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Regae: Revista de Gestão e Avaliação Educacional

On-line version ISSN 2318-1338

Regae: Rev. Gest. Aval. Educ. vol.11 no.20 Santa Maria  2022  Epub Sep 13, 2023

https://doi.org/10.5902/2318133868748 

Artigo

Memórias Democráticas Da Rede Municipal De Ensino De Santo André/Sp: Cultura Escolar Inclusiva

Democratic Memories Of Santo André/Sp Municipal Educational System: Inclusive School Culture

Maraligia da Silva¹  , professora
http://orcid.org/0000-0002-0362-6338

Sanny Silva da Rosa²  , professora
http://orcid.org/0000-0001-5044-6156

¹Maraligia da Silva é professora de educação infantil e ensino fundamental da Prefeitura Municipal de Santo André, Santo André, SP, Brasil. maraligia25@gmail.com.

²Sanny Silva da Rosa é professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, São Caetano do Sul, SP, Brasil. sanny.rosa@online.uscs.edu.br.


Resumo

Neste artigo, discute-se as ações de dirigentes escolares na produção de uma cultura escolar inclusiva de alunos com deficiência em salas comuns da rede municipal de Santo André/SP. A pesquisa teve como objetivo registrar as memórias democráticas das políticas municipais de educação especial na perspectiva inclusiva, instituídas no início da década de 1990. Os dados foram coletados com um grupo de discussão e analisados por meio de abordagem qualitativa, considerando os seguintes conceitos: educação inclusiva, gestão democrática, atuação em políticas, ação humana. Os resultados foram sistematizados num Protocolo de ações para uma cultura escolar inclusiva1, que articula cinco papeis do diretor escolar: o de administrador; o de mediador; o formador; o de acolhedor e o de articulador.

Palavras-chave: políticas de educação inclusiva; gestão democrática; atuação em políticas; diretor escolar; Santo André/SP

Abstract

The article presents and discusses the role played by school principals to build an inclusive school culture for students with disabilities who attend regular classrooms. The research aimed to record school managers’ memories of Santo André’s special education policy implemented in 1990s onwards. Data were collected in a discussion group and analyzed through prose analysis, considering the following theoretical categories: inclusive education, democratic management, policy enactment and human action. The results were systematized in a protocol that aim to articulate five roles played by school principals in the building of an inclusive school culture: that of school manager; the mediator; the trainer; the welcoming and policy articulator.

Key-words: inclusive education policy; democratic management; policy enactment; school principal; Santo André/SP

Introdução

A inclusão de estudantes com deficiência em escolas comuns permanece um desafio das redes públicas de ensino no Brasil. Se, por um lado, é fato que a Constituição de 1988 induziu avanços na esfera legal e real, de outro, subsistem dúvidas e resistências ao convívio e participação de alunos com deficiências nas atividades regulares da escola.

São muitas e conhecidas as razões deste estado de coisas: inadequação ou superficialidade de programas de formação inicial e continuada de professores; investimentos públicos insuficientes na infraestrutura física e material dos sistemas de ensino; falta de profissionais de apoio nas escolas; desarticulação ou ausência de políticas intersetoriais de educação, saúde, assistência social, entre outras.

Com efeito, esse rol de motivos passa pela dificuldade de compreensão ou aceitação do princípio que preside a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008, qual seja: “o direito de todos os alunos de estarem juntos, aprendendo e participando, sem nenhum tipo de discriminação” (Brasil, 2008, p. 1).

A persistente resistência a esse princípio emerge como sintoma dos preconceitos - velados ou explícitos - que se manifestam, tanto nas práticas escolares, quanto nos discursos sociais que advogam a necessidade de oferecer atendimento especializado aos alunos com deficiência. Essa foi, por exemplo, a justificativa do decreto 10.502/20202, que instituía uma nova política de educação especial.

A Constituição Federal de 1988 e a LDB estabelecem que, além do acesso à escola, todos os alunos têm direito a uma educação pública de qualidade. A conquista desses direitos foi resultado da luta de muitos que, no âmbito dos sistemas e das unidades de ensino, se empenham em construir uma cultura escolar inclusiva.

Neste contexto, por meio de deste artigo busca-se destacar as ações de diretoras escolares da rede de Santo André/SP, município que tem uma história de contribuições relevantes para a consecução dos objetivos da educação inclusiva. Os relatos e reflexões apresentados resultam de uma pesquisa realizada no Mestrado Profissional em Educação, pela qual se buscou conhecer a problemática da inclusão de estudantes com deficiências em escolas regulares do ponto de vista das diretoras, tendo em vista o lugar estratégico que ocupam para a continuidade desse projeto.

Santo André/SP: uma cidade em busca da inclusão

O município de Santo André, localizado no ABC Paulista, região metropolitana da cidade de São Paulo, completou 468 anos em 2021. Primeira vila do Planalto paulista, a então chamada Santo André da Borda do Campo foi fundada em 1553, pelo explorador português João Ramalho que, em aliança política com a tribo dos Guaianases, casou-se com Bartira, filha do cacique Tibiriçá (Ramos; Morais, 2010). Dessa união resultaram 12 filhos, cujos descendentes tiveram sorte semelhante à de grande parte da população brasileira miscigenada: a submissão econômica, social e cultural aos colonizadores brancos europeus.

Três séculos depois, com a expansão do ciclo exportador do café, o povoado que crescera em torno da estação São Bernardo da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, inaugurada em 1867, deu origem à cidade de Santo André. A autonomia do município ocorreu, porém, somente em 1944, devido ao crescimento de sua atividade econômica ligado, especialmente, às indústrias metalúrgicas instaladas na região em meados do século 20.

Atualmente, Santo André tem uma população estimada de 726.889 habitantes, distribuída em 174,38 km2 (IBGE, 2021). Em 2019, a proporção de pessoas ocupadas era de 34,2%, sendo que 30,5% possuíam renda mensal de apenas ½ salário-mínimo. Com a retração da atividade industrial da última década, o setor de metalurgia é hoje responsável por apenas 0,8% dos empregos formais da cidade (Fundação Seade, 2021). Dados da prefeitura de 2016, apontam que “os mais pobres somavam 41% das pessoas, numa cidade onde os negros perfazem 27,6% dos habitantes” (Santo André, 2016, p. 44).

Santo André faz parte do mapa de lutas do Movimento Sindical do ABC pela democracia e pela ampliação de direitos sociais3, no final dos anos 1970 e princípio dos anos 1980. Foi especialmente notável nesse período a participação das mulheres operárias nas jornadas de reivindicação do direito a vagas em creches (Schifino, 2016). Na esteira desses movimentos sociais, que culminaram com o fim da ditadura militar, Santo André elegeu, para o mandato de 1989 a 1992, o prefeito Celso Daniel, do Partido dos Trabalhadores, que deu início à importante trajetória de políticas inclusivas da cidade que se mantém viva na memória e nas práticas dos que delas participaram, especialmente, na área da educação.

Com a promulgação da Lei Orgânica do Município - lei n. 14.146, de 27 de abril de 1990 -, a cidade organizou o seu próprio sistema público de ensino estabeleceu. No art. 253 desta lei, estabeleceu-se que a educação especial seria realizada, preferencialmente, nas escolas regulares. Assim, em 1992, as 37 escolas municipais - que na época abrangiam apenas a educação infantil e a educação de jovens e adultos - já contavam com 100 alunos com deficiência matriculados em salas de aulas comuns.

Na gestão do prefeito Newton Brandão (1993-1996), do PTB, esses alunos voltaram a ser atendidos em classes especiais. Porém, de 1997 até o final de 2008, em quatro gestões sucessivas do Partido dos Trabalhadores, a educação inclusiva foi consolidada como política pública municipal. Desde então, os seguintes princípios nortearam as diretrizes da educação do município: democratização do acesso, qualidade da educação e democratização da gestão. Cumpre ressaltar o pioneirismo de Santo André/SP em pôr em prática o ideário da ‘educação para todos’, lembrando que a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva só seria instituída na segunda gestão do governo Lula, em 2008, com a participação dos mesmos personagens que contribuíram para a formulação e implantação da política municipal dez anos antes.

Em 1998, foi criado o Centro de Atenção ao Desenvolvimento Educacional - Cade -, órgão vinculado à Secretaria de Educação de Santo André, constituído por uma equipe multidisciplinar incumbida de fomentar a formação teórica e pedagógica dos profissionais da rede. Naquele mesmo ano, as escolas passaram a contar com o apoio do professor assessor de educação inclusiva - Paei -, profissional itinerante que integrava as equipes gestoras das escolas, auxiliando o trabalho de professores das salas regulares e das salas de recursos multifuncionais - SRM.

Outras iniciativas estimularam políticas intersetoriais integrando as ações de profissionais da saúde e da educação do município. Em 2007, foi criado o Centro de Atendimento Educacional Multidisciplinar - Caem -, formado por psicólogos, fonoaudiólogos e psicopedagogos, que atendiam a alunos com dificuldades escolares ou transtornos de desenvolvimento, com ou sem diagnóstico. O crescente número de matrículas evidencia a consistência desta política ao longo do tempo. De acordo a Prefeitura Municipal de Santo André (2000), em 1999, a rede contava com 285 alunos com deficiência nas escolas comuns. No final de 2020, esse número chegou a 1.200, dos quais 800 atendidos pelo Caem.

Fonte: Gerência de Educação Inclusiva (Santo André, 2021).

Gráfico 1  Evolução das matrículas dos alunos com deficiência em Santo André/SP (2005-2020). 

Note-se que o ambiente político e social em que foram formuladas as políticas de educação democrática do município foi o mesmo que, a partir das diretrizes da Conferência Mundial sobre Educação para Todos (1990), fomentaram medidas que possibilitaram a universalização do acesso à escola pública e gratuita no Brasil. Com efeito, todo esse esforço não subsistiria sem as ações rotineiras daqueles que diretamente se implicaram nos processos de inclusão no âmbito das unidades escolares. Para além das condições de acessibilidade física e material dos equipamentos públicos, um projeto escolar inclusivo só se torna possível com a participação de pessoas que trabalham para esse fim de forma coletiva e colaborativa.

O projeto de educação inclusiva, presente na cultura instalada nas escolas da rede de Santo André/SP, tornou-se terreno fértil para práticas democráticas, visto que este não é um conceito genérico descolado da experiência concreta de seus atores (Rosa, 2019).

Gestão democrática e cultura escolar inclusiva

A Constituição de 1988, no artigo 205, estabelece a educação como direito de todos, dever do Estado e da família, tendo como objetivo o desenvolvimento pleno do indivíduo, a formação para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho (Brasil, 1988). Para atingir essa finalidade da educação nacional, no artigo 206 define-se a gestão democrática como um dos princípios da escola pública. Valores como respeito à dignidade humana e à diversidade de qualquer ordem, proclamados, em 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, são princípios comuns à educação na perspectiva inclusiva.

Apesar de todo o aparato jurídico e dos conhecimentos acadêmicos assimilados aos discursos sociais nas últimas décadas, a conversão desses princípios em realidade permanece como horizonte a ser alcançado. Ao estabelecer a educação de qualidade como uma das prioridades do município, Santo André/SP se comprometeu com a redução das desigualdades sociais, com a melhoria da qualidade de vida das pessoas e com a consolidação de processos democráticos na condução dos assuntos de interesse da cidade (Santo André, 1997). Desde então, toda uma geração de educadores formada nessa perspectiva engajou-se no fortalecimento de espaços coletivos de participação, como os fóruns municipais de educação, conselhos de escola, entre outros.

O documento norteador da política educacional de Santo André/SP, de 2008, ampliava o escopo dessa participação:

A proposição genérica de uma “escola para todos” responde à política de democratização dos espaços públicos. Frequentemente, essa democratização é confundida com uma abertura genérica e desregrada da escola, sem, antes, o devido investimento na criação das condições de possibilidade de acolher esses novos alunos e na equiparação de oportunidades a todos. Por isso, rompendo com aquelas iniciativas verticalistas e homogeneizantes, pertinentes mais a uma prática demagógica do que democrática, tem-se estabelecido um conjunto de ideias e ações que visam provocar positivamente os diferentes agentes, serviços e equipes envolvidas nesse amplo processo de educação inclusiva. (Santo André, 2008, p. 2)

Com esse entendimento, o diretor deixava de ser o personagem central da escola, embora se mantivesse como ator chave para a construção de uma gestão compartilhada. Nesse sentido, caberia a ele promover uma organização escolar favorável a práticas democráticas, que pressupõe a responsabilidade coletiva pela eliminação de todas e quaisquer barreiras à inclusão.

Com efeito, muitas reformas educacionais em curso no país, desde meados dos anos 1990, passaram a chamar os gestores a atuarem como gerentes de um modelo de educação orientado por resultados, medidos por indicadores padronizados de desempenho. Assim, a descontinuidade de alguns projetos, com a alternância de poder na gestão municipal, ameaçou a cultura democrática instituída na rede. Práticas mais centralizadoras de gestão, subordinação dos currículos às expectativas de aprendizagem e a responsabilização das escolas pelo desempenho dos estudantes em avaliações externas, tendem a reduzir o espaço de autonomia das escolas na condução de seus projetos político-pedagógicos. Ainda que o princípio da gestão democrática se mantenha nos discursos, é fato que políticas reguladoras, orientadas por resultados, concorrem para o seu esvaziamento.

O tensionamento entre esses projetos que circulam na rede municipal, põe os gestores escolares diante do dilema de terem que atender, simultaneamente, a chamados que conflitam entre si: de um lado, o de responder às demandas inerentes ao cargo de direção de entregar resultados; de outro, o de atender ao chamamento ético de respeitar o direito de todos de aprender de acordo com as suas próprias características e necessidades. Trata-se do mesmo dilema experimentado pelo professor “pré-reforma” descrito por Ball (2005):

O professor “pré-reforma”, em conflito com a autenticidade, experimenta um tipo de “esquizofrenia de valores”, quando o compromisso e a experiência da prática precisam ser sacrificados e substituídos pela impressão que deve causar e pelo desempenho. Existe, nesse caso, uma possível “ruptura” entre aquilo que os próprios professores veem como “boas práticas” e “necessidades” dos alunos por um lado, e os rigores do desempenho, de outro.” (p. 551)

Nesse ambiente, entendemos que cabe ao diretor escolar mobilizar a equipe escolar para resistir à violência simbólica (Bourdieu, Passeron, 2012) exercida sobre as subjetividades dos profissionais da educação (Rosa, 2019), principalmente, quando o que está em jogo são direitos fundamentais de sujeitos historicamente excluídos dos processos educativos:

O papel do diretor em provocar as mudanças necessárias do sistema em cada nível - o setor escolar central, a escola e cada turma - é essencialmente um papel de facilitação. A mudança não pode ser legislada ou obrigada a existir. O medo da mudança não pode ser ignorado. O diretor pode ajudar os outros a encararem o medo, encorajar as tentativas de novos comportamentos e reforçar os esforços rumo ao objetivo da inclusão. (Sage, 1999, p. 135)

Na pesquisa, procurou-se destacar as ações realizadas por quatro diretoras, no intuito de institucionalizar práticas inclusivas e democráticas nas unidades em que atuam. Pela longa experiência acumulada como profissionais da rede municipal de Santo André/SP, Adélia: 42 anos, professora da rede há 19 anos; Nise: 46 anos, professora da

rede há 12 anos; Jô: 49 anos, professora da rede há 20 anos; e Dorina4: 52 anos, professora da rede há 32 anos; foram convidadas a participar deste estudo por representarem a geração de educadores que acompanharam e contribuíram para esse trabalho.

Em meio à pandemia de Covid-19, os dados foram coletados, virtualmente, em novembro de 2020, num grupo de discussão (Meinerz, 2011). A análise do material coletado foi realizada por meio de abordagem qualitativa (André, 2012).

Mais do que meros feitos, as ações dessas diretoras precisam ser entendidas no sentido proposto por Arendt (2001) ao termo, isto é, como obra e como palavra que se inscrevem no mundo para modificá-lo:

Agir, no sentido mais geral do termo, significa tomar iniciativa, iniciar (como indica a palavra grega archein, <começar>, <ser o primeiro> e, em alguns casos, <governar>), imprimir movimento a alguma coisa. (...) A ação que ele inicia é humanamente revelada através de palavras; e, embora o ato possa ser percebido em sua manifestação física bruta, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada na qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer. (p. 190)

Como se verá a seguir, produção de uma cultura de educação inclusiva depende do cuidado com inúmeros detalhes envolvidos da organização e das dinâmicas cotidianas da escola: as condições físicas, materiais e arquitetônicas de seus espaços, as formas de acolhimento e convivência dos sujeitos e nas práticas pedagógicas de sala de aula (Mendes, 2002; Tezani, 2004). Cuidar desses múltiplos aspectos requer que a atuação do gestor desdobre em diferentes papéis indissociáveis entre si.

Papéis do gestor na produção de uma cultura escolar inclusiva

Sobre a capacidade do gestor de compreender as diferentes demandas e articular as diferentes frentes de trabalho na escola, Libâneo (2004) enfatiza que

trata-se de entender o papel do diretor como um líder, uma pessoa que consegue aglutinar as aspirações, os desejos, as expectativas da comunidade escolar e articular a adesão e a participação de todos os segmentos da escola na gestão de um projeto comum. Como gestor da escola, como dirigente, o diretor tem uma visão de conjunto e uma atuação que apreende a escola nos seus aspectos pedagógicos, culturais, administrativos, financeiros. ( p.113)

Quando acrescentamos a elas a responsabilidade de pôr em ação (Ball, 2016) uma política tão cheia de nuances, como é a inclusão escolar de alunos com deficiência, o lado gestor ganha ainda maior peso.

O gestor

Como atividade-meio que oferece sustentação à realização de seus fins, a dimensão administrativa da escola não se separa da dimensão pedagógica. É nesse sentido que o Paro (2010) enfatiza as potencialidades pedagógicas das práticas administrativas, que envolvem a coordenação entre os recursos objetivos - materiais e imateriais - e os recursos subjetivos - repertório de conhecimentos, valores, visão de mundo - de todos os sujeitos escolares - docentes, auxiliares administrativos e demais funcionários - para porem em movimento o projeto político-pedagógico da escola.

Oferecer uma educação de qualidade e inclusiva implica garantir um ambiente de convivência onde todos sintam que são vistos, respeitados e valorizados e que existe um esforço, por parte da direção. Corresponder às expectativas de todos os sujeitos escolares não é tarefa fácil, principalmente quando se leva em consideração a complexidade das demandas cotidianas em escolas de grande porte, como a de Adélia, que possui 807 alunos de educação infantil e anos iniciais do ensino fundamenta, ou como a creche administrada por Jô, que conta com 156 crianças pequenas.

Nas discussões do grupo, os aspectos administrativos apareceram articulados à preocupação de garantir boas condições de trabalho aos docentes e o bem-estar dos alunos:

“É isso que a gente acredita, que é uma escola inteira trabalhando em prol disso (projeto político-pedagógico). Então, assim, tem a questão pedagógica, mas é o administrativo também, é limpeza, é merenda, enfim, quer dizer, é uma escola com uma cultura pensando nessa questão do bem-estar do aluno de modo geral, com deficiência, sem deficiência.” (Adélia)

“A gente tem uma preocupação com a organização da creche, com o espaço adequado para as crianças pequenas, para dar um lugar de qualidade para aquela comunidade que já tem ali tantas questões para pensar.” (Jô)

Para Jô, o projeto político-pedagógico é responsabilidade de toda a equipe escolar. Por isso, ela vê a participação dos funcionários como importante dispositivo para a articulação do trabalho coletivo:

“Normalmente, quando nós temos as reuniões pedagógicas, em nosso grupo, nunca fica ninguém de fora. Então...o pessoal da cozinha...os outros (funcionários) operacionais eles gostam de participar e opinam. (Pelo fato de) as crianças serem muito pequenas, nós necessitamos que este grupo todo trabalhe em sintonia. Por exemplo, uma lactarista, com o trabalho com bebês, ela não pode simplesmente fazer a mamadeira, deixar lá e pronto, acabou. Ela tem que se envolver nesse trabalho; ela precisa estar próxima... e são pessoas que contribuem bastante, e acaba tendo mudanças até no seu pensar.” (Jô)

Como enfatiza Libâneo (2004), quando todos conhecem os objetivos do projeto político-pedagógico, as ações e responsabilidades de cada um adquirem sentido: “autonomia, participação, democracia não significam ausência de responsabilidades. Uma vez tomadas as decisões coletivamente, participativamente, é preciso colocá-las em prática. Nessa hora, a escola precisa estar bem coordenada e administrada” (p. 112) É nessa hora que entra em cena o papel do diretor como mediador.

O mediador

Os movimentos que trazem em seu bojo a quebra de paradigmas impõem aos sujeitos novas formas de pensar e agir. É disso que se trata quando se entram em cena (Ball, 2016) políticas tão controversas e passíveis a resistências, como a inclusão de alunos com deficiência nas salas regulares. Adélia e Jô relataram as tensões que emergiram no cotidiano da escola e que requereram a atuação mediadora:

“A gente passou por aquele período que quando os alunos com deficiência foram para a sala regular, dos professores falar 'tá, mas eu não tenho formação, mas eu não tenho formação'. Não é um trabalho fácil, a gente ainda tem algumas resistências. Acho que isso é mais o lado humano do que o lado pedagógico da coisa, mas é isso.” (Adélia)

“Eu já enfrentei em momentos de atribuição de salas, por exemplo, de perceber que o profissional, ele não quer assumir aquela sala porque tem uma criança com deficiência.” (Jô)

Tais resistências, como elas reconhecem, não são resultado de posicionamentos individuais, mas expressão de crenças e juízos arraigados às representações e práticas sociais. A esse respeito, Mantoan (2004) observa que

aprendemos a ensinar segundo a hegemonia e a primazia dos conteúdos acadêmicos e temos, naturalmente, muita dificuldade de nos desprendermos desse aprendizado, que nos refreia nos processos de ressignificação de nosso papel, seja qual for o nível de ensino em que atuamos. (p. 9)

Mediar o processo de desconstrução dessas crenças é tarefa árdua que demanda tempo, disposição e responsabilidade social. No ambiente escolar, essa responsabilidade recai sobre a equipe gestora. Se, na divisão de tarefas, as questões pedagógicas ficam em geral a cargo dos coordenadores pedagógicos, cabe ao diretor estabelecer regras que induzam uma convivência digna e respeitosa entre todos.

Uma educação inclusiva não se limita à tolerância ou à aceitação da presença dos alunos com deficiência nas classes comuns. Incluir pressupõe entender que a diferença é atributo inerente à condição humana. Nas palavras de Hannah Arendt (2001),

a pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender. (p.188)

Diante dessa provocação filosófica é que se pode avaliar a radicalidade dos desafios propostos pela política de educação especial na perspectiva inclusiva. Muitas vezes, os professores têm que ser levados a entender que o trabalho com os alunos com deficiência não é apenas possível, mas se impõe como necessidade ética, como explica Jô:

“Porque às vezes a gente precisa dizer assim: 'olha, então, ele tem deficiência, mas ele precisa ser desafiado tanto quanto aquele que não tem. Então, se você não permite que aquele outro coma com a mão ou que você quer que ele sente para comer, se você almeja o desfralde para este, para ele também'. Porque fica muito forte essa coisa de 'ele não vai dar conta'. E muitas vezes a gente precisa dizer: ele vai dar conta”. (Jô)

Além das mediações pedagógicas, o diretor atua mediando os conflitos que surgem devido à diversidade de visões e condutas dos diferentes atores escolares. Nem sempre esses conflitos emergem sob a forma de brigas ou discussões. Críticas veladas podem ser mais prejudiciais ao processo de inclusão do que um bate-boca acalorado. Fatores intervenientes que escapam do campo de autonomia do diretor dificultam esse trabalho, como exemplifica Dorina,

“A maioria dos meus funcionários é terceirizada, tem muita rotatividade. Hoje você conversa, amanhã você conversa de novo, depois você conversa de novo... a gente tem feito isso direto com eles ou também, assim, no trabalho com aquele professor... eu tenho funcionários que são readaptados, então, às vezes acaba falando 'olha, eu vou... eu não gostei de ver tal coisa, então vamos entender essa criança, vamos ver o que esse professor está fazendo, o que o AIE está fazendo ou o estagiário.” (Dorina)

A terceirização de funcionários, ssim como a rotatividade de professores, são fatores que concorrem para o aumento da complexidade da equipe gestora. A tarefa de sensibilizar os sujeitos é contínua e incessante e, embora deva ser compartilhada, na maior parte dos casos, quem dá conta do recado é mesmo o diretor da escola.

O formador

Muitas das ações administrativas e mediadoras se revestem de caráter formativo. A chave que assegura esse processo, no entender das participantes, é a capacidade de ouvir e compreender as necessidades do grupo, como observou Adélia ao recordar do dia em que se apresentou como diretora da escola:

“O meu maior aprendizado em todos esses anos foi o dia que eu cheguei lá para me apresentar numa escola com 110 funcionários, eles estavam todos em roda no pátio de braços cruzados. Eu falei: 'eu vim escutar vocês'. 'eu estou aqui para escutar cada um; vocês vão falar e eu vou ouvir'. Foi uma reunião das oito da manhã até quase uma hora da tarde. Então, isso eu carrego e falo muito para eles lá: escutem as pessoas, depois você pode falar e fale quando você quer mudar alguma coisa ou você acha que tem que fazer... vamos fazer juntos”. (Adélia)

Tendo em vista a complexidade das questões que envolvem a inclusão de alunos com deficiências, uma das prioridades formativas diz respeito à superação de preconceitos. Adélia se referiu a esse desafio em dois momentos:

“A gente está na resistência diária para não deixar esse preconceito voltar, esse racismo voltar e o que eu falo para os meus professores é que a pior coisa que você pode sentir é dó do outro, é pena... Não sinta pena daquela criança...invista naquela criança para que ela seja... que ela tenha um trabalho, que ela consiga ser um profissional ou que ela tenha uma vida, pelo menos, digna. E é isso que a gente tem que lutar. (...) Eu sempre falo para as professoras que a gente tem um lema, que é não deixar nenhum aluno para trás, que a inclusão não é só dos deficientes, ela é de todos, mas a gente tem que ter isso em mente enquanto formação humana nossa. (Adélia)

Superar preconceitos e resistência é um processo que é feito olho no olho, nas conversas durante o cafezinho, nos corredores da escola, nos horários de entrada e saída dos alunos, enfim, fora dos gabinetes. Tais ações não prescindem de momentos formais de formação que aprofundem conhecimentos e reflexões sobre temas atinentes à educação inclusiva que são pouco ou superficialmente abordados nos cursos de formação inicial e continuada de professores (Mantoan; Prieto, 2006).

Essa lacuna formativa, captada nas entrelinhas das manifestações das diretoras, foi identificada em estudo recente realizado com as professoras assessoras de educação inclusiva - Paei - de Santo André/SP (Freitas, 2021). Assim, deve-se ressaltar as dimensões filosófica e política do projeto educativo da escola, bem como lembrar que este projeto não pertence exclusivamente ao dirigente. Cabe a ele zelar pela tradução cotidiana dos princípios e objetivos definidos coletivamente, papel que se desempenha, na visão das participantes, por meio de uma postura de acolhimento.

O acolhedor

Ações de acolhimento foram mencionadas diversas vezes no grupo de discussão. Tais ações se dirigem aos diferentes sujeitos escolares e são especialmente importantes quando se referem aos cuidados devidos aos alunos com deficiências, às suas famílias, aos professores, aos funcionários. A chegada de um aluno com deficiência à escola não é fato que passa despercebido. Pelo contrário, esse momento gera curiosidade, receio, ansiedade, contrariedade.

Estes são alguns dos primeiros nós do processo de inclusão escolar que ali se inicia. A forma como a equipe gestora leva essa notícia ao seu grupo de trabalho será determinante para o posicionamento de todos daí em diante, o que requer respeito, transparência, objetividade e empatia. Adélia e Nise contam como realizam esse trabalho:

“Antigamente, eu não apresentava o diagnóstico logo no início do ano para as professoras, porque a gente acreditava que eles tinham que conhecer o aluno. Hoje eu mudei um pouquinho. Eu chamo a professora para conversar. Depois da matrícula a gente conversa com a família, e conversando com a família a gente vê as dificuldades (...) e aí a gente chama essa professora para conversar, no sentido de acolhimento mesmo.

De falar: ‘prô, você vai receber esse aluno, ele tem essas características; aqui no relatório está constando isso, isso e isso, mas primeiro a gente vai conhecer a criança.” (Adélia)

“Hoje mudou muito. Faz toda a diferença quando a gestão traz esse olhar, traz essa briga e fala 'estamos juntos' e hoje eu estou vivendo isso, enquanto gestora (...) E eu vejo o quanto a gente é importante. Hoje você coloca na atribuição às deficiências e as pessoas escolhem numa boa. Antes não era assim. Então a gente consegue educar o olhar, a gente consegue dizer ‘estamos juntos’. O que você precisar, a gente está aqui. Então é uma cultura que a gente precisa também trazer para a rede.” (Nise)

Como elas deixam claro, acolher não significa transigir com os princípios e procedimentos de inclusão instituídos nas escolas. Ouvir e compreender as inseguranças dos docentes não implica recuar ante a argumentos recorrentes, como falta de formação específica para lidar com as deficiências. Sobre isso, Adélia é categórica em sua posição:

“A gente tem que ir atrás. Não dá mais para ter esse tipo de fala. É inaceitável, então vamos buscar, o professor precisa ter o apoio da gestão, mas ele também tem que correr atrás. Ele precisa saber que se aquela criança surtar, bater a cabeça na parede, vai ter alguém ali que vai tirar essa criança da sala naquele momento e vai acolher, mas que também vai garantir que esse aluno tenha seu direito a uma educação de qualidade preservado.” (Adélia)

Como Adélia, Dorina também entende que ouvir o professor não significa realizar uma escuta condescendente. Pelo contrário, os elementos apontados em alguns embates precisam ser problematizados e transformados em objetos de reflexão e autoanálise. A busca é coletiva, mas cada um precisa cumprir o seu papel. Ela conta como realizou esse trabalho e a posição que adotou como diretora de uma escola de mais de 1.000 alunos, dos quais 44 têm algum tipo de deficiência.

“Quando eu cheguei na escola (em 2017) eu achei maravilhoso o que eu enxergava (por ser uma escola superampla, uma escola de muito acesso...porém, o que me assustou muito é que eu via crianças pelos corredores (...)fora da sala de aula e eu ficava assim: 'Meu Deus! eu preciso fazer alguma coisa. Isso não está muito legal' (...) eu acabei entrando até em embate com algumas professoras. Eu não gosto de quando eu vou a uma atribuição de sala, e está lá: o Zezinho é isso, o Joãozinho é aquilo e o Pedrinho é aquilo outro'. Então, a gente não nomeia (mais) e isso foi um trabalho que nós fomos fazendo com as Paeis. Elas abraçaram isso comigo e deu um resultado muito legal.” (Dorina)

A relação com as famílias de alunos com deficiências é outra frente de trabalho que demanda empatia e acolhimento. Algumas crianças, jovens ou adultos nunca saíram de suas casas; outros passaram muito tempo em instituições especializadas. No momento da matrícula na escola regular, muitas dúvidas e inseguranças aparecem, que explicam as posturas, ora defensivas, ora excessivamente protetivas dos pais. Solicitar que eles colaborem, ensinando a equipe escolar a lidar com os seus filhos foi uma das formas que Dorina encontrou para conquistar a confiança das famílias e aproximá-las da escola:

“E aí nós fomos trazendo essa família lá para dentro. ‘Então, mostra para a gente...mostra pai, como é que você troca o N..., por exemplo? Ensina para mim que eu sou diretora, ensina para a professora, ensina para o cuidador... ‘Ah, eu troco assim, eu tiro ele assim.’ Então, essas famílias começaram a ficar ali dentro com a gente. Então a gente veio de um trabalho aí de formiguinha.” (Dorina).

Em suma, construir uma cultura escolar inclusiva é um trabalho que não se restringe às relações intraescolares. É necessário articular todo esse trabalho com setores mais amplos da sociedade que precisam ser chamados a participar.

O articulador

Libâneo (2004) observa que, dentre as inúmeras atribuições do gestão escolar, também compete a promoção da “integração e a articulação entre a escola e a comunidade próxima, com o apoio e iniciativa do Conselho de Escola, mediante atividades de cunho pedagógico, científico, social, esportivo, cultural” (p. 218). É preciso, ainda, estabelecer canais de comunicação e diálogo com atores de outras organizações - governamentais e não-governamentais - dos quais a escola depende para acionar serviços como manutenção, limpeza, zeladoria, entre outros.

Trata-se de acionar a intersetorialidade, prevista nas políticas públicas para integrar e melhorar a qualidade do atendimento dos serviços públicos oferecidos à população. Um exemplo de iniciativa com esse propósito foi a criação dos Centros Educacionais de Santo André - Cesa -, que são complexos educacionais que reúnem, num mesmo espaço, programas e atividades das áreas da educação, saúde, esporte, cultura e lazer. De acordo com Dorina, a parceria da escola com o Cesa beneficiou a inclusão dos alunos com deficiência em outras atividades oferecidas pela cidade.

“Eles participam. Participam. Então, isso a gente tem uma parceria bem bacana, como eu falei, eu tenho uma parceria bem bacana com o coordenador lá do esporte, do Cesa. Então, quando ele abre as vagas, independente se a criança, ela tem alguma deficiência ou não, ele abre sempre a vaga para todos.”(Dorina)

Muitas famílias procuram as creches orientadas por médicos e por outros profissionais da saúde, com a justificativa de que seus filhos precisam do convívio com outras crianças e das atividades da educação infantil que proporcionam o desenvolvimento global daquela criança. A partir do primeiro contato, inicia-se uma parceria em que a troca de informações entre as áreas de educação e saúde ganha um lugar de destaque.

“Temos hoje crianças que já chegam na unidade com acompanhamento de terapeutas, de profissionais bastante avançados. (...) esse diagnóstico, esse acompanhamento já acontecem...(com) essa porta de entrada, elas já vêm com um empurrãozinho por esses profissionais, pelos especialistas. Então, essa parceria, ela também acaba sendo bastante interessante.” (Jô)

A busca de condições que assegurem o direito a um atendimento público de qualidade requer a mobilização de ações intersetoriais que dependem de contingências específicas e de iniciativas pessoais para serem estabelecidas. A relação com a área de saúde funciona muito bem na escola dirigida por Jô, facilitada, segundo ela, pela proximidade com o posto de saúde: “Então nós somos coladinhos (e) nós temos uma parceria muito legal, tanto que o posto de saúde utiliza muito o nosso espaço para formações...então, esse diálogo acontece de uma forma bem interessante” (Jô).

Mas articular as necessidades da escola com diferentes setores do serviço público nem sempre é tarefa fácil. Adélia relata que ainda predomina uma cultura de fragmentação:

“Com a Saúde, absolutamente nada; com o Esporte, a gente, na verdade, tem só o empréstimo da quadra de terça a sexta à noite para o basquete, para a Secretaria de Esportes, mas eles não atendem os nossos alunos... Com a Cultura...aliás, já pedi, já mandei ofício pedindo para fazer teatro. Chamava a escola da frente, chamava a creche, mais de mil alunos ali, quase dois mil e eles já responderam várias vezes que eles não fazem parceria com Emeief.” (Adélia)

A atenção para questões que extrapolam os muros da escola foi destacada por Nise:

““É que envolve, na verdade, quatro secretarias. A minha envolve a secretaria do Lazer, a da Educação e a do Trânsito. É muita (sic) secretaria conversando. Claro que, se eles querem, eles fazem acontecer. (...) A nossa escola é localizada numa praça (que) você tem que adentrar (onde) entra pedestre, entra carro. É um horror! E aí onde era o desembarque dos deficientes? Eles tinham esse direito assegurado? Isso era uma coisa que me deixava assustada e muito incomodada porque em dia de chuva, eles tinham que andar um pedaço bem comprido, o desembarque não era demarcado, não tinha vaga demarcada, não tinha placa onde eles paravam ali na ponta da praça. E aí, eles andavam dali com a cadeira de rodas, tudo quebrando.” (Nise)

Ao relatar esse caso, Nise destacou a importância do engajamento da comunidade escolar e do apoio recebido pela Gerência de Educação Inclusiva do município na solução do problema:

“Então isso começou uma grande briga com o trânsito, com a Secretaria; por fim, eu consegui uma vaga demarcada na frente, agora, depois de três anos que eu estou lá (e, também) porque até a comunidade, o Conselho de Escola- e eu tenho tudo registrado -, revoltados, começaram a se colocar. Então, o peso que tem o Conselho de Escola, a própria comunidade... Mas quem realmente comprou essa briga toda foi a gerência... foram elas que trouxeram essas mudanças.” (Nise)

É possível concluir, a partir dos diferentes relatos, que uma cultura escolar inclusiva se constrói nas ações cotidianas realizada com sujeitos comprometidos com a defesa da dignidade da pessoa humana e de seus direitos fundamentais e, neste sentido, dirigente é uma das principais lideranças nesse complexo processo que se desdobra em múltiplos papéis.

Considerações finais

Conhecer e registrar as ações cotidianas das diretoras de escolas da rede de Santo André/SP nos possibilitou ampliar o entendimento sobre ‘como as escolas fazem as políticas’. A expressão - que dá título ao livro de Ball, Maguire e Braun (2016), manifesta o conceito de ‘atuação em políticas’, em substituição ao de ‘implementação’. Reconhecemos, na palavra encarnada dessas profissionais, que as políticas estão escritas nos corpos e é nesse sentido que elas são encenadas e não ‘implementadas’ pelos seus protagonistas: A política não é “feita” num ponto no tempo; em nossas escolas é sempre um processo de “tornar-se”, mudando de fora para dentro e de dentro para fora. É analisada e revista, bem como, por vezes, dispensada ou simplesmente esquecida” (Ball; Maguire; Braun, 2016, p. 15).

A partir dessas reflexões, podemos dizer que principal objetivo da pesquisa foi encontrado nas manifestações dessas profissionais: o de que a política de educação inclusiva do município de Santo André/SP, na perspectiva de construção de uma sociedade mais justa e democrática, não pode ser esquecida. Adélia, que ingressou como professora da rede em 2001, entende que a continuidade desse projeto depende da transmissão desse legado democrático às novas gerações de docentes da rede:

A gente tem formado mesmo essas meninas com as concepções que a gente aprendeu nos últimos anos. E é sempre ali, 'vamos lá, oh é assim, assim'. Então, a gente vai direcionando essas meninas para um caminho de aprendizagem mesmo, porque elas não tiveram as experiências que a gente teve. A gente tinha um projeto há uns anos atrás, vocês devem lembrar, do Cidade Educadora, que era de transformar a cidade toda, todas as secretarias (...) e muita gente foi para Portugal, foi para o Uruguai, foi para um monte de lugares apresentar os projetos de Santo André. Então, a gente (...) essas coisas foram se perdendo, mas foram se perdendo não em Santo André, também, mas no país, em tudo. Cabe a nós, que tivemos essa experiência, resgatar ali no miudinho de cada professora, no dia a dia, para fazer funcionar, para fazer... deixar alguma coisa de bom. (Adélia)

O mesmo sentido das palavras de Adélia foi encontramos no depoimento de Jô e Dorina:

“Eu penso que a documentação, os registros das atribuições, elas precisam ser efetivadas, (porque) hoje nós temos na rede pessoas muito jovens assumindo a função e, muitas vezes, não sabendo a história da rede, não sabendo o percurso da escola.” (Jô)

“Faz 24 anos que eu sou diretora nessa rede, eu falo: 'primeiro, eu carrego todas essas formações. Então, eu me sinto - independente do partido, independente da gestão - cada ano eu me sinto mais fortalecida. Todas as gestões que eu passei, tudo, tudo só veio me complementar e (ajudar) a eu ser o que eu sou hoje'. Então, eu falo para elas: 'mas primeiro escute, aprenda, vai atrás e carregue sempre isso, mas compartilhe com o outro, não fique só com você.” (Dorina)

Em meio a vivências cercadas de lutas, desafios, recuos e conquistas, Adélia, Jô, Nise e Dorina representam uma parcela das profissionais que, por terem sido formadas num ambiente de gestão democrática, subjetivaram este conceito e, com isso, se tornaram capazes de traduzi-lo em ações com poder de transformar e melhorar a qualidade de vida dos alunos que passaram e ainda passam pelos bancos escolares da rede de Santo André/SP.

Os relatos e reflexões das diretoras revelam o entendimento comum de que estar à frente da direção escolar implica assumir o compromisso de imprimir, nas ações cotidianas da escola, a marca de um projeto guiado pelo princípio de que educação de qualidade é direito de todos e responsabilidade de cada um, “porque eles têm direito de ter qualidade e nós estamos lá para garantir o direito deles; ser voz e vez para eles” (Jô).

Como dito anteriormente, nossa análise se fundamenta no conceito de ‘ação’ de Hanna Arendt, cujo sentido reside em sua relação com o tempo:

O início que foi criado com o homem impediu o tempo e o universo criado como um todo de girar eternamente em ciclos sobre si mesmo de um modo despropositado e sem que algo novo jamais acontecesse. Portanto, foi por causa da novista, em certo sentido, que o homem foi criado. Uma vez que o homem pode saber, ser consciente de e lembrar “seu início” ou sua origem, ele é capaz de agir como um iniciador e encenar a estória (story) da humanidade. (apud Correia, 2008, p. 55)

Nas palavras de Arendt, encontramos uma outra dimensão do conceito de ‘atuação em políticas’, mais propositivo e necessariamente engajado com um projeto humano orientado pelo ‘amor ao mundo’. Como as diretoras que participaram desta pesquisa, temos clareza que o projeto de educação inclusiva, como idealizado e praticado a partir dos 1990 em Santo André/SP, tem sido ameaçado por políticas reducionistas que ignoram a perspectiva histórica da magnitude da empreita educativa.

Por compartilharmos das preocupações com a preservação da memória democrática, construída por força da obra e das palavras dos atores políticos da educação inclusiva do município, os resultados desta pesquisa foram reunidos num Protocolo de ações para uma cultura escolar inclusiva (Silva, Rosa, 2021) para ser socializado com as novas gerações de educadores de Santo André/SP. Nesse documento, procuramos sistematizar os múltiplos papeis vividos pelas diretoras escolares da rede em meio a trajetórias marcadas pela clareza de suas limitações e de seus erros, mas principalmente pela inquietude e pela busca de uma excelência possível.

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2O decreto n. 10.501/2020, de 30 de setembro de 2020, que instituiu a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida PNEE, foi suspenso por decisão liminar do Ministro Dias Tofolli, do STF, em resposta à Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6590, requerida pelo Partido Socialista Brasileiro.

3Movimento surgido no início do século 20, com a industrialização do ABC. O movimento se intensificou com a chegada das montadoras de automóveis, no final da década de 1950, e teve seu auge no final da década de 1970, quando o Sindicato dos Metalúrgicos organizou as grandes paralisações de 1978.

4Nomes fictícios, atribuídos em homenagem a mulheres brasileiras cujas trajetórias pessoais e profissionais se vinculam à educação e cuidado de pessoas com deficiências. Adélia Sigaud (1840-?), primeira brasileira a ler pelo método braille, aprendido com o escritor José Alves de Azevedo; Nise Magalhães da Silveira (1905-1999), médica psiquiatra, reconhecida mundialmente por se manifestar radicalmente contra formas agressivas de tratamento praticadas em hospitais psiquiátricos; Jô Clemente (1928), fundadora da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais - Apae -, instituição considerada referência no tratamento a portadores de síndrome de Down no Brasil; Dorina de Gouvêa Nowill (1919-2010), educadora e ativista pela criação de instituições, leis e campanhas em prol de deficientes visuais.

1 Disponível no anexo 1.

Recebido: 13 de Fevereiro de 2022; Aceito: 10 de Agosto de 2022

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