professor (observador das ações) avaliar se as habilidades previamente utilizadas como referências do planejamento estão sendo desenvolvidas pelos alunos de forma satisfatória ou se necessitam de intervenções pedagógicas de sua parte para possíveis ajustes, alinhamentos, reorganização de raciocínio, etc.

Tal afirmação apoia-se na evidência de que, posteriormente as reflexões dos episódios das aulas R-01 e R-02, Rosa demonstrou indicativos de possíveis mudanças em suas concepções que também refletiram em suas práticas observadas nos episódios da aula R-03. Ao invés de apontar para suas próprias ações narrativas e para as ações dos alunos de serem ouvintes como possíveis evidências de aprendizagens, Rosa passou a observar as ações dialógicas dos alunos como ações observáveis e passíveis de serem utilizadas como parâmetros para evidenciar aprendizagens. Além do mais, passou a ter mais atenção na condução das interações dialógicas com os alunos, proporcionado a eles maior protagonismo dialógico.

Diante disso, na perspectiva de responder ao questionamento sobre quais condições de mediação do trabalho do professor torna-se possível construir “Repertórios Profissionais da Docência” no ensino de conteúdos curriculares dos componentes de Ciências e de Biologia, a presente pesquisa aponta em suas considerações a perspectiva de utilização por parte dos professores de práticas pedagógicas e avaliativas baseadas no uso de um diálogo livre de coerções e de relações verticais, ou seja, um diálogo com bases “freirianas” no que tange inserir os alunos no diálogo como indivíduos capazes de argumentar e defender seus pontos de vista sobre os mais diversos objetos de conhecimento. Com isso, espera-se que a ação educativa possibilite a formação de indivíduos que, dentre outros aspectos, adquiram uma identidade linguisticamente competente que os tornem cada vez mais aptos a interagirem simetricamente com outros indivíduos, dentre os quais, o próprio professor/educador.

Portanto, estima-se como contribuições desta pesquisa para a área de Ensino de Ciências a constituição de uma possível vertente da avaliação chamada provisoriamente neste trabalho de “avaliação formativa dialógica”. Suas características gerais envolvem, dentre outros aspectos, a constituição de interações dialógicas nas quais os sujeitos envolvidos não necessariamente precisam ser todos linguisticamente competentes de acordo com os pressupostos “habermasianos”, mas tanto os professores quanto os alunos precisam trazer consigo algumas concepções em suas ações comunicativas, a se saber:

  • Conceber a avaliação enquanto momento de aprendizagem e não como um momento de hierarquização de desempenhos e punições por baixos desempenhos;

  • Conceber o erro em uma perspectiva dialógica do qual se evidenciará aquilo que ainda não se aprendeu, mas que poderá se aprender a partir do momento que os erros e as lacunas de aprendizagem se tornarem evidentes ao professor e este reorientar a aprendizagem do aluno;

  • O estabelecimento de um diálogo pautado no amor, na fé, na humildade e com bases sólidas de confiança. Uma vez se estabelecendo um diálogo verdadeiramente pautado no amor, na fé e na humildade, as pessoas se sentirão seguras para se expressarem de maneira autêntica e tendo total conforto em falarem sobre suas angústias, realidades, incertezas, dentre outros sentimentos ou pensamentos, caracterizando a constituição do elemento confiança do diálogo “freiriano”.

  • A observação de ações dialógicas entre professores e alunos deve ser entendida como uma das “ações observáveis” passíveis de se evidenciar aprendizagens construídas, habilidades desenvolvidas, objetivos alcançados, etc.

Outra contribuição para a área de Ensino de Ciências é oriunda de reflexões posteriores à conclusão desta pesquisa, ocorridas no âmbito do Grupo de Pesquisa em Processos de Ensino e de Aprendizagens Profissionais em Contextos Educacionais, Esportivos e de Saúde e relacionadas a reflexões de aspectos metodológicos relacionados ao que foi denominado na pesquisa de “modelo comunicativo de interação”. Tais reflexões trouxeram apontamentos e possíveis aproximações que possam existir entre a metodologia de estudo de caso associada com a metodologia da autoscopia, uma vez que a pesquisa apontou para o uso das duas tipologias.

Valendo-se dos pressupostos “habermasianos” nas interações que ocorreram entre pesquisador e professor pesquisado no decorrer das sessões de autoscopia, estima-se que o “modelo comunicativo de interação” aqui mencionado é passível de ser melhor explorado e avaliado em pesquisas futuras. Nesse sentido, partindo dos princípios propostos no estudo de caso “naturalístico” descrito por Lüdke e André (1986), estima-se a possiblidade de uma reflexão que envolva as referidas características e a utilização da autoscopia como a principal ferramenta metodológica para a construção do corpo empírico de dados, conforme ocorrido na presente pesquisa e em outras pesquisas no âmbito do mesmo grupo de pesquisa.

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Recebido: 05 de Outubro de 2020; Aceito: 27 de Março de 2021

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