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Revista de Educação Pública

versión impresa ISSN 0104-5962versión On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.31  Cuiabá ene./dic 2022  Epub 29-Jun-2022

https://doi.org/10.29286/rep.v31ijan/dez.13919 

Artigos

Cibertecnicismo

Cybertechnicism

1Doutor em Informática e Professor na UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Atua na Pós-Graduação em Informática e no Bacharelado em Sistemas de Informação; e lecionou, por 10 anos, no curso a Licenciatura em Pedagogia a Distância UNIRIO/CEDERJ/UAB. Tem extensa produção acadêmica, destacando-se a organização do livro "Sistemas Colaborativos" (2011), que ganhou o Prêmio Jabuti. É coordenador do grupo de pesquisa ComunicaTEC, que pesquisa o desenvolvimento e o uso de tecnologias de comunicação mediada por computador. É colaborador do GPDOC - Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura (UFRRJ) e do CIBERDEM - Grupo de Pesquisa e Inovação em Ciberdemocracia (MACKENZIE). Realiza pesquisas na área de Sistemas de Informação, Informática na Educação, Educação e Cibercultura.

2Doutor em Educação. Pesquisador-colaborador do Grupo de Pesquisa em Docência e Cibercultura (GPDOC) e Grupo de Gênero, Sexualidade e Saúde (GENI).


Resumo

Neste texto, definimos, caracterizamos, fundamentamos, historicizamos e problematizamos o cibertecnicismo, uma abordagem didático-pedagógica instrucionista e massiva baseada nas tecnologias digitais em rede em que os processos educacionais são semi ou totalmente automatizados por meio de técnicas e tecnologias como instrução programada, plataformização, youtuberização, gamificação, algoritmização, dataficação, entre outras. O cibertecnicismo visa a efetivar uma arte de ensinar sem professores, com pouca ou nenhuma mediação humana, mantendo os princípios básicos da racionalidade técnica e científica que caracterizaram o tecnicismo, agora reconfigurado pelas tecnologias digitais em rede.

Palavras-chave Tecnicismo; Instrução Programada; Cibercultura; Tecnologias Educacionais

Abstract

In this text, we define, characterize, substantiate, historicize and problematize cybertechnicism, a massive instructional didactic-pedagogical approach based on networked digital technologies in which educational processes are semi or fully automated through techniques and technologies such as programmed instruction, platformization, youtuberization, gamification, algorithmization, datafication, among others. Cybertechnicism aims to implement an art of teaching without teachers, with little or no human mediation, maintaining the basic principles of technical and scientific rationality that characterized technicism, now reconfigured by networked digital technologies.

Keywords Technicism; Programmed Instruction; Cyberculture; Educational Technologies

Introdução

A versão ciber do tecnicismo

Temos acompanhado e experienciado, com muita preocupação, a ascensão do que denominamos cibertecnicismo (PIMENTEL; CARVALHO, 2021), uma abordagem didático-pedagógica instrucionista e massiva que compreendemos ser uma versão contemporânea do tecnicismo (SAVIANI, 1999). Paulo Freire, há mais de cinquenta anos, já criticava a abordagem educacional que denominou “educação bancária”, em que, “em lugar de comunicar-se, o educador faz ‘comunicados’ e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem” (FREIRE, 1970, p.33). Apesar das críticas, essa pedagogia não foi superada, pelo contrário, seguiu sendo praticada e se atualizando, chegando a sua atual versão “ciber”. Nessa nova versão, em vez dos professores, como ocorria na época de Freire, são as tecnologias digitais em rede que realizam comunicados e depósitos nos educandos (Figura 1).1

Fonte: Ilustração de Merwin Pérez, publicada na Internet

Figura 1a Cibertecnicismo: uma nova versão da educação bancária - Educação bancária 

Fonte: Ilustração de Monica Lopes

Figura 1b Cibertecnicismo: uma nova versão da educação bancária - Cibertecnicismo 

O radical “ciber” vem do termo “cibernética” (cybernetics, em inglês), utilizado por Norbert Wiener para designar os sistemas com capacidade de regular o próprio comportamento (seja uma máquina ou um animal) e de agir de maneira automática processando informações internas e externas e reagindo a elas, retroalimentando-se. Cibernética vem do grego “kybernetes” (Κυβερνήτης), que designa o timoneiro, a pessoa responsável por controlar o timão de uma embarcação; esse termo foi empregado como metáfora para se referir ao controle do sistema autônomo, pois um barco consegue chegar até o porto apesar de fatores imprevisíveis como vento, marés e chuvas, porque o timoneiro opera sobre o leme ajustando a rota constantemente guiando-se pelo farol; considerando barco-e-timoneiro como um sistema único, podemos reconhecer que esse sistema se autorregula (CIBERNÉTICA, s. d.). De fato, trata-se de uma metáfora, pois o barco da Grécia antiga não era capaz de navegar de forma automática, precisava da intervenção humana para o seu controle (o timoneiro). Para um exemplo atualizado da cibernética, podemos citar o carro autônomo, que não é apenas uma metáfora, pois realmente é um sistema fechado que dispensa atuação externa, pois dispõe de Inteligência Artificial, que opera sobre a direção e a velocidade do veículo para chegar a um determinado destino, considerando diversos fatores previsíveis e imprevisíveis: a posição naquele instante dentro de um mapa em relação à posição destino, os obstáculos que aparecem no caminho, os semáforos, o limite de velocidade naquele trecho, a inclinação do solo etc.

Embora o termo “cibernética” tenha sido empregado para nomear a área de estudo da autorregulação relacionada a sistemas dinâmicos, que inclui sistemas de informação, sistemas computacionais, robótica, inteligência artificial e outras áreas, com o tempo o termo “ciber” foi ressignificado e passou a ser utilizado como sinônimo de computadores, tecnologias digitais e internet, desvinculando-se de seu sentido original relacionado à Teoria de Controle (controle retroativo, realimentação ou feedback, como o controle em um sistema de malha fechada). Na atualidade, há dezenas de palavras reconhecidas no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa utilizando esse prefixo: ciberbulling, cibercrime, ciberativismo, ciborgue etc. É nessa acepção que empregamos o radical “ciber”, para qualificar a versão contemporânea do tecnicismo caracterizada pelo uso intensivo das tecnologias digitais em rede.

Por cibertecnicismo nos referimos a uma abordagem didático-pedagógica em que os processos educacionais são semi ou totalmente automatizados por meio de técnicas e tecnologias digitais em rede – como plataformização, youtuberização, gamificação, algoritmização, dataficação, entre outras –, de modo que estudante-e-computador formem um sistema capaz de aprender autonomamente, como se técnicas-e-tecnologias fossem o timoneiro de um “sistema fechado” que dispensa a atuação de humanos externos: as/os professoras/es. O cibertecnicismo manteve os princípios básicos da racionalidade técnica e científica que caracterizaram o tecnicismo, agora repaginado pelas tecnologias digitais em rede utilizadas com vista a automatizar o sistema educacional, efetivando assim uma arte de ensinar sem professores, com pouca ou nenhuma mediação humana. Podemos reconhecer o cibertecnicismo em ação quando nos deparamos com algumas dessas características e práticas:

  • o professor é substituído por um “tutor” (em alguns cursos nem tutor há), geralmente não reconhecido como um professor, com pouca autonomia, responsável por supervisionar centenas de estudantes ao mesmo tempo, tira as (raras) dúvidas que não puderem ser respondidas automaticamente por um chatbot e corrige as (poucas) atividades que (ainda) requerem atuação humana;

  • o conteúdo é simplificado, disponibilizado no formato de videoaulas, webaulas e apostilas em PDF;

  • as atividades didáticas são simplificadas, como recuperar informações que estão nos conteúdos ou postar uma mensagem qualquer em um fórum de discussão sobre um conteúdo, havendo pouca ou nenhuma autoria-projetos-debates, com pouco ou nenhum espaço para dúvidas e discussões (para não sobrecarregar mais o professor-tutor humano);

  • as (auto)avaliações são corrigidas sem professores, em formato de questões de múltipla escolha, preenchimento de lacunas e variações que possibilitem uma correção automática, ou então é fornecido um gabarito com comentários sobre como cada questão deveria ter sido respondida para que o próprio estudante possa avaliar a adequação de suas respostas;

  • o aluno estuda sozinho, interagindo com os conteúdos e atividades no computador, raramente interage com um professor-tutor ou com outros colegas de turma (ou interage pontualmente), não se percebe como parte de uma turma exceto em algum evento ocasional ou quando faz alguma prova presencial, há pouca ou nenhuma situação de conversação, não convive com a diversidade nem com o pensamento diverso;

  • o processo de estudo encontra-se gamificado, o aluno ganha pontos por realizar as leituras, as atividades/tarefas e os testes; elementos de gamificação são usados para apresentar ao estudante as tarefas que ele precisa cumprir (coletando pontos), quantas já realizou (barra de progresso) e o desempenho obtido até aquele momento (pontuação), transformando o aluno em um “tarefeiro” cumpridor de ordens e seguidor de um roteiro previamente programado para todos;

  • a finalidade do processo educacional é preparar o estudante para passar numa prova que visa a quantificar em pontos/nota o que foi assimilado-memorizado em termos de conteúdos.

Problemática relacionada ao cibertecnicismo

Nas condições atuais, o que é possível de ser automatizado do processo de ensino é a apresentação de informações (instrução) e o exame/verificação da retenção por parte do estudante (assimilação). Embora instrução e assimilação façam parte do processo formativo, não podemos reduzir esse processo a apenas isso, que não é formação em seu sentido mais amplo.

Nas políticas oficiais, esse tecnicismo disfarçado de inovação já é uma presença que é comemorada pelo hegemônico neste momento. [...] Não se aprende e nem se forma com um cérebro separado de uma história de vida, de trabalho e de cultura. Não queremos isso. [...] É impensável a formação como produção em série. É uma impossibilidade pensá-la e alcançá-la por indicadores extensivos, dimensões aferidas e estandardizações. Ou é criação sociotécnica, ética, estética, política, cultural, experiencial e acontecimental, ou então não é formação (MACEDO, 2021, 5:12s).

O cibertecnicismo vem avançando porque viabiliza a transformação da educação em um modelo de negócio muito lucrativo com a redução dos custos com professores. Um de seus objetivos é organizar a educação como um negócio (FREITAS, 2018). Essa abordagem didático-pedagógica é comumente utilizada nos cursos massivos online e também vem sendo muito empregada em cursos a distância, modalidade que cresceu velozmente nas duas últimas décadas e que se tornará predominante no ensino superior brasileiro ainda durante a década de 2020 (PIMENTEL; CARVALHO, 2021). A legislação e os sucessivos decretos e portarias legitimaram-potencializaram a expansão da Educação a Distância, sendo essa uma estratégia do MEC para ampliar a oferta de ensino superior em nosso país (ATUALIZADA LEGISLAÇÃO, 2017). Por exemplo, com a Portaria nº 1.428/20182, os cursos presenciais de graduação passaram a poder ofertar disciplinas na modalidade a distância até o limite de 40% da carga horária total do curso, o que representa um passo para transformar os cursos presenciais em cursos parcialmente a distância, semipresenciais ou híbridos – serão essas disciplinas operacionalizadas na lógica cibertecnicista?

Cabe ressaltar que a educação a distância não se restringe ao ensino superior. O ensino médio e a educação profissional técnica de nível médio também já podem ser ofertados a distância. Já o ensino fundamental, por enquanto, só pode ser ofertado a distância sob condições muito específicas – mas, com a pandemia da covid-19, as modalidades remota e híbrida substituíram o sistema presencial de ensino em todos os níveis sem ter ocorrido uma adequada formação de professores para essas modalidades. Quais serão os desdobramentos dessa situação? Terá o cibertecnicismo se fortalecido e se capilarizado ainda mais? As plataformas educacionais se popularizaram na escola básica, especialmente no sistema particular de ensino; seria esse um primeiro passo para a implantação do cibertecnicismo também nesse nível? Afinal, a Base Nacional Comum Curricular, ao padronizar os currículos das escolas, também facilitou a operacionalização do cibertecnicismo...

Compreendemos que a publicação da Resolução CNE/CP nº 2/2019, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação), favoreceu o avanço do cibertecnicismo, pois a formação dos professores foi precarizada pelo desejo de transformar os docentes em meras/os executoras/es do currículo, aplicadoras/es de conteúdos. A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) listou alguns motivos de contrariedade em relação ao texto dessa resolução, a saber:

1. Uma formação de professores de “uma nota só”; 2. Uma proposta de formação que desconsidera o pensamento educacional brasileiro; 3. Uma proposta de formação docente que desvaloriza a dimensão teórica; 4. Uma proposta de formação ‘puxada’ pela competência socioemocional; 5. Um texto higiênico em relação à condição social do licenciando; 6. Uma formação que repagina ideias que não deram certo; 7. Uma proposta que estimula uma formação fast food; 8. Uma formação de professores com menos recurso; 9. Uma formação que não reconhece que o professor toma decisões curriculares (ANPED, 2019, n. p.).

Podemos notar, nessas críticas, que há na referida resolução uma tendência/desejo/políticas para transformar as/os docentes em meros executoras/es do currículo, reduzindo a educação ao ensino de conteúdos, o que pode limitar as possibilidades de promoção da autoria, da interatividade, da colaboração, do convívio com a diferença e o pensamento diverso, de práticas pedagógicas contextualizadas e alinhadas às práticas (ciber)culturais de nosso tempo e às experiências de vida e formação das/os estudantes.

É com vista a combater a tendência didático-pedagógica instrucionista-massiva operacionalizada pelas tecnologias digitais em rede que o presente texto reconhece e denuncia a ascensão do cibertecnicismo. Não estamos aqui fazendo um ataque direcionado ao uso das tecnologias computacionais no contexto educacional ou à modalidade a distância, até porque sabemos que nessa modalidade também é possível empregar outras abordagens didático-pedagógicas como a que temos praticado e teorizado (PIMENTEL; CARVALHO, 2020).

Teoria de aprendizagem e técnica educacional de suporte ao cibertecnicismo

Nós, autores, voltamos a estudar; estamos fazendo uma segunda graduação, agora na modalidade a distância. Um dos autores, após se matricular e obter o acesso ao ambiente virtual de aprendizagem, entusiasmado e com o frisson do seu “primeiro dia de aula”, optou por começar pela disciplina que mais lhe interessava entre as que lhe foram determinadas para o 1º período: Filosofia da Educação. Abriu a primeira webaula da disciplina e, para a sua surpresa, se deparou com isto:

Fonte: Conteúdo da disciplina Filosofia da Educação de um curso a distância

Figura 2 Instrução programada em um AVA 

Isso tem um nome: instrução programada. O conteúdo é desenvolvido para a autoinstrução, sem um professor. Após a apresentação de uma parte do conteúdo, é realizada alguma atividade de (auto)avaliação para verificar se o estudante apre(e)ndeu-memorizou o que foi apresentado. Esse tipo de atividade de recuperação de informação do texto nos deu uma nova compreensão das precariedades dos processos formativos no presente, uma vez que materializam a abordagem instrucionista-massiva que temos combatido.

A instrução programada foi a técnica de ensino-aprendizagem empregada nas máquinas de ensinar popularizadas por Skinner durante as décadas de 1950 e 1960 nos Estados Unidos, como documentado no vídeo Máquina de ensinar e aprendizagem programada3, em que Skinner apresenta sua máquina mecânica de ensinar movida à manivela. Skinner, psicólogo comportamentalista (behaviorista), foi um defensor da crença de poder controlar e moldar o comportamento humano por meio de reforços positivos e negativos, recompensas e punições aplicadas de maneira instantânea com o uso de máquinas.

A instrução programada encontra-se revigorada na atualidade, foi reprogramada nos computadores, está em pleno uso em muitos cursos massivos online e em alguns cursos a distância de nosso país (como o ilustrado na Figura 2). Em vez de máquinas mecânicas, o processo de instrução está programado nas plataformas de educação / ambientes virtuais de aprendizagem. Na próxima seção, discutimos algumas técnicas e tecnologias digitais em rede que operacionalizam o cibertecnicismo.

Técnicas e tecnologias digitais de suporte ao cibertecnicismo

Com o desenvolvimento dos computadores, as máquinas de ensinar deixaram de ser mecânicas e se tornaram digitais. A instrução foi reprogramada e passou a ser chamada de instrução assistida por computador (CAI, na sigla inglesa), uma técnica interativa de instrução.

O sistema computacional Plato (Lógica Programada para Operações Automáticas de Ensino) (PLATO, s. d.), lançado em 1960, é considerado o primeiro sistema computacional genérico de instrução assistida por computador. Ele incluía uma série de recursos, como feedback para respostas a questões de múltipla escolha, avaliação de respostas em texto-livre (dependendo da inclusão de palavras-chave), entre muitos outros. Na versão Plato III, lançada ainda na década de 1960, introduziu-se uma linguagem de programação chamada Tutor que objetivava possibilitar que qualquer pessoa (professores, estudantes e outras pessoas não técnicas de computador) conseguisse projetar novos módulos de aula dentro do sistema.

A informática chegou à educação brasileira com a popularização dos microcomputadores e via políticas públicas na década de 1980. O governo realizou o 1º Seminário Nacional de Informática na Educação em 1981 na Universidade de Brasília para que fossem geradas recomendações, entre elas, “o computador foi reconhecido como um meio de ampliação das funções do professor e jamais como forma de substituí-lo” (MORAES, 1997, p. 5). Se foi preciso recomendar que o computador não fosse utilizado para substituir o professor, é porque nesse sentido já estavam consolidados discursos, desejos, objetivos, desenvolvimentos...

Naquele período, ocorria uma “avalanche de software educacional” (VALENTE, 1999, p.9). Semelhante aos que já haviam sido desenvolvidos via Plato, o software educacional representava uma atualização da instrução programada, a sua reprogramação em um novo formato com a utilização de novas técnicas e tecnologias, como hipertexto e multimídia/multilinguagem. Entendemos que o uso do computador como máquina de ensinar não se restringe à instrução assistida por computador (CAI), mas se refere a qualquer sistema em que o computador seja utilizado para ensinar informações ao usuário, não importando se essas informações são apresentadas de forma estática ou interativa, não importando a linguagem empregada (texto, imagem, infográfico, animação, vídeo, história em quadrinhos etc.), não importando, ainda, se estruturado de modo linear-sequencial ou hipertextual.

O computador, quando utilizado como máquina de ensinar, geralmente combina a exposição de conteúdos com atividades para (auto)avaliar o apre(e)ndido, podendo ou não redirecionar o processo de estudo em função dos resultados da avaliação. Nesse sentido, da instrução programada derivaram os tutoriais, os programas de demonstração, exercício-e-prática, avaliação do aprendizado, jogos educacionais, simulação, entre outros tipos de software (VALENTE; ALMEIDA, 1997), alguns incorporando avanços tecnológicos principalmente na área de Inteligência Artificial, como os tutores inteligentes (BARANAUSKAS et al., 1999; JAQUES; NUNES, 2021). Todos esses tipos de sistemas computacionais são baseados no paradigma instrucionista, pois há um conteúdo a ser apreendido, entendido como uma mensagem fechada a ser memorizada-compreendida pelo estudante e utilizada como referência para corrigir as respostas dando feedback-reforço positivo ou negativo e (re)direcionar o processo de estudo, sem negociação-controle do estudante, sem espaço para o pensamento crítico-criativo, sem promover o aprender a ser e a conviver.

A partir da abertura da internet para uso comercial em meados da década de 1990, a atenção de todos se voltou para a rede mundial de computadores e suas páginas web. Com as tecnologias digitais em rede disseminadas por todo o tecido social, muito além dos muros das universidades-governos-forças armadas, emergiram novas formas de ensinar e aprender em e pela rede. Popularizaram-se os ambientes virtuais de aprendizagem (AVAs) (GOMES; PIMENTEL, 2021), também conhecidos como plataformas educacionais. Foram criadas as condições para a efetivação de uma nova geração da EAD, autorizada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394) publicada em dezembro de 1996, quando a internet já estava aberta para a população em geral.

Muitos cursos a distância pelas redes de computadores herdaram as práticas instrucionistas e a massificação do ensino possibilitada pelos meios de comunicação em massa, como o rádio e a televisão, que caracterizaram as gerações anteriores de EAD. O ensino em escala industrial implicou maior fragmentação-especialização do trabalho docente, estabelecendo uma hierarquização entre os professores: professor-conteudista, professor-formador, professor-tutor a distância, professor-tutor presencial. Alguns cursos a distância fazem propaganda dos conteúdos em formato de videoaulas-palestras com professores famosos, enquanto os professores que escrevem as apostilas do curso são outros não tão famosos, e os professores-tutores da disciplina não são os que desenvolveram os conteúdos. Essa situação pode ser compreendida como “uma forma industrial de educação” baseada na racionalização, divisão do trabalho e produção em massa, em que o processo de ensino vai sendo gradualmente restruturado pela crescente mecanização e automação (BELLONI, 2012, p. 7-8).

A industrialização-massificação-automação do ensino se intensificou com o desenvolvimento e uso das plataformas online de educação. Cursos Online Abertos e Massivos (MOOC), novidade lançada no final da década de 2000 e difundida na década de 2010, levou a automação do ensino ao extremo. Khan Academy, Coursera, Udacity e edX são alguns exemplos de plataformas para hospedar e vender cursos e disciplinas online, nem sempre abertos. Esses cursos são denominados massivos porque objetivam ensinar um mesmo conteúdo para um grande número (indefinido) de estudantes, o que é efetivado retirando-se o professor do processo de ensino.

O frenesi causado pelos cursos massivos produzidos pelas universidades mais famosas do mundo – MIT, Oxford, Stanford, Cambridge, Harvard, entre outras – fez alguns suporem, à época, que no futuro, após um período de concorrência, restariam apenas dois ou três MOOCs de cada curso, de responsabilidade de poucas universidades globais com estratégias neocolonizadoras. Hoje conhecemos a altíssima taxa de evasão dos cursos massivos, chegando a 95% (SILVA et al, 2014) e que, ao menos nos EUA, “apenas de 5 a 10% dos estudantes universitários preferem Cursos Online Massivos e Abertos” (VICARI, 2021, n. p.). Reconhecemos que a diversidade de modalidades educacionais, como cursos a distância e cursos massivos, não é um problema; o problema é quando esses cursos se tornam a única opção para um estudante, pois sabemos que essas modalidades não são as preferidas de muitos.

Algo precisava ser feito para conseguir manter os alunos engajados nos estudos sem o acompanhamento-mediação de professores humanos. A gamificação, popularizada no final da década de 2000, tornou-se uma importante aliada para efetivar a automação do ensino. Conjectura-se que o uso da linguagem-estética dos jogos (dinâmicas, mecânicas e componentes, como pontos e níveis) talvez possibilite aumentar a motivação-engajamento dos estudantes no processo de estudo (OLIVEIRA et al., 2021). As técnicas de gamificação se espalharam rapidamente nos sistemas computacionais voltados para a educação e chegaram às plataformas de ensino-aprendizagem. Algumas instituições chegam a fazer propaganda do “AVA Gamificado, sem tutor e autoinstrucional”, vangloriando-se de um ensino cibertecnicista que efetiva a arte de ensinar sem professores.

As plataformas virtuais de aprendizagem coletam os dados dos estudantes, monitoram cada ação: os dias e horários em que acessam a plataforma, quanto tempo permanecem logados, que conteúdos abrem e por quanto tempo ficam abertos na tela, que atividades avaliativas são realizadas e quais questões acertam/erram, a sequência de cliques, quantas mensagens enviam, qual o texto de cada mensagem etc. O enorme volume de dados é processado e analisado; são produzidos indicadores; são estabelecidas comparações com os outros alunos da turma e com todos os dados acumulados no sistema; são empregadas técnicas de inteligência artificial para criar modelos capazes de inferir/predizer se o aluno está achando o curso muito difícil ou muito fácil, se está na iminência de abandonar ou se está engajado no curso. Algoritmicamente, a partir de indicadores e inferências, o sistema toma decisões sobre o que fazer: mandar um e-mail de apoio ao aluno, sugerir conteúdos e atividades de reforço, pedir para que entre em contato com o tutor, ou simplesmente não perturbar o aluno.

A análise de dados de nossa sociedade conectada se tornou tão importante que fez emergir uma nova ciência, a Ciência dos Dados, e na educação fez emergir a Análise da Aprendizagem (Learning Analytics). Já foi dito que “os dados são o novo petróleo”: são coletados, armazenados, tabulados, comparados, transformados, minerados, estratificados, vendidos, utilizados e reusados. Vivemos a dataficação da vida e as plataformas de educação dataficaram o processo de ensino-aprendizagem para muito além da planilha de frequência nas aulas e da planilha de notas que os professores humanos são capazes de gerenciar.

A plataformização da educação tem possibilitado emergir um “modelo de educação 100% digital”, o que dá suporte ao novo modelo de educação, ou melhor, ao novo “modelo de negócio”. Alunos-clientes (AMARAL; VERGARA, 2011) contratam os cursos que desejam, entre centenas à disposição; é assim que empresas de EAD vêm abocanhando uma fatia do mercado do ensino superior de nosso país nesta última década. Nem é preciso ter sala de aula física, assim como a Uber não tem os próprios carros – a uberização da educação já está em marcha (CALLE, 2021). Se o plano da Uber é automatizar o carro para eliminar os custos com os motoristas, não é difícil imaginarmos qual é o plano dessas empresas uberizadas de ensino com relação aos professores-tutores.

Estamos estruturando nosso sistema educacional nas plataformas de grandes empresas mundiais – Google (Google Sala de Aula), Microsoft (Teams), Meta (Facebook, WhatsApp) entre outras. Sem uma adequada discussão e formação docente, corremos o risco de disseminar mais rápida e amplamente o cibertecnicismo. Por exemplo, no Google Sala de Aula está integrado o Google Formulário, que possibilita desenvolver questões de múltipla escolha que podem ser corrigidas automaticamente, sendo a nota do estudante naquela atividade-teste-avaliação lançada instantaneamente na planilha de notas da turma. A possibilidade de disponibilizar conteúdos e atividades corrigidas automaticamente se tornou acessível a qualquer professor, de todos os níveis, não está restrita a uma equipe de design instrucional ou de programadores.

As grandes empresas de tecnologia estão disputando qual irá colonizar digitalmente o sistema educacional de nosso país e do mundo. A Google, por exemplo, não só oferece o uso gratuito de suas tecnologias para as instituições brasileiras de ensino como também está provendo um sistema de “capacitação” de professores para que se tornem multiplicadores de suas tecnologias educacionais. Há quem vista orgulhosamente a camisa “Google Certified Trainer”, como constatamos em diversos vídeos no YouTube em que professores dão dicas sobre como usar a plataforma Google Sala de Aula.

Se não é possível ainda substituir por completo os professores, buscam aliciá-los, agenciá-los, formá-los para serem usuários de suas tecnologias. Se ainda não é possível automatizar por completo o ensino, seguem sendo empreendidos esforços para que as tecnologias digitais em rede consigam automatizar a técnica de ensinar sem professores.

Ideias, desejos e racionalidade que dão suporte ao cibertecnicismo

O cibertecnicismo não é um resultado apenas do desenvolvimento e da popularização das técnicas e tecnologias digitais em rede, nem pode ser bem compreendido apenas com base em uma teoria de aprendizagem e uma técnica de ensino. Deve ser compreendido como um movimento que vem sendo construído há muitas décadas com base em diversos fatores ideológicos, teórico-científicos, técnico-tecnológicos, econômicos, culturais e sociais que precisam ser considerados para darmos sentido ao tecnicismo em sua atual versão ciber.

No (ciber)tecnicismo, o ensino é massificado. O desejo de uma educação massificada não é novo; podemos exemplificar citando Comenius, considerado o pai da didática moderna, que combateu o sistema feudal de educação e publicou a Didática Magna em 1621-1657 defendendo “uma arte universal de ensinar tudo a todos”:

Didática significa arte de ensinar. [...] Nós ousamos prometer uma Didática Magna, isto é, um método universal de ensinar tudo a todos. E de ensinar com tal certeza, que seja impossível não conseguir bons resultados. E de ensinar rapidamente, ou seja, sem nenhum enfado e sem nenhum aborrecimento para os alunos e para os professores, mas antes com sumo prazer para uns e para outros. E de ensinar solidamente, não superficialmente e apenas com palavras, mas encaminhando os alunos para uma verdadeira instrução (COMENIUS, 2001, p. 3-4).

Por “todos”, Comenius se referia à universalização do ensino, uma escola que deveria incluir também meninas, pobres e deficientes que estavam alijados da educação à época. A proposição de uma educação universal era também uma demanda dos protestantes desde o século XVI que, com a Reforma religiosa, desejavam que cada pessoa pudesse ser capaz de ler e interpretar a Bíblia por si mesma. A universalização da educação, bem como a laicidade, gratuidade e obrigatoriedade que caracterizam a escola como a conhecemos hoje, teve seus princípios amplamente discutidos no período da Revolução Francesa, quando o Estado burguês emergente passou a se responsabilizar pela educação como uma forma de legitimar seu poder. No Brasil, a educação foi usada como instrumento de catequese dos povos indígenas durante o período colonial e posteriormente ficou restrita à elite como um bem privado, um privilégio; foi com a criação do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública (1930) e com o movimento dos Pioneiros da Educação Nova (1932) que começaram a haver concepções e políticas que gradativamente tornaram a educação um bem público e um direito de todos. “Ao reconhecer e incorporar a educação como um direito social, o Estado-nação se conecta à cidadania.” (TREVISOL; MAZZIONI, 2018, p. 18).

O problema obviamente não é o desejo de ensinar a todos, mas sim a operacionalização desse objetivo. Comenius propunha uma organização lógica do conhecimento, de tal forma que qualquer assunto pudesse ser aprendido por qualquer pessoa por meio de um método de ensino que acreditava ser eficaz e eficiente. A Didática Magna representava uma nova abordagem pedagógica porque concebia uma educação que hoje rotulamos como massificada, e também implicava o que hoje reconhecemos como a precarização do trabalho docente, em que um único professor leciona para centenas de estudantes.

De tal maneira que um só professor seja suficiente para instruir, ao mesmo tempo, centenas de alunos, com um esforço dez vezes menor que aquele que atualmente costuma dispender-se para ensinar cada um dos alunos. [...] O professor, com os mesmos exercícios, pode, ao mesmo tempo e de uma só vez, ministrar o ensino a uma multidão de alunos, sem qualquer incômodo (COMENIUS, 2001, p. 46, 96).

A ideia de uma educação massificada foi impulsionada pela automação generalizada que caracterizou a Revolução Industrial, quando os métodos de produção artesanal estavam sendo transformados pela produção por máquinas mecânicas movidas pela energia a vapor e elétrica. Desde o século XIX, diversos esforços foram empreendidos para desenvolver uma máquina que possibilitasse a automação do ensino de instruções: que apresentasse o conteúdo em pequenas unidades testáveis, que desse feedback imediato ao estudante a partir da realização de um teste sobre o que havia apre(e)ndido e que possibilitasse ao estudante estudar no seu próprio ritmo, culminando na máquina mecânica de ensinar que possibilitava a automação da instrução programada.

Além das máquinas mecânicas de ensinar, a massificação do ensino instrucionista encontrou outro tipo de máquina aliada, as “máquinas sensórias” (SANTAELLA, 1997) – fotografia, rádio, cinema, telefone e televisão –, que possibilitaram a reprodução de signos diversos por meio de imagem estática e em movimento, como também pela voz e pelo som. As possibilidades de uma educação massiva foram ampliadas muito além do que já era possível com o livro impresso. O desenvolvimento dos meios de comunicação de massa constitui outro marco que nos ajuda a dar sentido aos movimentos que desejam a massificação da educação, que em nome da universalização do acesso à escola também propõem um currículo massificado, homogeneizado, com todos aprendendo tudo igualmente.

A Revolução Industrial em confluência com os meios de comunicação de massa e com os desenvolvimentos de técnicas e tecnologias de ensino ajudam a compreender a atual versão da instrução (re)programada nas tecnologias digitais em rede. Trata-se de um resultado de uma rede de desejos e de desenvolvimentos que nossa sociedade há séculos vem perseguindo: “Se a automação computadorizada aumentou a produção nas fábricas, então o mesmo poderia ocorrer no ensino superior.” (PLATO, s.d., n.p., tradução nossa)

A pedagogia (ciber)tecnicista também deve ser compreendida a partir do desejo de se cientificar a educação por meio de abordagens mensuráveis, controláveis, experimental-positivistas em vigor na primeira metade do século XX. É nesse contexto ideológico-científico que nasce a área do currículo que também deu suporte à concepção tecnicista de educação:

Bobbitt escreve, em 1918, o livro que iria ser considerado o marco no estabelecimento do currículo como um campo especializado de estudos: The curriculum. O livro de Bobbitt é escrito num momento crucial da história da educação estadunidense, num momento em que diferentes forças econômicas, políticas e culturais procuravam moldar os objetivos e as formas da educação de massas [...] Bobbitt propunha que a escola funcionasse da mesma forma que qualquer outra empresa comercial ou industrial [...] capaz de especificar precisamente que resultados pretendia obter, que pudesse estabelecer métodos para obtê-los de forma precisa e formas de mensuração que permitissem saber com precisão se eles foram realmente alcançados (SILVA, 2019, p. 22).

Com a valorização dos métodos, técnicas e tecnologias na educação, baseada numa racionalidade liberal-científica, consolida-se a pedagogia tecnicista, que é caracterizada pela ideia de que a aprendizagem na escola deva se restringir aos conteúdos científicos, de que o papel da escola seja instruir e preparar o estudante para o mundo do trabalho, focada nos métodos e nas tecnologias de como ensinar melhor, mais correta e eficazmente, e na qual o docente seja um mero executor de currículos concebidos por especialistas. Esse tipo de pedagogia não parou nas décadas de 1960, 1970 e 1980, seguiu sendo apropriado por Estados, gestores, professores e alunos, e se reconfigurou na pedagogia neotecnicista (FREITAS, 2011a) na década de 1990, impulsionada pela racionalidade neoliberal.

A pedagogia neotecnicista não é apenas uma reconceitualização do termo tecnicismo, mas sim um alerta à retomada da pedagogia tecnicista e seu fortalecimento pelas ideias neoliberais. Essa pedagogia preservava a padronização e ampliava o controle através da “predominância da avaliação externa de larga escala, implementada a partir de uma teoria em que o professor e a escola eram responsabilizados de fora do sistema educacional pelos resultados de aprendizagem” (FREITAS, 2021, n. p.).

Com a popularização das tecnologias digitais em rede a partir de 2000, o tecnicismo entra numa nova fase, a da pedagogia neotecnicista digital (ou, como aqui denominamos, “pedagogia cibertecnicista”), que é um “novo estágio de controle do magistério e dos estudantes que vem na onda das tecnologias digitais. Ele combina demandas [...], métodos de ensino e processos de avaliação – tudo embarcado em plataformas de aprendizagem – híbridas ou não” (FREITAS, 2021, n. p.). Um dos objetivos dessa pedagogia é ensinar o estudante a ser gestor de si, de sua própria acumulação de competências e habilidades que devem ser apresentadas como requisito ao mundo do trabalho. Ela vem sendo efetivada em diversos cotidianos e precisa ser questionada. Que subjetividades ela visa produzir? Qual o seu ideal de sujeito e de sociedade? A quem ela serve para produzir esse ideal? Como ela reverbera no processo formativo contemporâneo?

Aprofundamos, na seção a seguir, como essas pedagogias foram sendo configuradas e atualizadas nos últimos setenta anos.

Configurações-atualizações da pedagogia tecnicista

Apresentamos, no Quadro 1, caracterizações do tecnicismo, neotecnicismo e neotecnicismo-digital/cibertecnicismo, que nos fornecem elementos para refletir a formação no presente.

Fonte: Adaptado de Saviani (1999), Libâneo (2006), Freitas (2011a; 2011b; 2021) e Carvalho e Pimentel (2021)

Quadro 1 Pedagogias tecnicista, neotecnicista e neotecnicista-digital (cibertecnicista) 

Conclusão

As máquinas de ensinar não pararam de ser desenvolvidas em meados do século passado, elas continuaram a ser atualizadas desenfreadamente com as novidades técnicas e tecnológicas passando por sucessivas modificações em busca contínua de aprimoramentos na arte de ensinar sem mediação de professores humanos. Ela seguirá sendo aperfeiçoada; o desejo da massificação e automação da instrução não arrefeceu.

Não estamos aqui fazendo um ataque direcionado às tecnologias digitais em rede, pois elas não atuam sozinhas; elas fazem parte de uma rede de agenciamentos movida por desejos, ideias e racionalidades. Ressaltamos que as tecnologias digitais em rede não são apenas as máquinas de ensinar instruções; há também meios para conversação, autoria, colaboração, interatividade, pesquisa e projeto que potencializam outras práticas didático-pedagógicas diferentes da instrucionista-massiva (PIMENTEL; CARVALHO, 2020). Importam as apropriações e os usos que fazemos das tecnologias porque podemos escolher quais tecnologias utilizar e como utiliza-las; contudo, elas não são neutras, pois são projetadas com intencionalidade, possibilitam determinadas ações e impedem outras – por isso é tão importante tecer reflexões como as que estamos aqui apresentando neste texto.

Uma técnica não é nem boa, nem má (isto depende dos contextos, dos usos e dos pontos de vista), tampouco neutra (já que é condicionante ou restritiva, já que de um lado abre e de outro fecha o espectro de possibilidades). Não se trata de avaliar seus “impactos”, mas de situar as irreversibilidades às quais um de seus usos nos levaria, de formular os projetos que explorariam as virtualidades que ela transporta e de decidir o que fazer dela. Contudo, acreditar em uma disponibilidade total das técnicas e de seu potencial para indivíduos ou coletivos supostamente livres, esclarecidos e racionais seria nutrir-se de ilusões. Muitas vezes, enquanto discutimos sobre os possíveis usos de uma dada tecnologia, algumas formas de usar já se impuseram. Antes de nossa conscientização, a dinâmica coletiva escavou seus atratores. Quando finalmente prestamos atenção, é demasiado tarde... Enquanto ainda questionamos, outras tecnologias emergem na fronteira nebulosa onde são inventadas as ideias, as coisas e as práticas. Elas ainda estão invisíveis, talvez prestes a desaparecer, talvez fadadas ao sucesso. Nestas zonas de indeterminação onde o futuro é decidido, grupos de criadores marginais, apaixonados, empreendedores audaciosos tentam, com todas as suas forças, direcionar o devir (LÉVY, 1999, p. 26-27).

A pedagogia cibertecnicista é uma ameaça à educação porque visa a reduzir o processo formativo ao ensino de conteúdos, um processo de instrução descontextualizado, acrítico, sem espaço para a criatividade e a autoria, pensado para o mercado de trabalho, não promovendo valores éticos e democráticos, sem professores ou com profissionais com atuação restrita e precária, sem liberdade nem autonomia pedagógica e curricular.

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1Este texto deriva da palestra realizada na mesa-redonda “Por uma leitura crítica das tecnologias digitais na educação: sobre usos tecnocêntricos e emancipações”, no Seminário de Educação (SemiEdu 2021) e da postagem “Instrução (re)programada, máquinas (digitais em rede) de ensinar e a pedagogia (ciber)tecnicista” (PIMENTEL; CARVALHO, 2021). Parte do texto é original e atualiza os anteriores.

Recebido: 04 de Fevereiro de 2022; Aceito: 04 de Março de 2022

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