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Revista Brasileira de Política e Administração da Educação

versão impressa ISSN 1678-166Xversão On-line ISSN 2447-4193

Revista Brasileira de Política e Administração da Educação vol.36 no.2 Goiânia maio/ago 2020  Epub 11-Jan-2021

https://doi.org/10.21573/vol36n22020.100820 

Seção Especial

Gestão da Educação com Justiça Social. Que Gestão dos Injustiçados?

Education Management with Social Justice. What Management of the Wronged?

Gestión educativa con justicia social. ¿Qué gestión de los injusticiados?

MIGUEL GONZALEZ ARROYO1 
http://orcid.org/0000-0002-3702-2057

1Universidade Federal de Minas Gerais


Resumo

O texto destaca a radicalidade política de propor uma Gestão da Educação com resistência ativa para uma agenda democrática com justiça social. Que gestão da educação e que formação de gestores? Que exigências para a formação de gestores-educadores? O texto prioriza um olhar político: reafirmar a gestão da educação na razão gestora do Estado, no como o Estado administra os Outros, os oprimidos nas relações políticas de poder. O texto dá centralidade à gestão da educação com justiça social: que justiça social em tempos de justiça justiceira, produtora de injustiçados? Que formação de gestores para a gestão dos injustiçados resistentes?

Palavras-Chave: Estado, razão gestora; Justiça social; Resistência ativa; Formação de gestores-educadores; Gestão de injustiçados

Abstract

The text highlights the political radicality of proposing an Education Management with active resistance to a democratic agenda with social justice. What education management and what training of managers? What requirements for training manager-educators? The text prioritizes a political look: to reaffirm the management of education in the management reason of the State, in how the State administers the Others, the oppressed in the political relations of power. The text gives centrality to the management of education with social justice: What social justice in times of justice, which produces injustices? What training of managers to manage the wronged resistant?

Key words: State, management reason; Social justice; Active resistance; Training of manager-educators; Management of wronged

Resumen

El texto destaca la radicalidad política de proponer una Gestión Educativa con resistencia activa para una agenda democrática con justicia social. ¿Qué gestión educativa y qué formación de directivos? ¿Qué requisitos para la formación de gerentes-educadores? El texto prioriza una mirada política: reafirmar la gestión de la educación en la razón de gestión del Estado, en la forma en que el Estado administra a los Otros, a los oprimidos en las relaciones políticas de poder. El texto da centralidad a la gestión de la educación con justicia social: ¿Qué justicia social en tiempos de justicia que produce injusticia? ¿Qué formación para la gestión de los injusticiados resistentes?

Palabras-clave: Estado, razón de gestión; Justicia social; Resistencia activa; Formación de gestores; Gestión de injusticiados

A ANPAE vem nos desafiando a repensar o Estado, as Políticas e a Gestão da Educação: resistência ativa para uma agenda democrática com justiça social. Desafios para um olhar político da gestão, sua estreita vinculação com Estado, democracia, resistências, justiça. A pergunta nuclear: que interrogações traz para as pesquisas, para as análises da gestão da educação e para a formação de gestores-educadores priorizar os vínculos estreitos entre gestão da educação, justiça social, direitos humanos em tempos de Estado de não direitos? Gestão da educação como resistência ativa? Tentemos destacar e entender essas interrogações.

  • Tempos de enfrentamentos de resistência ativa: que resistências priorizar, de quem, de que coletivos? Que coletivos são reprimidos, exterminados porque em resistências ativas, políticas? Que sujeitos injustiçados por resistir à opressão?

  • A ANPAE reafirma seu compromisso político com uma gestão da educação com justiça social, mas gestão da educação com justiça de quem? De que educandos? De que coletivos? Dos injustiçados?

A razão gestora do Estado determinante da gestão da educação

Comecemos por uma interrogação: Por que a ANPAE nos propõe repensar o Estado, a Política, para repensar a gestão da educação? Há uma hipótese orientadora: a gestão da educação pública é determinada pela gestão do Estado, por como o Estado em nossa história vem administrando os Outros, os oprimidos, logo, faz-se necessário entender a razão gestora do Estado para entender a razão política da educação. Olhar para o Estado para entender a gestão da educação pressupõe reconhecer que como o Estado administra os Outros determina a gestão de sua educação. A gestão da educação nunca foi uma política isolada da Política. Do Poder. Aníbal Quijano (2010) nos lembra que o padrão de poder exigiu um padrão de pensar os Outros para legitimar como administrar e como subalternizá-los. A gestão da educação dos Outros pelo Estado repõe como o Estado pensa, aloca os Outros nas relações políticas, de poder. Nas relações de classe, de raça, de gênero.

Quando o Estado decreta os jovens-adolescentes-infâncias violentos, repõe um processo que nos acompanha em nossa história desde o decretar os indígenas, negros escravizados, quilombolas como sem valores, como violentos, para legitimar como administrá-los, reprimi-los, apropriar-se de seus territórios, mantê-los nas senzalas, legitimar os castigos nos pelourinhos, destruir os quilombos e exterminar os quilombolas... Processos históricos de gestão dos Outros pelo Estado, que se repetem nos extermínios de militantes em lutas por terra, de sem-teto em luta por teto, de indígenas por recuperação-manutenção do direito a seus territórios. Se repetem nos extermínios de jovens, adolescentes, até crianças porque negros. As mães “órfãs” dos filhos que o Estado levou, testemunhas da gestão do Estado sobre as vidas de seus filhos (Arroyo, 2019).

Práticas históricas do Estado de administrar os Outros, os oprimidos sem lugar nas estruturas de classe, etnia, raça, poder. Práticas de gestão que repõem a mesma lógica: administrar decretá-los violentos, perturbadores da Ordem Colonial, republicana, democrática até escolar. A administração do controle das vítimas exigiu da gestão do Estado processos de legitimação sofisticados para legitimar violentá-los: decretar os violentados, as vítimas como violentas. Até terroristas, como o atual governo decreta os militantes em lutas por terra, teto, territórios. Um tema nuclear para as pesquisas e para a formação de gestores da educação: entender como o Estado administra os Outros para entender como administra em cada tempo político a sua educação. Entender como administrar essas tensões marca as políticas, teorias de gestão do Estado, de gestão dos Outros, os oprimidos em nossa história. Por consequência, marcam as políticas sociais, educacionais de gestão dos Outros. As teorias da gestão do direito à educação, à escolarização deram o devido peso a essa inseparável relação entre as lógicas políticas de gerir pelo Estado os direitos dos Outros e a gestão do seu direito à educação?

Lutamos por um Estado de direitos e vínhamos aprendendo uma gestão da educação como direito. Quando o Estado não se afirma de direitos, como administrar a escola pública como espaço de direitos? Para entender a história da gestão do direito à educação dos Outros desde a infância, será necessário entender as marcas que a gestão de sua educação traz da história da gestão do Estado na garantia-negação dos direitos humanos mais básicos: terra, território, renda, trabalho, saúde, educação. Há uma razão gestora no Estado. A gestão da educação pública não tem sido pressionada a assumir essa mesma lógica, essa mesma razão gestora, no decretar os educandos populares como violentos, indisciplinados para legitimar segregá-los? Estamos em tempos em que o Estado assume como política não reconhecer os Outros como sujeitos de direitos, mas administrá-los como vidas ameaçáveis, extermináveis. Desse mesmo Estado não vêm pressões para administrar a educação dos Outros na mesma lógica política?

Que questões pesquisar e trabalhar na formação de docentes educadores, gestores? Saber mais sobre a razão gestora do Estado: como administra ou nega os direitos dos Outros? Como administra seu direito à educação? Estamos em tempos de reafirmação das tradições autoritárias na razão gestora do Estado? De que Estado e de que justiça justiceira? Tempos de produzir os Outros como injustiçados? Que gestão dos injustiçados com justiça social?

Que justiça social em tempos de Justiça Justiceira?

Reconhecer que a razão gestora do Estado determina a razão gestora da educação nos leva a uma pergunta: em que tempos de que Poder, de que Estado e de que Justiça?1 Se pretendemos gestão da educação com justiça, comecemos por perguntar-nos se estamos em tempos de um Estado de justiça ou de produção de vítimas, injustiçados. O tema nos adverte de que, se pretendemos gestão da educação com justiça social, teremos de começar por interrogar o Estado: estamos em tempos de um Estado de Justiça? Não é ousadia articular gestão da educação e justiça em tempos dessas imposições de uma justiça justiceira? De extermínios até de jovens, adolescentes, crianças? De militantes por vida justa? Em tempos de Vidas Ameaçadas? (Arroyo, 2019).

Para equacionar a relação afirmada-desejada entre gestão da educação e justiça, será necessário perguntar-nos ainda de que justiça. O termo justiça não é neutro. O que o Estado, o Ministério da Justiça se propõem como justiça pode significar reproduzir as injustiças contra o povo, os oprimidos, os injustiçados da história. O que a própria gestão da educação pode se propor como educação e justiça pode repor as históricas injustiças com que a educação tem segregado, reprovado em nossa história. A defesa da gestão da educação com justiça social aponta para a gestão da educação fazendo justiça com os injustiçados pelas injustiças do próprio Estado, da sociedade e da própria escola. Logo, torna-se necessária a pergunta: estamos em tempos de justiça social de um Estado de Justiça?

Quando a ANPAE se propõe gestão da educação com justiça social somos obrigados a perguntar-nos se as elites e os dirigentes dos setores da justiça apontam para tempos de um Estado de direitos ou de exceção, de intervenção. Se os tempos de uma justiça de extinção são de uma justiça de direitos ou de extermínio, de criminalização dos Outros, dos oprimidos. Perguntar-nos se o Estado é de proteção ou de extermínio até de jovens-adolescentes, militantes que ousarem resistir e insistir em lutas por direitos humanos. Que limites se colocam à gestão da educação com justiça social, quando as repressões dos movimentos sociais pelo Estado e pela Justiça são assumidas como políticas de Estado?

A ANPAE nos propõe que a relação justiça social e gestão da educação terá que ser equacionada perguntando-nos pela gestão de um Estado que deixa exposto que os destinatários vítimas dessa justiça justiceira de extermínio são os mesmos grupos sociais, raciais que lutam por direito à educação, que fazem itinerários às escolas e à EJA por um justo, humano viver. Por justiça (Arroyo, 2017). Em tempos de um Estado de justiça justiceira, todos, as agências públicas, inclusive as escolas, são forçados a aderir a essa mesma gestão dos Outros, dos oprimidos na lógica da justiça justiceira. Haverá lugar na gestão escolar para uma lógica Outra de defesa dos injustiçados? Aí se encontra a radicalidade política da ANPAE propor “resistência ativa para uma agenda democrática com justiça social”.

A gestão dos injustiçados no Estado de Exceção

Os tempos políticos nos apontam para repensar a gestão dos injustiçados. A ênfase na justiça em tempos de Justiça Justiceira nos convida a priorizar como administrar os educandos reconhecendo-os como vítimas das injustiças sociais. Como injustiçados. Questão desestruturante para as teorias da gestão da educação: como administrar os injustiçados que exigem do Estado e da gestão seu direito à educação com justiça social?

Destacar como foco a gestão da educação com justiça sugere estarmos em tempos de uma política, uma gestão do Estado carente de justiça. Sugere reconhecer que carregamos uma história de produção de injustiças. Produção de injustiçados. Sugere que a gestão do Estado, do público, das políticas públicas e educativas tem de se colocar como questões a enfrentar: a gestão do Estado, do público, até da educação tem se contraposto à produção de injustiçados ou tem reproduzido as injustiças? A gestão do Estado, suas políticas sociais, educativas não tem como questão como administrar, controlar injustiçados que o próprio Estado e suas estruturas produzem? Da gestão da educação não se espera que administre, controle, moralize os injustiçados que as injustiças sociais produzem e reproduzem nos milhões de jovens, adolescentes, crianças que lutam por escolas? Por vida justa?

Uma encomenda pesada para o próprio Estado: administrar as injustiças e os injustiçados que ele, que as estruturas sociais, políticas produzem. Uma encomenda pesada para a gestão da educação: administrar os injustiçados nas escolas, educando-os para a Ordem e o Progresso. Para suportar, não resistir à condição de injustiçados. Da administração dos injustiçados, das vítimas das injustiças vêm questões radicais para a gestão da sua educação, de sua socialização, de seu controle social. Vêm questões para a pesquisa, para repensar as teorias de gestão, para a formação de gestores-educadores dos educandos. Dos injustiçados. Tentemos trazer as indagações que vêm dos injustiçados para a proposta de uma gestão da educação com justiça social.

Que gestão da educação com justiça social, dando centralidade à gestão dos sujeitos sociais?

O gerir os sujeitos, os coletivos sociais, étnicos, raciais, de classe tem tido centralidade na razão gestora do Estado. A administração da educação tem dado também centralidade à gestão dos sujeitos sociais? A ANPAE vem destacando a defesa da gestão da educação com justiça social. A interrogação primeira: gestão com justiça social de que coletivos sociais? Obriga-nos a nomear, focar o olhar, as teorias e práticas de gestão para os sujeitos concretos que lutam pelo direito à educação, pelo direito à justiça social em tempos de uma Justiça e um Estado justiceiro.

As políticas, diretrizes, teorias de administração da educação, os departamentos de administração da educação têm privilegiado análises, avaliações das políticas de gestão das instituições escolares, gestão dos recursos financeiros, gestão dos tempos, espaços, do pessoal profissional, gestão dos currículos, das disciplinas, das avaliações, gestão das disciplinas, percursos, séries. Os educandos têm sido olhados como? Têm sido pensados apenas como os destinatários dessas políticas gestoras? As políticas, diretrizes avançam na gestão do direito à educação reduzido a ensino-aprendizagem, logo gestão do que ensinar-aprender-avaliar; gestão dos trabalhadores na educação como ensinantes e gestão dos alunos como aprendizes. A tendência reducionista do direito à educação não mais como direito à formação humana plena, mas reduzido a direito à aprendizagem, vem reduzindo a concepção, teoria e prática de administração, de gestão da educação. Vem empobrecendo o lugar dos departamentos de Administração da Educação. Empobrecendo as teorias de administração e empobrecendo a formação dos gestores.

Há um dado preocupante: a administração, gestão dos sujeitos concretos do direito à educação tem ficado ausente ou secundarizada, reduzida a como administrar seus processos de apender, como administrar suas condutas indisciplinadas, violentas. Paz nas escolas! Como administrar a carência de valores de ordem, de disciplina, de trabalho, de estudo, carências que trazem de origem das famílias, das mães decretadas sem capacidade de educar em valores porque coletivos sem valores.

O tema nos obriga a colocar-nos se as teorias e práticas de gestão da educação escolar têm dado centralidade a como administrar as infâncias-adolescências concretas, populares, nas escolas públicas, e os jovens-adultos do trabalho para a EJA (Arroyo, 2017). Um tema gerador de estudos, pesquisas, teorias, práticas: tem havido lugar nas teorias, políticas e práticas de gestão da educação para a gestão das infâncias-adolescências, dos jovens-adultos concretos populares que pressionam pelo direito à educação? Se tem havido algum lugar, como vêm sendo pensados e gestionados?

O tema sugere vê-los, pensá-los e gestioná-los como vitimados por injustiças sociais, étnicas, raciais, de gênero, de lugar nos campos, nas periferias, vilas, favelas, ruas. Administrar o direito à educação dessas infâncias-adolescências concretas vitimadas por brutais injustiças sociais muda as centralidades tradicionais das teorias, políticas, currículos de administração da educação. Que dimensões trazer, priorizar?

Administrar seres humanos é mais complexo do que administrar instituições, tempos, espaços, recursos financeiros. Os seres humanos são mais complexos de administrar. Administrar vidas humanas precarizadas, injustiçadas, com vivências de pobreza extrema (quase 20 milhões na pobreza extrema no Programa Bolsa Família chegam às escolas públicas) ou administrar vidas que se sabem ameaçadas de repressão, de extermínio, carregando vivências de vidas por um fio, que carregam dramáticas exigências para a administração de seu direito à educação. Com que Artes políticas, éticas administrar Vidas Ameaçadas? (Arroyo, 2019). Que formação de gestores de injustiçados?

Os injustiçados, referente da gestão com justiça

Uma pergunta pendente no propor resistência ativa política e gestão da educação com justiça social: quem são os injustiçados na sociedade e até nas políticas, na gestão da educação? Que centralidade dar a conhecer os Outros, os injustiçados se se pretende educação, políticas, gestão com justiça? Vê-los apenas como destinatários ou como sujeitos afirmativos de políticas, de gestão com justiça? Vê-los apenas vítimas ou reconhecê-los resistentes em históricas resistências ativas?

Poderíamos reconstruir a história da nossa educação, de sua gestão, colocando-nos uma pergunta: tem sido uma gestão para os reconhecidos humanos humanizáveis, educáveis? Tem conseguido ignorar que os Outros foram e continuam decretados in-humanos? (Santos, 2010; Quijano, 2010). As tensões entre decretá-los deficientes em humanidade, irracionais, imorais e tentar ao menos moralizá-los, domesticá-los ou exterminá-los acompanham a história da gestão da nossa educação desde a empreitada educativa colonizadora e persistem na educação republicana; insistem na gestão democrática da educação.

As interrogações mais desestruturantes para os humanismos pedagógicos e para a gestão na educação têm vindo dos Outros, injustiçados, decretados in-humanos: se não são humanizáveis e moralizáveis nos valores de ordem, trabalho, convívio social, como torná-los trabalhadores produtores de riqueza? Se não forem moralizados para a Ordem, como contribuirão para o Progresso? Logo, encomenda histórica para a gestão da sua educação: educá-los para o trabalho e para superar a condição de subcidadãos. Educação para a cidadania. Tensões que acompanham a gestão da educação elementar, pública. Que gestão da educação para inclui-los para a Ordem e o Progresso, mas mantendo-os na condição de inclusão-excludente? A ANPAE nos coloca a interrogação: tem sido essa a gestão com justiça social?

Dos Outros decretados in-humanos, in-humanizáveis, mas necessários ao progresso da Nação, têm vindo as interrogações mais radicais, mais incômodas para a gestão do Estado e para a gestão da educação. Interrogações no presente que vêm dos injustiçados: como administrar o direito ao trabalho dos milhões de sem-trabalho, sem-renda? A Constituição e a LDB nos encomendam educar para o trabalho. Como administrar a miséria, a pobreza que crescem, os sem-teto que pressionam por teto, os sem-terra que lutam por terra...? Como garantir vida humana após anos de trabalho destruída a Previdência Social? Responsabilidade do Estado ou de cada um? Dos injustiçados que as relações sociais, raciais, de classe produzem vêm interrogações para a gestão do Estado. Para a gestão do público e da educação pública.

Os injustiçados têm sido reconhecidos como o referente da gestão do Estado e da gestão da educação? Não são eles o referente incômodo para a gestão do público até no Estado de Direitos? Não são os injustiçados as vítimas da gestão do Estado de Exceção e da justiça justiceira? Na nossa história, a gestão da educação dos Outros tem sido inseparável da sua gestão como injustiçados pelo Estado e pela própria Justiça. História a ser entendida com centralidade na formação de gestores-educadores.

Trazer as vítimas das injustiças para a gestão da educação com justiça social

Quando nos perguntamos que gestão da educação com justiça social, somos obrigados a olhar quem são os injustiçados na nossa história e como persistem vítimas de que injustiças em tempos de injustiças sociais e políticas. Injustiças de Estado. A ANPAE nos propõe essas interrogações radicais para a gestão da educação com justiça social: que olhares recaem nestes tempos sobre as vítimas, os injustiçados? Com que olhares políticos, culturais e até pedagógicos, escolares são julgados, condenados? Trazer as vítimas das injustiças para o debate pedagógico, o debate sobre gestão da educação e o debate sobre justiça altera profundamente o debate sobre políticas, gestão da educação, formação de gestores-educadores.

Estamos em tempos em que a mídia, o Estado expõe as vítimas. Tempos de um requintado expor, apontar, vitimar, ameaçar as vítimas. As vítimas estão expostas à condenação social, política, mediática a ponto de não ser mais possível ignorá-las, não as reconhecer. Uma interrogação para a gestão da educação: estamos em tempos em que as vítimas são nomeadas, expostas para prometer-lhes políticas de justiça, educação, inclusão social? Não estamos em tempos de nomeadas para legitimar segregá-las, exterminá-las? Para legitimar pacotes anticrime: para criminalizá-las.

Volta a pergunta nuclear ao tema proposto: priorizar o olhar sobre as vítimas na sociedade e nas escolas, mas com que olhar? Com o olhar do Estado que os criminaliza para legitimar exterminá-las? Estaríamos em tempos de olhar essas vítimas nas escolas para decretá-las violentas, segregáveis do convívio escolar? Estamos em tempos de defender rebaixar a idade penal e entregar essas infâncias-adolescências ao controle, à moralização da justiça penal ou à gestão da educação cívico militar? Não estamos em tempos de criminalizar as Outras infâncias-adolescências e decretar o fracasso de nossa gestão democrática de sua educação? Questões prioritárias no repensar uma agenda democrática na gestão da educação com justiça. A imposição das escolas cívico-militares também se propõe fazer justiça. É possível uma Outra justiça no propor gestão da educação com outra justiça social?

A ANPAE se propõe avançar para uma gestão da educação, das escolas para uma justiça realmente justa com as vítimas das injustiças sociais, reconhecendo os educandos como vítimas. Focar os educandos como vítimas inocentes, até decretados violentos, será um enriquecimento da política educativa, de sua gestão. Mas o central será se nesse reconhecer os educandos como vítimas de injustiças como injustiçados, os interesses das vítimas serão privilegiados, ou será mais uma forma de condená-los como merecedores das injustiças que os vitimam porque ameaçam a paz social nas ruas e nas escolas. São as vítimas que exigem a gestão da sua educação nas escolas cívico-militares?

Nem sempre o interesse das vítimas é priorizado. As campanhas Paz nas escolas, Paz nas cidades privilegiam a gestão das cidades, das escolas, até sacrificando infâncias, adolescências decretadas violentas, criminosas. Extermináveis para garantia da paz social e até escolar. A gestão das vítimas tem se tornado questão do Estado, das políticas das cidades, das escolas. Questão mais urgente do que a gestão do trânsito ou do que a gestão nas escolas dos tempos, das matérias, disciplinas, do silêncio, do ensinar-aprender-avaliar. Os gestores das escolas aonde chegam, em sua maioria, os coletivos sociais, raciais, étnicos que a sociedade e o Estado vitimam se colocam como questão central na gestão escolar: como administrar percursos de educação de educandos injustiçados? Mas para a garantia dos interesses das vítimas ou da ordem nas cidades, de paz nas escolas?

Administrar as vítimas das injustiças sociais – De que injustiças?

A ANPAE tem somado na produção teórica de reconhecimento de que as injustiças sociais são socialmente produzidas. Tempos de reforçar essa produção teórica. A gestão da educação para a justiça social nos acompanha: garantir a igualdade pela educação inclusiva, de qualidade para todos. Igualdade na educação para corrigir as desigualdades sociais (Arroyo, 2018). A defesa da gestão da educação com justiça social nos provoca para ir além: repensar se a gestão da educação tem priorizado como dar atenção, prioridade a administrar as vítimas das injustiças sociais que chegam às escolas, à EJA e às universidades? Como administrar vidas, identidades, percursos humanos destruídos pelas injustiças sociais? Como entender e administrar sofrimentos de crianças-adolescentes, de jovens-adultos que chegam vítimas, violentados-injustiçados? Como administrar recuperar suas humanidades roubadas pelas injustiças que os vitimam, desumanizam?

Pensar em sofrimentos não tem sido um tema a ocupar o pensamento pedagógico. Administrar conhecimentos tem sido mais familiar do que administrar sofrimentos. Diante de vidas injustiçadas a educar, a pedagogia, a docência se defrontam com novas questões: Se para ensinar conhecimentos se exigem docentes que dominem o que e o como ensinar, que didáticas para entender, acompanhar vidas injustiçadas, que Artes pedagógicas, que olhares éticos se exigem? Ver vítimas de injustiças sociais exige outras Artes, outros tratos éticos, pedagógicos do que ver apenas aprendizes. Ver os educandos desde a infância como vítimas exige Outros olhares. O que priorizar na formação de gestores da educação de injustiçados?

Dar centralidade a uma gestão com justiça social exige formar docentes, educadores, gestores que entendam os educandos não penas como desiguais a administrar políticas de igualdade pela educação. Dar centralidade a administrar vítimas de injustiças sociais é mais radical e mais exigente do que incluir os desiguais. Exige-se uma formação que dê centralidade a entender que injustiças sociais produzem os educandos como vítimas. Entender que injustas estruturas sociais, econômicas, políticas, culturais e até escolares os produzem como injustiçados. Como os padrões sociais, raciais, de gênero, classe os produzem como vítimas. Entender as violências políticas que vêm do Estado, da própria Justiça, das forças da ordem.

Formar docentes, educadores, gestores para entender que os injustiçados chegam trazendo em suas vidas as injustiças que padecem e as memórias de seus coletivos injustiçados. Chegam como testemunhas de uma história de tradições autoritárias injustas que pesam sobe eles e seus coletivos étnicos, raciais, de gênero, classe. Mantê-los nessa tradição, nesse estado de injustiças não é um acidente, mas tem sido norma em nossa história.

Educadores, gestores e educandos têm direito a conhecimentos sobre essa história. Têm direito a saber-se nessa tradição, história de violências. De injustiças. Têm direito a Outra gestão de Outros conhecimentos que garantam saber-se vítimas dessas injustiças históricas. Que formação de docentes-educadores, gestores capazes de administrar o direito a esse saber-se injustiçados? A saber que injustiças e que estruturas as produzem e reproduzem?

Administrar vítimas que se sabem injustiçadas

Formar docentes-educadores-gestores que reconheçam que os educandos, desde a infância à vida adulta, sabem-se injustiçados. Carregam à educação saberes de vivências feitos das injustiças sofridas por seus coletivos e por eles, elas. Para aprender como gestionar a educação de vítimas, será necessário aprender como se sabem vitimados por vivências da pobreza, pelo sofrimento, pela segregação social, étnica, racial, de gênero, lugar, pelo sobrevier em lugares, corpos precarizados. In-humanos. Sabem-se pertencer a famílias vitimadas; aprenderam com a mãe: “somos pobres, não temos comida em casa, procure na rua; seu pai desempregado, trabalhe nas ruas, traga uns trocados para a renda escassa; cuide dos teus irmãos que tua mãe tem que sair bem cedo para trabalhar” (Arroyo, 2012, “Corpo-Infância”); (Arroyo, 2015, “Trabalho-Infância”).

O que aprender com seu saber-se vítimas, injustiçados? Carregam às escolas um saber-se vítimas de ser criminalizados pelo Estado, pela Justiça justiceira. Sobre eles pesam imagens persistentes da mídia de que até as crianças, os adolescentes, os jovens são criminosos, que nascem criminosos e exigem ser administrados, punidos como criminosos pelo Estado, pelas forças da ordem e até pelas escolas. Com essas Imagens Quebradas (Arroyo, 2004), chegam das ruas, das periferias, do trabalho às escolas, à EJA, às universidades. Sabem-se vitimados, injustiçados. Sabem-se, desde crianças, “ameaçados e por quem” (Arroyo, 2019, p. 77).

Quando a gestão se propõe administrar com justiça social, somos obrigados a tentar entender o que significa para uma criança, adolescente ou jovem saber-se pensado, segregado como criminoso, saber que os favelados, nos morros, são decretados temidos, extermináveis. Imagens Quebradas? Vidas Ameaçadas? Que sofrimentos, inseguranças, inferiorizações de saber-se assim pensados em seus coletivos de classe, raça, lugar social? A gestão da educação com justiça é obrigada a se colocar como ver, tratar com que Artes pedagógicas essas experiências, sofrimentos, humilhações, medos, com que tantos educandos, ainda crianças, chegam às escolas e chegarão até à EJA e até às universidades.

Administrar essas vidas injustiçadas, ameaçadas, essas imagens humanas quebradas exigirá uma gestão da educação com justiça social que dê centralidade na formação de gestores-educadores para entender as vítimas. Não será suficiente entender as injustiças sociais. Da gestão da educação se exige dar centralidade a entender as vítimas. Sabemos mais das desigualdades e até das injustiças sociais do que das vítimas que o Estado, a Justiça Justiceira produzem. A pedagogia tem como função social entender os processos de humanização. Diante das injustiças somos obrigados a entender mais dos processos de desumanização dos injustiçados (Arroyo, 2019). Infâncias injustiçadas, humanidades roubadas, desumanizadas. Somos obrigados a entender mais sobre os processos de desumanização com que a sociedade os vitima.

Decretar infâncias, adolescências como criminosos é decretar o sem-sentido da sua educação e gestão

Tem sido uma constante na gestão dos Outros pelo Estado decretá-los violentos para legitimar violentá-los. Nada fácil aos gestores dessas vítimas que chegam às escolas fazer uma gestão da educação com justiça social sem decretá-los culpados. Uma das injustiças mais violentas da sociedade, da política, da justiça, do Estado é decretar os injustiçados, os violentados como responsáveis, culpados das violências que sofrem. Entender a produção dos injustiçados, sua produção como vítimas das injustiças sociais, exige formar gestores-educadores para entender e acompanhar como infâncias, adolescentes inocentes são produzidos como culpados. Como educar infâncias decretadas culpadas? O que de in-humano em ser obrigados desde crianças a pensar-se criminosos? A pensar-se membros de coletivos sociais, raciais decretados criminosos? Nos currículos de formação, os gestores-educadores dessas vítimas inocentes têm direito a ser formados para entender esses processos de produzir infâncias-adolescências como vítimas. Como culpados.

Quando o Estado, a sociedade, até as instituições públicas decretam os jovens, adolescentes, crianças populares como criminosos, ameaçadores, como não educáveis, não humanizáveis, mas extermináveis, estamos em tempos de decretar o sem-sentido da educação e da sua gestão. A pedagogia se afirma com uma função social, política, cultural, moral na crença de que o humano é viável: educar infâncias humanizáveis.

Vê-los ameaçadores pelo Estado, pelas políticas educativas complica a análise pedagógica. Complica as teorias de gestão da educação. Deixa as políticas, a pedagogia, as teorias de gestão em uma radical insegurança: qual a sua função de acompanhar infâncias em processos de humanização se são decretadas extermináveis, in-humanizáveis? As repostas e soluções estão postas: rebaixamento da idade penal, decretar a pedagogia, os educadores, gestores incapazes de educar infâncias criminalizadas e entregá-las à justiça penal, ao sistema prisional, porque decretados adolescentes em conflito com a Lei. Entreguemos essas infâncias à gestão cívico-militar.

As teorias de gestão pedagógica, democrática, humanizadora perdem sentido quando as infâncias, adolescências são decretadas criminosas, ineducáveis, in-humanizáveis (Arroyo, 2015). A função histórica da educação e de sua gestão perde sentido político, ético e pedagógico. Exigências de outras teorias e práticas da gestão da educação? Exigências de funções políticas radicais para a ANPAE?

As vítimas inocentes revelam a monstruosidade das violências que sofrem

Quando a ANPAE se propõe gestão da educação com justiça social, em tempos de um Estado de justiça justiceira, está nos propondo que formar gestores-educadores de infâncias-adolescências exige olhares específicos sobre os significados das injustiças que sofrem e levam às escolas. Aumenta a consciência dos gestores-educadores de que as imagens de infâncias inocentes a cultivar como flores por jardineiros fiéis pertencem ao passado. “A imagem que eu tinha da infância era vidro e se quebrou”, comentava uma educadora. “Quando as imagens inocentes de infância se quebram, nossas autoimagens educadoras se quebram”, comentou outra educadora. “Imagens Quebradas de alunos e mestres” (Arroyo, 2004).

O Estado, a justiça, a mídia nos advertem: gestores, educadores mudem o olhar sobre os educandos, superem vê-los como inocentes, os reconheçam como o Estado, a mídia, os órgãos de segurança os veem – violentos, não inocentes, mas culpados. Como reagir, resistir? Tempos de não perder o olhar pedagógico, humano, ético e tentar entender, denunciar as monstruosidades que o Estado revela ao produzir vítimas inocentes como culpadas. Tempos de outra formação de docentes-gestores-educadores.

As injustiças se tornam mais injustas quando os injustiçados são crianças inocentes e a gestão de crianças inocentes, injustiçadas adquire novas radicalidades. Não será suficiente à administração da educação teorizar sobre a gestão de injustiçados, mas de vítimas inocentes-crianças injustiçadas. Injustiçar inocentes crianças adquire um caráter monstruoso. Como reagir a essas imagens negativas que pesam sobre gestores-educadores nas escolas, sobretudo públicas? Que formação para administrar essas monstruosidades de inocentes injustiçados? Não há como falar em abstrato, de maneira genérica, sobre a violência social que chega às escolas. Formar para condenar toda violência, injustiça social não será suficiente na formação de gestores-educadores de crianças, adolescentes inocentes. Administrar infâncias, vítimas inocentes, exige aprofundar nas monstruosidades que caracterizam a vitimação social, política de inocentes.

A pedagogia tem mais familiaridade com educar para o bem, para a harmonia, a justiça. Para o bem como ideal. Com a chegada de vítimas inocentes, crianças, adolescentes, a pedagogia se assusta diante do mal, que supõe destruir vidas, condenar à fome milhões de inocentes. Volta a pergunta, como formar gestores-educadores não apenas para promover o bem, mas para reconhecer o mal que vitima inocentes. Aprender a ver, reconhecer que o mal existe e chega às escolas e interroga a pedagogia. Essa uma das lições a aprender que vem dos inocentes injustiçados que chegam às escolas, à EJA. Mas, ir além e aprender a ver a brutalidade antiética, antipedagógica de vitimar inocentes. Ver nas crianças, adolescentes vitimados, inocentes. Não monstros como o Estado os vê. Uma mudança radical ética, pedagógica contra tantos olhares sociais do Estado, até das escolas, que os condenam como violentos. Perderam a condição de inocentes?

O olhar pedagógico, ético é chamado a se contrapor a esses olhares e reeducar a sociedade, as políticas, os gestores do Estado e das escolas para ver vítimas inocentes. Revelar, denunciar a maldade radical de destruir vidas inocentes. A palavra Pedagogia carrega infância – defensora da infância. Em tempos em que as infâncias são criminalizadas, como defender essas infâncias? Como formar gestores-educadores defensores de inocentes vitimados? Como formar gestores com um olhar ético, pedagógico?

Que radicalidades políticas repõem os inocentes vitimados, injustiçados?

A maldade humana da sociedade, do poder que chega às escolas em vidas de infâncias vitimadas, destruídas, redefine a própria função política das escolas e de sua gestão. Função política que vai além de bem administrar uma instituição que garanta o direito a percursos de aprendizagens de qualidade. Administrar o direito a viver e à vida justa humana é mais radical quando as crianças, adolescentes, os inocentes são injustiçados, negados, ameaçados no direito primeiro a viver. Quando os educandos são golpeados nos direitos mais básicos: o direito à vida justa, humana, o direito à educação e sua gestão adquire conotações políticas mais radicais. Vida, políticas, educação, justiça social e cognitiva exigem propostas-gestões políticas radicais, quando chegam às escolas, à EJA vidas ameaçadas, injustiçadas no direito à vida.

A criminalização das infâncias, adolescências pelo Estado, pelos donos do poder inverte a realidade política: não são as elites, o Estado, o poder, o capital, os órgãos de in-segurança, os opressores, mas se apresentam como vítimas dos jovens, adolescentes, crianças que em nossa história foram os oprimidos, as vítimas. A sociedade, o Estado, as escolas se pensam vítimas de infâncias, adolescentes criminosos, ameaçadores. Essas análises hegemônicas, hoje na política que a mídia repete, invertem as velhas relações opressões-oprimidos, violentos-violentados. Invertem a política. Invertem a função histórica da pedagogia e da docência.

Essa inversão não contamina a própria análise das escolas? Os violentos são as infâncias, adolescências antes pensados inocentes, violentados pela sociedade, pelo Estado e pelas segregações, reprovações das escolas, agora decretados não violentados, mas violentos, indisciplinados, complicando a paz da gestão social, cidadã, escolar. Visões invertidas a complicar a análise política, pedagógica e gestora. As infâncias, adolescências não mais inocentes a educar, mas um problema de ordem, de disciplina, de violência na sociedade, nas cidades, nas escolas. Um problema político, moral, pedagógico a exigir formas repressivas de gestão do Estado. Das escolas.

As teorias da gestão da educação vêm se redefinindo para incorporar esses impasses, essas radicalidades políticas que repõem os inocentes decretados culpados? Das vítimas inocentes vêm indagações radicais para a gestão da educação, para a gestão de políticas. Sobretudo, para os gestores-educadores dessas infâncias inocentes vitimadas, injustiçadas. Que respostas a essas radicalidades políticas? A gestão da educação para a justiça social conseguirá resistir à gestão militarizada das escolas? Resistir tomando consciência de estarmos em tempos de um Estado que opta como política produzir injustiçados. Como educadores-gestores de injustiçados aprender com as resistências históricas dos próprios injustiçados.

Administrar resistências ativas a ser injustiçados

A ANPAE nos propõe avançar para uma gestão da educação com justiça social e acrescenta: resistência ativa às injustiças. Uma gestão da educação que reconheça a história de resistências ativas dos injustiçados às injustiças que os oprimem. Os injustiçados resistem e insistem resistindo às injustiças que sofrem em nossa história de tradições autoritárias. Vão às escolas de movimentos e ações coletivas de resistências ativas e esperam da gestão da educação ser fortalecidos em suas resistências ativas.

Que gestão da educação fortalecerá essas resistências ativas que jovens-adultos levam à EJA, às universidades, lutando por cotas sociais, raciais? Que resistências ativas às injustiças levam as infâncias, adolescências às escolas públicas, dos pobres? Que resistências ativas levam as famílias, as mulheres mães em lutas por terra, teto, saúde, comida, escolas? Proteção? Reconhecê-los resistentes às injustiças de que se sabem vítimas. Que os saberes escolares fortaleçam esse saber-se, trazendo a história das injustiças que os vitimam, mas ir além: que os saberes escolares reconheçam e narrem tantas histórias de resistências ativas. Têm direito a saberes que fortaleçam seu saber-se injustiçados, mas resistentes às injustiças.

Levam às escolas, à EJA, às universidades resistências carregadas de denúncia moral, política. Não pedem medidas de corrigir, minorar essas injustiças do passado e do presente. Como sujeitos de resistências reagindo com indignação moral, política, acrescentam radicalidades morais, políticas à proposta da ANPAE de Gestão da Educação com Justiça Social. Dos injustiçados vem a radicalização da gestão da educação com ética, justiça. Da história de suas resistências políticas, éticas vêm as exigências mais radicais para a proposta da ANPAE de Gestão da Educação com Justiça Social.

A quem apelar para uma gestão com justiça social em tempos de um Estado de justiça justiceira? Apelar aos injustiçados, aos valores de justiça que afirmam, politizam em suas resistências políticas históricas. Aprender com os movimentos sociais e com o movimento infanto-juvenil que gritam: “Parem de nos matar porque negros”. Aprender com os movimentos das mulheres negras nas lutas contra os genocídios de seus filhos. Resistências denunciantes, éticas por justiça: “Enquanto viver luto”.

No livro Vidas Ameaçadas (Arroyo, 2019), destaco as resistências éticas dos injustiçados, ameaçados no direito primeiro à vida. Resistências-denúncia das próprias infâncias que se sabem ameaçadas e por quem. Resistências dos diversos movimentos sociais por vida. Resistências, sobretudo, das mulheres, mães, pobres, trabalhadoras, negras contra os genocídios de seus filhos. Resistências de tantos educadores, docentes, gestores nas escolas públicas dos injustiçados. O que aprender desses coletivos resistentes para fortalecer a gestão com justiça social?

Que formação de gestores-educadores de injustiçados?

Gestores-educadores dessas infâncias-adolescências nas escolas e jovens-adultos na EJA convivem com esses injustiçados. Que formação receberam? Gestores-educadores têm consciência de que essas vidas injustiçadas chegam às escolas, mas como administrar injustiçados? Foram formados para vê-los? As políticas de formação, que interpretações fazem das injustiças? Esses corpos-vidas injustiçadas são vistas? Ignoradas? São reconhecidas como injustiças sociais – como o tema sugere, ou têm sido pensadas como carências, da condição de pobreza de que as famílias, os coletivos de origem dos educandos são responsabilizados?

Quando se responsabiliza a família, o pai, a mãe, o coletivo social como responsável desse injusto viver-sobreviver, se fecham as possibilidades de vê-los como injustiçados sociais, raciais. Fecham-se as possibilidades de formar gestores-educadores para administrar injustiçados. Abrem-se as portas para culpá-los desde crianças pela pobreza, fome, trabalho de rua, viver na favela... Abrem-se as portas para as formas de administrá-los como culpabilizados de seu indigno, injusto viver: falta de valores, na família, nas mães, nos educandos, logo, administrar moralizá-los com bons conselhos, com hábitos de disciplina, de trabalho, de esforço, de empregabilidade... E sua condição será outra: livres da condição de injustiçados!

Formar para administrar vidas, percursos humanos-in-humanos de injustiçados exige erradicar essas representações tão incrustadas em nossa cultura política e pedagógica que têm culpabilizado os injustiçados pelas injustiças que sofrem. Dos injustiçados que chegam por milhões às escolas vêm exigências políticas, éticas até teóricas de superar essas interpretações tão injustas das injustiças sociais, reduzindo-as a carências de valores pessoais e familiares. Avançar para gestão da educação com justiça social exige repensar as concepções, teorias de gestão da educação, exige superar formas de culpabilizar os injustiçados pelas injustiças que sofrem. Exige-se educar os gestores-educadores para superar essas formas injustas de culpabilizar famílias, educandos. Exigem-se teorias de gestão que façam justiça, reconhecendo que as injustiças são socialmente produzidas. Que há injustiçados porque há injustiças, há estruturas injustas. Há injustos.

Como gestores, educadores nas escolas, na EJA percebem que sua função mais desafiante é como administrar a educação de injustiçados, as teorias de gestão os têm capacitado para administrar percursos escolares e humanos de crianças, adolescentes, jovens, adultos que chegam injustiçados, vítimas de tantas injustiças sociais? Uma interrogação radical para repensar as teorias de gestão da educação. Uma interrogação para tempos de formação inicial e continuada de gestores, educadores.

Que dimensões trabalhar como tema gerador de formação para administrar vidas injustiçadas? Tentemos apenas destacar temas de estudo-formação que vêm sendo priorizados nas pesquisas, na formação inicial e continuada:

  • Conhecer quem os produz como injustiçados. As vítimas têm voz, têm vivências históricas de serem injustiçados, violentados. As famílias têm consciência das violências contra seus filhos inocentes e têm consciência de quem os violenta. Merecem, exigem ser ouvidos (Arroyo, 2019). Começar por dar voz, dialogar com as famílias, os educandos, com as mães, sobre que injustiças padecem, que falem, mostrem sua consciência das injustiças históricas, sociais, raciais, de gênero, classe, moradia, trabalho, pobreza de que se sabem vítimas.

  • Trazer estudos das diversas áreas sobre como essas injustiças são produzidas em nossa história. Que estruturas econômicas, sociais, políticas, culturais produzem e reproduzem essas injustiças. Ter uma visão aprofundada da produção das injustiças sociais que chegam nas vidas dos educandos será uma exigência para administrar a educação dos injustiçados. Será uma exigência na formação de educadores, gestores da educação com justiça social.

  • Que injustiças sociais os vitimam? Os educandos injustiçados têm direito a saber-se injustiçados por que estruturas sociais, políticas, econômicas, culturais, injustas. A gestão é obrigada a garantir esse direito a esses saberes. Seu direito a currículos que analisem cada uma das condições de viver, do injusto sobreviver que levam às escolas: a pobreza, a fome, quase 20 milhões de crianças-adolescentes-alunos no Bolsa Família porque na extrema pobreza; milhões nas ruas, do trabalho por sobreviver para as escolas e das escolas para o trabalho; milhões nas periferias favelas, vilas, lugares precaríssimos de um sobreviver injusto; corpos precarizados que marcam as injustiças que padecem.2

  • Como as vivências das injustiças destroem humanidades. Uma exigência para as teorias da gestão, administração da educação e da formação de gestores-educadores: como essas injustiças afetam de maneira mais injusta as crianças, adolescentes nos processos de aprender, mas, sobretudo, no seu desenvolvimento humano. Como reproduzem identidades coletivas negativas que marcam seus percursos de aprendizagem, suas condutas, seus convívios escolares, sociais... Seus percursos humanos e inumanos. Para administrar a educação dessas infâncias-adolescências injustiçadas, se exigirá uma formação como gestores-educadores que traga essas questões com centralidade nas teorias de gestão da educação e da formação para entender e acompanhar vidas injustiçadas. Humanidades roubadas. Com que Artes gestoras recuperar essas humanidades roubadas?

Dos injustiçados nessas radicalidades de saber-se roubados em suas humanidades vem uma exigência política, ética para a gestão da sua educação: ir além de bem administrar seus processos de aprendizagens escolares, seu sucesso cognitivo e priorizar como administrar processos de humanização, formação humana, sabendo-se roubados de suas humanidades. Como administrar processos de desumanização a exigir maior centralidade. Gestão dos injustiçados com justiça social, uma opção política e ética radical da gestão da educação e da formação de gestores-educadores.

Referências

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SANTOS, B. S.; MENEZES, M. P. (Org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. [ Links ]

1Acompanha-me não esquecer as relações estreitas entre poder e gestão da educação no artigo “Administração da Educação, Poder e Participação”, Educação & Sociedade, v.1, p. 36-46, 1979. Já, antes, na dissertação do mestrado em Ciência Política da UFMG: “Política Educacional e Poder Local”, 1974.

2Trago para a reflexão política, ética, pedagógica esses tratos injustos da infância nos livros Corpo-Infância, Petrópolis, Vozes, 2012 e Trabalho-Infância, Petrópolis, Vozes, 2015.

Recebido: 03 de Março de 2020; Aceito: 15 de Junho de 2020

MIGUEL GONZALEZ ARROYO

Doutor em Educação pela Stanford University e pós-doutor pela Universidade Complutense de Madri. Professor titular emérito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor Honoris Causa da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail helciojpb@gmail.com

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