1 INTRODUÇÃO
Em março de 2020, o mundo se deparou com a maior crise sanitária de sua história recente, a pandemia de covid-19. Na tentativa de deter o avanço do vírus, os governos dos diversos países adotaram fortes medidas de distanciamento social, resultando no fechamento das escolas, que passaram, em pouco tempo, de um modelo presencial para um modelo remoto ou híbrido de emergência. No intuito de conduzir esse processo, os organismos multilaterais, que tradicionalmente produzem orientações sobre a reformulação das políticas educacionais nos países periféricos, não se furtaram de elaborar recomendações a serem seguidas nesse momento de crise internacional.
Nesse cenário, destaca-se a atuação do Banco Mundial (BM), que, após um ano de pandemia, em fevereiro de 2021, tornou público o relatório “Agir agora para proteger o capital humano de nossas crianças: os custos e a resposta ao impacto da pandemia da covid-19 no setor de educação na América Latina e no Caribe” (BANCO MUNDIAL, 2021, s.p.), o qual sinaliza alguns encaminhamentos a serem trilhados pelos governos da região na condução das ações que objetivam a mitigação dos impactos da pandemia em seus sistemas educacionais.
Cabe-se perguntar qual é o objetivo de uma instituição, cujo cerne são as questões financeiras, de atuar como “Ministério Mundial da Educação nos países periféricos” (LEHER, 1999, s.p.). Para o BM, a educação é estratégica, isto fica evidenciado em seus documentos, que se tornaram suporte fundamental para os países que pretendem alcançar maior desenvolvimento econômico. O discurso reformista do BM para a educação se concentra em três pilares: 1) Educação para o desenvolvimento econômico e diminuição da pobreza; 2) Educação pela pedagogia das competências (com incidência da teoria do capital humano); e 3) Educação padronizada e de viés privado (DECKER, 2017).
Os documentos elaborados pelo BM, que se utilizam de variadas abordagens acadêmicas e de termos linguísticos oriundos dos mais diversos campos do conhecimento, fornecem um substrato teórico que acaba orientando e definindo os caminhos das políticas públicas e de educação (DEITOS, 2010). Por esse motivo, compreender o discurso contido nesses documentos, em sua essência, torna-se primordial para entendermos qual tipo de educação e de sociedade está sendo proposta por esses aparelhos privados de hegemonia, principalmente em orientações que surgem em um momento de emergência mundial, diante de uma crise sanitária sem precedentes nos últimos 100 anos.
A partir deste contexto e por meio de reflexões realizadas pela Rede Ibero-Americana de Estudos e Pesquisas em Políticas e Processos de Educação Superior (RIEPPES), analisamos este documento3 com o objetivo de compreender sua essência, apresentando as contradições que emergem do discurso do BM a partir dos determinantes históricos e sociais do momento de crise.
Este estudo se caracteriza pela abordagem qualitativa de procedimento documental, tendo como fundamento metodológico o materialismo-histórico-dialético. Para a análise documental, utilizamos a técnica de mineração de textos e a análise de conteúdo.
Este trabalho está organizado em cinco partes. Partimos da história do BM, apresentando seus objetivos e ações, dando destaque para o crescente interesse pelo campo educacional. Na sequência, abordamos os procedimentos metodológicos que orientaram a análise documental e que nos guiaram nas reflexões propostas. Seguidamente, apresentamos os resultados do estudo e introduzimos a discussão do tema contando com o apoio de autores de posicionamento crítico, como fundamento teórico. Por fim, à guisa de conclusão, tecemos nossas considerações finais.
2 O ASSIM CHAMADO “BANCO DO CONHECIMENTO”: AÇÕES E CONCEPÇÕES EDUCATIVAS DO BANCO MUNDIAL
As origens do Banco Mundial remontam ao pós-guerra, especificamente a 1944, durante a Conferência de Bretton Woods, quando os países vencedores negociaram a criação de uma nova ordem mundial. Surgiram, então, o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), hoje Banco Mundial (composto por cinco instituições4), e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Criado para apoiar a reconstrução europeia após a Segunda Guerra, o BM passou a promover ações de ajuda e de cooperação para os países periféricos da América Latina e da África. Com 186 países mutuários, a instituição financeira organiza suas políticas a partir dos interesses das nações que detêm maior porcentagem de participação, sendo elas: Estados Unidos (15,85%), Japão (6,84%), China (4,42%), Alemanha (4,00%), Reino Unido (3,75%), França (3,75%) e Índia (2,91%) (BANCO MUNDIAL, 2021). Os EUA sozinhos participam com a maior cota do montante geral, o que acaba por fazer do Banco Mundial um auxiliar da política externa estadunidense (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2000). Em geral, suas operações orientam-se a empréstimos e créditos para projetos e políticas, aconselhamento, assistência técnica e advocacia em favor de determinada agenda, pesquisa econômica especializada em todas as áreas do desenvolvimento e para a mobilização e articulação de agentes públicos e privados para iniciativas multilaterais globais.
Desta forma, para realizar projetos de infraestrutura, energia, transporte, entre outros, os governos nacionais, principalmente dos países em desenvolvimento, recorrem a empréstimos do banco, que os fornecem, por sua vez, impondo como contrapartida determinadas políticas econômicas. Portanto, a instituição financeira acaba por reestruturar a economia dos países emergentes a partir dos seus próprios interesses.
Fontes (2010) destaca que o BM passa a exercer o papel de intelectual coletivo de um conjunto internacional de países capital-imperialistas, que, sob a liderança norte-americana, favorece um outro nível de acumulação e de concentração capitalista. O modus operandi do banco consiste em penetrar nos países periféricos, utilizando-se dos seus próprios intelectuais, que passam a atuar de forma alinhada com a dinâmica e a lógica do capitalismo internacional.
Por sua vez, o interesse do BM em orientar e reestruturar as políticas do setor educativo se deve ao papel atribuído à educação no crescimento econômico das nações, como apontam Shiroma, Moraes e Evangelista (2000, p. 75):
[...] a educação, especialmente a primária e a secundária (educação básica), ajuda a reduzir a pobreza aumentando a produtividade do trabalho dos pobres, reduzindo a fecundidade, melhorando a saúde, e dota as pessoas de atitudes de que necessitam para participar plenamente na economia e na sociedade.
Desde sua criação, até a década de 1960, o BM não atuava na área educativa. Foi justamente nesse período que os empréstimos da instituição começaram a ser destinados à educação, principalmente para o financiamento de projetos de infraestrutura. A partir dessa primeira incursão, surgiram várias ações, algumas orientadas à educação e outras mais gerais, baseadas nos discursos de combate à pobreza e de melhoramento do capital humano, teoria que se encontra implícita nas ações do Banco. As ações aplicadas ao contexto latino-americano de educação, de uma forma mais geral, encontram-se ilustradas na “Figura 1”.
Ditas iniciativas, como “educação para todos”, “boa governança” e a “universalização da aprendizagem”, têm marcado o discurso da instituição para a educação e, no fundo, significam a promoção de políticas macroeconômicas baseadas no equilíbrio fiscal, a realização de reformas do Estado com o intuito de promover a “eficiência” na gestão pública e a liberalização da economia, resultando em diversos impactos para a educação (PEREIRA, 2021). Desta forma, os documentos emitidos pelo BM apresentam um diagnóstico com enfoque nos problemas educacionais, com objetivo de promover a adoção de suas proposições. Assim, suas recomendações não são aceitas de pronto como ingerência internacional, mas como resolução dos problemas esperados pelos governos regionais (SHIROMA; CUNHA, 2015).
Na década de 1990, o BM, entre outros organismos multilaterais, passa a promover a concepção de “economia baseada no conhecimento”. Segundo Robertson (2008, p. 44), “A ideia do ‘conhecimento’ é particularmente potente neste discurso, pois consegue ser articulada tanto pela esquerda progressista quanto pelos projetos de direita. Quem poderia ser contra o conhecimento?”. No entanto, a abordagem neoliberal do banco vislumbra não apenas o investimento de capital, mas também a formação de um novo sujeito, e, para esse intento, a educação cumpre um papel central. Desta forma, desvelar o projeto político de educação do BM nos fornece subsídios para a compreensão dos delineamentos que o grande capital internacional projeta para a América Latina e o Caribe e o seu papel na economia global contemporânea. Além disso, como os documentos elaborados pela instituição financeira buscam reorganizar os sistemas educativos em momentos de “crise”, é certo que essa organização não se furtaria a desenvolver proposições diante de uma crise sanitária global.
Em dezembro de 2019, o mundo foi surpreendido pelo surto de um tipo desconhecido de pneumonia em Wuhan, China. Por sua vez, em 9 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou a descoberta de um novo coronavírus: o SARS-CoV-2, responsável pela covid-19, e, em 11 de março, declarou estado de pandemia (GIRARDI, 2020). Encontrávamo-nos diante de uma pandemia sem precedentes na história recente.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 1º de abril de 2020, escolas e instituições de ensino superior foram fechadas em 185 países, impactando quase 1.542.412.000 alunos, 89,4% do total das matrículas. Na América Latina e no Caribe, o UNESCO IESALC estimou que 23,4 milhões de alunos (98% da população de estudantes) e 1,4 milhão de professores foram afetados pela pandemia (UNESCO IESALC, 2020).
Nesse cenário, o BM, criou uma página específica para acompanhar o impacto da covid-19 na educação, com um mapa que acompanha o fechamento das escolas e a retomada das atividades. Além disso, promoveu uma série de estudos e de recomendações. Inicialmente, para auxiliar no ensino remoto e, posteriormente, mais relacionados às políticas educativas, cujo discurso, em geral, baseia-se no combate à pobreza e à desigualdade, no melhoramento do capital humano e na promoção de uma recuperação baseada na eficiência da gestão pública. A Figura 2 apresenta as principais publicações em ordem cronológica.
Em fevereiro de 2021, é publicado o relatório “Agir agora para proteger o capital humano de nossas crianças: os custos e a resposta ao impacto da pandemia da covid no setor de educação na América Latina e no Caribe”, que resume a intencionalidade do BM no que diz respeito à educação na região da América Latina e do Caribe e que nos compete analisar de forma mais aprofundada na sequência deste estudo.
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Este estudo se caracteriza pela abordagem qualitativa com procedimentos de pesquisa documental. Tomamos como base metodológica a abordagem materialista-histórico-dialética que consiste na “[...] compreensão da história a partir do desenvolvimento material, da determinação das condições materiais da existência humana” (SAVIANI, 2011, p. 76). Com apoio da análise de conteúdo de Bardin (BARDIN, 1977), realizamos a análise documental do relatório.
O arcabouço analítico da pesquisa se fundamenta em duas categorias, a totalidade e a contradição. No método marxiano, a sociedade é entendida como uma totalidade concreta, complexa e inclusiva, constituída por totalidades de menor complexidade. Essa totalidade concreta e articulada é também dinâmica, e esse movimento se dá pelo caráter contraditório das totalidades menores que compõem a totalidade macroscópica. Sem o movimento advindo das contradições, a totalidade seria inerte e amorfa. A natureza das contradições depende da estrutura de cada totalidade, cabendo ao pesquisador descobri-las ao longo da investigação (NETTO, 2011).
Como suporte instrumental, utilizamos a técnica de mineração de texto por meio do aplicativo on-line Voyant Tools5. A mineração textual busca revelar padrões nos textos analisados, com o objetivo de descobrir, por meio da recorrência e das correlações do documento, aspectos ocultos no texto, para sua posterior apresentação, de forma coerente e concisa (FERREIRA; CORRÊA, 2021). Vale ressaltar que essa técnica, no caso de pesquisas qualitativas, deve servir como fonte de dados, que, posteriormente, devem ser observados sob o lume da perspectiva epistemológica, teórica e contextual do pesquisador.
A análise do documento foi realizada em duas etapas. Na primeira, consideramos os dados obtidos diretamente do documento, sem elaborar descritores. Observamos deste modo, a ocorrência dos termos, coocorrências e correlações, para, na sequência, analisar os termos em seu contexto discursivo. Esse movimento se faz necessário, pois, como afirma Evangelista (2012, p. 57), “A racionalidade presente na documentação não é dada a priori; ao contrário, tal racionalidade é construída como conhecimento que ordena os elementos oferecidos pelas evidências empíricas”. Dessa forma, faz-se necessário que o primeiro contato com a empiria aconteça de maneira que possibilite certo distanciamento entre os posicionamentos epistemológicos do pesquisador e os elementos que surgem da documentação, visando sempre manter uma vigilância metodológica no processo de investigação.
Na segunda etapa, a partir da leitura sistematizada e aprofundada do documento, buscamos entender, de forma crítica e reflexiva, como o termo-chave contido no título do relatório “capital humano” se relaciona com as informações obtidas na primeira etapa. Esta etapa é importante, pois o sujeito da pesquisa é ativo no processo de investigação, ele trabalha localizando, selecionando, sistematizando, analisando as evidências, isso decorre das “[...] intencionalidades que, para além da pesquisa, se vinculam aos determinantes mais profundos e fecundos da investigação” (EVANGELISTA, 2012, p. 56).
4 RESULTADOS
O relatório intitulado “Agindo agora para proteger o capital humano de nossas crianças: os custos e a resposta ao impacto da pandemia de covid-19 no setor de Educação na América Latina e no Caribe” foi elaborado pelo BM e publicado no início de 2021. Com 14 páginas, o relatório visa estimular os governos a agir imediatamente para reverter a situação da pandemia de covid-19 no setor educacional (BANCO MUNDIAL, 2021).
Na primeira etapa de nossa análise, a partir da mineração textual do documento, identificamos que o resumo executivo do documento tem 3.610 palavras, 996 formas de palavras6 e uma média de 31,7 palavras por frase. Esses dados são importantes, pois, da divisão da quantidade de palavras pela média de palavras por frase, encontramos o número médio de frases contidas no documento, que é de 113, e, com esse valor, estabelecemos o recorte de termos mais ocorrentes. Consideramos para essa análise a ocorrência do termo em 20%7 do valor médio das frases do documento, o que inclui os termos com no mínimo 20 ocorrências no relatório. Na sequência, apresentamos os seis termos que se enquadraram no nosso recorte, o número de ocorrências, os termos coocorrentes8 e as suas correlações9.
Termo | Ocorrências | Coocorrências | Correlações |
---|---|---|---|
Aprendizagem | 47 | Remota (9); perdas (8); ensino (5); escolas (5); desigualdades. | Aprendizagem remota; aprendizagem híbrida; aprendizagem adaptativa; aprendizagem dos estudantes; perdas de aprendizagem. |
Escolas | 41 | Fechamento (14); reabertura (9); aprendizagem (5); países (5). | Fechamento das escolas; reabertura das escolas; conectividade das escolas; desigualdade digital entre as escolas. |
Países | 38 | América (8); Latina (8); Caribe (5); escolas (5); região (5). | Países da América Latina e do Caribe; países da região; apoiar os países; escolas dos países; países estão implementando; países devem. |
Estudantes | 31 | Aprendizagem (3); pandemia (3); professores (3); abaixo (2); educação (2). | Aprendizagem dos estudantes; desempenho dos estudantes. |
Sistemas | 21 | Educacionais (9); alerta (5); aprendizagem (4); gestão (4). | Sistemas educacionais; sistemas de alerta; sistemas escolares. |
Pandemia | 20 | Estudantes (3); impactos (2); causa (2); efeitos (2). | Pandemia da covid; impactos da pandemia. |
Fonte: Elaboração própria, com base na análise da ocorrência dos termos do relatório.
O termo “aprendizagem” é o mais recorrente, com 47 ocorrências no texto, frequentemente relacionado aos termos: “remota”, “perdas” e “ensino”. As correlações estabelecidas indicam que “aprendizagem remota”, “aprendizagem híbrida”, “aprendizagem adaptativa”, “aprendizagem dos estudantes” e “perdas de aprendizagem” são as sentenças mais frequentes.
A análise do contexto indica que o termo “aprendizagem” aparece atrelado a duas noções mais amplas: a primeira é de defasagem e perda de aprendizagem durante a pandemia. Um exemplo de como esse termo é citado encontra-se no seguinte trecho: “Simulações recentes sugerem que a pobreza da aprendizagem pode crescer em mais de 20%, o que equivale a um aumento de cerca de 7,6 milhões de pobres de aprendizagem [...]” (BANCO MUNDIAL, 2021, p. 6). A segunda noção encontra-se associada à ideia de que a aprendizagem remota e híbrida, apoiada por tecnologias digitais, é a solução para o problema de perda e defasagem de aprendizagem:
Embora os governos continuem a aumentar a eficácia da aprendizagem remota durante o fechamento das escolas, essa ação deve ser realizada apenas para enfrentar o problema trazido pela pandemia, mas também para se preparar ou para aprimorar um modelo de aprendizagem híbrida, na qual o ensino presencial e remoto coexistam, já este que se tornará o novo normal nos muitos meses que virão. (BANCO MUNDIAL, 2021, p. 8).
A associação do termo “aprendizagem” também aparece no contexto das estratégias e medidas a serem aplicadas pelas escolas nesse momento de crise, reforçando algumas iniciativas que devem ser implementadas; por exemplo:
A simplificação dos currículos, preservando, porém, certos padrões de aprendizagem, a adaptação dos calendários e cancelamento de exames podem ser medidas necessárias para adaptar o ensino e a aprendizagem à nova realidade. (BANCO MUNDIAL, 2021, p. 9).
O segundo termo mais recorrente é “escolas”, com 41 repetições. As suas correlações apontam para a preocupação com o fechamento e a reabertura das escolas. Nesse sentido, o documento trata dos impactos resultantes do fechamento das escolas:
As estimativas iniciais dos efeitos do fechamento das escolas na região são espantosas: essa interrupção pode fazer com que cerca de dois em cada três alunos não sejam capazes de ler ou entender textos adequados para a sua idade. (p. 6).
Bem como a necessidade de reabertura das escolas: “Os países devem se preparar para a reabertura das escolas em âmbito nacional e, ao mesmo tempo, garantir a continuidade do processo de ensino e aprendizagem” (p. 8). Outro sentido identificado é o de relacionar o papel da escola em utilizar os recursos disponíveis com mais eficiência por meio da melhoria da gestão.
O terceiro termo mais frequente, com 38 ocorrências, é “países”, situando as nações a que se direcionam as orientações do documento, bem como a ideia de implementação de iniciativas. Podemos identificar essa correlação no seguinte trecho: “Para manter a continuidade, a participação e a qualidade, os países latino-americanos e do Caribe devem aproveitar, ao mesmo tempo, as oportunidades de reconstruir sistemas educacionais mais sólidos no longo prazo” (p. 8).
O quarto termo é “estudantes”, com 31 ocorrências, estando relacionado à aprendizagem e ao desempenho dos estudantes. Essa preocupação fica evidente quando o relatório cita que “a migração dos alunos e professores para soluções digitais pode facilitar a transmissão de conteúdo, a comunicação entre professores e alunos e o monitoramento do desempenho dos estudantes” (p. 9). E, também, ao tratar das novas formas de monitoramento possíveis, “Alguns países estão implementando ou ampliando sistemas de monitoramento dos estudantes, tais como sistemas de alerta para identificar os alunos em risco de abandono, com grande potencial de trazer impactos significativos no longo prazo” (p. 10).
O quinto termo é “sistemas”, com 21 ocorrências, e está relacionado à noção de sistemas educacionais e sistemas escolares e à necessidade de sua adaptação para a nova realidade que se estabelece durante e pós-pandemia. Podemos identificar essa proposição no seguinte segmento: “Profundamente preocupado com a magnitude da crise, o Banco Mundial está comprometido em ajudar os países da América Latina e Caribe em seus esforços para mitigar as tristes consequências da pandemia em seus sistemas educacionais” (p. 13).
Por fim, tem-se “pandemia”, com 20 ocorrências, que é associado ao termo “covid” e aos impactos causados por essa doença. Novamente, esse termo aparece em conjunto com a ideia de recuperação diante da crise e de reformas educacionais nos países atingidos:
Olhando para frente, o Banco Mundial está comprometido em continuar a apoiar os países nos seus esforços de recuperação relacionados à pandemia, ao mesmo tempo em que acelera iniciativas de reforma da educação na esperança de ajudar os sistemas educacionais a se reconstruírem melhor. (p. 13).
Outra informação importante a ser considerada nesse momento é a frequência relativa dos termos ao longo do texto. Esse dado é relevante, pois apresenta a dispersão dos termos em uma divisão textual do documento em dez segmentos, com o objetivo de mostrar em quais os termos são mais ou menos citados. Essas informações encontram-se sistematizadas no Gráfico 1.
Por meio da análise do Gráfico 1, podemos perceber que, dos seis termos mais recorrentes, três deles, “aprendizagem”, “escolas” e “países”, são citados com frequência maior ou menor ao longo do texto, enquanto “estudantes”, “pandemia” e “sistemas” não tiveram citação em ao menos um segmento analisado. Apesar disso, nota-se uma predominância desses termos em todo o relatório, o que indica que os sentidos e significados a eles acionados, por meio das correlações e da análise contextual, permeiam a totalidade do texto analisado.
5 AS “OPORTUNIDADES” DE REFORMAS EDUCACIONAIS EM TEMPOS DE CRISE: NEOLIBERALISMO E A EXPANSÃO DO ENSINO REMOTO
A análise do documento nos permite inferir algumas considerações a respeito do discurso do BM para o setor educacional da América Latina e do Caribe, no período pandêmico. Primeiramente, constatou-se a existência de uma linha discursiva estratégica do BM que apresenta os sistemas educacionais dos países a que o relatório foi direcionado como fraco ou ineficiente e que, para a superação dessa condição, deve-se aproveitar o momento histórico da pandemia de covid-19, que exigiu algumas adaptações nos modelos e nas práticas educativas, para promover reformas mais profundas nos sistemas educacionais, focando na expansão do ensino remoto, na flexibilização curricular e no controle dos recursos destinados às escolas, buscando mais eficiência. Observa-se que muitos dos elementos apresentados no relatório se alinham com as propostas neoliberais para a educação projetadas pelo BM.
O neoliberalismo pode ser entendido como um conjunto de ações e programas econômicos, políticos, jurídicos, sociais e ideológicos que são estruturados e implementados reativamente à crise do capital iniciada na década de 1970, com o objetivo de restabelecer a hegemonia burguesa no novo cenário do capitalismo global (GENTILI, 2000). A reestruturação neoliberal iniciada nos países centrais do capitalismo chegou tardiamente à região da América Latina e do Caribe. No Brasil, por exemplo, começa a ser implantada na década de 1990, após a promulgação da constituição de 1988, e se caracteriza por delineamentos de contrarreforma do Estado (BEHRING, 2017), atingindo diretamente a educação, por meio da (re)formulação de políticas educacionais em todos os níveis de ensino.
Nesse período, nota-se que a educação escolar em todos os níveis e modalidades de ensino passou a ter a finalidade de difundir e sedimentar uma cultura empresarial, com o objetivo de conformar a sociedade técnica e eticamente para as mudanças ocorridas nas relações sociais de produção capitalista. Essa estratégia se fundamenta, principalmente, em duas teorias: a do capital humano e a das competências, que fornecem subsídios para a organização de variadas ações estatais, como a submissão da escola à empresa, o sistema nacional de avaliação e as diretrizes e os parâmetros curriculares (NEVES, 2007).
A pedagogia das competências surge nesse cenário, imbricada pela mudança paradigmática do setor produtivo global e pelo avanço de políticas neoliberais nos países centrais do capitalismo, ajudando os Estados a reestruturar e a planejar os sistemas educativos e associá-los ao crescimento econômico. Para Philippe Perrenoud (2000), sociólogo dedicado ao estudo das competências, essa pedagogia parte do pressuposto de que as pessoas se desenvolvem pelas relações estabelecidas em seu meio; assim, o desenvolvimento das competências é um efeito de adaptação dos indivíduos às suas condições de existência.
Essa perspectiva começa a ser aplicada como um conjunto de saberes e de habilidades (de saber fazer e de saber ser) que o indivíduo teria de desenvolver para atender às necessidades do mercado. Para o setor produtivo, a teoria das competências contribui na disposição de trabalhadores mais adaptáveis às diferentes realidades dos processos de produção, possibilitando a transferência de funções, o que exige uma atualização constante de suas competências, fator esse garantidor de sua empregabilidade (DELUIZ, 2001).
Essa visão, cada vez mais economicista, é fortalecida pela Teoria do Capital Humano, que analisa a educação como um investimento, com sua respectiva taxa de retorno social (para a sociedade) e individual (para o próprio indivíduo). Dessa forma,
[...] cada pessoa seria capaz de aumentar seu conhecimento através de investimentos voltados à formação educacional e profissional de cada indivíduo. Portanto, o aumento do Capital Humano (fator H) poderia representar as taxas de produtividade do trabalhador, favorecendo o desenvolvimento de um país. (CABRAL NETO; SILVA; SILVA, 2016, p. 36).
O centro da questão, segundo Del Rey (2012), sempre foi o mercado, e não o aluno, como os defensores da teoria das competências apresentam. Para eles, a função essencial da educação seria a capacidade de adaptação, ou seja, aprender a se adaptar às mudanças impostas pela sociedade contemporânea, cujo princípio motor é a economia, pois o comportamento humano baseia-se, essencialmente, em motivações (DEL REY, 2012, p. 13-14).
O papel do BM nesse cenário seria o de impor políticas homogêneas ao setor educacional para o mundo todo, objetivando a conformação dos trabalhadores por meio de uma pedagogia tecnicista e flexível. Segundo Coraggio (2000, p. 76), “Essa tese é plausível: as declarações do próprio Banco Mundial, a simultaneidade com que vêm sendo empreendidas as reformas educativas nos distintos países e a homogeneidade discursiva que as envolve parecem confirmá-la”.
A proposta do BM para enfrentar a crise, como vimos na análise documental, apresenta um discurso de “oportunidade” para a ampliação da aprendizagem remota e híbrida nos sistemas educacionais, por meio de uma maior introdução das tecnologias digitais nas escolas, como possível solução para as perdas de aprendizagem decorrentes da pandemia. Essa proposta traz consigo três dimensões que consideramos problemáticas: (I) dimensão econômica, das relações comerciais internacionais desiguais, (II) dimensão da qualidade de ensino pelo uso da aprendizagem remota, (III) dimensão da precarização do trabalho docente.
A dimensão econômica se mostra problemática, pois trata de ampliar as desigualdades econômicas entre os países centrais do capitalismo e os países periféricos. Para a expansão dos sistemas de aprendizagem remota ou híbrida, faz-se necessária a aquisição de equipamentos, softwares, hardwares e licenças de uso de dispositivos digitais, que são extremamente onerosos, visto que devem ser adquiridos em grandes quantidades para suprir os sistemas educacionais na América Latina e no Caribe. Entretanto, esses países não são os produtores da tecnologia, devendo realizar as aquisições com os países que a produzem, sendo estes, de forma geral, os países com economias mais avançadas. A questão é que, para dar conta da ampliação tecnológica dos sistemas educacionais, como propõe o BM, o que será feito, de fato, é uma forma diferenciada de extração e acumulação de capital desses países, visto que os governos pagarão pelos insumos necessários com dinheiro dos impostos recebidos. Assim, os países periféricos acabam financiando a indústria tecnológica dos países centrais sem, de fato, termos um retorno efetivo, visto que a ideia de desenvolvimento econômico a partir do capital humano é falaciosa, pois mascara o fato de que o capital e o trabalho são expressões de uma mesma relação social, baseada na exploração do trabalho alheio e na alienação dos produtos do trabalho (MINTO, 2006).
A qualidade do ensino nas tecnologias que favorecem a aprendizagem remota ou híbrida também parece carecer de atenção especial. Nos países da América Latina e do Caribe, em que as desigualdades sociais e a pobreza são acentuadas e têm se intensificando ainda mais, no período da pandemia, fica evidente que é necessário cautela na ampliação das atividades remotas e híbridas nos sistemas educacionais, com destaque para a educação básica. Em uma pesquisa realizada pelo instituto Datafolha durante a primeira onda de covid-19 no Brasil no ano de 2020, que visava identificar se os estudantes do ciclo médio e fundamental estavam recebendo, acessando e realizando as atividades de aprendizado remoto, os dados apontaram que 30% dos alunos do ensino fundamental não tiveram acesso aos materiais disponibilizados pelas escolas, nem impressos e nem de forma virtual. O problema incide no fato de as famílias não terem acesso à internet ou possuírem um único dispositivo para acesso, que, para grande parte dos pesquisados, era o celular. Outro fator que acentua essa questão são as diferenças regionais brasileiras, mostrando que, nos estados do sul e do sudeste, as famílias tinham mais acesso e possibilidade de acompanhar os estudantes do que nas demais regiões (DATAFOLHA, 2020).
Esses dados demonstram que não basta as escolas se atualizarem tecnologicamente, enquanto as populações mais pobres carecem de acesso, dispositivos e tempo para acompanhar as atividades escolares dos estudantes. Se a ampliação dos sistemas educativos de aprendizagem remota não for acompanhada de outras políticas que favoreçam o acesso à informação e à tecnologia pelas populações mais carentes, a escola tenderá a potencializar seu caráter dual, com uma formação precária para os trabalhadores, destinados à escola pública, e uma formação mais completa para as elites, destinadas à escola privada.
A dimensão da precarização do trabalho docente já vem ocorrendo em todos os níveis e modalidades dos sistemas educacionais. A tendência ao enxugamento e à flexibilização curricular, decorrentes das reformas educativas das últimas décadas, cria um clima de instabilidade profissional para os professores, que acabam se sujeitando à perda de direitos trabalhistas para manutenção dos postos de trabalho. Com a ampliação dos sistemas de aprendizagem remota ou híbrida, a possibilidade de reestruturação dos quadros docentes, via demissão ou reenquadramento, tende a se tornar uma realidade, visto que, nos modelos de gestão educacional que adotam essas práticas, os professores acumulam alunos de várias turmas para diminuição dos custos com pessoal, com consequências na qualidade do trabalho e na qualidade do ensino. A crescente precarização e intensificação do trabalho docente em ambientes de educação remota já estabelecidos (como os dos modelos de “Ensino a Distância”, adotados em larga escala pela iniciativa privada e, em menor grau, pelas instituições públicas) acabam por delinear uma cultura acadêmica marcada por princípios do modelo gerencialista (SANTOS; LEDA; SILVA, 2015).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, buscamos, a partir da “aparência” da fonte documental analisada, considerada como aquilo que o texto apresenta de forma superficial, desvelar sua essência, a verdadeira combinação de intencionalidades, valores e discursos que se encontram por trás das teias de significação. Assim, concebemos que existe nos documentos muito mais do que os textos neles contidos, como aponta Evangelista (2012, p. 60-61, grifo do autor):
[...] ao se tratar de política é preciso ter clareza de que eles não expõem as ‘verdadeiras’ intenções de seus autores e nem a ‘realidade’. Como fontes de concepções, permitem a captação da racionalidade da política, desde que adequadamente interrogados.
Dessa forma, a análise aponta que a aparência do documento articula dois elementos discursivos, um explícito e outro implícito. O primeiro indica os problemas decorridos da pandemia de covid-19 no campo educacional, apresentando os custos, os impactos e apontando as oportunidades a serem aproveitadas. Esse elemento é explícito, pois se ancora em dados obtidos por pesquisas, levantamentos e fatos de conhecimento público. O elemento implícito articula termos cujas correlações apontam para a implementação de modelos de aprendizagem remota, híbrida e adaptativa, assim como de reestruturação dos sistemas educacionais dos países da América Latina e do Caribe, como solução para os problemas educativos. Dita estratégia encontra-se implícita nas correlações e na detecção de uma alta frequência dos termos ao longo do texto.
Constatamos que a aparência do texto se apresenta como um elemento pantomímico10, ocultando a essência do documento, que aponta para a criação de um consenso para efetivação de iniciativas neoliberais, projetando uma perenização de determinadas ações e estratégias (alinhadas com o projeto hegemônico defendido pelo BM), que inicialmente foram pensadas como emergenciais e que, no mundo pós-pandêmico, vêm ganhando status de permanentes. Como exemplo, podemos citar a tentativa de implementação total ou parcial da aprendizagem remota ou híbrida em todos os níveis e modalidades de ensino, a flexibilização curricular e avaliativa e os novos modos de controle e de regulação dos estudantes, dos professores e da gestão.
Diante desse contexto de incertezas e de desafios trazidos pela crise sanitária causada pela pandemia de covid-19, a exposição dos argumentos do BM via relatório, indicando um cenário de “oportunidades” para a reestruturação dos sistemas educacionais dos países da América Latina e do Caribe, parece-nos uma estratégia para consolidação dos interesses dos países que detêm maior parte da porcentagem e do poder de voto para o delineamento das políticas do banco, que, não coincidentemente, articulam-se com seus próprios interesses nacionais. Essa proposta, ao nosso ver, apresenta aspectos problemáticos em três dimensões fundamentais: (I) econômica, (II) qualidade de ensino e (III) precarização do trabalho docente.
O discurso que emerge do documento se apresenta com uma tendência homogeneizante, como aponta Mcnally (1999, p. 38):
Através do discurso, as classes dominantes aspiram traçar uma única visão de mundo. Como resultado, esforçam-se para impor um conjunto unificado de significados e temas, como sendo a única maneira possível de descrever as coisas.
Entretanto, o discurso não é algo dado, estático, descolado da nossa existência como seres históricos, também é campo de disputa, “[...] a língua não é simplesmente um depósito de ideias dominantes, mas também uma dimensão na qual a luta contra a dominação pode ser lembrada e retida, na qual a resistência pode ser imaginada e organizada” (p. 38).
Por mais que o discurso difundido pelo BM possua grande influência e penetração política, devido aos aparelhos privados de hegemonia e aos intelectuais associados à propagação de suas ideias hegemônicas, é possível criar resistência. A língua e o discurso não são uma prisão, são arenas de lutas que ocorrem derradeiramente em estruturas materiais reais (MCNALLY, 1999), como a escola e a universidade, que nesse cenário adquirem uma importância estratégica fundamental, como locais de forja de um pensamento crítico e combativo. Nesse contexto, cabe aos estudantes, professores, trabalhadores da educação e intelectuais à maneira gramsciana desestabilizarem os discursos hegemônicos, homogêneos e universalistas difundidos por organismos multilaterais e aparelhos privados de hegemonia, organizando no âmbito linguístico-discursivo-material a luta por uma educação e um mundo melhor, como afirma Mcnally (1999, p. 48): “[...] por mais tristes que sejam as circunstâncias, a libertação é sempre possível [...]. Enquanto houver hierarquia, dominação, exploração, haverá práticas de resistência e subversão[...]”.